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Sobre a re-significação do humanismo

On the re-signification of humanism

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Sobre a re-significação do humanismo

On the re-signification of humanism

Vera Vidal

Departamento de Pesquisa, Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz. Veravidal2000@hotmail.com

Nosso comentário ao texto de Ana Maria Aleksandrowicz e Maria Cecília Minayo terá o seguinte percurso: abordaremos seu aspecto estrutural e discutiremos a parte conceitual.

No que tange ao primeiro aspecto, cremos que o texto é muito bem escrito, claro, bem organizado logicamente e de leitura muito agradável. Parece-nos, entretanto, que seu objetivo principal, que deveria ser a re-significação do termo "humanismo", não foi plenamente atingido, ficando aquém do esperado e do enunciado. As considerações finais, muito sintéticas, não retomaram, de modo exaustivo, os dados, tanto da análise histórica efetuada, quanto da posição de Atlan, em vista de uma efetiva proposta que desse uma nova significação ao termo em questão.

Foi sugerido um apoio às correntes que revitalizaram as noções de progresso e perfectibilidade do homem, mas sem especificar quais são estas correntes e que argumentos sustentam tais posições; foi valorizada a interdisciplinaridade bem como as visões holísticas no tratamento das questões humanísticas; recorreu-se a Spinoza como modelo de um bom tratamento para conciliar a visão naturalista do homem com a sua natural busca de perfeição e seu sentimento natural de ser autônomo nas decisões e, assim, superar a dicotomia dos estudos humanísticos e os das ciências da natureza; foi proposta uma solução positiva que seria exercida pela educação e por regimes políticos democráticos, favorecendo o uso dos avanços científicos em prol da melhoria geral da qualidade de vida e da felicidade dos homens; mas tudo isto dito em termos muito gerais, sem que percebêssemos como se justificam teórica e pragmaticamente tais sugestões.

Parece-nos também que deveria ter sido retomado, de modo mais detalhado e explícito, nas considerações finais, um item importante que fora enunciado no início do texto: a relação desta discussão com o conjunto de questões no quadro dos estudos de saúde coletiva.

Muito nos agradou o percurso histórico efetuado sobre a evolução do conceito de natureza humana. Apenas achamos que deveria ter sido dada mais atenção às posições epicuristas, estóicas e sobretudo à de Protágoras, pois este último não estaria de acordo com o modelo ético que foi apresentado como sendo o grego em geral, segundo o qual o homem atingiria a felicidade ou sua finalidade última na contemplação.

Quanto à apresentação da posição de Henri Atlan, cremos que, para o leitor que não tenha familiaridade com as teses deste pensador, não fica clara a sua posição a partir deste artigo, pois suas propostas são apenas lançadas, de forma sintética e geral, sem que se perceba as argumentações que as sustentam e, por serem bastante originais, pode tornar-se difícil a aceitação ou mesmo a compreensão das mesmas.

Passaremos agora à discussão conceitual.

Nossa primeira e radical discordância é com a afirmação de que resultados obtidos pelas ciências da natureza possam produzir uma visão determinística do comportamento humano. A evolução das pesquisas em biologia molecular e mais especialmente o mapeamento do genoma humano vieram fortificar exatamente uma posição antideterminista. Sabe-se com clareza que, duas pessoas com o mesmo mapa genômico, não são idênticas no nível biológico, pois os genes não lhes garantem uma identidade de organização celular. No que concerne então ao comportamento, será impossível conseguir qualquer tipo de identidade, pois os fatores endógenos enfrentam os inúmeros fatores exógenos na estruturação das condições que influenciam as ações humanas. Logo, o comportamento do homem não se reduz à sua carga genética. Alguém com uma constituição biológica que favoreça atitudes agressivas não será necessariamente uma pessoa violenta, pois sua educação e sua vontade poderão fazer dele alguém controlado, equilibrado e menos agressivo que outro com carga genética menos violenta mas que viveu em ambiente que favoreceu o hábito de atitudes agressivas.

Assim como não se admitem mais os determinismos biológicos – e são as próprias ciências da natureza que nos revelaram isto, também não mais se admitem determinismos sociais que tornem o homem um produto de seu meio social, como também se recusam os determinismos psicológicos que fariam de nossos comportamentos o reflexo de nosso inconsciente e/ou de nossas vivências.

Parece-nos, então, que recorrer a uma oposição ou estreita relação com a noção de determinismo para efetuar análises sobre liberdade, livre-arbítrio e autonomia do agir humano não esgota o cerne da questão, pois cremos ser impossível salvar a noção de liberdade quando se defende qualquer tipo de determinismo. O que existem são condicionamentos mais ou menos fortes de nossa organização genética, nosso meio social, que estreitam, com maior ou menor rigor, nosso espaço de liberdade mas, em qualquer circunstância, é inevitável que sobra uma autonomia e capacidade de decisão que torna todo ser humano responsável por seus atos. Exceto fortes patologias mentais, cada homem é responsável, moral e juridicamente, por suas ações e merecerá as penas ou louros que delas derivem. Cremos, então, que a problemática da liberdade humana ultrapassa a questão do determinismo e exige, para sua análise, recurso a outras noções que podem trazer maiores e melhores esclarecimentos, como as de pessoa, de intersubjetividade, de inter-relação, de consciência.

Outra problemática é a discussão sobre a variabilidade dos valores morais que poderão ser utilizados nos julgamentos dos atos humanos, mas a questão do determinismo não tem papel nesta discussão. Não nos parece que qualquer filósofo ou cientista ainda precise buscar argumentos a favor ou contra a noção de livre-arbítrio, pois não vemos como se possa negar que, em meio às maiores opressões e condicionamentos, sempre sobra ao homem um espaço de liberdade que o fará agir de forma não determinística, revelando seu livre-arbítrio. Não há experiência possível que chegue ao resultado: sob a pressão x , ou na situação y, tal indivíduo reagirá necessariamente assim.

Não compreendemos, então, por que seja necessário retomar o dualismo determinismo-liberdade para tratar da questão do humanismo na contemporaneidade, já que as Ciências da Natureza, em sua evolução surpreendente, só têm contribuído para reforçar as posições antideterministas.

As ciências cognitivas, em seus avanços sobre a compreensão dos fenômenos da cognição e linguagem, utilizando para tal métodos das ciências da natureza e evitando apelo a perspectivas mentalistas ou essencialistas, reforçam constantemente a irredutibilidade dos fenômenos mentais aos neuronais ou fisiológicos.

Não nos parece sequer que seja válido argumentar que a posição antideterminista derive do atual estágio da evolução do conhecimento científico que ainda não atingiu o domínio total das leis da natureza ou dos processos cognitivos e que, quando isto acontecer, seriam conhecidos os mecanismos que regem nossas ações, como o texto parece sugerir.

Tal posição se contraporia ao estágio atual das teses em epistemologia, nas quais se defende a indeterminação das teorias pela experiência, afirmando-se uma postura de holismo epistemológico, em que se sustenta que nenhum enunciado pode ser diretamente comparável à realidade e que o valor de verdade, significado e referência de todas as sentenças depende do quadro teórico em que se inscrevam.

Esta postura, largamente defendida e aceita nos meios filosóficos e científicos, diminui as barreiras entre as ciências da natureza e as humanas, entre saber do senso comum e o das ciências ou da filosofia, entre o discurso das ciências dos valores – ética, estética – e o das ciências factuais, posto que se assume que toda teoria é uma proposta de interpretação, sujeita à revisibilidade, garantida por sua eficácia, mas sempre capaz de ser superada por outra mais ampla, mais simples ou mais eficaz. O ideal de chegar à verdade última é inatingível pois, mesmo que chegássemos ao saber total, não teríamos como provar que o atingimos, já que não há meio de testar a verdade de cada enunciado teórico em todos os casos possíveis. Logo, sempre se estará sujeito a um evento inesperado que refute uma certa teoria. Assim, todos os discursos de todos os saberes estariam no mesmo nível de indeterminação e revisibilidade, havendo apenas variação de grau, mas não de natureza em suas indeterminações.

Se aceitamos a indeterminação de nossos discursos os quais são a expressão de nossos saberes, do conjunto de nossas teorias de mundo, não há como aceitar que um dia a ciência chegará à explicação final sobre todos os fenômenos e assim conheceremos perfeitamente as leis da natureza, o que nos permitira agir segundo nossos determinismos naturais, sendo ao mesmo tempo livres para desejarmos o bem que deriva da ordem natural, o que parece ser a proposta do artigo, baseada em Henri Atlan.

Criticamos tal proposta por nos parecer contraditório querer conciliar liberdade e autonomia com qualquer forma de determinismo, até porque isto é um esforço intelectual desnecessário, já que nem a ciência nem a filosofia justificam qualquer necessidade de apelar a determinismos mas, no máximo, se justifica um recurso a condicionamentos físicos, morais, psicológicos, sociais. Como tais condicionamentos ainda deixam espaço livre a nossas opções e nossa autonomia, não há por que apelarmos para determinismos. A noção de livre necessidade defendida no texto, parece-nos contraditória quando aplicada a seres não-divinos, pois só em Deus poderia haver coincidência absoluta entre o saber e o agir. Se atingíssemos tal estágio, chegaríamos à divindade.

Também gostaríamos de questionar o ufanismo que identifica progressos do conhecimento científico com agir ético correto, sabedoria com posse do Bem, como foi defendido por Platão e outros, sendo também a proposta deste artigo. Parece-nos claro que o desenvolvimento intelectual gerado pelo progresso das ciências não leva necessariamente à posse do bem e, em muitos casos até nos afasta deste ideal, como quando a produção científica é usada em prol do progresso material, da dominação política ou devaneios individualistas.

Embora reconhecendo que todos devam ter acesso fácil à educação de qualidade, aos resultados da produção científica, como sugere este texto, não cremos que esta seja a fórmula para o encontro do equilíbrio ético ou da felicidade individual e coletiva. A educação é, sem dúvida, excelente auxiliar neste processo, mas outros fatores têm importância vital, como um sistema social e econômico justo e que evite manipulações da vontade dos cidadãos, permitindo-lhes o exercício efetivo de sua liberdade de escolha. Se aquilo que for aprendido na escola não puder ser efetivado na prática social como uma opção individual, os ensinamentos teóricos pouco valerão.

As teorias da complexidade nos têm revelado que a relação de causa e efeito na totalidade cósmica não é captável com facilidade nem se sabe se o será em algum momento da evolução de nossos saberes. Logo, não há como buscar soluções globais ou unívocas para qualquer questão, pois cada caso é um caso e está submetido a uma infinidade de relações complexas. Se isto ocorre no reino da natureza, com muito mais razão ocorrerá no que tange ao campo das escolhas humanas. Assim, não nos parece que se possa dar conta da complexa questão do humanismo na contemporaneidade apelando apenas para a dicotomia determinismo-liberdade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    Set 2005
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