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Criando Caim e Abel: pensando a prevenção da infração juvenil

Raising Caim and Abel: thinking on juvenile delinquency prevention

Resumos

Este artigo é parte de uma pesquisa que envolveu adolescentes infratores e seus irmãos não infratores, realizada nas cidades do Rio de Janeiro e Recife. O principal objetivo foi o de conhecer os motivos que levam jovens a trilhar caminhos distintos, visando à prevenção da delinqüência juvenil. Foram incluídos casos de homicídio, assalto à mão armada, lesão corporal, estupro e atentado violento ao pudor e tráfico de drogas. A técnica de história de vida foi usada em entrevistas semi-estruturadas que foram aplicadas a 61 infratores e 31 não infratores. Nelas, buscou-se conhecer a sua realidade familiar, comunitária e social. A técnica de análise de conteúdo foi utilizada nas entrevistas. Foi feita ainda uma abordagem quantitativa dos dados (estudo de concordância e de associação de variáveis) com o objetivo de identificar os fatores predisponentes à infração. No presente trabalho apresenta-se um modelo teórico explicativo da gênese da delinqüência juvenil e suas formas de prevenção; uma síntese dos achados qualitativos e quantitativos da pesquisa; e um ensaio de proposta para identificação dos fatores envolvidos na rede causal da infração cometida por adolescentes.

Delinqüência Juvenil; Prevenção da Delinqüência Juvenil; Adolescente Infrator


This article is part of a research with juvenile delinquents and its siblings non delinquents. It was realized in the cities of Rio de Janeiro and Recife. It has the objective of studying the reasons that take young people to choose different roads, seeking the prevention of the juvenile delinquency. Cases of homicide, armed robbery, assault, rape and indecent act using force and drug traffic were included. The technique of life history was used in semi-structured interviews that were applied to 61 offenders and 31 non offenders. It stressed themes like family, community and social reality. The technique of content analysis was used in the interviews. It was still made a quantitative analysis of the data (agreement study and of association of variables) with the objective of identifying the factors leading to the infraction. This article still presents an explanatory theoretical model of the genesis of juvenile delinquency and its prevention; a synthesis of the qualitative and quantitative results; and an attempt to identify which factors are involved in juvenile delinquency.

Juvenile Delinquency; Prevention of Juvenile Delinquency


ARTIGO

ARTICLE

Simone Gonçalves de Assis 1
Edinilsa Ramos de Souza 1

Criando Caim e Abel - Pensando a prevenção da infração juvenil*

Raising Caim and Abel - Thinking on juvenile delinquency prevention

* A presente pesquisa contou com o apoio do Ministério da Justiça, da Unesco, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro, do Programa Integrado de Bolsistas de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Pesquisa e da Fundação Oswaldo Cruz. Nela participaram os seguintes pesquisadores do Claves: Maria Cristina Feijó, Anna Paula F. Almeida, Kleber Henrique Silva, Patrícia Constantino, Fernanda C.V. Alzuguir, Francisca Luzimeire, Joviana Quintes Avanci. Atuaram como consultores: Maria Cecília S. Minayo, Suely F. Deslandes, Cosme M.F.P. Silva, Kathie Njaine, Marusa B. Oliveira. O suporte em Recife foi dado por profissionais do Gabinete de Assessoria às Organizações Populares.

1 Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública e Centro Latino Americano de Estudos sobre Violência e Saúde "Jorge Careli", Fundação Oswaldo Cruz, Av. Brasil 4036, sala 702, 21040-361 Rio de Janeiro, RJ, Brasil dassis@gbl.com.br

Abstract This article is part of a research with juvenile delinquents and its siblings non delinquents. It was realized in the cities of Rio de Janeiro and Recife. It has the objective of studying the reasons that take young people to choose different roads, seeking the prevention of the juvenile delinquency. Cases of homicide, armed robbery, assault, rape and indecent act using force and drug traffic were included. The technique of life history was used in semi-structured interviews that were applied to 61 offenders and 31 non offenders. It stressed themes like family, community and social reality. The technique of content analysis was used in the interviews. It was still made a quantitative analysis of the data (agreement study and of association of variables) with the objective of identifying the factors leading to the infraction. This article still presents an explanatory theoretical model of the genesis of juvenile delinquency and its prevention; a synthesis of the qualitative and quantitative results; and an attempt to identify which factors are involved in juvenile delinquency.

Key words Juvenile Delinquency; Prevention of Juvenile Delinquency

Resumo Este artigo é parte de uma pesquisa que envolveu adolescentes infratores e seus irmãos não infratores, realizada nas cidades do Rio de Janeiro e Recife. O principal objetivo foi o de conhecer os motivos que levam jovens a trilhar caminhos distintos, visando à prevenção da delinqüência juvenil. Foram incluídos casos de homicídio, assalto à mão armada, lesão corporal, estupro e atentado violento ao pudor e tráfico de drogas. A técnica de história de vida foi usada em entrevistas semi-estruturadas que foram aplicadas a 61 infratores e 31 não infratores. Nelas, buscou-se conhecer a sua realidade familiar, comunitária e social. A técnica de análise de conteúdo foi utilizada nas entrevistas. Foi feita ainda uma abordagem quantitativa dos dados (estudo de concordância e de associação de variáveis) com o objetivo de identificar os fatores predisponentes à infração. No presente trabalho apresenta-se um modelo teórico explicativo da gênese da delinqüência juvenil e suas formas de prevenção; uma síntese dos achados qualitativos e quantitativos da pesquisa; e um ensaio de proposta para identificação dos fatores envolvidos na rede causal da infração cometida por adolescentes.

Palavras-chave Delinqüência Juvenil; Prevenção da Delinqüência Juvenil; Adolescente Infrator

Introdução

A violência praticada por jovens tem, gradativamente, se transformado em um grave problema para a sociedade brasileira, especialmente nos seus centros urbanos, acompanhando uma tendência mundial de crescimento deste fenômeno. Entretanto, o nível de compreensão e a pesquisa nacional acerca dos motivos que conduzem à violência estão em defasagem com o ritmo de crescimento da incidência destes crimes. Este artigo é parte de uma pesquisa que analisou a história de vida de jovens que praticaram atos infracionais considerados graves (o Caim) e de seus irmãos, que não tenham cometido atos violentos (o Abel), na qual buscou-se conhecer os motivos que levaram esses jovens a trilhar caminhos tão distintos, visando a dar um passo importante rumo à prevenção da delinqüência juvenil. O estudo visou trazer para o cenário nacional um pouco da complexidade dos fatores que predispuseram jovens a cometerem atos infracionais (homicídio, assalto à mão armada, lesão corporal, estupro e atentado violento ao pudor, tráfico de drogas) e os que protegeram seus irmãos/primos de tornarem infratores. Para tanto, buscou-se conhecer a realidade familiar, comunitária e social destes jovens enquanto fatores importantes para se compreender o direcionamento de alguns para o caminho da infração.

No presente trabalho destacam-se: 1) o modelo teórico explicativo da gênese da delinqüência juvenil e suas formas de prevenção; 2) uma síntese dos achados qualitativos e quantitativos da pesquisa; e 3) um ensaio de proposta para identificação dos fatores envolvidos na rede causal da delinqüência juvenil.

O modelo teórico-conceitual explicativo da delinqüência juvenil

A concepção de Schoemaker (1996) foi adotada no estudo a fim de compreender a gênese da delinqüência juvenil. Entende-se que este, embora não seja um modelo exaustivo, é útil na orientação, organização e direcionamento do tema. Incorpora três níveis de conceitualização: a) o nível estrutural, que incorpora as condições sociais; b) o nível sócio-psicológico, que se refere ao controle social da família, escola e demais instituições responsáveis pelo adolescente, a auto-estima (por estar intrinsecamente associada à influência familiar e do grupo de pares) e à influência de grupos de jovens sobre o comportamento infrator; e c) o nível individual, incluindo aspectos biológicos e psicológicos.

As teorias do nível estrutural

Neste nível a delinqüência foi inicialmente concebida como primária e preponderantemente causada por fatores sociais, em associação com fatores situacionais e pessoais. A primeira teoria tenta explicar a existência de crimes praticados por grupos organizados em gangues. Baseia-se na desorganização social existente nas estruturas e instituições sociais, mais acentuada nas classes populares (Shaw & Mckay, 1969). Privilegia a ruptura dos controles institucionais convencionais existentes na comunidade e a inabilidade de organizações, grupos ou indivíduos resolverem os problemas comunitários coletivamente, levando ao estabelecimento de padrões criminais, que substituiriam os convencionais.

A teoria da anomia (Merton, 1957) é outra corrente segundo a qual um grande número de pessoas se acha em desvantagem em relação às atividades econômicas legais e, portanto, se engajam em atividades ilegais e delinqüentes. Refere-se à distância que existe entre a ideologia das oportunidades sociais e as reais condições de realização individual de crescimento, sucesso e êxito na sociedade.

Essas teorias foram muito criticadas desde então, por possuírem forte compromisso com o positivismo e o determinismo fatalista, não considerando os sujeitos envolvidos como participantes ativos de suas escolhas e ações. As críticas recaem ainda na transposição mecânica das condições estruturais ou na pobreza como causas diretas de delinqüência.

Os enfoques do nível sócio-psicológico

A principal teoria explicativa neste nível é a do controle social (Hirschi, 1969), na qual a gênese da delinqüência juvenil está relacionada a problemas na vinculação social do jovem à instituições como família, escola, igrejas, que teriam por função formar ou adaptar o indivíduo às normas sociais. Tomando-se como exemplo a família, sua importância enquanto fator causal para a delinqüência se dá na medida do maior ou menor controle, direto e indireto das ações dos jovens. Chesnais (1996), importante estudioso francês da violência nas sociedades ocidentais, ao falar sobre o Brasil, afirmou que um dos fatores desencadeantes da delinqüência é o fraco controle sobre os jovens exercido por instituições como a família, a igreja e a escola.

Duas teorias mostram a relevância da visão que o jovem tem de si mesmo e a influência do meio (família, escola, comunidade) no processo da aquisição da auto-imagem, fator importante a ser considerado na etiologia da delinqüência. Uma assume que jovens com uma visão pobre de si mesmo se encaminham mais para o crime (Reckless, 1961) e a outra considera que jovens rotulados de criminosos adquirem auto-estima baixa (Lemert, 1951).

A associação dos jovens em grupos também é um fator muito estudado na origem da delinqüência neste nível sócio-psicológico. A teoria elaborada por Matza (1964) - drift theory - assume que o jovem comete infração pela influência do grupo social com que convive e não por obediência às suas regras. A influência dos pares sobre o jovem e as inter-relações que este grupo estabelece na sociedade merecem, portanto, ser analisadas neste nível teórico.

As abordagens do nível individual

Estas teorias privilegiam mecanismos internos do indivíduo como os determinantes fundamentais para a delinqüência. As que se baseiam nos aspectos biológicos hereditários assumem que estes são importantes fatores no desenvolvimento cognitivo e aprendizado, podendo influir predispondo um indivíduo à criminalidade, porém jamais determinando este comportamento. Outras dão ênfase às características de personalidade, mostrando que o nível de inteligência pode ser um indicador apenas indireto de delinqüência. Os atributos de personalidade são chaves para o entendimento, se considerados como resultantes das experiências vividas pelo sujeito durante sua formação. Assim, a personalidade seria uma mescla das influências do meio com a bagagem genética de cada indivíduo. Alguns dos atributos freqüentemente relacionados aos delinqüentes são: impulsividade, inabilidade em lidar com o outro e de aprender com a própria experiência de vida, ausência de culpa ou remorso por seus atos, insensibilidade à dor de outrem e transgressões. Pessoas com alguns desses atributos podem ser, do ponto de vista psiquiátrico, denominadas como portadoras de personalidade anti-social.

É importante ressaltar que a rede causal é passível de múltiplas interações, inter e intra fatoriais, bem como inter e intra níveis, sendo, portanto, necessário pesquisar os diferentes fatores, os níveis e as interconexões entre eles. O modelo, ora descrito, pode ser visualizado na Figura 1. Apenas analisando os três níveis integradamente é que podemos ter um conhecimento mais profundo e real sobre a questão da violência praticada por jovens.


Complexificando ainda mais os modelos explicativos para a delinqüência, Schoemaker (1996) ressalta a possibilidade de construir modelos segundo os tipos de delinqüência, buscando as especificidades existentes para cada tipo de ato infracional. Por outro lado, ao pretender explicar a delinqüência enquanto um comportamento assumido pelo jovem, o modelo desconsidera a existência dos infratores ocasionais, cujos atos poderiam ter sido cometidos fortuitamente.

Essas considerações levam a crer que quanto maior for o conhecimento sobre as origens da delinqüência, mais complexos e diferenciados serão os modelos explicativos, especialmente porque as relações de complexidade se incrementam quando se inclui o nível individual na análise.

Enfoques adotados pelas estratégias de prevenção

No Brasil, as estratégias de prevenção para a delinqüência juvenil têm sido muito pouco priorizadas. Entretanto, muito se tem discutido e debatido em diversos países. São variadas as tipologias que os pesquisadores têm traçado.

Investigando os tipos de prevenção existentes nos Estados Unidos, Spergel e Curry (1990), encontraram quatro estratégias de ação: organização comunitária: mobilizando toda a comunidade para criar uma rede de suporte para estes jovens; intervenção social: em que trabalhadores sociais atuam diretamente com os jovens em risco para a delinqüência; suprimento de oportunidades: facilitar empregos, educação e treinamento profissional aos jovens em risco; repressão: estratégias legais que visam a reforçar a segurança pública. Embora a organização comunitária tenha sido avaliada como a mais eficaz na prevenção, os autores ressaltam que a utilização conjunta de várias estratégias tem maior impacto.

Goldstein e Huff (1993) reconhecem três categorias de intervenção: psicológicas: intervenções cognitivas e comportamentais, resolução de conflitos interindivíduos e intervenções moral-cognitivas; contextuais: intervenções na família, escola, treinamento para o trabalho, atividades recreacionais e mudanças comunitárias; e justiça criminal.

Também Dryfoos (1990) reconhece que a família e a escola são locais privilegiados para a implantação de programas de prevenção, com a primeira atuando logo na infância e a segunda introduzindo alteração do currículo escolar, treinamento de educadores, aconselhamento e trabalho voluntário. Um terceiro tipo de programa, reconhecido pelo autor, é o baseado na comunidade, com auxílio de múltiplas instituições nela existentes.

Wilson e Howell (1994) afirmam que uma estratégia de prevenção em nível nacional deve-se basear nos fatores envolvidos na gênese da delinqüência: características individuais, influências familiares, experiências escolares, influência dos pares, comunitárias e da vizinhança. Para ser bem sucedida, a estratégia deveria fornecer reforço e suporte para as instituições de apoio à família como escolas, igrejas e organizações comunitárias; promover a prevenção da delinqüência em geral, a fim de obter melhor relação de custo-benefício; intervir rápida e efetivamente no comportamento delinqüente; e, finalmente, identificar e controlar o pequeno número de jovens que cometem crimes sérios e violentos.

Outros autores, como Shelden e cols. (1996), sintetizam as abordagens que enfocam os fatores protetores sugerindo a atuação sobre as características individuais como gênero, temperamento resiliente, orientação social positiva e inteligência; o estabelecimento de vínculos afetivos com pais, mestres ou outro adulto que supra este papel; o fornecimento de crenças saudáveis e de padrões de conduta positivos por parte da sociedade adulta.

Esses estudiosos apontam os itens essenciais que deve ter um programa bem sucedido: 1) as comunidades não podem negar a existência do problema das drogas e de gangues; 2) deve-se voltar para jovens de médio ou alto risco, com abordagem intensiva e multifacetada, focalizando o desenvolvimento de habilidades (como a resolução de conflitos), desestimulando crenças, atitudes e valores que reforcem comportamentos anti-sociais; 3) oferecer alternativas para o envolvimento dos jovens das gangues, como programas recreacionais, eventos escolares, trabalho; 4) deve ser conduzido nas próprias comunidades dos jovens, envolvendo as famílias e a escola; 5) a equipe que o dirige deve ser bem treinada, capaz de sentir empatia pelos jovens e de compreender a cultura juvenil, sem desmerecer ou depreciar suas crenças; 6) procurar associar-se ao mundo do trabalho, propriciando oportunidades de treinamento profissional e emprego; 7) seus objetivos devem ser específicos e resultar em alguma forma oficial de sucesso, como por exemplo, um diploma; 8) compreender que a reincidência é normal (especialmente para os usuários de álcool e drogas e para alguns comportamentos sociais negativos) e que o tratamento é um processo contínuo, mais do que um único episódio. Técnicas de prevenção de reincidência devem sempre ser utilizadas para facilitar a adaptação do jovem à comunidade.

Como se pode notar, as estratégias de prevenção e os programas de atuação delas provenientes, aqui destacados, recaem tanto no âmbito público quanto no privado, nas relações sociais interpessoais, interinstitucionais e intersetoriais. Mostram a necessidade de reflexão e atuação conjunta e de reforço e redefinição de papéis institucionais. Apontam, em última instância, para o fato de que a delinqüência juvenil não sendo apenas fruto da patologia individual, mas também de estruturas e conjunturas socioculturais, pode e precisa ser enfrentada pelo conjunto da sociedade.

Princípios metodológicos

A pesquisa, a partir da qual este artigo se origina, foi realizada de abril de 1997 a agosto de 1998. Os estados do Rio de Janeiro e Pernambuco foram escolhidos para o estudo por possuírem grande relevância no que se refere a incidência de infrações juvenis e por seus graves problemas sociais.

Incluiu-se na pesquisa os casos de homicídio, assalto à mão armada, lesão corporal, estupro, atentado violento ao pudor, considerados mais graves e, pela relevância das internações, os casos de tráfico de drogas, identificados pela instituição e que concordaram em participar.

Foram entrevistados 92 jovens do sexo masculino: a) 61 adolescentes que praticaram ato infracional e cumpriam medidas sócio-educativas de internação no Instituto Padre Severino, Escola João Luiz Alves e de semi-liberdade ou liberdade assistida nos Centro de Recursos Integrados de Atendimento ao Menor (Criam), no Rio de Janeiro (46) e de internação no Centro de Ressocialização do Adolescente (Cerad), no Presídio de Paratibe, em Recife (15); b) 31 irmãos ou primos não infratores (20 no Rio de Janeiro e 11 em Recife). Foram gravadas duas sessões consentidas com cada infrator e uma com os irmãos/primos. A inclusão de 11 primos (intimamente próximos ao infrator nos anos de crescimento) foi uma estratégia para lidar com os casos em que não havia irmãos disponíveis para serem entrevistados na família.

Foi utilizada a técnica de história de vida (Denzim, 1970), seguindo um roteiro semi-estruturado, incluindo os temas constantes no Quadro 1.


As entrevistas foram transcritas e analisadas segundo a técnica de análise de conteúdo, indicada por Bardin (1977).

A aplicação do modelo teórico à realidade investigada foi feita com apenas 31 infratores e 31 não infratores (irmãos/primos), excluindo-se os infratores que não tiveram irmãos entrevistados. Como toda a seleção dos entrevistados foi baseada em critérios qualitativos, a análise quantitativa efetuada não pode ser extrapolada para outro universo e seus resultados não podem ser generalizados. Por outro lado, o pequeno número amostral dificultou o encontro de associações estatisticamente significativas, assim como é provável que outras associações, em diferentes amostras, possam ser encontradas.

As variáveis incluídas no modelo foram categorizadas a priori com critérios objetivos (Assis, 1999) e submetidas a uma análise de concordância do tipo duplo cego (três pesquisadoras do grupo e uma especialista externa deram seus pareceres mediante os mesmos critérios). Os resultados apresentados incluem apenas aquelas que apresentaram concordância do Índice Kappa acima de 0,49. Exceção foi feita para a variável círculo atual de amigos, que apresentou baixo Kappa, mas foi incluída no modelo pela relevância que possui na teoria causal da delinqüência.

Para verificar a associação entre as variáveis foi utilizado o Coeficiente de Contingência de Pearson que mede a relação entre dois conjuntos de atributos. Para comprovar a significância desta medida de associação foi utilizado o teste do *2, admitindo-se um erro de até 5%.

A operacionalização das variáveis seguiu o que mostra o Quadro 2.


Cada uma das variáveis acima assumiu valores categóricos do tipo 0, 1, 2, para indicar, em cada caso específico, a ausência/inexistência do atributo ou condição, a presença/existência, a presença intensa/condição severa da característica investigada. Esses resultados serão apresentados na Figura 2.


Os depoimentos dos adolescentes aqui destacados receberam nomes fictícios.

Os achados

O perfil dos entrevistados infratores, segundo os artigos pelos quais se encontravam internados pode ser visualizado na Figura 3.


Como se pode verificar pelos dados desta figura, os jovens detidos por tráfico de drogas se mostram como um grupo importante no Rio de Janeiro, refletindo a diferença do perfil dos jovens internados nas instituições das duas capitais.

O nível de escolaridade dos adolescentes infratores é baixo, com cerca de metade dos entrevistados tendo até no máximo a 4a série do primeiro grau; nenhum deles chegou ao 2o grau. Em relação aos irmãos e primos entrevistados, o nível de escolaridade também é baixo para a idade, mas melhor que o dos infratores. Foi observado que cinco deles haviam alcançado o segundo grau e 20 estavam entre a 5a e a 8a séries do primeiro grau. Mais de 70% de todos os jovens entrevistados já tinham abandonado os estudos no momento da entrevista. O principal motivo alegado foi a necessidade de trabalhar e a dificuldade de conciliar escola com trabalho, seguido pelo desentendimento com professores e colegas, incluindo agressão física. A dificuldade da supervisão familiar, no que se refere à freqüência escolar do jovem, ficou evidente.

A idade média dos infratores é de 16 anos e a dos irmãos/primos é de 20 anos. Dos 20 irmãos entrevistados, 19 moravam juntos com os que hoje estão internos, durante toda ou parte da etapa de crescimento, enquanto dos onze primos, dez foram criados em lares distintos, com seus próprios pais ou avós. Essas diferenças certamente influenciaram nas opções de vida dos entrevistados.

A realidade vivenciada pelos jovens em conflito com a lei e seus irmãos/primos é apresentada a seguir.

A vida familiar dos entrevistados

Constatou-se o extremo grau de fragilidade das famílias dos jovens entrevistados, pelos mais variados motivos.

Vivenciam sérias conseqüências emocionais e financeiras decorrentes: a) da separação dos pais (apenas 21% dos infratores e 32% dos irmãos e primos viviam em lares com ambos os pais); b) da ausência da mãe nos lares (além do trabalho caseiro, freqüentemente trabalham fora e não possuem nenhum recurso adequado para cuidar dessas crianças na sua ausência; com evidências de instabilidade nos cuidados ainda na infância dos entrevistados); c) do distanciamento da figura paterna, especialmente decorrente do abandono familiar e de morte; d) de freqüentes relacionamentos marcados por agressões físicas e emocionais e precário diálogo intrafamiliar.

A maioria dos entrevistados pertence à classe popular, vivendo em situação de pobreza e exclusão social. As ocupações dos componentes são em trabalho não especializado, de baixa remuneração. São famílias isoladas do amparo social construtivo e do mundo que está além da sua comunidade de baixos recursos. Têm história familiar repleta de agravos à saúde, Aids, problemas psiquiátricos, câncer, alcoolismo, dependência de drogas, seqüelas físicas de ferimento a bala, acidente vascular cerebral e outras doenças não identificadas. São muitos os casos de acidentes e violências sofridos pelos parentes, com mortes por queimaduras, acidentes automobilísticos, suicídios, espancamentos e assassinatos. Também possuem freqüentes histórias de envolvimento em atos infracionais (os infratores que não relatam qualquer história de envolvimento infracional da família somam apenas 14,7% do total, demonstrando grande comprometimento).

Algumas distinções foram observadas entre infratores e seus irmãos/primos: a maior convivência de alguns primos e irmãos com seus pais quando ainda criança; uma instabilidade maior nos cuidados iniciais dos infratores um relacionamento mais distante dos infratores com a família ampliada; e um envolvimento menor da família dos primos não infratores com a criminalidade.

Vivendo a adolescência em ambientes hostis

A maioria dos jovens entrevistados nas duas cidades morava em comunidade de baixo poder aquisitivo, sabidamente com precária infra-estrutura de serviços de assistência e lazer. A total rejeição e ódio a policiais ficou evidente tanto pelos infratores quanto pelos irmãos/ primos. A violência na comunidade foi muito relatada, pela presença de brigas, mortes, batida policial/tiroteio, tráfico, roubo, bebida, exemplificado na fala de Brian, "...era guerra todo dia dos traficantes, eu achava aquilo o máximo" e de Amauri "naquele lugar todo mundo passa por isso". Estes relatos mostram que a violência está impregnada em suas vidas e que parece funcionar como um princípio ordenador de suas comunidades.

O grupo de amigos dos infratores faz parte do mundo do crime, na maioria dos casos. Alguns relatos mostram o caráter efêmero dessa relação, bem como o interesse financeiro e de poder (especialmente no tráfico de drogas). Já os irmãos e primos incluem como amigos jovens da comunidade, da escola, da família, da praia e da rua. A convivência comunitária parece ser mais próxima nesse último grupo.

A opção de lazer mais relatada pelos infratores foi o baile funk, enquanto seus irmãos e primos alegaram gostar mais de pagode (Recife) e de baile charme (Rio de Janeiro). Alguns infratores relatam gostar de baile funk, justamente pela violência que ocorre nos mesmos: "vale tudo, a gente entrava armado, brigando um com o outro" (Ronaldo).

A maioria dos infratores relata consumir drogas constantemente. A faixa etária mais citada como sendo a idade de início do uso de drogas/álcool foi por volta dos treze anos de idade. Entre as drogas usadas e experimentadas pelos infratores do Rio de Janeiro, em ordem de freqüência estão maconha, cocaína, álcool, cola, haxixe e crack. Já em Recife a ordem das mais usadas é maconha, álcool, rohipinol, cola, cocaína, crack, loló e haxixe. Os primos e irmãos relatam ter recebido oferta para consumir drogas, embora a maioria deles nunca tenha experimentado e se recuse terminantemente a ter algum contato com a essas substâncias.

Todos os infratores entrevistados relataram ter ou já terem tido namorada, sendo que cinco deles já viviam com suas mulheres. Alguns revelaram ter começado a namorar muito precocemente, por volta dos oito anos de idade e iniciado a vida sexual entre os dez e treze anos. A relação com as namoradas é efêmera e o relato de ocorrência de gravidez foi muito comum. A maioria das garotas não chegou a ter o filho, mostrando a freqüência com que o aborto é feito por esse grupo social. O número elevado de gravidez das namoradas e o de filhos nascidos evidencia, de um lado, a pouca utilização de métodos para evitar a concepção e, de outro, a ausência de medidas preventivas relacionadas a doenças sexualmente transmissíveis. Além do aborto, episódios de agressão física às namoradas também foram relatados por vários entrevistados. Nenhum dos filhos dos infratores coabita com eles e a mãe, sequer os registraram como filhos, alegando incerteza sobre a paternidade. Os irmãos/primos entrevistados têm o mesmo comportamento no que se refere a alta rotatividade nos relacionamentos e envolvimentos paralelos. Entretanto, tiveram uma entrada na vida sexual mais tardia e apresentaram maior preocupação com a prevenção de gravidez e doenças, embora tal comportamento nem sempre se expressasse em medidas eficazes. Nesse grupo, foram poucos os relatos de interrupção de gravidez; foi maior o número de jovens que assumiram a paternidade e que planejaram com cautela a futura constituição de suas vidas conjugais.

Em relação ao trabalho, 90% dos entrevistados já haviam atuado, esporadicamente, como ajudante de pedreiro e balconista, em oficina mecânica, feira, padaria, farmácia, supermercado ou banca de jornal. Para cerca de 20% dos jovens, essa inserção laboral iniciou-se na faixa dos sete aos nove anos de idade. Apenas 13% dos jovens infratores haviam trabalhado com carteira assinada, a metade deles em atividades administrativas, como operador de máquina xerox e office-boy. Metade dos irmãos e primos dos infratores cariocas possuíam emprego formal, em atividades como de cabeleireiro, servente, vendedor, office-boy e operador de máquina xerox. Esses últimos revelaram-se mais interessados em ascender profissionalmente e preocupados com a obtenção de um emprego com carteira assinada, que permita conciliar trabalho e estudos. O 'trabalho' no tráfico foi considerado pelos infratores como importante, assemelhando-se ao mercado formal no que se refere a questões como compromisso, responsabilidade, posto ocupado no processo, aprendizado de técnicas, hierarquia e normas de obediência e de ascensão profissional.

A necessidade de consumo ficou mais evidente nos infratores. As roupas de marca foram as preferidas desses entrevistados. Os gastos com diversão, como baile, hotel, motel, namoradas e amigos são apresentados em seguida e mostram a rapidez da circulação do dinheiro adquirido através de atos infracionais. Os irmãos e primos mostraram uma escala de prioridades para o gasto do dinheiro. As roupas de marca ficaram em segundo plano.

Nos planos futuros dos infratores o trabalho apareceu como a forma escolhida para obter dinheiro para o seu sustento e o de sua família. Nesses casos, evocam ocupações não especializadas, não revelam preferência por qualquer atividade específica: "qualquer emprego serve". Três adolescentes inseridos no tráfico de drogas têm como meta futura a ascensão na vida do crime. Os irmãos/primos almejam ir mais longe profissionalmente e relatam um planejamento futuro mais ambicioso. Têm ainda maior noção dos seus direitos e deveres.

De uma maneira geral, os jovens infratores têm uma visão de si mesmos muito positiva, considerando-se bons, justos, calmos, amigos, sinceros, legais, caseiros, bem-humorados, corretos, leais, comunicativos, humildes e pensam antes de agir. Seus irmãos e primos usam adjetivos um pouco diferentes, mas também positivos: alegres, esforçados, bem humorados, teimosos, "levados", pensativos, sonhadores, compreensivos, com força de vontade, tímidos, amigos e introvertidos. Essa visão positiva de si foi relativizada por muitos, que comentaram com clareza a oscilação de humor que possuem, característica própria da idade, período de mudanças e de "turbulências", em que o adolescente está reconhecendo e redescobrindo as suas potencialidades, o que interfere nas suas ações e na visão que tem de si mesmo. Neste sentido, os infratores também se dizem impulsivos, agressivos, rebeldes, ruins, agitados, nervosos, violentos, explosivos, maldosos, tristes, irritados e impacientes. A maior dificuldade relatada é com o controle da agressividade.

Os diferentes caminhos trilhados por Caim e Abel

Como se pode perceber, os infratores diferem de seus irmãos/primos sob diversos aspectos. Este último grupo mostrou que seus amigos são mais comumente de fora do universo infracional, não utilizam drogas rotineiramente; têm maior noção dos seus direitos e visão mais crítica da comunidade; possuem mais responsabilidade familiar; muitos freqüentam a escola; têm atividades de lazer mais diversificadas; almejam ir mais longe profissionalmente e relatam um planejamento futuro mais ambicioso.

Além das distintas características acima, foram constatados três níveis de diferenças entre os infratores e seus irmãos/primos: No que se refere à família verificaram-se diferentes percepções, em que os infratores tendem a manter imagens mais idealizadas sobre suas famílias que os irmãos e primos entrevistados. Outra diferença é a maior capacidade de lidar com as perdas familiares e de estabelecer um vínculo afetivo mais forte, no caso dos não infratores. A falta de controle familiar sobre os infratores foi outro ponto verificado na pesquisa, por serem eles, na maioria das famílias, os caçulas (enquanto os irmãos/primos eram primogênitos ou filhos intermediários), além de serem vistos (e alguns se vêm) como os preferidos da família. No que concerne ao ambiente social/comunitário a diferença mais flagrante refere-se à escolha das amizades. A quase totalidade dos irmãos e primos prefere amigos que não estejam ligados ao mundo infracional, comportamento inverso ao dos infratores. As amizades do baile funk foram citadas por todos, mas os irmãos/primos, mesmo gostando deste divertimento acabam desistindo de ir em função do medo da violência que ali ocorre. As oportunidades de trabalho e a determinação em aproveitar chances também foram diferentemente percebidas, com os irmãos/primos optando mais por essa atividade. As condições sócio-econômicas da família mostraram-se diferenciadas: irmãos/primos dos infratores enfrentaram condições mais adversas, o que pode tê-los tornado mais responsáveis. Os irmãos/primos se auto-referiram com características individuais de pessoas calmas, tranqüilas e conformistas em relação à realidade social, em oposição aos infratores, que se vêem arrojados, valentes e rebeldes em relação às dificuldades da vida. Esse sentimento de rebeldia dos infratores está, muitas vezes, associado à dificuldade em controlar a agressividade, questão considerada mais fácil para seus irmãos e primos. Esses atributos fazem do infrator um jovem mais valente e aventureiro aos olhos de alguns irmãos e primos, que chegam a se definir como pessoas sem coragem. Outros fatores coibidores das experiências infracionais, apresentados pelos irmãos/primos são o temor da represália e a força de vontade. A capacidade de refletir sobre a vida e de efetuar planos futuros foi destacadamente mais intensa nos irmãos/primos, assim como a maior introjeção de limites sobre o que é certo e é errado e um maior valor dado à vida. Finalmente, os irmãos/primos apresentaram uma visão mais positiva de si próprios que os infratores.

Esses achados indicam que: a) há necessidade de investigar melhor os fatores de risco que levam o jovem à infração e os fatores protetores que dificultam a inserção infracional, a fim de auxiliar crianças e adolescentes, antes de seu envolvimento no mundo infracional; b) os dois grupos estudados não se apresentaram uniformes. Percebeu-se claramente, pelo menos em um caso, que um irmão, embora nunca tivesse cometido ato infracional, vivia numa condição limite, permitindo antever que, num futuro próximo, poderia vir a praticar algum ato infracional, tais eram sua fragilidade interior e as pressões externas. As condições sociais em que vivem estes irmãos/primos mostram-se extremamente estimulantes à infração; sua formação também se faz em meio a "tentações" e convites de ascensão rápida, enquanto seus sonhos lhes mostram claramente que o seu "possível social" é restrito; c) é importante questionar o critério de "sucesso" com que estes jovens não infratores são vistos. Ao buscar caminhos não violentos e diversos daqueles dos trilhados por seus parentes infratores, esses indivíduos podem ser considerados resilientes, ou seja, são pessoas que conseguem "atravessar" os momentos difíceis da vida sem se desestruturar (Maldonado, 1997). Isto, entretanto, não significa que não tenham sido marcados profundamente por difíceis momentos da vida. Alencar é um destes jovens não infratores, que expõe em uma frase a sua fragilidade emocional, ao falar do filho que poderia vir a ter no futuro: "eu ia acabar machucando a pessoa". Nesta fala pode-se perceber o quanto este jovem foi marcado na sua capacidade de se relacionar com o outro, embora esteja a caminho de se tornar um rapaz com uma profissão definida e, portanto, seja considerado bem sucedido no meio social em que está inserido.

Aplicando o modelo teórico à realidade investigada

Na Figura 2 aparecem os achados empíricos sistematizados segundo o modelo teórico explicativo anteriormente descrito, e as variáveis que se mostraram relacionadas com a infração. Nela, pode-se verificar que os principais fatores de risco associados ao infrator (representados pelas linhas contínuas) foram os seguintes: consumir drogas, o círculo de amigos, os tipos de lazer, a auto-estima, a posição entre irmãos, os princípios éticos, a presença de vínculo afetivo em relação à escola ou aos professores e sofrer violência dos pais. Relacionando esses achados, tem-se que o tipo de amigos é um fator primordial na gênese da delinqüência, sendo uma variável intrinsecamente relacionada ao uso de drogas e ao tipo de lazer. Por outro lado, a presença de violência doméstica severa também tem sido considerada como um fator desencadeador da delinqüência.

Outra observação a ser feita em torno desta figura é que há uma rede de interligações antecedentes entre as variáveis (representadas pelas linhas descontínuas). Assim, por exemplo, uma relação familiar conflituosa pode facilitar o envolvimento do adolescente com o uso de drogas que, por sua vez, estimula a entrada para o mundo infracional. Pode-se ainda comentar, dentre as várias interações desta figura, a associação entre a violência na comunidade, as condições econômicas da família, o possuir parentes presos por envolvimento na criminalidade e a utilização de drogas, para mostrar como à medida em que se aproxima do objeto de estudo este se mostra complexo e multidiferenciado.

A guisa de conclusões

Na origem da delinqüência juvenil tem sido tradicionalmente debatida a falha das instituições sociais para apoiar e proteger o jovem, dificultando, assim, sua entrada no mundo infracional. Na realidade estudada, a ausência de redes sociais de apoio ficou evidente na vida desses jovens, dificultando a implementação de estratégias de prevenção, como as que já vêm sendo implementadas em outros países. A atuação das instituições básicas, responsáveis pela socialização, como a família, a escola e a instituição religiosa, passa por sérias crises no exercício de suas funções sociais.

A confiança da maioria dos entrevistados recai quase que exclusivamente sobre a família, aparecendo, em seguida, os amigos e Deus. Embora a família ainda seja a instituição que os jovens acreditam poder ajudá-los, ela aqui se apresentou extremamente fragilizada, vulnerável e com pouca capacidade de atuação. No caso dos infratores, em nenhum relato foram evocadas quaisquer outras instituições da comunidade, como facilitadoras de inserção no mercado de trabalho e de readaptação, denotando a inoperância, o distanciamento, a descrença, e mesmo a inexistência das mesmas, tanto no imaginário como na vida dos entrevistados.

A responsabilidade socialmente atribuída à família parece sucumbir diante das precárias condições com que tem que sobreviver (extrema pobreza, mudança freqüente de parceiros, relações violentas em seu interior com reações de fuga) e conduzir a educação de seus filhos, levando-a a contradições no exercício da socialização e controle dos mesmos, não lhe permitindo ser capaz de apontar os limites necessários à convivência em sociedade. Se bem que não se possa considerá-la como a única, nem a principal responsável pelo envolvimento dos jovens no mundo da infração, a família, em alguns casos, representa uma influência negativa, potencializada pela ação de uma conjuntura social em que a miséria, o narcotráfico, a lógica da cultura do consumismo, a influência perversa da comunidade (onde é comum o uso de drogas, de armas e de assassinatos), desencadeiam mecanismos subjetivos e de relacionamentos em que as experiências de violência extrema passam a ser percebidas e vividas como algo rotineiro e banal. É preciso ressaltar que, certamente, na maioria dos casos, os conflitos e os desentendimentos familiares seriam minimizados e se restringiriam ao âmbito doméstico, caso não existissem tais condições potencializadoras.

A escola apareceu como um local com poucos atrativos para muitos adolescentes, algumas vezes lhes possibilitando encontrar amigos com os quais acabam se envolvendo no uso de drogas ou no cometimento de outras infrações. Dentro dela ou no seu entorno são freqüentes as narrativas de violências vividas ou cometidas por eles. Fica clara, no presente estudo, a precária vinculação que se estabelece entre essa instituição e seus educadores e o adolescente. Também é falho seu papel na disseminação dos conteúdos educacionais formais e como formadora dos princípios éticos e morais. Para a maioria dos entrevistados fracassou como instituição de formação para a vida cidadã.

As instituições religiosas também se mostraram distanciadas do dia-a-dia destes jovens. Embora tenham assimilado os princípios básicos sobre o bem e o mal, sobre o 'pecado' e a 'sanção a ser paga por ele', detêm uma noção de religiosidade coercitiva, na qual apenas a figura de Deus ainda tem algum significado libertador. Seus atos infracionais, condenados por essa instituição, são o marco final da ruptura da relação do jovem com a igreja. Entre infratores e não infratores, as proibições impostas como as privações de lazer, as restrições à forma de se vestir, à prática sexual e ao gosto musical, se chocam com as preferências e aspirações típicas dos adolescentes.

Outras instituições sociais como creches e locais para atividades de lazer orientadas praticamente não existem, inviabilizando o controle e o preenchimento adequado do tempo livre dos filhos, quando os responsáveis necessitam se ausentar para trabalhar.

Infelizmente, as conclusões e sugestões que podem ser feitas a partir deste estudo não são, de modo algum, novas. Há muito se vem chamando atenção para o fato de que as instituições brasileiras, sem exceção, necessitam repensar seus papéis e sua participação na prevenção da infração juvenil. Também não há novidade alguma em indicar que a melhoria da atuação e a integração de suas ações precisa ser alvo de políticas públicas concretas e urgentes. Há que se criar meios de diminuir o elevado índice de evasão escolar, melhorar o processo pedagógico hoje existente, implementar creches, criar cursos profissionalizantes e outros suportes institucionais em nível comunitário. É também necessário exercer controle e sanção no que se refere à violência doméstica, estabelecendo medidas concretas para apoiar as famílias. Estas iniciativas são perfeitamente possíveis, desde que a sociedade deixe de considerar a infração juvenil como um problema individual e familiar e passe a encará-lo como uma questão coletiva pela qual todos são responsáveis, tanto em relação aos fatores que a originam como no tocante àqueles que a previnem.

Os avanços no conhecimento já permitem que hoje, no Brasil, sejam desenvolvidas medidas concretas de prevenção, desprovidas de conotações meramente denunciadoras ou demagogas. O que parece faltar é interesse político em ações conjuntas para a implantação de programas e projetos inovadores, bem como na avaliação e implementação daqueles que se têm mostrado exitosos.

É importante ainda destacar a atuação fundamental das instituições repressoras da criminalidade, como a Segurança Pública e a Justiça, no combate e na punição à criminalidade. Este tema não foi abordado neste artigo, mas todos os estudos apontam para o papel que as medidas punitivas adequadas, a agilidade jurídica e a garantia dos direitos das crianças e adolescentes têm no controle e na prevenção da infração juvenil.

A última, porém não menos importante questão a ser enfatizada, é a perplexidade com o grau de violência cometida por adolescentes nas duas cidades. Como um sintoma gravíssimo dos erros cometidos na formação e socialização dos jovens, desde a ausência das condições básicas de sobrevivência, passando pelo descaso e insuficiente controle institucional; pelas falhas no mecanismo de introjeção de valores éticos, morais e religiosos que não correspondem, na maioria das vezes à prática, observam-se a deterioração das relações sociais e o embotamento afetivo dos jovens aqui analisados, manifestos no desprezo pela vida alheia. A descrença nas instituições, o desprezo pelas atividades políticas e seus representantes, uma moral ambivalente e cínica, e a introjeção de valores de consumo, se mostraram muito mais eficazes do que os padrões morais de direito e respeito por si mesmos e pelos outros, justificando, assim, qualquer ação violenta desde que resulte em ganhos financeiros ou em prestígio social para o infrator.

A negação dos direitos do outro ficou muito visível na obediência hierárquica dos 'soldados' do tráfico, no ódio vingativo das brigas entre galeras e no frio distanciamento dos assaltantes, que justificam as mortes pela reação da vítima.

Esta negação à vida, observada em pessoas tão jovens, nos coloca o desafio de reconstruir com eles um novo caminho, um novo "possível social" (Sartre, 1987); por outro lado, nos alerta para a necessidade de intervenções preventivas urgentes nesses grupos sociais mais carentes, que vivem, hoje, numa cultura de violência estrutural e familiar, expostos à tirania do tráfico de drogas, de forma a evitar que novas crianças sigam o mesmo caminho infracional. Também não se pode esquecer a necessidade da formação de novas subjetividades, calcadas em valores que visem à formação de uma sociedade menos injusta, desigual e excludente e mais solidária e tolerante. Resta esperar que iniciativas nesse sentido se tornem prioridade para as políticas sociais no nível federal, estadual e municipal, bem como para a sociedade civil que esteja preocupada com a construção da cidadania.

É preciso destacar que, no presente estudo não se teve a preocupação de distinguir os fatores protetores dos predisponentes. Por isso mesmo optou-se por conclui-lo com as orientações do Developmental Research and Programs (1993: 3), de que "o modo mais efetivo para prevenir a delinqüência juvenil é, primeiro, identificar os fatores que tendem a aumentar a probabilidade ou risco do problema emergir; e, em segundo lugar, encontrar métodos para reduzir os riscos, aumentando os fatores protetores ou de resiliência".

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Ago 2006
  • Data do Fascículo
    1999
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