Acessibilidade / Reportar erro

Manifesto da Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO) enviado ao Plenário da Conferência Nacional da Ciência, Tecnologia e Inovação

Manifesto da Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO) enviado ao Plenário da Conferência Nacional da Ciência, Tecnologia e Inovação

Brasília, setembro de 2001

Acompanhando a crescente importância econômica e social que o setor saúde vem assumindo na maioria dos países, bem como o intenso processo de "tecnificação" vivido por este mesmo setor, observa-se a constituição de estruturas de pesquisa em saúde cada vez maiores e mais complexas. Em praticamente todos os países que possuem alguma tradição e cultura científico-tecnológica, a pesquisa em saúde é o maior componente do sistema de C&T. Isso ocorre nas maiores economias mundiais, como os EUA, bem como em países em desenvolvimento como o Brasil.

A pesquisa em saúde extrapola cada vez mais as fronteiras das tradicionais ciências da saúde, incorporando conhecimentos provenientes de campos originalmente afastados daquelas ciências, como a engenharia, as ciências exatas e as ciências humanas e sociais. Assim, considerada em sua complexidade, a pesquisa em saúde supera a perspectiva disciplinar para ter seus limites estabelecidos por uma perspectiva setorial, bastante mais abrangente.

De acordo com o CNPq, nessa perspectiva setorial, existem no Brasil cerca de 3.500 grupos de pesquisa que realizam investigação científica ou tecnológica em saúde. Esses grupos albergam cerca de 15.000 pesquisadores diretamente envolvidos com as linhas de pesquisa vinculadas a este setor. Desses grupos, apenas cerca de metade é oriunda das áreas que compõem a grande área das ciências da saúde e 25% provêem de áreas pertencentes à grande área das ciências biológicas. O quarto restante está vinculado às humanidades, às ciências agrárias, às engenharias e às ciências exatas e da Terra.

Estes, tamanho, amplitude e complexidade, por si só, orientam a abordagem que devemos adotar no debate de uma política de C&T para a saúde. Ela deve ser o mais inclusiva possível, procurando cobrir todos os segmentos envolvidos na pesquisa em saúde. No que se refere aos campos de investigação, devem estar presentes a pesquisa epidemiológica, a pesquisa sobre políticas e serviços de saúde, as investigações nas disciplinas das biociências com repercussões sobre a saúde humana, a pesquisa clínica em seus vários componentes, as ciências sociais em saúde, o extenso terreno da modelagem computacional em inúmeros aspectos da saúde individual e coletiva, a pesquisa de novos materiais em suas aplicações na saúde humana, as contribuições das ciências agrárias etc. Por um outro prisma, devem estar contempladas tanto a pesquisa científica, mais interessada no avanço do conhecimento, quanto a pesquisa envolvida diretamente com razões de aplicação prática e o desenvolvimento de produtos e processos. No que se refere aos atores, a pesquisa em saúde compreende a investigação dos pesquisadores clínicos, os biocientistas envolvidos com pesquisa fundamental, os pesquisadores em saúde coletiva e demais profissionais envolvidos nas práticas de pesquisa descritas sumariamente mais acima.

A história mostra com clareza que a pesquisa no Brasil possui, de modo geral, características de pouca indução e de grande autonomia em relação às necessidades econômicas e sociais do país. No caso da pesquisa em saúde essas características podem ser verificadas com nitidez, conformando uma certa tradição. Uma perspectiva moderna de C&T em saúde recomenda que esta tradição seja alterada, no sentido de um maior espaço de integração e articulação com as necessidades de saúde da população. Em outras palavras, conforme recomendou a I Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia em Saúde (I CNCT/S), realizada em 1994, a política de C&T em saúde deve ser um elemento constitutivo da política de saúde do país.

Um projeto nacional de pesquisa em saúde nessas novas condições deve fundar-se em alguns princípios gerais recomendados pela I CNCT/S, a saber: (a) a prioridade aos projetos capazes de aumentar o grau de eqüidade do sistema de saúde; (b) o respeito permanente a padrões éticos consensualmente estabelecidos nos projetos executados; (c) o estímulo permanente a práticas investigativas que somem esforços e fomentem a integração de grupos de pesquisa e instituições; (d) o estabelecimento de padrões de qualidade científica ou tecnológica segundo a avaliação dos pares como critério de base para o financiamento de projetos; (e) a garantia do acompanhamento e desenvolvimento da C&T na fronteira do conhecimento dos diferentes campos estratégicos.

A assertiva de que a política de C&T em saúde deve ser compreendida como um componente da política de saúde está de acordo com as mais recentes orientações da Organização Mundial da Saúde e, por conseguinte, não deve ser entendida como uma "invasão", por parte do Ministério da Saúde, das tarefas de formulação, coordenação e gestão da política brasileira de ciência e tecnologia, constitucionalmente atribuídas ao Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Pelo contrário, uma política explícita de ciência e tecnologia em saúde poderá colaborar com o esforço do MCT em compatibilizar políticas setoriais de ciência e tecnologia, conforme parece ser uma das metas atuais prioritárias deste ministério, como ocorre em outros países onde organismos semelhantes complementam a atuação dos ministérios ou setores dedicados a C & T em geral.

Uma política explícita de ciência e tecnologia em saúde não será adequadamente desenvolvida com os recursos financeiros disponíveis atualmente. Daí o apoio irrestrito à proposta elaborada pelo Ministério da Saúde (MS) no sentido da constituição de um Fundo Setorial com o objetivo de complementar o financiamento de ações de fomento à pesquisa em saúde. No espírito da política geral dos fundos setoriais, desenvolvida sob a coordenação do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), entendemos que a tributação de setores industriais ou de serviços notoriamente geradores de "dívida sanitária" deva ser tomada como modelo para o reforço do financiamento da pesquisa em saúde. Ainda no capítulo do financiamento, será essencial que as agências já criadas pelo MS, nomeadamente a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), também se integrem no esforço e no espírito de uma política explícita de pesquisa em saúde, através de repasses de parcela de suas receitas que sejam incorporadas ao financiamento dessa política.

Os recursos financeiros existentes hoje serão insuficientes para financiar uma nova política de C&T em saúde. Da mesma forma, a maneira pela qual o MS gerencia atualmente suas ações de fomento em ciência e tecnologia é amplamente insatisfatória. E tornar-se-á ainda mais insatisfatória com o aumento das responsabilidades advindas da implantação de uma política explícita de ciência e tecnologia em saúde. Para que a gestão da nova política de C&T em saúde possa responder às novas características dessa política, é necessária a existência de um novo organismo gestor, uma agência setorial de fomento capaz de organizar e implementar as ações de apoio à pesquisa em saúde. Esta proposta não é original em termos mundiais nem mesmo em termos nacionais. Estados Unidos, França e Canadá, entre outros, possuem, com diferentes configurações, agências específicas para o fomento à C&T em saúde. E no Brasil, embora não sejam comuns as experiências de agências setoriais, vale lembrar a Embrapa e o sistema de C&T em pesquisa agropecuária como uma experiência bem-sucedida neste terreno.

A constituição dessa agência deveria obedecer a um conjunto de critérios gerais, expostos a seguir.

Em primeiro lugar, sua criação deve dar-se mediante lei aprovada no Congresso Nacional e não, como já cogitado, por medida provisória.

Em segundo lugar, a aprovação de uma ou mais das contribuições sociais ou outras formas de tributação que venham a financiá-la deve acompanhar a criação da agência.

Em terceiro lugar, a atuação da agência, quando criada, estará em rigorosa cooperação e harmonia com as tradicionais agências federais de fomento, detentoras de informação e experiência nas ações de fomento à pesquisa.

Em quarto lugar, deve-se garantir que a agência será o órgão gestor do conjunto de ações que comporão a nova e explícita política de ciência e tecnologia em saúde, estabelecendo normas e procedimentos para a totalidade dos dispêndios realizados pelo MS no campo da pesquisa em saúde, com a exceção das ações realizadas diretamente pelos seus institutos de pesquisa.

Nesse conjunto serão incluídas as ações propostas pelos componentes organizacionais do MS, bem como pelas suas agências reguladoras.

Em quinto lugar, a agência deverá ter uma administração ágil e não burocratizada, tendo como base da avaliação de mérito a revisão por pares.

Finalmente, no âmbito da pesquisa tecnológica, a agência terá a autoridade necessária para utilizar mecanismos de orientação de oferta de produtos no mercado, como por exemplo, a utilização da capacidade de compra do Estado.

Ao lado dos modelos de financiamento e de gestão, entendemos que a construção de uma agenda capaz de orientar a construção de prioridades completa o tripé para uma nova política explícita de ciência e tecnologia em saúde. Entendemos também que a elaboração dessa ferramenta é um processo bastante complexo, caso o conceito de pesquisa em saúde possua a amplitude expressa neste documento, em particular num país como o Brasil, onde se somam agendas de primeiro e terceiro mundo. Daí que será necessário superar qualquer tentativa de simplificação metodológica, como, por exemplo, tomar por agenda de prioridades uma lista de doenças em ordem decrescente de importância, mesmo que esta ordem seja medida através de critérios aparentemente sofisticados do tipo "carga da doença". Uma agenda de prioridades deve circunscrever a amplitude de temas e atores descritos acima neste documento, bem como deve dar conta de componentes de intervenção tecnológica.

Finalmente, na tradição quase cinqüentenária das Conferências Nacionais de Saúde (CNS), recomendamos que seja convocada para o ano de 2003, tal como proposto na XI CNS (2000), a II Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia em Saúde. Esta nova CNCT/S poderá avaliar os primeiros resultados das novas políticas, modelo de financiamento e modelo de gestão aqui propostos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jan 2002
  • Data do Fascículo
    2001
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cienciasaudecoletiva@fiocruz.br