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Estudo da desigualdade na utilização de serviços de saúde por idosos em três regiões da cidade do Rio de Janeiro

Inequality in health care use by the elderly in three districts in the city of Rio de Janeiro

Resumos

Neste trabalho, foi analisada a desigualdade social na utilização de serviços de saúde e a influência que a área de residência exerce nessas desigualdades. Com informações baseadas em um questionário multidimensional aplicado a uma amostra de idosos da cidade do Rio de Janeiro, foi estudada a associação do uso de serviços de saúde com fatores sócio-demográficos, condição social, necessidade e oferta de serviços médicos. O desenho amostral complexo levou a violações de pressupostos do modelo de regressão logística, que foram tratadas na fase de análise dos dados, com base no cálculo do efeito do desenho. O fator mais importante na explicação da variação no uso de serviços de saúde por idosos foi necessidade. Porém, ser do sexo feminino, renda, área de moradia e ter direito de usar serviço privado também mostraram efeito positivo no consumo de serviços de saúde. O modelo apontou ainda para a existência de interação entre área de residência e renda. A área de alto padrão de vida, representada neste estudo por Copacabana, não apresentou desigualdades internas no uso de serviços de saúde, sendo o efeito da renda mais importante em locais classificados em níveis de padrão de vida médio e menor (Méier e Santa Cruz, respectivamente).

Serviços de Saúde; Idoso; Fatores Sócio-Econômicos


This article analyzes social inequalities in health care services utilization by the elderly and tests the influence of place of residence. The study was based on a sample survey of residents 60 years of age and older from three different areas in the city of Rio de Janeiro. The multi-stage sampling method led to violations of the logistic regression assumptions which were considered in the data analysis stage. Need was the most important factor related to utilization. However, gender, type of service, income, and place of residence also showed positive impact on health care utilization. Moreover, the effect of the income was modified by place of residence. The area with the best living conditions (Copacabana) did not show inequalities in health care services utilization. The income gradient was more important in middle and lower-income areas, i.e., Méier and Santa Cruz, respectively.

Health Services; Aged; Socioeconomic Factors


ARTIGO ARTICLE

Rejane Sobrino Pinheiro1

Cláudia Travassos2

Estudo da desigualdade na utilização de serviços de saúde por idosos em três regiões da cidade do Rio de Janeiro

Inequality in health care use by the elderly in three districts in the city of Rio de Janeiro

1 Departamento de Medicina Preventiva e Núcleo de Estudos de Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Av. Brigadeiro Trompowsky s/no, Ed. Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, 5o andar, Ala Sul, Cidade Universitária, Ilha do Fundão, Rio de Janeiro, RJ 21941-590, Brasil. rejanesp@acd.ufrj.br
2 Departamento de Informação em Saúde, Centro de Informação em Ciência e Tecnologia, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Brasil 4365, Biblioteca Nova, 2o andar, Manguinhos, Rio de Janeiro, RJ 21045-900, Brasil. Abstract This article analyzes social inequalities in health care services utilization by the elderly and tests the influence of place of residence. The study was based on a sample survey of residents 60 years of age and older from three different areas in the city of Rio de Janeiro. The multi-stage sampling method led to violations of the logistic regression assumptions which were considered in the data analysis stage. Need was the most important factor related to utilization. However, gender, type of service, income, and place of residence also showed positive impact on health care utilization. Moreover, the effect of the income was modified by place of residence. The area with the best living conditions (Copacabana) did not show inequalities in health care services utilization. The income gradient was more important in middle and lower-income areas, i.e., Méier and Santa Cruz, respectively.
Key words Health Services; Aged; Socioeconomic Factors

Resumo Neste trabalho, foi analisada a desigualdade social na utilização de serviços de saúde e a influência que a área de residência exerce nessas desigualdades. Com informações baseadas em um questionário multidimensional aplicado a uma amostra de idosos da cidade do Rio de Janeiro, foi estudada a associação do uso de serviços de saúde com fatores sócio-demográficos, condição social, necessidade e oferta de serviços médicos. O desenho amostral complexo levou a violações de pressupostos do modelo de regressão logística, que foram tratadas na fase de análise dos dados, com base no cálculo do efeito do desenho. O fator mais importante na explicação da variação no uso de serviços de saúde por idosos foi necessidade. Porém, ser do sexo feminino, renda, área de moradia e ter direito de usar serviço privado também mostraram efeito positivo no consumo de serviços de saúde. O modelo apontou ainda para a existência de interação entre área de residência e renda. A área de alto padrão de vida, representada neste estudo por Copacabana, não apresentou desigualdades internas no uso de serviços de saúde, sendo o efeito da renda mais importante em locais classificados em níveis de padrão de vida médio e menor (Méier e Santa Cruz, respectivamente).

Palavras-chave Serviços de Saúde; Idoso; Fatores Sócio-Econômicos

Introdução

Um dos objetivos atuais das políticas de saúde de alguns países é a redução das desigualdades no adoecer e no acesso aos serviços de saúde (de La Hoz & León, 1996). Para o planejamento das ações voltadas para redução dessas desigualdades e avaliação da política adotada, é importante conhecer-se o padrão de utilização de serviços de saúde dos indivíduos em relação ao perfil de necessidade dos diversos grupos sociais (Kloos, 1990). Mesmo em alguns países desenvolvidos que oferecem cobertura universal de serviços de saúde, diferenças sociais no consumo desses serviços ainda persistem.

Fatores distintos estão associados à utilização de serviços de saúde. Segundo Hulka & Wheat (1985), a necessidade é o fator mais importante na explicação do uso em saúde. Entretanto, outros fatores podem ser relacionados a um menor ou maior uso, como os que expressam dimensões biológicas e sociais, chamados de fatores predisponentes. Por exemplo, tem-se verificado na literatura um maior padrão de consumo de cuidados de saúde para mulheres (Wilson, 1981). Indivíduos nos extremos da cadeia etária usam mais serviços, pela maior ocorrência de doenças e maior necessidade de prevenção nessas faixas de idade, em comparação com o restante da população. Raça e condição social são também apontadas como relacionadas ao uso. Já os fatores capacitantes estão associados à oferta e compreendem: a disponibilidade de recursos humanos e físicos, facilidade de acesso, assim como a forma de financiamento e forma de pagamento ao prestador (Travassos-Veras, 1992).

Outro componente que vem sendo apontado em estudos na área da saúde é a influência da composição sócio-demográfica da área de moradia do indivíduo no seu padrão de consumo de serviços de saúde. Recentemente, Kaplan (1996) observou forte associação entre risco de morrer e ser morador de áreas mais pobres, independentemente de características individuais.

A maioria das pesquisas em geografia médica tem utilizado o espaço apenas como uma unidade de ordenação dos dados. Entretanto, o contexto espacial exerce influência no comportamento humano e levar em consideração essa dimensão é fator importante para a compreensão de situações e para a especificação de políticas de saúde, como já tem ocorrido em maior escala na área da educação. Isto porque os vários processos naturais podem manifestar-se de diferentes maneiras em diferentes locais (Duncan et al., 1993).

Tem-se mostrado crescente a atenção aos estudos de utilização de serviços de saúde por idosos, uma vez que grande parte dos gastos vem sendo realizado por essa população, por consumirem maior quantidade de serviços e consumirem mais serviços de alto custo. Apesar disso, o conhecimento sobre o padrão de utilização de serviços de saúde por idosos ainda é limitado. Na maioria dos estudos, aponta-se a necessidade como o fator mais importante para explicar o uso. Freeborn et al. (1990) observaram outros fatores significativos na predição do uso por idosos, como ser do sexo feminino e possuir mais de 74 anos. Porém, não encontraram associação com condição social e estado civil.

Neste trabalho, será avaliada a existência de desigualdades sociais no consumo de serviços de saúde por idosos, em três regiões administrativas (RAs) da cidade do Rio de Janeiro. Será testada, também, a hipótese de que o efeito da condição social do indivíduo na utilização de serviços de saúde é modificado em função das condições sócio-econômicas de seu local de residência.

Materiais e métodos

Este trabalho utilizou uma base de dados gerada em um questionário multidimensional descrito em Veras (1994) — o Brazil Old Age Schedule (BOAS), aplicado em amostra da população acima de 60 anos da cidade do Rio de Janeiro. Esta base de dados continha informações, entre outras, sobre caracterização demográfica do entrevistado, morbidade auto-referida, utilização de serviços médicos, renda e escolaridade. Os idosos entrevistados residiam em uma das três regiões administrativas (RAs) da cidade: Santa Cruz, Méier e Copacabana, selecionadas com base no padrão de vida (pior, médio e mais alto, respectivamente). Esta classificação baseou-se em indicadores de renda familiar, condições de saneamento, fecundidade das mulheres, proporção de pessoas idosas, número de instituições bancárias (Veras, 1994).

O processo de amostragem realizado por Veras (1994) tomou como base a população de indivíduos acima de 60 anos projetada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) para 1988: 45.775, para Copacabana, 42.547, para o Méier e 11.249, para Santa Cruz. Para compor a amostra, foi definido que seriam selecionados aleatoriamente 240 idosos em cada uma das três RAs, valendo-se de uma lista inicial para enumeração. Tal lista foi elaborada com 1% dos idosos de Copacabana e Méier e 3% de Santa Cruz, com base em um procedimento de amostragem em multiestágios, onde em uma das fases ocorreu amostragem por aglomerados. Para isso, primeiramente, foram selecionados aleatoriamente 5% dos setores censitários de Copacabana e Méier, de onde foram escolhidos 20% dos idosos que lá residissem, perfazendo 1% do total de idosos de cada região administrativa. Na etapa seguinte, para a seleção de 20% dos idosos, cada setor censitário selecionado foi, então, dividido em cinco segmentos geográficos e um deles foi sorteado, cujos idosos residentes foram incluídos na amostra. Para garantir o tamanho inicial da lista para Santa Cruz, foram incluídos 10% dos setores censitários e 30% da população idosa dentro desses setores.

A lista inicial para enumeração apresentou 456, 425 e 337 idosos para Copacabana, Méier e Santa Cruz, respectivamente, de onde foram sorteados 260 idosos de cada uma das áreas para entrevista. Ao final, foi observado um percentual baixo de recusas, com 252, 244 e 242 questionários respondidos para Copacabana, Méier e Santa Cruz, respectivamente.

Para testar o modelo de consumo de serviços de saúde por idosos e a influência da área de residência na variação deste padrão, foram levadas em consideração: variáveis demográficas; sócio-econômicas; a área de residência e o tipo de serviço que o idoso tinha direito de usar, além de uma variável proxy de necessidade, descritas a seguir.

O uso de serviços de saúde foi considerado como uma variável dicotômica e medido a partir de duas questões diferentes do inquérito. Uma delas referiu-se à utilização nos últimos três meses de uma instituição que o usuário tivesse direito de usar. Tal instituição seria ainda a que o idoso normalmente usasse, restringindo muito a capacidade dessa variável em representar a totalidade do consumo de serviços de saúde, uma vez que ele poderia ter consumido serviços médicos de outras instituições que não fossem as que ele normalmente utilizava. Assim, para computar outros possíveis usos de serviços de saúde, foram incorporadas informações referentes à busca de médico e ocorrência de internação nesse período. Desse modo, considerou-se que quem buscou atendimento usou, não levando em conta possíveis dificuldades de acesso.

A necessidade de cuidados médicos pode ser medida por variáveis baseadas em diagnóstico, em sintomas ou na própria percepção da condição de saúde (Hulka & Wheat, 1985). Segundo Shoul et al. (1996), auto-avaliação das condições de saúde é um bom preditor de saúde fisiologicamente determinada. Neste trabalho, necessidade de cuidados foi estimada mediante a variável morbidade auto-referida, a partir da questão do inquérito: atualmente o Sr. tem algum problema (doença) que afeta sua saúde? Não existia na base de dados informação quanto à gravidade da doença. Apenas o fato de o indivíduo referir ou não problema de saúde.

Os idosos foram classificados demograficamente segundo sexo e faixas etárias de cinco anos. A condição social foi medida por meio da escolaridade (inferior e igual ou superior ao segundo grau) e da renda familiar per capita, que foi usada no modelo agrupada em classes de US$50,00 e tratada como variável contínua. O tipo de serviço utilizado foi classificado em público ou privado e estava relacionado ao estabelecimento que o idoso tivesse direito de usar.

Para estudar a desigualdade no consumo de serviços de saúde, foi usada regressão logística, uma vez que a variável resposta era ter usado ou não serviço de saúde. Primeiramente, foi analisado o modelo de utilização de cada região separadamente, para observar possíveis diferenças entre áreas que justificassem a aplicação de um modelo único para as três regiões administrativas. Para esta fase foi utilizado o pacote estatístico SAS (1987). Em seguida, analisou-se um modelo para as três regiões simultaneamente, incorporando a interação entre área e renda familiar per capita, a fim de testar a hipótese da influência do padrão de vida do local de residência nas desigualdades no consumo de serviços de saúde.

A ocorrência de alto percentual de não-resposta poderia inviabilizar a análise pela redução do número de observações ou pela geração de viés de seleção, se os registros sem resposta fossem eliminados sem averiguação prévia. Caso as não-respostas estivessem distribuídas aleatoriamente, seria possível simplesmente eliminar os registros incompletos e utilizar pesos de expansão para compensação dessa retirada (Lee et al., 1989:40). Entretanto, a variável renda familiar per capita, a que obteve a maior percentagem de não-resposta dentre as variáveis utilizadas no modelo (30%), não apresentou distribuição uniforme dos registros incompletos entre as regiões. Adicionalmente, a ocorrência destes registros estava associada com idosos de maior escolaridade, do sexo masculino e mais jovens. Foi decidido, então, realizar imputação de dados. O método adotado baseou-se no cálculo da média dos valores de renda familiar per capita, para diferentes estratos da base de dados. As variáveis usadas na estratificação foram as variáveis do modelo que mostraram-se associadas às variações na renda, o que foi analisado por intermédio de regressão linear. Encontrou-se associação estatisticamente significante com idade e região administrativa onde o entrevistado residia, não sendo encontradas associações com sexo ou o fato de o idoso ter freqüentado ou não pelo menos o segundo grau. Assim, as médias de renda familiar per capita para cada um dos estratos de faixa etária de cada região administrativa foram imputadas aos casos de não-resposta nos estratos equivalentes.

A pressuposição de representatividade da população foi violada pela desigualdade na probabilidade de seleção entre os idosos dos diferentes estratos (RAs), com maior representatividade para Santa Cruz. Na aplicação do modelo completo, foi necessário utilizar pesos normalizados proporcionais às diferentes probabilidades de seleção dos idosos (Pfeffermann, 1996).

A violação de independência entre as amostras ocorreu, já que idosos foram selecionados tomando-se por base aglomerados (regiões do setor censitário). Na fase de análise dos dados, foi, então, realizada correção da variância dos coeficientes do modelo de utilização, a partir do efeito de desenho (Lee et al., 1989:21). Este fator é usado para avaliar a perda ou ganho de precisão da estimativa quando não se tem o desenho amostral aleatório com reposição. Não se levando em conta este efeito, pode-se estar aceitando ou rejeitando uma estatística, sem de fato ser adequado fazê-lo.

O cálculo do efeito de desenho de amostragens complexas é uma tarefa que requer técnicas especiais, que utilizam estratégias pouco familiares. Existem alguns programas computacionais que realizam este cálculo, como é o caso do SUDAAN (1989), que foi utilizado neste trabalho.

Resultados

Comparando as três regiões administrativas, observaram-se perfis diferenciados para as mesmas, com respeito à estrutura demográfica, sócio-econômica, de morbidade e consumo de serviços de saúde pelos idosos (Tabela 1). Já a distribuição por sexo foi semelhante nas três regiões administrativas e, portanto, seguiu a distribuição geral (aproximadamente 61,5% de mulheres e 38,5% de homens). Copacabana apresentava uma estrutura de população mais idosa comparativamente às demais regiões. Também em Copacabana, foi encontrado o maior percentual de idosos com segundo grau ou mais (aproximadamente 60%), enquanto Méier apresentou 13,6% e Santa Cruz, apenas 7,7%.

A prevalência de morbidade auto-referida mostrou diferenças entre as RAs. Aproximadamente a metade dos idosos de Copacabana referiu ter problema de saúde, enquanto 70% dos idosos do Méier e de Santa Cruz apontou ter tido problema de saúde nos últimos três meses. Pouco mais de 60% dos idosos de Copacabana e Méier e pouco mais da metade dos idosos residentes em Santa Cruz utilizaram serviços de saúde nos três meses que antecederam a entrevista. Nas três regiões, a maioria da população acima de 60 anos tinha direito de usar algum serviço privado. Entretanto, esta proporção foi bem maior em Copacabana (aproximadamente 88%). As outras duas regiões mostraram diferença residual entre ter direito a usar serviço privado e somente possuir direito a utilizar serviço público de saúde (aproximadamente 57% para privado contra 43% para público).

A distribuição de renda familiar per capita foi bem diferente nas três regiões administrativas. A discrepância foi tal que os idosos de melhor condição econômica do Méier e Santa Cruz possuíam renda inferior à dos 40% mais pobres de Copacabana (no caso do Méier). Para Santa Cruz, esta diferença foi ainda mais acentuada, onde os idosos mais ricos possuíam renda menor que a dos 20% mais pobres de Copacabana.

De modo geral, observou-se associação individual das variáveis investigadas com a utilização de serviços de saúde (Tabela 2). Todavia, esta relação não foi observada para a escolaridade dos idosos e a distribuição do uso em função da idade diferiu entre as três regiões administrativas.

Pôde-se observar ainda que a distribuição do uso de serviços de saúde, segundo as faixas de renda familiar per capita, seguiu basicamente a distribuição da morbidade (Figura 1). Em Copacabana, notou-se que o uso de serviços de saúde deu-se de forma equânime entre as faixas de renda. Já no Méier e em Santa Cruz, observaram-se desigualdades de renda no consumo de serviços médicos.


Ajustou-se um modelo de utilização de serviços de saúde para cada uma das RAs, separadamente. Como esperado, ter referido morbidade (necessidade) foi o fator mais importante na explicação do uso de serviços de saúde. Mas, não se observou efeito de renda no consumo desses serviços em nenhuma das três regiões. Maior escolaridade esteve associada positivamente com chance de uso de serviço de saúde em Copacabana e mulheres idosas do Méier apresentaram maiores chances de utilização de serviços médicos, comparativamente aos homens idosos, efeito que não apareceu nas demais áreas.

Visto que foram encontrados modelos diferentes para as regiões administrativas, procurou-se estudar a influência da região de residência e do padrão de vida da área na variação do consumo de serviços de saúde, tendo um modelo único, incorporando a interação entre área e renda (Tabela 3). O ajuste desse modelo levou em conta o efeito do delineamento. Foram incluídas as variáveis existentes na base de dados que correspondiam ao modelo teórico de utilização de serviços de saúde e não somente as que apresentaram significância estatística na análise bivariada.

Confirmando o que tem sido apontado na literatura, necessidade, medida pela morbidade auto-referida, foi o fator mais importante na explicação das variações na utilização de serviços de saúde (odds de uso de 4,35). Outras variáveis também mostraram-se significativas nessa explicação. As chances de utilização de serviços de saúde por idosos foram maiores para mulheres, para aqueles que tinham direito de usar serviço privado, e para os que possuíam melhor condição econômica ou moravam em áreas de melhor padrão de vida. Assim como as mulheres apresentaram odds de uso 50% maior do que os homens, tudo mais igual, os idosos que tinham direito de usar somente serviço público tiveram odds de uso 50% menor, comparativamente aos que também tinham direito de usar serviço privado. Diferentemente do que tem sido apontado na literatura internacional, idade não se mostrou significativa na explicação das variações nas chances de consumo de serviços médicos entre idosos das três regiões administrativas. Também não foi encontrada associação significativa com escolaridade. Foram realizados testes adicionais usando outros pontos de cortes para as variáveis incluídas no modelo, confirmando os resultados encontrados.

De um modo geral, os idosos de maior renda experimentaram maior chance de usar serviços de saúde, assim como morar em áreas de melhor padrão de vida esteve associado à maior chance de uso (Tabela 3). Dessa forma, pôde-se inferir que existiam desigualdades no consumo de serviços de saúde tanto com respeito à condição econômica do idoso, quanto associada ao local de moradia.

Cabe ressaltar, no entanto, que a odds sobre-estima algumas associações. Ademais, o efeito de desenho menor que um indicou que menos observações seriam usadas para garantir-se a mesma precisão obtida em uma amostragem aleatória simples com reposição. Com isso, e supondo uma população homogênea, houve maior tendência em aceitar-se estatisticamente uma associação. O inverso é válido e alguma associação pode não ter sido significante pelo baixo poder estatístico alcançado.

O diferencial de consumo de serviços de saúde associado à renda do idoso variou nas regiões administrativas, como apresentado na Tabela 4. Nesta Tabela, comparam-se odds de uso entre RAs e entre faixas de renda familiar per capita. O valor de cada célula ij da Tabela representa a razão entre a odds de uso referente à situação da linha i e a odds de uso da coluna j. Em Copacabana, por exemplo, área de melhor padrão de vida, não se observou efeito da renda sobre o uso de serviço de saúde (razão de odds de uso de 1), indicando inexistência de desigualdades internas. Já nas outras duas regiões, o poder aquisitivo da população com 60 anos ou mais influenciou positivamente as chances de uso de serviços de saúde. Apesar de existir um gradiente social no consumo no Méier, área de padrão de vida intermediário (odds de uso 1,27 vezes maior entre as faixas de renda US$200,00 a US$250,00 e a menor — até US$50,00), esse gradiente foi bem mais acentuado em Santa Cruz, área de pior padrão de vida (odds de uso 2,32 vezes maior para rendas entre US$200,00 e US$250,00, comparado à menor faixa).

Além da questão da desigualdade social no consumo de serviços de saúde interna a cada região, pôde-se perceber que o efeito da renda não foi homogêneo entre as áreas, atuando mais fortemente nas regiões de menor padrão de vida. Resumindo, a condição econômica e a área de residência apareceram como fatores determinantes da chance de uso de serviços de saúde. Os moradores de Copacabana apresentaram maiores odds de uso do que os moradores mais pobres do Méier (1,25) e Santa Cruz (2,05). Este gradiente social na utilização de serviços de saúde tendeu a diminuir com o aumento da faixa de renda do idoso, pois nas faixas de renda familiar per capita acima de aproximadamente US$200,00, o sentido da desigualdade se inverteu, sugerindo inclusive que os moradores de mais alta renda residentes nas áreas mais carentes tenham maior chance de uso de serviços de saúde em comparação aos moradores de mesmo grupo de renda de Copacabana (razão entre odds de 0,98 e 0,89 para Méier e Santa Cruz, respectivamente).

Uma forma operacional de apresentar os resultados expostos acima é analisando a probabilidade de uso por subgrupos da população, definidos com base nas variáveis explicativas do modelo. Por exemplo, a probabilidade de uso para as mulheres de 60 a 64 anos, com pelo menos segundo grau completo, que referiram morbidade e que não tinham direito a usar serviço privado variou segundo a renda e a área de residência (Tabela 5). A probabilidade de uso de serviços de saúde para as residentes em Copacabana e com renda familiar per capita até US$50,00 foi 31% maior que a probabilidade de uso para idosas de mesma faixa de renda familiar per capita, residentes em Santa Cruz. A diferença entre Copacabana e Méier foi menor (7%). Essas diferenças tenderam a se reduzir à medida que comparavam-se as idosas com maior renda familiar per capita. A partir de valores de renda familiar per capita entre US$200,00 e US$250,00, observou-se maior probabilidade de uso de serviços de saúde para idosas residentes no Méier e em Santa Cruz, em relação às moradoras de Copacabana. Comparando as idosas com renda familiar per capita entre US$450,00 e US$500,00, a probabilidade de uso de serviços de saúde para as residentes em Santa Cruz foi 25% maior que para as residentes em Copacabana, mostrando inversão da relação encontrada nas menores faixas de renda.

Discussão

A variação na utilização de serviços de saúde por idosos residentes em Copacabana, Méier e Santa Cruz teve como fator explicativo mais importante a necessidade, medida pela variável morbidade auto-referida. Essa variação também foi explicada pelo sexo, a área de residência e a renda familiar per capita do idoso, concordando com a literatura sobre o tema. Diferentemente, a idade não se mostrou associada ao uso de serviços de saúde como seria esperado. Com referência às desigualdades sociais, não apenas a condição econômica do idoso influenciava a sua chance de usar serviços de saúde, como também o local de sua residência, que atuou modificando o efeito das condições econômicas individuais nas chances de uso de serviços. Isto é, ceteri paribus, os idosos mais pobres apresentaram menor chance de uso de serviços de saúde comparativamente aos mais ricos, entretanto essa relação possuiu um padrão diferenciado por local de moradia. Os idosos ricos ou pobres residentes em Copacabana não experimentavam diferentes chances de usar um serviço de saúde, fato que não se repetiu para os idosos moradores do Méier e de Santa Cruz, onde observaram-se desigualdades no uso de serviços médicos entre os grupos de renda.

O efeito da renda familiar per capita sobre o consumo de serviços de saúde foi maior para os idosos residentes nas áreas de pior padrão de vida, reduzindo assim suas oportunidades de uso vis-à-vis as oportunidades dos idosos mais pobres residentes na área de melhor padrão de vida. Contudo, esse efeito tornou-se menor para os idosos moradores do Méier e, particularmente, de Santa Cruz, que possuíam renda maior. Isto é, o efeito da renda sobre o consumo de serviços de saúde entre as diferentes áreas sofreu uma inversão à medida que a renda aumentou. Isso indicou que o acesso aos serviços de saúde dos idosos residentes nas áreas de pior padrão de vida dependeu mais fortemente de seu poder aquisitivo. Mais ainda, o padrão observado entre diferentes áreas para os idosos com maior nível de renda pode estar sugerindo uma maior gravidade nas condições de saúde daqueles que residiam nas áreas de pior padrão de vida.

A interação de renda familiar per capita com a área de residência confirmou a hipótese inicial do trabalho de que os idosos em um mesmo grupo de renda utilizavam diferentemente os serviços de saúde na dependência de seu local de residência. Vários fatores podem contribuir para explicar o efeito do local de moradia nas desigualdades sociais observadas neste estudo, como variações na acessibilidade e na disponibilidade local de serviços de saúde. Moradores em áreas com menor disponibilidade de serviços em geral, menor oferta de serviços públicos e de serviços de boa qualidade, em particular, tendem a procurar menos serviços ou ter sua demanda reprimida. Essas restrições só seriam ultrapassadas através da compra de serviços ou do consumo em áreas distantes de sua residência, o que envolveria maior gasto financeiro.

Uma outra linha de explicação complementar do efeito da área nas desigualdades sociais no consumo de serviços de saúde seria a interferência de redes sociais influenciando positivamente o consumo por diferentes vias: a) pela facilitação do acesso mediante auxílio financeiro ou apoio de pessoas com influência sobre os prestadores de serviços de saúde; b) pela absorção do padrão cultural de consumo predominante na área, de tal forma que pessoas de baixa renda residentes em áreas de alto padrão de vida tenderiam a acompanhar o padrão predominante na área.

Este estudo apontou para a existência de uma complexa rede de relações na origem das desigualdades sociais no consumo de serviços; porém, novas investigações são necessárias para testar as hipóteses acima. A compreensão dessas relações é importante para orientar ações voltadas para reduzir as desvantagens experimentadas pelos indivíduos socialmente menos privilegiados e sugere que futuros estudos sobre desigualdades sociais no consumo de serviços de saúde devam considerar tanto as condições sócio-econômicas dos indivíduos, quanto o padrão de vida de seus locais de moradia.

Agradecimentos

Gostaríamos de agradecer ao Prof. Renato Veras por disponibilizar a base de dados para utilização neste trabalho, à Profa. Margareth Crisóstomo Portela pelas contribuições dadas durante a elaboração do artigo e ao CNPq, pelo apoio financeiro.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Ago 2001
  • Data do Fascículo
    Set 1999
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