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SHAVIT, Zohar. Poetics of children’s literature. Atenas e Londres: The University of Georgia Press, 2009. 200p.

Zohar Shavit é professora da Escola de Estudos Culturais da Universidade de Tel-Aviv, onde conduz pesquisas em semiótica e coordena o Programa de Pesquisa em Cultura da Infância e da Juventude. É autoridade em história da cultura israelense, hebraica e judaica em sua relação com culturas europeias, em particular a francesa e a alemã. Shavit é autora de trabalhos pioneiros sobre a fundação de instituições culturais hebraicas em Eretz-Israel (Terra de Israel) e estudou os processos de construção de passados nacionais e sua ligação com identidades nacionais e culturais. Interessada pela literatura infantil e percebendo a pouca atenção acadêmica que vinha recebendo até a década de 1980, Shavit fundou o ramo de estudos culturais referentes à infância e à juventude na universidade onde leciona.

Poetics of children’s literature (Poética da literatura infantil, sem tradução no Brasil) é um de seus mais de dez livros, no qual a autora examina o desenvolvimento da literatura infantil no ocidente sob a perspectiva da teoria dos polissistemas, conforme postulada por Itamar Even-Zohar (1979). Shavit estuda a formação de um segmento literário específico – o infantil – em sua relação com o sistema educacional e com o polissistema literário como um tudo.

Nesse livro, a autora examina aquilo que chama de manipulações culturais, questionando quem seria culturalmente responsável pela literatura infantil como um “produto literário da sociedade”, e propõe buscar compreender o comportamento da literatura infantil considerando-a parte da cultura (p. 149). O conceito de norma (TOURY, 1980), em suas manifestações na sociedade, na literatura e na educação, é tomado como ferramenta para situar a literatura infantil em seu contexto, da maneira mais ampla possível. Shavit aponta, por exemplo, que normas caducas no polissistema literário migram para a literatura infantil, como mostra o caso do romantismo que, perdendo a força na literatura adulta, emprestou seus temas à infantil (p. 74). No caso da tradução, Shavit explica que a grande liberdade permitida ao tradutor de livros infantis foi outrora norma dominante no sistema literário adulto (p. 112).

A argumentação de Shavit repousa sobre a tese de que a literatura infantil, até um período muito recente, possuía um estatuto periférico no sistema literário, decorrente da posição da criança na sociedade e da pressuposta missão pedagógica da literatura. É como se a literatura infantil habitasse um limbo entre os sistemas literário e educacional, o que trouxe implicações sistêmicas (em seu desenvolvimento, sua estrutura, suas opções textuais, seus leitores e escritores) que a autora busca descrever. Também as noções de infância atuam na definição das normas poéticas que dominam os textos para crianças e determinam sua aceitação pela elite intelectual.

Embora reconheça o espaço conquistado pela literatura infantil no meio acadêmico nos anos anteriores à primeira edição do livro, em 1986, Shavit constata que ela permanece quase completamente ignorada por várias histórias da literatura e da cultura nacionais, enciclopédias e currículos de departamentos de literatura. Predomina o tradicional confinamento da literatura infantil às escolas de educação, biblioteconomia e psicologia, para os quais as principais questões dizem respeito a que livros seriam bons para as crianças e como poderiam contribuir para seu desenvolvimento (p. ix-x).

Posição semelhante é assumida por outros estudiosos contemporâneos da área, como Peter Hunt (2010) na Inglaterra, Riitta Oittinen (2000) na Finlândia e Lajolo & Zilberman (2007) no Brasil. A fim de se desviar da tradicional abordagem pedagógica dos estudos sobre literatura infantil, Shavit reivindica que ela seja tomada como parte do sistema literário e propõe analisá-la sob a perspectiva da poética, identificando em seu interior estruturas regulares, ou normas. A literatura infantil é vista como um sistema na cultura, ou um fenômeno semiótico: “o ponto de partida do meu estudo é o pressuposto de que a literatura infantil é parte do polissistema literário, é um membro de um sistema estratificado no qual a posição de cada membro é determinada por restrições socioliterárias” (“...the point of departure in my study is the assumption that children’s literature is part of the literary polysystem, that it is a member of a stratified system in which the position of each member is determined by socioliterary constraints.” Todas as traduções são minhas.) (p. x).

Zohar Shavit propõe a discussão dos processos históricos e dos procedimentos sincrônicos da literatura infantil num nível teórico e geral, apresentando estudos de caso apenas como teste. As versões de Chapeuzinho Vermelho de Perrault e Grimm, além de outras que circularam no século XX, ilustram a tese de que a oscilação histórica das ideias a respeito da infância gera textos diferentes. A dependência da literatura infantil em relação ao sistema educacional e as implicações disso em seu desenvolvimento – outro pressuposto teórico de Shavit – é ilustrada pela literatura infantil hebraica. As diferentes normas que operam em cada sistema são exemplificadas pela versão infanto-juvenil de The Champion of the World, de Roald Dahl¸ adaptada pelo próprio autor com o título de Danny the Champion of the World (Danny, o campeão do mundo, Martins Fontes, 2002). Os livros populares da série Nancy Drew (EUA) e de Enid Blyton (Inglaterra), finalmente, ilustram a relação entre o baixo estatuto de um escritor e seu sucesso comercial.

Apoiada nas teorias de Ariès (1962), Shavit situa a gênese europeia da literatura infantil num período que vai desde o século XVII, quando a noção de infância é formulada, até a segunda metade do XIX, quando de fato se instala a indústria de livros infantis. Nascida com um atraso considerável em relação à literatura adulta, a literatura infantil precisou primeiro que a infância fosse reconhecida como uma fase da vida distinta da adulta e, em seguida, que as crianças passassem a receber uma educação formal que demandasse livros.

A emergência do sistema educacional gerou um novo público leitor, que, em busca de material de leitura, se voltou para os chapbooks – edições baratas de literatura popular que circularam na Inglaterra no século XVII. Shavit localiza os chapbooks no sistema não canonizado da literatura, que forçaram o segmento canonizado a reagir a fim de substituir um material de leitura considerado inadequado para crianças. Essa reação levou à estratificação do sistema, com o surgimento de uma literatura infantil separada do sistema literário adulto não canonizado, e inaugurou uma nova oposição no polissistema literário: aquela entre a literatura infantil e a adulta. Numa proposta teórica complexa, Shavit se propõe a descrever o desenvolvimento da literatura infantil não apenas em sua ligação com o sistema educacional, mas também com todo o polissistema literário, “incluindo a necessidade de competir com a literatura adulta não canonizada” (p. 178). Ela descreve a continuidade desse processo de estratificação, desta vez dentro do sistema literário infantil, que de homogêneo passa a heterogêneo. Em seus primórdios formada essencialmente por abecedários e livros de moral, a literatura infantil passa a ser composta por diferentes gêneros, tais como aventura e contos de fadas, bem como por livros para diferentes faixas etárias (p. 167).

Shavit explica as características comuns aos textos infantis a partir das restrições impostas ao escritor em virtude da necessidade de agradar o público infantil e, ao mesmo tempo, obter a aprovação do público adulto, ou seja: adequar o texto a demandas – muitas vezes contraditórias – de dois sistemas literários. A dicotomia que Shavit estabelece entre os segmentos canonizados e não canonizados da literatura infantil é decorrente desse público duplo: o primeiro toma o adulto como principal destinatário; o segundo, a criança. O sistema não canonizado diz respeito à literatura popular, que agrada à criança, mas é desprezada pela elite intelectual. Já no sistema canonizado, predominam os textos ambivalentes (conceito desenvolvido a partir das teorias de Yury Lotman), cujo estatuto difuso decorre do fato de que se usa a criança como um pseudo-destinatário, enquanto o real público alvo é o adulto.

A associação do segmento canonizado com o gosto adulto e intelectual opõe-se à associação do segmento não canonizado com a infância e o povo, o que nos parece uma visão demasiado simplista, que não abarca adequadamente muitas das produções para crianças. Para tornar essa categorização ainda mais problemática, Shavit coloca professores e bibliotecários no mesmo patamar que as “pessoas de cultura”, que aprovarão os livros do sistema canonizado e rejeitarão os demais como vulgares ou inapropriados para as crianças, tentando inclusive boicotá-los (p. 94). É difícil saber exatamente quem são essas “pessoas de cultura”: se pais cultos, acadêmicos ou estudiosos da área. Na realidade atual, ao menos no Brasil, os professores – especialmente de crianças em idade pré-escolar – costumam demonstrar predileção por livros pedagógicos e moralizantes, a despeito de seu valor literário. Textos “estranhos”, com alto grau de ambivalência, tendem a ser rejeitados pelo sistema escolar e mesmo pela maioria dos adultos mediadores, justamente por se apresentarem a uma leitura mais difícil. Mesmo os acervos do Programa Nacional Biblioteca da Escola – que distribui livros de literatura para as escolas públicas –, ainda que sejam selecionados por acadêmicos, têm esse perfil mais conservador, buscando conciliar o valor estético dos livros com os códigos aceitos pela sociedade como adequados para as crianças. A própria autora admite que finais abertos, ironia e outros recursos de complexidade linguística não são típicos do sistema literário infantil, e, para entrarem nesse sistema, os textos têm de se adequar a essas restrições, como ilustram as adaptações de Robinson Crusoe, de Daniel Defoe, e Gulliver’s Travels (As viagens de Gulliver), de Jonathan Swift.

Livros com certo grau de ambivalência, por sua vez, podem, sim, se tornar populares e amados entre as crianças. Talvez Shavit não tenha se deparado com esses casos por ter tratado essencialmente de obras de certo fôlego, em sua maioria romances, que se enquadrariam na categoria infanto-juvenil, mencionando apenas rapidamente os livros ilustrados. De fato, os clássicos da literatura infanto-juvenil sobrevivem em suas versões adaptadas, bastante destituídas, portanto, de sua ambivalência original. Porém, livros ilustrados complexos e que trazem diversas camadas de leitura muitas vezes alcançaram grande sucesso de vendas, como as obras de Maurice Sendak, Shel Silverstein ou Anthony Browne. O argumento de que os adultos compram esses livros para eles, não para suas crianças, não pode ser senão uma verdade parcial; é perigosamente preconceituoso afirmar que as crianças são apenas pseudo-destinatárias destes livros e que não se interessam por eles.

Shavit toma Alice in Wonderland (Alice no País das Maravilhas), de Lewis Carroll, como um texto ambivalente por excelência. Para se adequar às normas do sistema literário infantil, precisou ser publicado em versão resumida pelo próprio Carroll intitulada Nursery Alice (Alice no jardim da infância), na qual não há ambiguidade entre sonho e realidade. O fenômeno ilustra a consciência que os escritores e tradutores têm acerca das normas vigentes no sistema literário infantil. Sobre os tradutores do livro, Shavit relata que eles operaram de modo semelhante ao próprio Carroll para a criação de Alice no jardim da infância: “eliminaram sistematicamente todos os elementos que, juntos, criavam o modelo sofisticado, e basearam suas adaptações apenas no modelo mais estabelecido” (“they deleted systematically all the elements which together created the sophisticated model and based their adaptations on the more established model only.”) (p. 72).

Um capítulo do livro é dedicado à tradução, no qual Shavit toma livros infantis traduzidos para o hebraico a fim de identificar padrões de comportamento (normas) na literatura infantil que possam ser aplicados também a outros sistemas nacionais, especialmente àqueles dependentes. As normas de tradução são uma clara manifestação das restrições impostas a um texto que ingressa no sistema infantil (p. 112). O ato de tradução é tomado como um conceito semiótico, parte de um mecanismo de transferência de modelos textuais de um sistema para outro, cujo produto é resultado da relação entre um sistema fonte e um sistema alvo (p. 111). A tradução é vista em seu conceito amplo, incluindo adaptações e versões reduzidas e considerando não apenas a transferência interlinguística, mas ainda as transferências do sistema literário adulto para o infantil. A tese desenvolvida nesse capítulo é a de que “o comportamento da tradução de literatura infantil é amplamente determinado pela posição da literatura infantil no interior do polissistema literário” (the behavior of translation of children’s literature is largely determined by the position of children’s literature within the literary polysystem.”) (p. 112). Os textos que, segundo Shavit, melhor espelham essas normas, são aqueles transferidos da literatura adulta para a infantil, como Robinson Crusoe e As viagens de Gulliver. A característica mais marcante da tradução de literatura infantil seria portanto a ampla liberdade de manipulação dos textos, decorrente, mais uma vez, de sua posição periférica no polissistema literário.

O ponto mais questionável da argumentação de Shavit é justamente a sua base: quase 30 anos após a primeira edição de sua pesquisa, poder-se-ia dizer que o estatuto da literatura infantil permanece o mesmo? A edição de 2009 traz o mesmo prefácio da primeira edição, assinado pela autora em 1983, e carece de atualizações em relação aos desdobramentos acadêmicos desse campo desde então – influenciados, inclusive, pela pesquisa de Shavit. É inegável que a teoria literária tem dedicado cada vez mais interesse à literatura infantil, com a publicação de artigos, livros e enciclopédias sobre o assunto, tal como a International Companion Encyclopedia of Children’s Literature, organizada por Peter Hunt (2004). Prêmios literários também têm se voltado para esse segmento, como demonstra a alteração em 1999 das regras do britânico prêmio Whitbread para melhor livro do ano para incluir livros infantis como candidatos ao prêmio geral (FALCONER, 2004). A literatura chamada de crossover, que transita entre os públicos adulto e infantil e tem atingido popularidade sem precedentes neste início de milênio, é outro fenômeno que vem movimentar a posição da literatura infantil no polissistema literário, remodelando sua tradicional estratificação. Mesmo os livros ilustrados, direcionados a crianças menores, têm criado espaço para uma literatura ambivalente, nos termos de Shavit: neles, artistas plásticos e gráficos têm encontrado fértil campo de experimentação, criação e inovação, abrindo alternativas que fogem aos clichês associados aos livros para crianças. Autores-ilustradores como Maurice Sendak, Anthony Browne, John Burningham e, no Brasil, Ângela-Lago, Renato Moriconi, Marilda Castanha, entre outros, têm explorado as possibilidades oferecidas pela relação entre texto e imagem e criado obras complexas. O livro ilustrado também toca outro sistema não mencionado por Shavit, o das artes plásticas, e tem sido objeto de inúmeras exposições. Apenas para citar algumas: Contes de fées e 75 ans de Babar, realizadas na Bibliothèque Nationale Française em 2001 e 2006, respectivamente, e a Mostra de Arte Contemporânea em Literatura Infantil (MACLI), realizada pela Caixa Cultural em várias cidades brasileiras em 2014.

Porém, um ponto bastante verdadeiro na argumentação de Shavit a respeito do estatuto literário do livro infantil é a ausência quase total de referências a autores infantis na história geral da literatura. No Brasil, excetuamos o nome de Monteiro Lobato e as referências que Lawrence Hallewell faz à literatura infanto-juvenil em O livro no Brasil. Recordamos ainda os estudos históricos específicos sobre literatura infanto-juvenil empreendidos por Leonardo Arroyo, Nelly Novaes Coelho, Marisa Lajolo e Regina Zilberman. Contudo, deve-se admitir que o material pedagógico para ensino de literatura nas escolas de fato passa ao largo dos autores para crianças, e mesmo grandes escritores que deixaram textos infantis raramente têm essas obras mencionadas.

Ao baixo estatuto da literatura infantil Shavit relaciona a baixa auto-imagem do escritor para crianças, devida às restrições dentro das quais ele deve trabalhar: as noções da sociedade sobre o que é adequado para a criança e sobre o que ela é capaz de compreender: “O escritor para crianças não apenas sofre de um estatuto culturalmente inferior, como também está sujeito a restrições poéticas mais compulsórias que o escritor para adultos” (“The writer for children not only suffers from a culturally inferior status, but he is subject to more compulsory poetic constraints than the writer for adults”), às quais ele deve obedecer para garantir sua aceitação (p. 179). A fim de corroborar seu ponto de vista, Shavit cita declarações de autores de literatura infantil que afirmam não escrever para crianças, como se assumir esse destinatário desvalorizasse, de alguma forma, seu trabalho. É provável que Shavit tenha razão quanto a alguns casos, mas a imagem que os escritores têm de si mesmos não é generalizável. Lobato (cf. A Barca de Gleyre, 1968), por exemplo, assume a linguagem simples e direta da literatura infantil como uma característica positiva e moderna.

Ainda que seja necessário repensar e atualizar a posição da literatura infantil no polissistema literário com base na realidade contemporânea, é inegável a precisão do olhar de Shavit numa perspectiva histórica: o estatuto periférico da literatura infantil em sua gênese esclarece as origens das restrições impostas ao escritor de livros infantis – notadamente a necessidade de se dirigir a dois públicos – e as características que eles adquiriram.

Seu empreendimento universalista, por mais ousado que possa parecer, tampouco pode ser desprezado. Muitos dos padrões, estruturas e normas gerais que Shavit identifica em todas as literaturas infantis, partindo das literaturas inglesa e hebraica, aplicam-se também ao sistema literário infantil brasileiro – em especial o padrão de surgimento e desenvolvimento das literaturas infantis a partir da instalação das escolas.

Trata-se, por fim, de um estudo bastante amplo e aprofundado sobre a literatura infantil, frequentemente tomado como referência pelos pesquisadores da área. Para os estudos de tradução, a obra oferece ainda uma perspectiva fecunda a partir da qual observar a literatura infantil traduzida, a saber, como uma função de sua posição no polissistema literário.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    16 Jul 2015
  • Aceito
    12 Out 2015
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