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ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco roxo. Tradução de Julia Romeu. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, 324 p.

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco roxo. Romeu, Julia. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 324p.

Partindo da premissa da responsabilidade autoral que deve ser assumida pelo/a tradutor/a, esta resenha visa apresentar uma crítica da tradução brasileira de Purple Hibiscus, feita pela tradutora Julia Romeu , com o título literal de Hibisco Roxo, publicada em 2011, pela editora Companhia das Letras. Purple Hibiscus, originalmente publicado em 2003, é o primeiro romance da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, autora conhecida pelo seu posicionamento feminista e pós-colonial.

A necessidade dessa crítica emerge da identificação de escolhas linguísticas de Julia Romeu que não corroboram com o papel de denúncia e reflexão sobre os efeitos do colonialismo na Nigéria, possibilitada pela obra de Adichie. Em sua obra, a autora reescreve uma história, reconstruindo um passado que outrora fora representado de modo estereotipado pelo colonizador. Dessa forma, pensando nas imagens que o/a tradutor/a constrói de uma determinada obra (LEFEVERE, 1992 LEFEVERE, André. Translation, rewriting, and the manipulation of literary fame. New York: Routledge , 1992.), o foco dessa resenha de tradução é questionar como a tradutora representa e dá ou não continuidade à proposta pós-colonial da autora traduzida.

Embora, conforme aponta Hermans (2014 HERMANS, Theo. (Org.). The manipulation of literature: studies in literary translations. New York: Routledge, 2014.), muitos estudos de tradução tenham meramente demonstrado inadequações nas traduções em relação à excelência dos originais, buscamos, por meio do cotejo entre as obras, refletir sobre o papel de Julia Romeu e suas escolhas linguísticas, uma vez que consideramos que a tradutora pode/deve exercer a função de mediadora e produzir novos significados do texto traduzido.

O contexto da obra é a Nigéria pós-colonial. Este país, assim como muitos outros em diferentes continentes, foi vítima de um processo de colonização empreendido pelo império britânico. As consequências de tal processo têm sido representadas de diversas maneiras na literatura. No romance de Chimamanda Adichie, muitas questões são exploradas, uma vez que a situação política e social da Nigéria é trazida tanto como pano de fundo para o estabelecimento do romance, quanto para a construção de metáforas e representações que podem ser inferidas durante a leitura.

É através do olhar de Kambili, narradora e personagem central, que temos acesso ao que se passa no decorrer da história. A menina faz parte de uma família abastada, cujo pai, Eugene Achike, é um empresário bem-sucedido que se converteu ao catolicismo, religião trazida pelo colonizador, da qual ele se orgulha e faz uso para oprimir sua família. Sua mãe, Beatrice Achike, uma mulher calma e maternal que é impelida a suportar violência física e psicológica do esposo, principalmente em decorrência da conjuntura social na qual ela está inserida. Seu irmão Chukwuka Achike que é chamado pelo apelido de Jaja durante quase toda a narrativa, é um pouco mais velho e, apesar de também sofrer na pele a tirania de seu pai - que se apresenta numa série de restrições e violências físicas -, se mostra corajoso em muitos momentos. É justamente com uma cena que demonstra a resistência de Jaja diante das imposições de seu pai que o romance tem início.

Apesar de grande parte da história estar focada na família Achike, outras personagens são importantes na composição da narrativa e no despertar da protagonista para outras questões, como o desenvolvimento do senso crítico e a sexualidade. Podemos citar a tia Ifeoma, irmã do pai de Kambili, professora universitária que, não obstante as dificuldades financeiras que precisa encarar diariamente, em decorrência dos baixos salários pagos pela universidade e por ser viúva, tendo assim que arcar com todas as despesas da casa, consegue manter um clima de harmonia e liberdade de expressão junto dos seus três filhos: Amaka, Obiora e Chima. Embora Ifeoma também seja católica, ela demonstra respeito à religião não cristã do seu pai, fazendo com que sua sobrinha e sobrinho reflitam a esse respeito.

Em um dado momento do romance - depois de muitos esforços da tia Ifeoma para convencer Eugene a permitir que Jaja e Kambili fossem passar alguns dias em sua casa - o contato com a rotina da tia e dos primos se configura como um divisor de águas na vida de Kambili. Ela tem acesso a outro tipo de relação familiar que provoca reflexões importantes, como por exemplo, a relativização da estabilidade financeira como condição de possibilidade para que alguém seja feliz. Além disso, a personagem começa a refletir sobre as restrições que lhes são impostas em nome dos preceitos religiosos que seu pai adquiriu, como a proibição de passar mais de quinze minutos com o pai de seu pai, pelo fato do avô Papa-Nnukwu pertencer a uma religião tradicional e não cristã. Outro ponto que vale ressaltar é o despertar da sexualidade da personagem, que se dá no momento em que ela conhece o padre Amadi, amigo da família da tia.

Muitas discussões trazidas no romance de Adichie demonstram os danos causados pelo processo de colonização europeia. O contexto sobre o qual a escritora se refere é a Nigéria, mas, ilustra bem o que aconteceu na maioria das colônias. A língua, a religião e as manifestações culturais em geral são desqualificadas e no lugar são postas as pertencentes ao colonizador. Em Purple Hibiscus isso é demonstrado com muita sagacidade. Além da exposição das questões relacionadas ao impacto negativo da colonização, a autora explora o processo lento e árduo da descolonização que é percebida através da reflexão das personagens e da mudança de postura que vai sendo percebida no decorrer da narrativa.

Tendo em vista o papel de denúncia da obra aos efeitos do colonialismo, salientamos a importância dessa mesma ênfase na tradução brasileira a fim de possibilitar ao leitor brasileiro, que não lê em língua estrangeira, o acesso a uma obra que busca reescrever uma história, representar um passado outrora representado de modo estereotipado pelas lentes do colonizador.

No entanto, identificamos escolhas linguísticas de Julia Romeu que não corroboram com a retórica do texto de Adichie, i. e., termos como “denegrir”, que reforçam o racismo. Podendo, desse modo, ser considerada como uma tradução neocolonialista, de acordo com a perspectiva de Spivak (2000 SPIVAK, Gayatri. The politics of translation. In: VENUTI, Lawrence (Ed.). The translation studies reader. London; New York: Routledge , 2000. p. 397-416.). Para a autora, é uma tradução neocolonialista aquela que suprime a retórica do texto original. No que concerne estas questões linguísticas, vejamos a seguir algumas escolhas da tradutora que corroboram com tais afirmações.

Tendo em vista o contexto histórico e o viés político da obra, causou-nos estranheza o termo “denegrir”, encontrado na página 26, na 3ª impressão, da tradução brasileira, publicada pela editora Companhia das Letras, em 2011. Em cotejo com o texto de partida (Tabela 1), encontramos:

Tabela 1
Cotejo 1

O verbo “denegrir” vai de encontro à proposta da obra de Adichie, visto que significa: tornar negro, escuro; enegrecer. Tal verbo, tem sentido negativo, evidenciando que se é negro, não é bom. Portanto, configura-se como um termo que reforça o preconceito racial. Desse modo, a tradutora parece não considerar a carga semântica da palavra, causando no/a leitor/a sensação de contradição diante de uma obra que visa desconstruir as imagens preconceituosas resultantes do processo de colonização.

Nessa mesma perspectiva, apontamos (Tabela 2) diversas ocorrências em que a tradutora utiliza negro/a no lugar da cor preta para adjetivar substantivos; o verbo enegrecer e; o adjetivo enegrecido/a:

Tabela 2
Cotejo 2

Não sabemos o que motiva as escolhas tradutórias de Julia Romeu , uma vez que o texto de partida possibilita outras alternativas linguísticas. Para as ocorrências 1, 4, 9, 11, 12 e 14, em que foi utilizado “negro/a” no lugar da cor preta para adjetivar substantivos, caberia o uso de “preto/a”, uma vez que todas se referem à tradução de “black”, especialmente porque a tradutora utiliza as demais cores enquanto adjetivo em sua tradução: “vestidos vermelhos”, “frutas amarelas”, “hibiscos roxos”, “canga vermelha e dourada”, dentre outros.

A ocorrência 10, em que se traduz “dark” por “negro”, poderia se traduzir por “escuro”. Enquanto que na ocorrência 3, poderia ser usada a tradução literal de “clauding”, ou seja, “anuviando” no lugar de “enegrecendo”, já que a língua portuguesa dispõe de um verbo que apresenta o mesmo sentido do verbo em inglês. Para a ocorrência 2, outra tradução poderia ter sido pensada, como por exemplo a palavra “obscura”. Na ocorrência 5, seria mais usual, no Brasil, a utilização de “azul-escuras”. Quanto às ocorrências 7 e 8, parece mais adequado utilizar “escurecido” e “escurecida”, respectivamente. Do mesmo modo, “escurecidas” ou “empretecidas” poderiam ser utilizados na ocorrência 6. E, finalmente, para a ocorrência 13, “escurecera” no lugar de “enegrecera”.

Embora salientemos a responsabilidade de Julia Romeu ante à controvérsia da tradução brasileira e sua falha em não enfatizar o jogo retórico da obra de Adichie, é preciso considerar que nem só de uma tradutora depende uma tradução. Nesse sentido, o mercado editorial é um ator importante para a circulação de uma obra traduzida.

A editora Companhia das Letras é responsável pela publicação das obras da autora Chimamanda Adichie no Brasil, já tendo publicado os títulos: No seu pescoço (2017), Para educar crianças feministas (2017), Sejamos todos feministas (2015), Americanah (2014), Hibisco Roxo (2011) e Meio sol amarelo (2008). É importante ressaltar que o próprio site da editora enfatiza o tom político das obras da autora. Logo, parece contraditório que a editora não atente para os problemas que apontamos em relação à tradução de Julia Romeu , uma vez que o texto passa por revisão editorial.

A 4ª impressão da tradução apresenta uma tentativa de correção do uso politicamente incorreto do verbo denegrir, sem que seja oferecida uma nova edição. Nesta nova impressão, a palavra “denegria” é substituída por “maculava”. Isso atesta a seriedade da circulação de tal termo na obra. Contudo, as outras ocorrências permanecem. Uma possível alternativa seria uma reedição da obra, apresentando num paratexto, qual seja prefácio ou posfácio, as reflexões acerca das alterações.

Dentre as publicações da editora, traduzidas por Julia Romeu , estão outras obras de cunho político, a saber, Americanah (da própria Adichie) e Chapeuzinho esfarrapado e outros contos feministas do folclore mundial (org. Ethel Johnston Phelps). Tais informações chamam atenção para o fato urgente da consciência do impacto ideológico dessas obras no mundo social, tanto por parte dos/as tradutores/as quanto por parte do mercado editorial.

Evidenciamos a necessidade de considerar que as escolhas do/a tradutor/a não resultam de estratégias simples, consistentes e coerentes, mas que são reflexo de suas vivências, experiências e ideologias, como ressalta Baker (2001 BAKER, Mona. The Pragmatics of Cross-Cultural Contact and Some False Dichotomies in Translation Studies. CTIS Occasional Papers, Manchester, v. 1, n. 1, p. 7-20, 2001.). No entanto, reiteramos a responsabilidade autoral do/a tradutor/a e sua possibilidade de exercer interferência, produzindo novos significados do texto traduzido. Embora não haja necessidade de apresentação de uma tradução subversiva em relação aos efeitos da colonização na obra de Adichie, pois ela já o faz, consideramos que cabia à tradutora representar e dar continuidade à proposta pós-colonial da autora nigeriana.

Desse modo, as possibilidades que apontamos no decorrer do cotejo das obras vão no sentido de evitar o uso de palavras cujo radical seja “negro”, tendo em vista que, a palavra negro/a designa uma etnia e quando apresentada como radical, geralmente constitui palavras com sentido negativo. Além disso, as escolhas da tradutora parecem obstruir a fluidez do texto, pois não representam bem a usualidade da língua portuguesa.

Uma hipótese é que a estranheza que essas palavras causam no/a leitor/a tenha sido proposital, a fim de evidenciar o estrangeirismo do texto. No entanto, as escolhas alteram o sentido subversivo do texto de partida. Logo, temos uma tradução que parece não acompanhar a construção social, cultural e ideológica de Purple Hibiscus.

Referências

  • ADICHIE, Chimamanda. Purple hibiscus New York: Algonquin Books of Chapel Hill, 2003.
  • ADICHIE, Chimamanda. Hibisco roxo Tradução: Julia Romeu. 3. impressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
  • ADICHIE, Chimamanda. Hibisco roxo Tradução: Julia Romeu. 4. impressão. São Paulo: Companhia das Letras , 2011.
  • ARROJO, Rosemary. Os Estudos da tradução na pós-modernidade, o reconhecimento da diferença e a perda da inocência. Cadernos de Tradução, Florianópolis, v. 1, n. 1, p. 53-69, 1996.
  • BAKER, Mona. The Pragmatics of Cross-Cultural Contact and Some False Dichotomies in Translation Studies. CTIS Occasional Papers, Manchester, v. 1, n. 1, p. 7-20, 2001.
  • HERMANS, Theo. (Org.). The manipulation of literature: studies in literary translations. New York: Routledge, 2014.
  • LEFEVERE, André. Translation, rewriting, and the manipulation of literary fame New York: Routledge , 1992.
  • SPIVAK, Gayatri. The politics of translation. In: VENUTI, Lawrence (Ed.). The translation studies reader London; New York: Routledge , 2000. p. 397-416.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2018
  • Aceito
    10 Jul 2018
  • Publicado
    Set 2018
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