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Virado do avesso

RESENHAS BOOK REVIEWS

Eduardo Costa

Instituto Fernandes Figueira, Fiocruz

Carvalho EA. Virado do avesso. São Paulo: Selecta Editorial, 2005 136p.

Desde o título, Edgard Carvalho nos informa o destino da jornada. Em decorrência de um atropelamento muito traumático, ocorrido um ano antes, o antropólogo, sociólogo, pensador da complexidade nos presenteia com sua mais visceral manifestação, em que anos de docência, tradução de obras muito significativas, pesquisas e publicações serviram de fundo para a expressão do homem Edgard, em sua fragilidade e força. Nutrido pelas mais expressivas reflexões contemporâneas, em especial aquelas nas obras de Oliver Sacks e Michel Serres, Edgard discorre sobre as experiências deste corpo-objeto-de-cuidados e do corpo-sujeito que vai se reapropriando.

Seu teor não toca apenas o âmago de um ser que sofre, mas as entranhas do sistema de saúde e seus executores, desvelando as feridas presentes na estrutura que se pretende asseguradora de estabilidade e bem-estar.

O paradigma simplificador encontra seu mais caro reduto nas instâncias médicas, norteadas pelos dogmas cartesianos, e percebemos nas palavras do autor os efeitos destas concepções na abordagem de seu corpo esfacelado.

Assistimos às ações e reações diante do acaso, transformador do sujeito em objeto, do homo erectus, que perde seu status de líder para tornar-se um mero comandado: "um resquício de sapiens sapiens-demens, de quem foram retiradas a sabedoria e a loucura" (p. 25).

Podemos avançar um pouco mais nesta compreensão de como o adoecer, a perda da unidade psicossomática, é complexa em suas conseqüências, assim como em suas causas, construindo um olhar mais "poliocular", como diria Edgar Morin (um dos principais autores traduzidos por Carvalho e seu amigo pessoal), e onde conseguimos perceber, com mais nitidez, as múltiplas faces do processo de adoecimento e cura, em que as interações e retro-interações entre equipe de saúde, paciente, familiares e amigos, constituem a rede conformadora de cura ou de padecimento e morte.

Uma obra como esta possui grande relevância no âmbito da saúde coletiva, em dupla função: denuncia a complexidade e a pluralidade do fenômeno saúde/doença e explicita as representações subjetivas do paciente sobre a rede profissional e as políticas públicas, em seus desfechos e eficácia.

Sublinha movimentos não tão recentes ­ o que demonstra as dificuldades de transformação desta realidade ­ de humanização e revisão da relação dos profissionais de saúde com seus pacientes, identificando, reiteradamente, os benefícios de re-incluir fatores extirpados da lógica positivista, como o lugar do afeto e do desejo nos processos de recuperação e cura.

A despeito do retrato cruel que nos apresenta, no qual explicita, com clareza ofuscante, a intrincada trama dos vínculos financeiros que determinam os limites da reparação para cada indivíduo, Edgard demonstra, nas passagens em que narra sua lenta recuperação, o que está para além das condutas objetivas e objetivizantes, no resgate do pertencimento e da confiança.

Edgar Carvalho mergulha fundo, como na metáfora de Serres, utilizando o princípio de Arquimedes, onde qualquer corpo verdadeiramente submerso na vida autêntica abre-se para a descoberta de si mesmo, aparelha-se para o sobrevôo do possível e do impossível, do necessário e do contingente, do contexto e do intertexto (p. 111).

E renovado e abastecido por uma ida às profundezas de si mesmo, encerra a narrativa de seu périplo, confessando: "valeu a pena!" (p. 132).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    Set 2006
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