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SAND, George. História da minha vida. Trad. Marcio Honório de Godoy. Org. Magali Oliveira Fernandes. São Paulo: Editora Unesp, 2017, 650p.

SAND, George. História da minha vida. Godoy, Marcio Honório de. Fernandes, Magali Oliveira. São Paulo: Editora Unesp, 2017. 650p.

História da minha vida é a autobiografia escrita entre 1847 e 1855, por George Sand, pseudônimo de Amandine Aurore Lucile Dupin, autora francesa nascida em Paris, em 1804 e considerada uma das personalidades literárias mais importantes do oitocentos francês. Ao publicar essa obra, em 1856, Sand contava, então, 52 anos, e tinha atrás de si uma carreira literária que somava noventa romances, inúmeros contos e peças de teatro, um trabalho consolidado como jornalista em diversos periódicos relevantes em seu país, como a prestigiosa Revue des deux mondes, além de uma extensa correspondência com figuras notáveis do meio intelectual europeu do seu tempo, o que lhe permitiu ser a primeira mulher francesa a viver de direitos autorais. Diante desses poucos dados já se pode perceber que o leitor que se debruçar sobre a mais recente tradução dessa autobiografia para o português brasileiro terá muito a descobrir e refletir acerca das circunstâncias que ali são rememoradas. Nesse sentido, pretendemos apresentar de uma forma geral essa obra e sua tradução, problematizando, notadamente, as escolhas da organizadora no que concerne à condensação dos dez volumes da versão original em um único volume na versão brasileira de 2017.

Cumpre destacar que, para além do texto em si, a presente edição conta com um conjunto iconográfico de George Sand, composto por autorrepresentações, desenhos e pinturas feitos por pessoas de seu círculo íntimo, como Alfred de Musset e Eugène Delacroix, fotografias da autora e de sua família, sendo encerrada por um elogio fúnebre escrito por Victor Hugo, em 1876, ano da morte da autora. Ao ler seu discurso durante o funeral em Nohant, propriedade e morada de Sand, Hugo pontua:

Eu choro uma morta, e saúdo uma imortal. Eu a amei, a admirei, a venerei; hoje na augusta serenidade da morte, eu a contemplo. Eu a felicito porque o que ela fez é grande, e a agradeço porque o que ela realizou é bom. [...] George Sand teve em nosso tempo um lugar único. Outros são os grandes homens; ela é a grande mulher. (HUGO ApudSAND, 2017SAND, George. História da minha vida. Trad. Marcio Honório de Godoy. Org. Magali Oliveira Fernandes . São Paulo: Editora UNESP, 2017, 650 p., p. 647)

O percurso de notáveis realizações da autora, considerado escandaloso e mesmo imoral para os padrões do século XIX, segundo os quais o próprio fato de uma mulher escrever já era visto com reservas, é, em História da minha vida, divido em cinco partes. Na primeira, a autora ocupa-se de acontecimentos anteriores ao seu nascimento e que se referem mais à história de seu pai no exército de Napoleão Bonaparte e ao lado paterno de sua família. O levantamento dessa árvore genealógica deixa entrever as origens nobres dos Dupin, o que vem a gerar um forte contraste com os parentes maternos da autora, de uma extração social humilde, contraste que produziu uma série de efeitos em sua vida, inclusive graves embates entre sua mãe e sua avó paterna, duas figuras da maior importância na vida de Sand. Na segunda parte, tem lugar o nascimento da autora e o início das animosidades entre aquelas duas mulheres, já que, na visão da segunda, Sophie-Victoire, a mãe de Sand, não passava de uma aventureira. Essa situação vem apenas a se acentuar com a morte prematura do pai da autora, Maurice, fazendo com que elas disputem até mesmo a guarda da menina, que contava então cinco anos, aproximadamente. Assim, ainda em tenra idade, ela percebe que seu “papel seria de reaproximar aquelas duas mulheres e conduzi-las, a cada querela, a um abraço diante do túmulo do meu pai.” (SAND, 2017SAND, George. História da minha vida. Trad. Marcio Honório de Godoy. Org. Magali Oliveira Fernandes . São Paulo: Editora UNESP, 2017, 650 p., p. 211)

Embora a autora comente suas leituras e sua formação intelectual durante toda a narrativa, é a partir da terceira parte que esse traço se torna mais evidente, uma vez que seu encontro com o universo das letras se dá nessa etapa, primeiramente pela via dos ensinamentos de sua avó, pessoa formada dentro do espírito iluminista e com quem Sand vive boa parte da infância em Nohant, interior da França, e, posteriormente, em passagens por colégios e conventos, o que ocasiona suas primeiras tentativas literárias. Apesar de as três primeiras partes serem repletas de interesse, por registrarem as reflexões da autora sobre a vida política e social da França, seu desenvolvimento psicológico e suas leituras, a quarta e quinta são especialmente marcantes pois é nelas que são narrados os acontecimentos mais determinantes de sua vida: a separação judicial de seu marido, Casimir Dudevant, e a ida de Sand, com os dois filhos, para Paris, na tentativa de tornar-se escritora. Essas duas partes comportam as relações que a autora travou com personalidades importantes da época, entre as quais, Alfred de Musset, Louis Blanc, Franz Liszt, Frédéric Chopin, e reflexões infelizmente bastante atuais sobre a condição da mulher na sociedade e a desigual atribuição de funções entre ambos os sexos dentro do casamento.

A partir do seu lugar de mulher burguesa e compartilhando experiências que refletem sobretudo essa posição, única da qual ela poderia falar com legitimidade, Sand tematiza a rigidez dos padrões morais e sociais de comportamento cobrados do seu sexo, inclusive respaldados pela legislação francesa, e as inúmeras condescendências dadas aos homens, o que tornava a sobrevivência da mulher dentro dos laços do matrimônio extremamente dolorosa. Tendo em vista essa questão, George Sand defende o que para ela era uma obviedade; a igualdade de direitos entre todos:

Daí concluo que o casamento deve ser tornado tão indissolúvel quanto possível, visto que, para conduzir um barco tão frágil quanto o da segurança de uma família sobre as ondas revoltas de nossa sociedade, não são demais um homem e uma mulher, um pai e uma mãe que partilhem essa tarefa, cada qual conforme a sua capacidade.

Mas a indissolubilidade do casamento só é possível com a condição de ser voluntária, e, para torná-la voluntária, é preciso torná-la possível.

Se, para sair desse círculo vicioso, vocês, leitores, encontrarem outra coisa além do culto da igualdade dos direitos entre o homem e a mulher, terão feito uma bela descoberta. (SAND, 2017SAND, George. História da minha vida. Trad. Marcio Honório de Godoy. Org. Magali Oliveira Fernandes . São Paulo: Editora UNESP, 2017, 650 p., p. 590)

Tal discurso e a sua efetivação por meio de atitudes progressistas, seja no âmbito pessoal, seja no político (lembremos que Sand foi uma das primeiras mulheres francesas a tentar uma cadeira no parlamento, fazendo campanha pelo sufrágio feminino), foram consideradas afrontas à sociedade da época e, em consequência, a romancista foi duramente criticada ao longo de toda a sua vida, em termos que transcendiam em muito a esfera da crítica literária.

No que tange a História da minha vida e a sua repercussão inicial na França, Magali Oliveira Fernandes, estudiosa das edições de Sand no Brasil1 1 Entre os seus trabalhos, destacamos o artigo “O Processo Criativo no Universo da Edição: George Sand no Brasil”, publicado na revista Tessituras & Criação. N. 3, setembro de 2012, pp. 64-84. Disponível em <http://revistas.pucsp.br/index.php/tessituras>. Acesso em 28/03/2018. no prefácio da presente tradução, esclarece que houve espanto por parte do público quando a autobiografia começou a ser publicada nas páginas do jornal La Presse, em 1854. De acordo com Fernandes,

na ocasião, a obra causou surpresa tanto pela originalidade do fazer autobiográfico pouco confessional quanto pela história contada, a qual não se referia a seus amores em particular, mas sim delineava entre o mundo real e o ficcional as suas lembranças pessoais, calcadas no leitmotiv de que ‘tudo é história’. (Apud SAND, 2017SAND, George. História da minha vida. Trad. Marcio Honório de Godoy. Org. Magali Oliveira Fernandes . São Paulo: Editora UNESP, 2017, 650 p., p. 8)

De fato, ao longo de sua narrativa, George Sand explícita um tipo de contrato com seus leitores, advertindo-os de que queria

calar e não dispor de maneira conveniente nem mascarar diversas circunstâncias de minha vida. Nunca achei que deveria ter segredos a guardar a meu respeito diante dos meus amigos. [...] Mas, diante do público, não me atribuo o direito de dispor o passado de todas as pessoas cuja existência correu lado a lado à minha. (SAND, 2017SAND, George. História da minha vida. Trad. Marcio Honório de Godoy. Org. Magali Oliveira Fernandes . São Paulo: Editora UNESP, 2017, 650 p., pp. 413 e 413, grifos da autora)

Por isso, ela explicita desde as primeiras páginas que seu livro não se destina aos “amantes de escândalos” (SAND, 2017SAND, George. História da minha vida. Trad. Marcio Honório de Godoy. Org. Magali Oliveira Fernandes . São Paulo: Editora UNESP, 2017, 650 p., p. 30), o que clarifica a escolha do título da obra que reúne em si dois polos que poderiam ser considerados dicotômicos, mas que no interior dela se entrecruzam: ‘história’ e ‘minha vida’. O caráter dicotômico se dá pela afluência de um certo pendor objetivista do primeiro termo, ainda mais considerando-se a onda positivista que embasava os estudos históricos na segunda metade do século XIX, unido ao subjetivismo do segundo. Nesse sentido, nota-se que a autora procura equalizar esses dois termos, o que pode ser entendido como o contar a si, com algum distanciamento, dentro de uma rede de acontecimentos e de um quadro político e social particulares. Trata-se, assim, de um processo de análise minucioso de alguém que já se encontrava, em suas próprias palavras, numa “idade de calma”, na qual “muitos problemas que me impediam de dormir” teriam sido resolvidos internamente (2017, p. 24).

Mesmo que Sand não apresente o tom confessional dos seus primeiros tempos de romantismo, mais evidente em escritos de teor autobiográfico, como as Lettres d’un voyageur (Cartas de um viajante, 1837), mais de uma vez evocadas em História da minha vida, o processo de lenta rememoração dos sentimentos resgatados do passado e, de certa maneira, revividos, ainda se fazem notar no presente livro, o que garante a presença da subjetividade. E, de acordo com o tradutor, Marcio Honorio de Godoy, essa característica memorialística do texto é a que mais demandou atenção durante a atividade tradutória:

Ao traduzir memórias tão vivas, o esforço passa pela recorrência a um exercício constante, a uma ginástica do imaginário, da imaginação do próprio tradutor, pois o convite da autora ao leitor é de que ele participe do universo que ela propõe trazer à tona. Por isso há, o tempo inteiro, por parte de Sand, um apelo às sensações, muito mais que ao intelecto. Aqui também o tradutor sentiu a necessidade de acompanhar o movimento da autora, e permitiu-se, mais que seguir questões intelectuais acerca da tradução, dar força às sensações e aos sentimentos causados pelas potentes imagens oferecidas no texto original. O tradutor torna-se um intermediário entre o escritor a ser traduzido e os possíveis leitores da tradução, buscando acionar e ajustar forças da oralidade, frequências, sintonias, ritmos, com o propósito de captar, transpor e fazer fluir a energia vital da obra original a um público de outros espaços-tempos.” (ApudSAND, 2017SAND, George. História da minha vida. Trad. Marcio Honório de Godoy. Org. Magali Oliveira Fernandes . São Paulo: Editora UNESP, 2017, 650 p., p. 10)

A experiência de Godoy como tradutor francês/português2 2 Entre os seus trabalhos, destacamos as traduções de François Poirié. Emmanuel Lévinas: ensaio e entrevistas. São Paulo: Perspectiva, 2007 e Michael Löwy. Judeus heterodoxos: messianismo, romantismo, utopia. São Paulo: Perspectiva, 2012. certamente contribuiu para que ele vertesse para nosso idioma, de uma maneira bastante vivaz, trechos como o seguinte, em que autora narra seu processo de descobrimento (ou redescobrimento, agora na tentativa de ser artista) dos espaços de cultura parisiense e momentos de uma intensa fruição das artes:

De resto, sem me dar conta, sentia-me uma pintora, sem nunca ter sonhado em confessar a mim mesmo que poderia sê-lo. Em uma de minhas curtas estadas em Paris, entrara certo dia em um museu de pintura. Com certeza essa não fora a minha primeira visita, mas sempre olhara tudo sem nada ver, persuadida de que não conseguia compreender nada daquilo e ignorando tudo o que podemos sentir mesmo sem compreender. Comecei a comover-me como nunca. Retornei ao museu no dia seguinte e também no outro dia. [...] visitava em segredo, em total solidão, o museu, e lá permanecia desde quando ele abria até a hora do seu fechamento. Ficava inebriada, estática diante dos Ticiano, dos Tintoretto, dos Rubens. [...] Como não havia ninguém para explicar-me onde residia o motivo da qualidade daquelas obras, minha crescente admiração tinha todos os atrativos de uma descoberta, e fiquei inteiramente surpresa e arrebatada por encontrar diante da pintura deleite semelhante àqueles que eu experimentara na música. [...] À noite, via passar diante de mim todas as grandes figuras que, sob a mão dos mestres, recebiam uma marca original de potência moral, mesmo aquelas que só exprimiam a força e a saúde física. Nas belas pinturas sentimos o que é a vida: é como um resumo esplêndido da forma e da expressão dos seres e das coisas, muito amiúde encobertos ou oscilantes no movimento da realidade e na apreciação daquele que as contempla; é o espetáculo da natureza e da humanidade vindo através do sentimento do gênio que o compôs e o representou. [...] O universo se revelava a mim. Via ao mesmo tempo com os olhos do presente e do passado, tornava-me clássica e romântica, sem saber o sentido das querelas agitadas no mundo das artes e da pintura. Via o mundo real surgir através de todos os fantasmas de minha fantasia e de todas as hesitações de minha contemplação. Tive a impressão de ter conquistado não sei que tesouro infinito cuja existência eu ignorava. (SAND, 2017SAND, George. História da minha vida. Trad. Marcio Honório de Godoy. Org. Magali Oliveira Fernandes . São Paulo: Editora UNESP, 2017, 650 p., pp. 409 e 410)3 3 Et puis, malgré moi, je me sentais artiste, sans avoir jamais songé à me dire que je pouvais l’être. Dans un de mes courts séjours à Paris, j’étais entrée un jour au musée de peinture. Ce n’était sans doute pas la première fois, mais j’avais toujours regardé sans voir, persuadée que je ne m’y connaissais pas, et ne sachant pas tout ce qu’on peut sentir sans comprendre. Je commençai à m’émouvoir singulièrement. J’y retournai le lendemain, puis le surlendemain ; [...] je m’em allais mystérieusement toute seule dès que le musée était ouvert, et j’y restais jusqu’à ce qu’il fermât. J’étais comme enivrée, comme clouée devant les Titien, les Tintoret, les Rubens. [...] Comme je n’avais personne pour me dire en quoi c’était beau, mon admiration croissante avait tout l’attrait d’une découverte, et j’étais toute surprise et toute ravie de trouver, devant la peinture, des jouissances égales à celles que j’avais goûtées dans la musique. [...] La nuit, je voyais passer devant moi toutes ces grandes figures qui, sous la main des maîtres, ont pris un cachet de puissance morale, même celles qui n’expriment que la force ou la santé physiques. C’est dans la belle peinture qu’on sent ce que c’est que la vie : c’est comme un résumé splendide de la forme et de l’expression des êtres et des choses, trop souvent voilées ou flottantes dans le mouvement de la réalité et dans l’appréciation de celui qui les contemple ; c’est le spectacle de la nature et de l’humanité vu à travers le sentiment du génie qui l’a composé et mis en scène. [...] L’univers se révélait à moi. Je voyais à la fois dans le présent et dans le passé, je devenais classique et romantique en même temps, sans savoir ce que signifiait la querelle agitée dans les arts. Je voyais le monde du vrai surgir à travers tous les fantômes de ma fantaisie et toutes les hésitations de mon regard. Il me semblait avoir conquis je ne sais quel trésor d’infini dont j’avais ignoré l’existence. George Sand. Histoire de ma vie. vol. 7-8. Paris: Michel Lévy Frères libraireséditeurs, 1856, pp. 197-199.

Apesar de se tratar de um trecho extenso, ele contribui para dar uma amostra da potência da autobiografia de George Sand, notadamente naquilo que a obra revela do movimento de libertação de uma mulher que, embora pertencente às classes mais privilegiadas, sofreu as opressões e as desigualdades de um mundo onde os homens têm a prioridade no exercício da palavra, da crítica e da reflexão artística e intelectual. Não é de se estranhar que, ao entrar no referido museu, a jovem Sand não se anime a proferir nenhum juízo de valor sobre aquilo que vê, sentindo-se inicialmente incapaz de compreender o quer que seja, sem o embasamento do outro, geralmente uma figura masculina. A passagem torna-se interessante justamente por nos mostrar um momento em que ela se permite ter um contato direto com o universo da arte, no qual as mulheres, salvo exceções, são objetos de contemplação e não sujeitos produtores. Por isso, talvez a escolha do tradutor em utilizar sentir-se ‘pintora’ e não ‘artista’, conforme o original, implique um certo reducionismo tendo em vista a amplitude do movimento que Sand então realizava, a despeito dela mesma (malgré moi), expressão que também se perde na versão em português. Por outro lado, o trecho exprime bem, a nosso ver, a sensação de êxtase que ela experimentava diante da pintura.

Numa época como a nossa, em que muito se fala de empoderamento das mulheres e lugar de fala, embora os discursos ainda não tenham totalmente se consolidado em transformações efetivas, a nova tradução da autobiografia de George Sand deve ser saudada, especialmente por registrar e legitimar o percurso de uma mulher num espaço predominantemente masculino. Por isso mesmo, parece-nos pertinente problematizar algumas das escolhas feitas pela organizadora do volume no intuito de sintetizar os dez tomos existentes no texto original em um volume único. Ao longo da leitura do livro, deparamo-nos com diversos cortes que podem ser verificados pelo título de cada capítulo (composto por uma descrição de tudo que ele contém), no qual as partes em negrito indicam os trechos que foram escolhidos para tradução, sendo que as outras partes, ora são totalmente excluídas, ora contam com um resumo redigido por Magali Oliveira Fernandes. A respeito disso, ela explica:

A presente versão de História da minha vida [...] desde o princípio foi organizada como um grande desafio, porque o intuito era trazer George Sand para os nossos dias visando a um público mais amplo. Optamos por uma síntese dos dez volumes da autobiografia, apresentando-a em um único volume. Todavia, essa síntese foi feita pelo recurso da nossa edição, sem nenhuma interferência direta no texto original, procurando escolher os principais trechos que, a nosso ver, traduziam a alma da escritora, evocando na sua história de vida a história do livro [...].” (FERNANDES ApudSAND, 2017SAND, George. História da minha vida. Trad. Marcio Honório de Godoy. Org. Magali Oliveira Fernandes . São Paulo: Editora UNESP, 2017, 650 p., p. 13)

É certo que esse trabalho de escolha dos trechos a serem traduzidos deve ter sido extremamente complexo. Porém, ao nos depararmos com o resultado dessas escolhas, nem sempre fica resguardada a sua pertinência, diante do interesse da figura de George Sand para os estudos literários brasileiros. É plausível que muitas das partes iniciais da autobiografia tenham sido excluídas, sobretudo as que concernem ao cotidiano do pai da autora no exército napoleônico, bem como a sequência das cartas remetidas por ele à sua futura esposa. Em outros momentos, nota-se, a partir do que é descrito nos títulos dos capítulos, que há a exclusão de pequenos incidentes do cotidiano ou de observações pontuais acerca de indivíduos muito transitórios na vida de Sand, o que também parece não comprometer o conjunto.

Por outro lado, consideramos como perda importante todos os fragmentos em que Sand faz referência a algum autor ou obra de sua autoria ou não e que não compuseram o presente volume. Tal é o caso, por exemplo, de suas observações sobre a composição e repercussão de Lélia (1833), considerado uma apropriação, feita da perspectiva feminina, do propalado romance de formação à maneira de Goethe (Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, 1796), ou apreciações sobre Os salteadores, de Schiller, sobre Hamlet, de Shakespeare ou René, de Chateaubriand, assim como contatos que a escritora teve com personalidades muito importantes à época, e mesmo atualmente, no que tange aos estudos literários, caso de Sainte-Beuve e Gustave Planche, homens da linha de frente da Revue des deux mondes e colaboradores intelectuais de Sand por largo período. Limitamo-nos a esses exemplos, mas eles se multiplicam nessa edição e se tornam ainda mais lamentáveis quando percebemos que esse volume único não exclui nenhum dos trechos da longa e delicada relação entre Sand e Chopin, que só não é mais extenso do que as partes que detalham a complexa relação mãe e filha da autora com Sophie-Victoire.

Tais ligações são importantes para a romancista, tanto é que fazem parte de sua autobiografia, e elas são de muito interesse de uma perspectiva interpessoal, porém, quando se considera a relevância da obra para os estudantes e profissionais das letras, seu inegável público leitor em potencial, talvez nenhuma das partes que aludem à literatura e à crítica literária devesse ter sido excluída. Nesse sentido, é possível argumentar que a quarta e a quinta parte deveriam estar integralmente no volume, o que nem é de todo acertado, já que tais alusões literárias se encontram também nas anteriores. Além do mais, priorizar, de certa forma, aspectos íntimos da vida de Sand parece contradizer, em alguma medida, o próprio esforço da autora em se libertar das amarras impostas ao seu gênero; o que, nessa tradução é, no entanto, reforçado pela figura da filha e da amante/mãe que emergem desses dois segmentos pormenorizadamente explorados.

Vale dizer que, ao consultarmos o índice de obras de George Sand traduzidas para o português brasileiro, no final da presente tradução, vemos que, em geral, foram vertidas para o vernáculo obras as quais poderíamos considerar mais palatáveis ao que seria conveniente a uma determinada ideia do feminino: Ela e ele (Trad. Abelardo Romero, 1946 e José Maria Machado, 1963), Os gêmeos (Trad. Augusto Sousa, 1953) ou A pequena Fadette (Trad. José Maria Machado, 1957), por exemplo. Essa observação careceria de maior aprofundamento, mas vê-se que narrativas como Lélia, Jacques: le secrétaire intime (1834) ou Leone Leoni (1835), nas quais a mulher, seus desejos e ações são observadas de um ponto de vista menos convencional, nunca foram traduzidas, embora contemos felizmente com traduções, mesmo que antigas, de Valentina (Trad. A. S. Costa, s/d) e Indiana (Trad. Almir de Almeida), romances que lançaram a reputação de feminista avant la lettre da escritora ainda no século XIX. A compilação aqui arrolada tem o objetivo de demonstrar que as escolhas daquilo que será traduzido ou não contribuem, como se sabe, para a formação da imagem de um escritor no contexto de recepção e que essa imagem pode ser até mesmo distorcida em função desse contexto e dessas escolhas. Assim, torna-se de grande relevância aquilo que entra ou não para a composição de uma obra da envergadura desta.

Como visto, a ideia de condensar História da minha vida num volume único relaciona-se à possibilidade de acessar um público maior, o que poderia ser mais dificultoso numa edição composta de dez volumes, ou mesmo cinco, formato adotado na década de 1940, traduzido por Gulnara Lobato de Morais, e publicado pela editora José Olympio. Todavia, a presente tradução, preparada e divulgada por uma editora universitária, num valor unitário considerável não parece ter potencial para efetivar uma verdadeira popularização, mesmo que relativa, da figura de George Sand no nosso país. Nesse sentido, tendo em vista o êxito qualitativo atingido por essa nova edição da autobiografia sandiana, lamentamos que ela não abarque integralmente o texto francês, o que poderia ser a melhor solução, já que os critérios utilizados para a referida seleção são sempre passíveis de questionamento, sendo plenamente justificáveis apenas de uma perspectiva de restrição econômica. Certamente, não seria demais o conhecimento, por parte do público brasileiro, de todas as etapas da vida de uma mulher tão cosmopolita e complexa quanto George Sand.

Referências

  • SAND, George. História da minha vida Trad. Marcio Honório de Godoy. Org. Magali Oliveira Fernandes . São Paulo: Editora UNESP, 2017, 650 p.
  • 1
    Entre os seus trabalhos, destacamos o artigo “O Processo Criativo no Universo da Edição: George Sand no Brasil”, publicado na revista Tessituras & Criação. N. 3, setembro de 2012, pp. 64-84. Disponível em <http://revistas.pucsp.br/index.php/tessituras>. Acesso em 28/03/2018.
  • 2
    Entre os seus trabalhos, destacamos as traduções de François Poirié. Emmanuel Lévinas: ensaio e entrevistas. São Paulo: Perspectiva, 2007 e Michael Löwy. Judeus heterodoxos: messianismo, romantismo, utopia. São Paulo: Perspectiva, 2012.
  • 3
    Et puis, malgré moi, je me sentais artiste, sans avoir jamais songé à me dire que je pouvais l’être. Dans un de mes courts séjours à Paris, j’étais entrée un jour au musée de peinture. Ce n’était sans doute pas la première fois, mais j’avais toujours regardé sans voir, persuadée que je ne m’y connaissais pas, et ne sachant pas tout ce qu’on peut sentir sans comprendre. Je commençai à m’émouvoir singulièrement. J’y retournai le lendemain, puis le surlendemain ; [...] je m’em allais mystérieusement toute seule dès que le musée était ouvert, et j’y restais jusqu’à ce qu’il fermât. J’étais comme enivrée, comme clouée devant les Titien, les Tintoret, les Rubens. [...] Comme je n’avais personne pour me dire en quoi c’était beau, mon admiration croissante avait tout l’attrait d’une découverte, et j’étais toute surprise et toute ravie de trouver, devant la peinture, des jouissances égales à celles que j’avais goûtées dans la musique. [...] La nuit, je voyais passer devant moi toutes ces grandes figures qui, sous la main des maîtres, ont pris un cachet de puissance morale, même celles qui n’expriment que la force ou la santé physiques. C’est dans la belle peinture qu’on sent ce que c’est que la vie : c’est comme un résumé splendide de la forme et de l’expression des êtres et des choses, trop souvent voilées ou flottantes dans le mouvement de la réalité et dans l’appréciation de celui qui les contemple ; c’est le spectacle de la nature et de l’humanité vu à travers le sentiment du génie qui l’a composé et mis en scène. [...] L’univers se révélait à moi. Je voyais à la fois dans le présent et dans le passé, je devenais classique et romantique en même temps, sans savoir ce que signifiait la querelle agitée dans les arts. Je voyais le monde du vrai surgir à travers tous les fantômes de ma fantaisie et toutes les hésitations de mon regard. Il me semblait avoir conquis je ne sais quel trésor d’infini dont j’avais ignoré l’existence. George Sand. Histoire de ma vie. vol. 7-8. Paris: Michel Lévy Frères libraireséditeurs, 1856, pp. 197-199.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2018
  • Aceito
    07 Jul 2018
  • Publicado
    Set 2018
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