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Janus bifronte e a pós-graduação

Janus bifrons and the post graduation

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Janus bifronte e a pós-graduação

Janus bifrons and the post graduation

José da Rocha Carvalheiro

Instituto de Saúde, Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. jrcarval@usp.br

Introdução

Analisando o texto "Pós-Graduação em Saúde Coletiva de 1997 a 2007: desafios, avanços e tendências", de Maria Cecília de Souza Minayo1, somos impactados pela maneira como a autora enuncia seu discurso e que nos remete a um texto já antigo (1987) de Bruno Latour, originalmente publicado em inglês, com recente republicação em francês2. Nessa obra, Latour apresenta como principal "regra do método" que devemos estudar "a ciência em ação e não a ciência feita". Ilustra essa ideia com a necessidade de chegar antes que os fatos sejam transformados em caixas pretas, mas seguir as controvérsias que nos permitem "reabrí-las". A figura mítica empregada pelo autor foi Janus3, um deus romano que deu origem ao nome do mês de janeiro. Era o porteiro celestial, com duas cabeças, representando os términos e os começos, o passado e o futuro. Na visão de Latour, a face austera e formalista do deus representa a ciência pronta (ou "prêt-à-porter"); a outra, vivaz e informal, a ciência em construção (ou "en train de se faire"). No estudo de Latour, as primeiras palavras de Janus remetem a um fenômeno acústico estranho que nos pode confundir. Ao mesmo tempo, as duas faces dizem coisas inteiramente diferentes: para uma, "é suficiente considerar os fatos" e, para a outra, "há que desembaraçar todos os fatos inúteis".

A análise da concepção do texto da autora, em itens, nos dá uma ideia do percurso: Resumo; Introdução; Principais questões levantadas pela Pesquisa de 1994-1997; Questões ressaltadas pela avaliação de 2008-2009; Considerações finais: a pós-graduação em Saúde Coletiva contribui para o aprimoramento do SUS ?

Nada mais apropriado para um texto que se propõe analisar "desafios, avanços e tendências" do que contextualizar, passada uma década, as questões então levantadas e refletir, na atualidade, a respeito de qual pode ser a contribuição social da pós-graduação em Saúde Coletiva.

Já no resumo, a autora anuncia que esta análise feita em 2008-2009 contempla a construção do campo, demanda, egressos, perfil do corpo docente, produção científica e internacionalização da área. Além de trabalho de campo, usaram-se fontes secundárias, especialmente os "Cadernos CAPES". A estratégia de obter os dados no processo de investigação merece um comentário crítico preliminar: esta fonte tende a criar um círculo vicioso. Está aí o discurso "capesianamente correto" em que os atores buscam se adequar às regras do jogo, ou apenas jogar pelo regulamento. Os resultados mostram "um campo em crescente estruturação e pujante do ponto de vista da demanda". Esta pujança é atestada pelo número crescente dos titulados e da produção científica, além da adequação de conteúdos e docentes nos programas. Mas assinalam, também, os problemas persistentes de concentração dos programas no sudeste, a dificuldade de absorção dos titulados pelo sistema de saúde, embora se afirme que "a pós-graduação em Saúde Coletiva está cada vez mais orientada para o aprimoramento do SUS".

O desempenho da pós-graduação em Saúde Coletiva

Diante da aparente incongruência da última observação do item anterior, somos obrigados a pensar no que, afinal de contas, estamos fazendo numa empreitada desta envergadura. Jogar o jogo pelo regulamento pode representar um modo pouco crítico de desenvolver a nossa área em todas as dimensões do campo: temática, conceitual, política, social, laboral. Concluir que estamos no caminho certo na disputa pela visibilidade no campo científico não quer necessariamente dizer que estamos igualmente visíveis no campo do mercado de trabalho na saúde. O capital acumulado num campo não é imediatamente conversível em outra espécie de capital, fora dos limites desse campo4. Ao exemplificar, Bourdieu faz um jogo de palavras quando considera o fracasso de Pierre Cardin no terreno das artes plásticas ao tentar "transférer dans la haute culture un capital accumulé dans la haute couture".

Não é demais lembrar que nosso sucesso no terreno acadêmico já não é tão reconhecido como dantes no campo da Saúde Pública. O que nos remete a revisitar nossas origens e a polêmica em torno da própria ideia de Saúde Coletiva, por referência à Medicina Social e à própria Saúde Pública. A Medicina Preventiva tem origem distinta, com um discurso voltado inicialmente para o processo pedagógico de formação de profissionais para depois tomar um vulto ideológico de modo de "organização das ações do médico em sua comunidade". Todas estas são construções sociais e não apenas conceitos elaborados no meio acadêmico. A Saúde Coletiva também foi construída, nas diversas dimensões da ideia de "campo", a partir de um complexo processo social. Ao contrário do que pensam alguns, esse processo deu-se a posteriori, tendo a expressão Saúde Coletiva surgido antes da construção de sua legitimidade conceitual. Juan Cesar Garcia ("entrevistando" a si próprio, em texto póstumo), comentando a inclusão das ciências sociais em nosso âmbito, prefere que se chame Medicina Social e inclui, nessa linha de pensamento, também a designação de Saúde Coletiva; considera, em ambas designações, um mérito a não inclusão de um nome de disciplina consolidada (sociologia médica, antropologia médica, epidemiologia social, etc.), excluindo assim o contexto disciplinar; considera Saúde Pública como sendo o âmbito de atuação dos sanitaristas, interessados em resolver problemas concretos5.

A pós-graduação em Saúde Coletiva e a ABRASCO tem origem nos anos setenta e essa origem comum deve ser considerada quando pensamos o modo profissional de atuar na Saúde Pública. Ambas surgem primordialmente com ambições acadêmicas de formar mestres e doutores para dar continuidade a um campo interdisciplinar. Que se constitui antes de tudo como "um modo de olhar para as questões ligadas à saúde da população". Não apenas no terreno da atuação de determinado profissional no mercado de trabalho ou no da organização da sociedade para enfrentar "problemas de saúde". A identificação desses problemas e dos modos de combatê-los faz parte do conjunto de interesses da Saúde Coletiva, com um modo interdisciplinar próprio de encará-los. A amplitude do campo temático vai, portanto, da biologia molecular à influência da sociedade na formulação de políticas de saúde, para exemplificar com apenas dois terrenos extremos na extensa gama de interesses. Tratando-se de um período crítico (anos setenta e oitenta) da luta contra a ditadura, pelo retorno às liberdades democráticas, pelas eleições diretas e pela nova Constituinte, a ABRASCO e a Saúde Coletiva identificam-se fortemente com esse quadro. Porém, é necessário considerar que tanto uma quanto outra não esgotam sua esfera de atuação na construção de um sistema de saúde, integral, universal, igualitário, descentralizado e democrático. Para muitos, mas não para todos, ainda vige a undécima tese sobre Feuerbach, de Marx6: "os filósofos (cientistas) têm apenas interpretadoo mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo". Avançar no terreno da explicação da sociedade basta a muitos, o que não lhes tira o mérito.

Um dos instrumentos propostos como resultado da pesquisa dos anos noventa foi a criação pioneira do Fórum de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, de grande relevância nos esforços de harmonização de critérios e procedimentos. Nele, tem sido intensamente discutida a questão da avaliação dos programas. Esta é indispensável, mas conturba o processo quando se torna uma finalidade em si mesma e não um instrumento de reflexão a respeito da área. Não espanta que o segmento responsável na CAPES tenha tanta dificuldade em aprimorar a avaliação do chamado impacto social dos programas, dando muito mais relevância à produção científica indexada em bases internacionais. Isto vale para todas as áreas, não estamos escoteiros.

O que Janus prenuncia para o futuro

A cara vivaz e dotada de incerteza de Janus, a da ciência em construção, é quem fala nesta seção.

Existe um consenso a respeito dos avanços, em busca do reconhecimento como sendo uma área cientificamente madura. Há, no entanto, uma nítida confusão quanto à inserção dos egressos da pós-graduação no mercado de trabalho. Nas origens, ao menos no Brasil, esta área surge no ambiente acadêmico como desdobramento natural do esgotamento do modelo de ensino médico da Medicina Preventiva, baseado nas ideias da história natural da doença e dos níveis de prevenção. Em primeiro lugar, por que o ensino de outras profissões da saúde também incursionou pelo chamado "modelo preventivista". Acresce-se a insuficiência desse modelo para o trabalho dos sanitaristas (predominantemente, mas não só, médicos) em sua tarefa concreta de enfrentar problemas reais. E, ainda, a insatisfação com a sua fragilidade epistemológica, identificada dentro e fora do âmbito da saúde. De qualquer maneira, os conteúdos desta área eram transmitidos nos cursos de graduação de profissões bem definidas, muitas delas regulamentadas legalmente para serem exercidas. Ou em cursos de especialização, incluindo as residências em medicina e em outras profissões. A própria pós-graduação, nas origens, em muitos programas admitia apenas os egressos da residência médica.

Uma das novidades em nossa área, com reflexos para a organização e o desempenho dos programas de pós-graduação, é a proposta de criação de cursos de graduação, em "Saúde Coletiva" ou com outras designações. Já existe mesmo a proposta de criar, na ABRASCO, um Fórum de Graduação em Saúde Coletiva. Esta proposta já está em execução e precisa ser considerada criticamente. Em nossos primórdios (da ABRASCO), realizaram-se as chamadas "reuniões das preventivas", antes mesmo da pós ter sido instituída. Considerava-se, então, prioritária a discussão de como incluir nossa abordagem, incluindo o social, nas diversas graduações profissionais da saúde. O debate, na época, envolvia a(s) residência(s) e a especialização (em Saúde Pública). Tamanho era o dinamismo do momento, envolvendo outras áreas disciplinares, que se chegou a promover um curso de Epidemiologia para sociólogos na Associação Paulista de Sociologia, com aulas dos professores Edmundo Juarez e Oswaldo Forattini, ambos da FSP/USP, e um encerramento em grande estilo com aula de conceito de classe social em Epidemiologia, pela professora Cecília Donnangelo, da FMUSP.

A criação das graduações de Saúde Coletiva, com esse ou com outros nomes, precisa ser contextualizada levando em conta os objetivos das instituições. O mercado de trabalho e o processo de formação de profissionais interagem com um sentido dialético, sem dominância absoluta de um ou de outro. Mas com dominância relativa eventual que obedece a leis próprias dos campos respectivos. Quando São Paulo reformou a área de saúde (no final dos anos sessenta), eliminou as diversas redes especializadas verticais (tuberculose, hanseníase, tracoma, puericultura) e criou os programas integrados em unidades únicas.

Desapareceram as redes dos postos de puericultura, dos ambulatórios de tisiologia, de tracoma e de hanseníase. Fazia falta um profissional capaz de dar conta da nova realidade, embora já existissem cursos de Saúde Pública para médicos, para enfermeiros, engenheiros e dentistas, com duração de um ano. Foram, então, criados cursos "curtos" especiais para treinar médicos sanitaristas que deveriam assumir a gestão desses postos de saúde distribuídos por todo o Estado de São Paulo. Criou-se a carreira do médico sanitarista, com degraus que eram galgados mediante a presença em cursos de especialização em planejamento ou epidemiologia. Neste caso, a dominância relativa foi inicialmente do mercado de trabalho que exigiu formalmente do sistema de preparação de profissionais a criação de cursos que dessem conta das exigências de momento. De certa forma, a resposta foi facilitada pela preexistência de cursos de formação de Saúde Pública para médicos que deram as bases iniciais para atender a solicitação do mercado de trabalho. Passadas duas décadas, a proposta caiu no esquecimento e a carreira de médico sanitarista foi extinta, voltando a ocupação dos cargos de gestão a ser feita da maneira tradicional sem exigência do título, algo parecido com o que ocorre no terreno do jornalismo com idas e vindas na exigência de diploma para exercer a profissão.

O ensino da Saúde Coletiva na graduação é mais facilmente concebido nos cursos de formação de profissionais consolidados, especialmente mas não só médicos, buscando, de algum modo, organizar o exercício da profissão. No entanto, a realidade nos mostra que já existe um número expressivo de cursos de graduação em diversas instituições públicas (e algumas privadas) de ensino superior, com designações variadas mas com reivindicação de que se empregue uniformemente a designação "Saúde Coletiva". Esse quadro coloca em xeque a pós-graduação em Saúde Coletiva e não pode ser omitido do debate a respeito da consolidação desta, paralela ao amadurecimento do campo científico.

Ademais, é indispensável considerar as diversas dimensões ("campos") da nossa área. Além do campo teórico, que se expressa no desenvolvimento de pesquisa, com seus "coletivos de pensamento" com seus "estilos de pensamento" pró­prios, na concepção de Fleck7, há que pensar também o campo do trabalho (considerar o esforço relacionado com o "Tratado de Bologna" e a harmonização das profissões na área da saúde). Pensar, ainda, o campo das ações concretas relacionadas com a difusão de inovações (os "road maps") e a "medicina translacional" (ou "transcriação"). Nestas questões, a pesquisa e seu campo próprio não podem ficar restritas ao exercício de uma determinada profissão, sob risco de banalizar a generosa ideia de "abordagem ou visão interdisciplinar (ou transdisciplinar)" da Saúde Coletiva.

A Saúde Coletiva, em síntese, não se restringe à busca da eficácia (da eficiência ou mesmo da efetividade) do sistema de saúde. Pode-se pensar numa dimensão de Saúde Coletiva associada tanto à gestão participativa nos centros de saúde, quanto nas ideias desenvolvidas pela biologia molecular. Não são tarefas que se esgotem na atuação de um único profissional.

Agradecimento

Para grande espanto da portaria e da fila do elevador, o deus romano Janus, com sua cabeça bifrontal, subiu ao quarto andar do Instituto de Saúde na Bela Vista, São Paulo, e teve solene ingresso em minha sala: "Queremos falar!". Dei-lhes a palavra.

  • 1. Minayo MCS. "Pós-Graduação em Saúde Coletiva de 1997 a 2007: desafios, avanços e tendências". Cien Saude Colet 2010; 15(4):1897-1907.
  • 2. Latour B. La science en action: introduction à la sociologie des sciences Paris: La Découverte; 2005.
  • 3. Jano. In: Wikipedia [site da Internet]. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Jano
  • 4. Bourdieu P. Quelques proprietés des champs. In: Bourdieu P. Questions de sociologie Paris: Les éditions de minuit; 2002.
  • 5. Garcia JC. Juan César Garcia entrevista a Juan César Garcia. In: Márquez M, Rojas OF, compiladores. Juan César Garcia: su pensamiento en el tiempo, 1984-2007 La Habana: Sociedad Cubana de Salud Pública; 2007.
  • 6. Marx K. Teses sobre Feuerbach (1845). [site na Internet. Disponível em: www.marxists.org/portugues
  • 7. Fleck L. Gènese et développement d'un fait scientifique Paris: Éditions Flammarion; 2008.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Ago 2010
  • Data do Fascículo
    Jul 2010
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