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A medicina no Brasil Imperial: clima, parasitos e patologia tropical

RESENHAS BOOK REVIEWS

A medicina no Brasil Imperial: clima, parasitos e patologia tropical

Adauto José Gonçalves de Araújo

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. adauto@ensp.fiocruz.br

A MEDICINA NO BRASIL IMPERIAL: CLIMA, PARASITOS E PATOLOGIA TROPICAL. Edler FC. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2011. 298p. (Coleção História e Saúde). ISBN: 978-85-7541-215-2

É um prazer comentar o livro de Flavio Edler. É uma obra para se tornar referência na área da história da medicina e da própria história de nosso país. Encontra-se repleta de pormenores e dados detalhados e pouco conhecidos, mesmo para os especialistas. Não é de leitura simples, é preciso estar atento, seguir as notas, muitas, que devem ser consultadas, pois são preciosas.

O livro compõe-se de cinco capítulos, prefaciados por Sergio Goes de Paula. Nas "orelhas", as palavras de Jaime Benchimol. Como se vê, o autor já vem com dois escudeiros de primeira.

Os capítulos são apresentados pelo próprio Edler. São eles: (1) Clima e Doença no Contexto da Medicina Hospitalar, (2) Geografia Médica e Patologia Tropical, (3) Helmintologia Médica, (4) A Sociogênese da Helmintologia Médica no Brasil, e (5) A Clínica, a Higiene e a Parasitologia na Constituição da Medicina Tropical. Em seguida, as conclusões e a lista de fontes e referências a artigos consultados.

Nesta resenha farei uma apreciação geral e comentários sobre alguns aspectos que valem ser destacados. Não me aterei a seguir, capítulo a capítulo, o conteúdo do livro. Contrário à norma de fazer isso no final da resenha, desde já o recomendo fortemente a todos que se interessam por história do Brasil, história da medicina, doenças tropicais e medicina em geral.

O leitor não encontrará uma leitura fácil, leve, como em alguns textos que buscam, logo de início, atraí-lo. A atração dá-se na persistência da leitura e pela profundidade das discussões. No primeiro capítulo, depara-se com a questão do clima e sua influência sobre as doenças, de como as entidades físico-químicas ou orgânicas, como as denomina o autor, traduziam-se pela tradição da climatologia médica. Pronto! Abriram-se as portas para uma sequência de conhecimentos e história da medicina que sempre foram assunto envolvente para aqueles ávidos de saberem como se deram os primórdios da ciência médica. A partir daí, o leitor já está cativado.

Poderá ser surpresa para alguns leitores que no início as comunicações científicas faziam-se abertamente, com acesso livre a todos os interessados (p. 74). Isso é, nem tanto assim. Havia a troca de Endereço para correspondências entre os cientistas (os médicos que pesquisavam) e os clínicos, e as cartas eram, em geral, muito bem guardadas, tanto que algumas puderam ser recuperadas séculos depois de escritas. Liam-se as cartas como comunicações nas sociedades científicas, constituindo-se nos primeiros arquivos de artigos. Porém, o acesso era relativamente restrito, entre os que se correspondiam e para os poucos que podiam assistir aos debates e leituras. Havia também o costume das conferências e debates populares entre cientistas, tão bem retratados por Conan Doyle nas aventuras do professor Challenger e do professor Summerlee.

Ponto relevante refere-se ao debate sobre o uso da estatística nos estudos médicos. Flavio Edler historia os passos iniciais da intersecção entre os dois campos do conhecimento, mostrando como se deram as discussões em torno do assunto. Destaca aspectos inusitados relativos à combinação da estatística médica e parasitologia. Isso decorreu de dados novos, contrastantes com o conhecimento que se tinha à época.

Embora assunto debatido por muitos, os trópicos e a medicina ainda guardam mistérios. Ao introduzir o leitor na "Patologização dos Trópicos", Edler traz a figura do Dr. Miguel Pereira, célebre por sua frase "O Brasil é um imenso hospital". Outro autor emblemático apresentado nesse capítulo é Otávio de Freitas, que imputava à chegada dos africanos todos os malefícios que mudaram o paraíso tropical que os conquistadores europeus encontraram na descoberta. Para ele, tudo de ruim, sobretudo as doenças, teriam sido introduzidos pelos africanos. Foi preciso que os achados da paleoparasitologia mostrassem a falsidade de algumas dessas afirmações. Por exemplo, a ancilostomíase, ascaridíase, tricuríase, oxiuríase, entre outras helmintíases intestinais, transmitiam-se entre os grupos pré-históricos das Américas há, pelo menos, 10 mil anos.

Curiosa também é a questão da geração espontânea e a presença dos "vermes" nas pessoas doentes. Trata-se de intenso debate e experimentos até chegar-se à conclusão de que a presença de helmintos no intestino poderia estar associada à manifestação de sinais e sintomas, e não o contrário, isto é, o aparecimento de "vermes" não se daria espontaneamente por conta da doença do paciente. Como se refere Edler, na página 119, há uma "...emergência da problemática da parasitologia helmíntica no campo médico em meados do século XIX...", marcada pelos experimentos em laboratório buscando-se entender aspectos da embriologia, ecologia, desenvolvimento e patogenia dos helmintos, tanto em plantas, em seres humanos e outros animais. Essas discussões e argumentos para um e outro lado estão da página 118 à página 125 em diante. Recomendo ao leitor acompanhar a detalhada documentação histórica recolhida por Flavio Edler, mostrando a crescente produção científica de conhecidos helmintologistas que procuravam, no princípio de século XIX, sedimentar as noções de que os helmintos reproduziam-se sexuada e assexuadamente, de acordo com as espécies. Os estados larvares distinguiam-se enormemente dos adultos, e até chegar-se a identificá-los todos, muitos ciclos permaneceram misteriosos.

Há que se reparar algumas imprecisões que podem deixar o leitor confuso, mesmo que depois justificadas no texto. Uma delas, na página 127, afirma que a espécie de nematoide Ascaris lumbricoides pode infectar humanos, suínos, equídeos e bovinos. Podem-se encontrar espécies de ascarídeos nesses animais, mas tratam-se de outros gêneros e espécies. No caso dos porcos, uma série de artigos mostrou, recentemente, que a espécie que infecta estes animais, comumente identificada como Ascaris suum, é a mesma espécie, A. lumbricoides, que infecta humanos. Não são duas espécies, mas apenas uma que infecta esses dois hospedeiros. Outra observação também diz respeito à nomenclatura e nomes científicos. Embora seja interessante manter a nomenclatura usada à época (ver p. 136), seria recomendável mencionar a nomenclatura atual como nota ao final do capítulo.

A partir da página 133 há um ponto importante que merece ser destacado. Trata-se da definição e do conceito de "Parasito". O que é e o que deixa de ser um parasito? Como define-se, como se conceitua "Parasitismo"? A discussão é atual, e muitos autores ainda se confundem com ela, usando o termo "parasito" associando-o obrigatoriamente a doenças. Entretanto, o próprio Davaine reconhecia que "...dizer onde começa e onde acaba a condição parasitária" era muito difícil. No século XVIII, Lineu postulava que todas as criaturas existiam para a felicidade do ser humano, enquanto Davaine tem outra visão, a de que o parasitismo atingia a universalidade dos seres vivos, trazendo com os parasitos algum poder destrutivo. A harmonia e economia da natureza começariam a ser quebradas por uma série de descobertas.

O surgimento do conceito de espécie é brilhantemente discutido por Flavio Edler, já que traz consigo, ou embutida, a concepção do fixismo. Nesse capítulo, na página 135, há um ponto divertido, a questão de Adão e Eva e o surgimento de parasitos intestinais. Estariam eles presentes e dormentes no Paraíso? Ou teriam aparecido depois? Esse ponto foi ressaltado pelo editor J.W. Burrow, na introdução da reimpressão da primeira edição da Origem das Espécies de Charles Darwin pela Pelican Books, em 1975. Em seus comentários, o editor reflete que as ideias deístas do século XVIII foram abaladas, sem trocadilhos, após o terremoto de Lisboa. Mesmo na Europa, ao contrário dos trópicos aonde os desastres seriam esperados, a natureza poderia causar surpresas desagradáveis. Ele vai além, comentando sobre outras coisas desagradáveis, como os vermes intestinais, o que causou notável discussão entre teólogos e naturalistas para explicar se os vermes intestinais existiam em Adão antes de sua queda do Paraíso. A conclusão é que sim, existiam, mas somente sob a forma de ovos, que eclodiram somente após "o triste evento".

No capítulo 4, inicia-se um texto precioso para o conhecimento de parasitologistas e médicos, de humanos ou de outros animais, dedicados às doenças infecciosas. Apresenta-se a Academia Imperial de Medicina. É um relato precioso, detalhado a cada passo do conhecimento, com relatos sobre disputas e imposições trazidas pelo conhecimento da época e pela luta de poder. É instigante o ponto de vista de Flavio Edler sobre o mito da origem da medicina tropical no Brasil a partir da Escola Tropicalista Baiana. A partir daí, Flavio detalha as discussões em torno da hipoemia tropical, os argumentos de Wucherer, Sigaud, Torres-Homem, Cruz Jobin, entre outros. A ancilostomíase torna-se pomo de discórdia e centro de atenções. Permanece assim por longo tempo, é a causa da miséria e da indolência do povo brasileiro, especialmente do caboclo, o Jeca Tatu de Monteiro Lobato. Constitui-se em tema de campanha de erradicação, a partir da Missão Rockfeller, com Frederic Soper e Samuel Darling na América do Sul, cerca de 40 anos depois. Era, de fato, um problema de saúde pública, grave e disseminado por vastas regiões das Américas no início do século XX. É curioso perguntar o que aconteceu com a ancilostomíase. Desapareceu como problema de saúde? Quantos casos de doença ancilostomótica, não apenas infecções, são registrados nos bancos de dados? Trata-se de um desaparecimento de doença, antes tida como muito grave? Ficam as perguntas.

O capítulo 5 inicia-se com a epígrafe de Júlio de Moura (1876), "...no país dos videntes quem maneja o microscópio é rei". A Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro implantava o ensino experimental e prático. Oswaldo Cruz lá estava e se familiarizava com os novos microscópios adquiridos pela faculdade. Nesse capítulo, Edler nos traz um primoroso relato sobre os caminhos que tomaram o ensino médico e a parasitologia no Brasil. Os estudos sobre helmintos e helmintíases são descritos pormenorizadamente no período de 1866 a 1892, por ser este prolífico em contribuições de cientistas brasileiros, tendo como destaque Adolpho Lutz. São dele as principais contribuições que trariam clareza às manifestações clínicas e à patogenia da ancilostomíase. Passa-se então à etiologia da filaríase, com encontros de microfilárias associadas a diversas manifestações clínicas. Cientistas brasileiros e estrangeiros imputaram diversas descrições de quadros clínicos associados à presença de filárias, até que o parasito ficasse conhecido como Wuchereria bancrofti.

A partir da página 260 vai-se caminhando para as conclusões deste importante livro de consulta e de leitura obrigatória a muitos estudantes e cientistas. Edler discorre sobre como alguns vermes ajudaram a redefinir as fronteiras da medicina no Brasil.

Ao final desse último capítulo encontram-se numerosas e preciosas notas, cujas informações são, por si, documentação de consulta obrigatória a quem estiver interessado na história da ciência e da helmintologia em nosso país.

Flavio termina o livro com as conclusões, precisas e concisas, a que levaram a sua dissertação sobre as verminoses e a medicina no Brasil. O contexto em que surgiu a pesquisa sobre helmintos em nosso país, a partir de 1860, impôs certo estilo nas observações sobre patologias e nos padrões de prova empírica. Mudaram o conhecimento médico. Foi um período interessante para o saber da medicina e para a formação de novos cientistas brasileiros.

A última frase do livro "Esperamos que o leitor tenha ficado satisfeito com o resultado", é dispensável. Nenhum interessado em helmintologia, parasitologia, medicina tropical, ciência no Brasil, história da medicina e mais outras especialidades, inclusive o leitor leigo, deixará de apreciar seu conteúdo. O sucesso editorial responderá por este resenhista. Parabéns ao autor e à Editora Fiocruz por este belo documento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Mar 2013
  • Data do Fascículo
    Fev 2013
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