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SERRA, Ordep. Hinos Órficos: Perfumes. Introdução, tradução, comentário e notas de Ordep Serra. São Paulo: Odysseus Editora, 2015. 768 p

SERRA, Ordep. Hinos Órficos: Perfumes. Introdução, tradução, comentário e notas de Ordep Serra. São Paulo: Odysseus Editora, 2015. 768

Lançada esta tradução dos Hinos órficos, a primeira no Brasil, por Ordep Serra, temos, sem sombra de dúvida, um passo inicial para a divulgação dessa obra algo esquecida nos estudos clássicos lusófonos. O compêndio de 87 hinos acompanhados de um proêmio dedicado a Museu, provavelmente composto entre os sécs. III e IV d.C., vem aqui acompanhado de uma introdução extensa e, no final do volume, diversos comentários interlineares sobre cada hino. Com certeza alguma familiaridade Serra tem com esse corpus, pois, como alega, a largos passos vem trabalhando com os HO (p. 115). Contudo, um problema de seu estudo inicial talvez seja essa mesma familiaridade que, desprovida de rigor, transmite a impressão de certa liberdade excessiva. Serra trabalha com alguns pressupostos duvidosos. Um exemplo aparece já na abertura de seu texto, quando, em meio a uma reflexão do sentido original dos μυστέρια, Serra propõe o cognato em latim para efetuar a sua leitura, e não o significado do original grego, o que é problemático: μυεῖν, em grego, refere-se mais especificamente ao ato de cerrar os olhos, não a boca, cujo sentido, por sua vez, só pode ser depreendido do possível cognato mutus (p. 22). A definição do μúστης como aquele que mantém os “lábios cerrados”, conquanto poética, é algo equivocada, pois deixa contaminar o significado de um cognato a outro. Uma consulta ao clássico dicionário de Chantraine (1990)CHANTRAINE, P. Dictionnaire Étymologique de la Langue Grecque. Paris: Klinksieck, 1990. que Serra elenca em sua bibliografia talvez tivesse sanado esse problema.

Outro problema remonta ao próprio título que Serra atribui a essa συλλογή: “Perfumes”, como ele faz questão de subtitular os HO na capa do livro, e ainda “Aromas”, que aqui e ali aparecem em seu texto (pp. 31, 33). Trata-se de uma interpretação controversa dos títulos originais, que, em geral, apresentam a fórmula: (nome da divindade no genitivo) + θυμíαμα + nome da oferenda no acusativo. Em um estudo também citado por Serra, A.-F. Morand (2001, pp. 101-52) faz notar a grande presença das oferendas nos títulos levou João Galeno a identificar essa coletânea por suas fumigações. De fato, a crítica francesa aventa a possibilidade da leitura θυμíαμα + nome da divindade no genitivo, do que teríamos, para o décimo hino, por exemplo, algo como “Incenso (ou Perfume) à Natureza”, mas logo a descarta reconhecendo que o paralelo dos títulos dos HO com aqueles dos Papiros mágicos fornece uma forte evidência para como devemos ler a coletânea órfica (pp. 110-1), permitindo a leitura de um genitivo objetivo equivalente a um esperado dativo em línguas românicas. Nessa mesma passagem, o problema da oferenda no acusativo também é tratado e solucionado por Morand, tomando o paralelo do HO 53 (καì σπένδε γάλα) como paradigma de leitura e se apoiando ainda na hábil leitura proposta por C. Petersen (1968)PETERSEN, C. “Über den Ursprung der unter Orpheus’ Namen vorhandenen Hymnen”, Philologus 27, p. 385-431, 1968.. Daí temos também a leitura da edição canônica de W. Quandt (1955)QUANDT, W. Orphei Hymni, Berlin: Weidmann, 1955., que Serra afirma ter consultado (p. 97), mas, que, para continuar no mesmo exemplo, adota a seguinte pontuação: “Φúσεως, θυμíαμα ἀρώματα”, o que nos fornece a discordância entre o editor e o tradutor. Serra parece, na verdade, seguir a mesma interpretação problemática de G. Ricciardelli (2012)RICCIARDELLI, G. Inni Orfici. Milano: Fondazione Lorenzo Valla, Mondadori Editore, 2012. e O. Hatzópoulos (2003)HATZÓPOULOS, O. Orphiká, vol. 1. Atenas: Kaktos, 2003, os únicos editores do texto a preferirem a leitura “Φúσεως θυμíαμα | ἀρώματα”. O curioso, porém, é que no texto grego que consta da tradução de Serra, a formatação se aproxima daquela empregada no texto de Quandt, “Φúσεως | θυμíαμα ἀρώματα”, do que só é possível imaginar que Serra tenha proposto a seguinte conjectura a seu texto: “(θυμíαμα) Φúσεως, θυμíαμα ἀρώματα”, o que não se apoia em nenhum dos manuscritos que nos foram legados. Logo: (θυμíαμα) add. Ord. Serra.

O estudo se presta mais a elocubrações sobre a figura de Orfeu, do que um exame detido dos HO, o que, por vezes, resulta em conciliações problemáticas de premissas, como o tema do silêncio supracitado, a partir do qual Serra depreende que, no proêmio, Museu se manteria calado enquanto estivesse aprendendo “o rito de sagração” proferido por Orfeu (p. 27). São poucas as páginas destinadas aos HO: entre as pp. 94-101, um descomprometido status quaestionis; entre as pp. 101-12, uma rápida análise da disposição sequencial dos hinos, talvez a parte mais interessante de seu estudo; e, somente às pp. 113-4, uma brevíssima apresentação da estrutura dos hinos, algo que é analisado com muito mais fôlego, por exemplo, em um artigo recente de A. Galjanić (2010)GALJANIĆ, A. “Three and then some: Typology of invocation and enumeration in the Orphic Hymns”. In: BERNABÉ, A. et alii (Ed.). Orfeo y el orfismo: nuevas perspectivas. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2010. p. 122-56.. O que se vê com frequência é antes um exercício impressionista do que um estudo propriamente dito. Serra demonstra uma grande dedicação em legimitar aquilo mesmo que ele deveria estar analisando: a atribuição de auctoritas aos HO por meio da figura de Orfeu.

Compostos e — talvez — performados durante a Antiguidade tardia, é possível que a sua leitura se enriquecesse com um questionamento acerca da forma e do contexto dos hinos, se baseado cuidadosamente em uma abordagem empírica do texto, o que não parece ser o caso. Não temos testemunhos contemporâneos dos HO e, a não ser que sigamos um M. West, que não se acanha em propor uma imagem bastante nítida da ocasião de performance dessa obra (1983, pp. 28-9), ficamos restritos a um horizonte de observação bastante limitado dos HO: a própria compilação, da qual é possível entrever indícios textuais de perfomance (cf. Graf, 2009GRAF, F. “Serious singing: the Orphic Hymns as religious texts”, Kernos 22, p. 169-82, 2009.), e, como informação complementar, as correntes ritualísticas do mesmo período dos HO. Nesse sentido, uma leitura mais atenta do estudo já mencionado de Morand (pp. 231-87) e ainda de M. H. Jáuregui (2010)JÁUREGUI, M. H. Orphism and Christianity in Late Antiquity. Trad. J. Ottman e D. Rodriguez. Berlin/New York: De Gruyter, 2010. poderia ser de grande auxílio. Com efeito, a bibliografia elencada por Serra e o seu manejo dela também é algo debatível. Serra faz menção à mais recente coletânea de fragmentos órficos realizada por A. Bernabé (2005)BERNABÉ, A. Poetae epici Graeci. Testimonia et fragmenta, Pars II. Orphicorum et Orphicis similium testimonia et fragmenta. Munich: Teubner, 2005., que demonstra claras aprimorações em relação à antiga edição de O. Kern (1972)KERN, O. Orphicorum Fragmenta. Berlin: Weidmann, 1972., mas dá preferência a esta última, sem motivo aparente. Do mesmo modo, Serra também faz uso da tradução de 1977 de A. N. Athanassakis, sendo que uma nova edição foi lançada em 2013, agora não só por Athanassakis, mas também por B. Wolkow, com um significante acréscimo de comentários e uma nova introdução. As importantes teorias de A. Dietrich (1891)DIETRICH, A. De hymnis orphicis capitula quinque. Marburg: Elwert, 1891. e de F. Graf (2009)GRAF, F. “Serious singing: the Orphic Hymns as religious texts”, Kernos 22, p. 169-82, 2009., que poderiam em muito enriquecer o seu comentário, apesar de elencadas em sua bibliografia, são citadas en passant no estudo, sem qualquer desenvolvimento. Há um claro descaso pela bibliografia mais atual a respeito do orfismo e dos HO e, descompassadas como estão, as suas referências só podem gerar um texto opinativo, como é a passagem que versa sobre a sua preferência pela teoria de um Orfeu xamânico (pp. 49-50, 53-5), ou ainda quando trata da influência órfica em Platão (pp. 24-5, 89) — sobre isso, inclusive, o próprio A. Bernabé, autor que Serra usa como argumento a favor de tal influência, conclui que o corpus platônico seria uma “síntese colossal que já não tem nada ou quase nada de órfico” (2011, p. 415). Enfim, um texto opinativo e, portanto, discutível.

Às pp. 112-3, Serra, não obstante fale vagamente da tarefa de tradução dos HO, não se detém exatamente sobre a sua tradução, em que ela se apoia e a quem ela se destina. Uma análise de seu texto mostra que em alguns momentos ele parece seguir a escola haroldiana, propondo compostos agramaticais (1.7, “Tomba-Touros” para ταυροπóλον; 6.3, “Tauribramante” para ταυροβóαν; 15.8, “Treme-terra” para σεισíχθων; 56.9, “[a] belas-tranças” para ἐρασιπλοκάμου), em que a permissividade poética parece falar mais alto, além de adotar uma expressividade solene e variegada que destoa da “ladainha”, como ele mesmo descreve mais de uma vez, dos originais. Esses dois fatores acabam gerando momentos em sua tradução que não estão presentes nos originais, como o marcante “vinde (...) / ao místico sacrifício e à libação perfeita” que vertem os vv. 43-4 do proêmio, no original: “ἐλθεῖν (...) / τήνδε θυηπολíην ἱερὴν σπονδὴν τ’ἐπί σεμνήν”, passagem em que os termos “místico” e “perfeita” dificilmente poderiam ser aceitos e que apresenta uma flagrante tentativa de incutir no texto uma leitura a priori. Dirigida a um público leigo, como me parece, essa tradução acaba, na verdade, justificando uma interpretação comum pela efígie acadêmica, o que não ajuda nem uma parte nem outra.

Trata-se, em suma, de uma edição cujos problemas prejudicam os insights produtivos. Em seu estudo, o cultivo da intuição enfraquece a análise do possível, o que é reforçado pelo aproveitamento precário da bibliografia e por uma tradução controversa. Hinos Órficos: Perfumes supre algumas lacunas, mas dá ensejo a muitas outras.

  • 1
    “Para entender la conexión hay que narrar otra historia. O narrar de nuevo una historia, pero desde otro lugar, y en otro tiempo. Ese es el secreto de lo que hay que leer. Y eso es lo que la literatura hace ver sin explicar.”
  • 2
    “El lector se trata de alguien perdido en una biblioteca, que va de un libro a otro, que lee una serie de libros y no un libro aislado. Un lector disperso en la fluidez y el rastreo, que tiene todos los volúmenes a su disposición. Persigue nombres, fuentes, alusiones; pasa de una cita a otra, de una referencia a otra.”
  • 3
    “El sujeto que lee en soledad se aísla porque está inmerso en la sociedad, de lo contrario no precisaría hacerlo. Marx ha criticado la idea de grado cero de la sociedad en el mito del robinsonismo, porque incluso un sujeto aislado por completo lleva con él las formas sociales que lo han hecho posible. El aislamiento presupone la sociedad de la cual el individuo quiere huir.”
  • 4
    “En ese universo saturado de libros, donde todo está escrito, solo se puede releer, leer de otro modo. Por eso, una de las claves de ese lector inventado por Borges es la libertad en el uso de los textos, la disposición a leer según su interés y su necesidad. Cierta arbitrariedad, cierta inclinación deliberada a leer mal, a leer fuera de lugar, a relacionar series imposibles. La marca de esta autonomía absoluta del lector en Borges es el efecto de ficción que produce la lectura.”

Referências

  • ATHANASSAKIS, A. N. The Orphic Hymns Missoula, Montana: Scholars Press, 1977.
  • ______.; WOLKOW, B. The Orphic Hymns Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2013.
  • BERNABÉ, A. Poetae epici Graeci Testimonia et fragmenta, Pars II. Orphicorum et Orphicis similium testimonia et fragmenta. Munich: Teubner, 2005.
  • ______. Platão e o orfismo: Diálogos entre religião e filosofia. Trad. D. G. Xavier. São Paulo: Annablume Clássica, 2011.
  • CHANTRAINE, P. Dictionnaire Étymologique de la Langue Grecque Paris: Klinksieck, 1990.
  • DIETRICH, A. De hymnis orphicis capitula quinque Marburg: Elwert, 1891.
  • GALJANIĆ, A. “Three and then some: Typology of invocation and enumeration in the Orphic Hymns”. In: BERNABÉ, A. et alii (Ed.). Orfeo y el orfismo: nuevas perspectivas Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2010. p. 122-56.
  • GRAF, F. “Serious singing: the Orphic Hymns as religious texts”, Kernos 22, p. 169-82, 2009.
  • HATZÓPOULOS, O. Orphiká, vol. 1. Atenas: Kaktos, 2003
  • JÁUREGUI, M. H. Orphism and Christianity in Late Antiquity Trad. J. Ottman e D. Rodriguez. Berlin/New York: De Gruyter, 2010.
  • KERN, O. Orphicorum Fragmenta Berlin: Weidmann, 1972.
  • MORAND, A.-F. Études sur les Hymnes orphiques, Leiden: Brill, 2001.
  • PETERSEN, C. “Über den Ursprung der unter Orpheus’ Namen vorhandenen Hymnen”, Philologus 27, p. 385-431, 1968.
  • QUANDT, W. Orphei Hymni, Berlin: Weidmann, 1955.
  • RICCIARDELLI, G. Inni Orfici Milano: Fondazione Lorenzo Valla, Mondadori Editore, 2012.
  • WEST, M. L. The Orphic Poems Oxford: Clarendon Press, 1983.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    12 Maio 2017
  • Aceito
    14 Set 2017
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