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ENTREVISTAS A AUTORES E TRADUTORES DO RIO GRANDE DO SUL

Amilcar Bettega Barbosa

Amilcar BettegaBettega, Amilcar. O vôo da trapezista. Instituto Estadual do Livro, 1994. nasceu em São Gabriel (RS). É autor dos livros O voo da trapezista, Deixe o quarto como está (Prêmio Açorianos de Literatura – 2003), Os lados do círculo (Prêmio Portugal Telecom de Literatura – 2005) e Barreira (Finalista do Prêmio São Paulo de Literatura – 2013). Seus livros estão publicados em Portugal, Espanha e Bulgária. E seus contos têm sido publicados em países como EUA, França, Itália, Suécia, Luxemburgo e Romênia. Como tradutor, publicou, entre outros, 125 contos de Maupassant (2009).

Cadernos de Tradução (CT): Como você começou a escrever?

Amilcar Bettega Barbosa (ABB): Em meio a uma crise existencial muito grande, a um questionamento muito forte sobre o que eu estava fazendo com a minha vida, sobre como estava levando-a para um sem sentido absoluto. A ideia de escrever nunca me ocorrera. Até meus 26 anos (eu disse 26 anos!) eu nunca tinha escrito nada (salvo algumas redações escolares elogiadas por professores e um ou dois poemas horrorosos em momentos de paixão não correspondida). Portanto, comecei a escrever muito tarde. E sem nenhuma premeditação, sem ter nenhum projeto. Literalmente um dia eu me flagrei escrevendo uma história que já levava umas trinta páginas.

(CT): Está trabalhando nalgum projeto de escrita neste momento?

(ABB): Sim. No ano passado terminei um volume de prosas curtas, que ainda está inédito. Chama-se “Prosa pequena”. E agora estou escrevendo uma narrativa composta de três partes aparentemente sem ligação entre si, mas que de alguma forma se completam. O título, até então, é “Filme mudo”.

(CT): O que é o mais importante, para você, no trabalho do escritor?

(ABB): Para mim o mais importante, e o grande desafio do escritor, é tentar chegar o mais perto possível de algo que é indizível e, tendo como recurso apenas a linguagem, dizer este indizível de forma que o leitor também viva a experiência (sempre desestabilizadora) de estar diante de algo que é impossível de ser formulado.

(CT): E no do tradutor?

(ABB): Fazer com que este esforço apareça na língua de chegada.

(CT): Já foi traduzido? Para quais idiomas?

(ABB): Sim. Livros foram traduzidos para o espanhol e o búlgaro. Já contos avulsos foram traduzidos para o inglês, francês, italiano, sueco e romeno

(CT): Já traduziu? De que idiomas?

(ABB): Sim. Do francês.

(CT): Qual a diferença entre traduzir e ser traduzido?

(ABB): São coisas bastante diferentes. Uma diz respeito a tornar conhecido o seu próprio texto em outra língua; a outra a tornar conhecido o texto de outro autor (escrito em outra língua) na sua própria (do tradutor) língua. Isto implica que, no caso de se tratar de alguém que ao mesmo tempo traduz e é traduzido, em um processo este alguém é parte ativa e no outro é parte passiva. Em um o trabalho é dele (embora o texto seja do outro), no outro processo o trabalho é do outro (embora o texto seja dele). É um jogo bastante complexo este. Parto do princípio que o texto original provoca, faz nascer um outro texto em outra língua. Mas este novo texto tem a tendência a ser lido, na maior parte do tempo, como se tivesse sido escrito diretamente pelo escritor na língua do leitor – que, claro, não é a língua do escritor. Penso que na maior parte do tempo o leitor tem a tendência a “esquecer” que se se trata de uma tradução, e vai ler o Amilcar em italiano como se o texto em italiano tivesse sido escrito por mim, quando não é exatamente isso. O texto em italiano existe por obra do Daniele. Sim, sem o texto do Amilcar em português, o texto em italiano não existiria. Mas o texto em italiano, em última análise, é do Daniele, que investido de certa invisibilidade permite ao leitor ler o texto do Amilcar através deste seu (Daniele) texto “invisível” (talvez, para ser mais exato nesta metáfora onde a luz corresponderia à leitura, eu tivesse que falar em “translúcido”: como se a tradução fosse uma espécie de pele translúcida moldada ao corpo do original e que revelasse este corpo através dos desvios da passagem da luz (leitura) por esta pele translúcida). Então eu acho que é isso: de certa maneira o tradutor é sempre um sujeito meio invisível (ou translúcido), e esta característica é necessária para levar o leitor até o texto original sem que este tenha exatamente contato com o texto original.

(CT): Entrou em contato com um (o mais) dos seus tradutores?

(ABB): Sim, com alguns deles.

(CT): Isso foi por iniciativa dele ou de você?

(ABB): Sempre por iniciativa dos tradutores.

(CT): Acha bom entrar em contato com o tradutor? Por que?

(ABB): Sim, acho muito bom. De um lado porque as dúvidas do tradutor, quando o motivo do contato é o de esclarecê-las (o que ocorre na maior parte dos casos em que o contato é feito), obrigam o autor a ver o seu texto com um olhar ligeiramente diferente. Obrigam-no talvez a ir aos detalhes, ao osso da frase. A tradução põe sempre um texto à prova. Não sei se você concorda, mas me parece que tem alguns textos que não resistem à tradução, a frase parece não ficar de pé. Não é um problema do tradutor, é do texto.

Mas este contato também é bom para a gente perceber o nível de afinidade que pode existir entre o autor e tradutor, para ver se eles não vibram em frequências muito diferentes. Para existir uma boa tradução acho que é fundamental que autor e tradutor, de alguma forma, “falem a mesma língua”.

(CT): O que pensa do trabalho do tradutor, comparado ao do escritor?

(ABB): Como eu já disse antes, entendo que os dois são trabalhos de criação, de produção de texto, mas o do tradutor com bem menos liberdade do que o do escritor, cuja liberdade é total. O tradutor, ao contrário, embora crie um novo texto em sua língua ele está atrelado ao texto original, do qual, espera-se, ele deve revelar a essência em uma língua diferente daquela em que o texto naturalmente deixa revelar a sua essência.

(CT): O que, no seu entendimento, não tem que se perder, em tradução?

(ABB): Acho que sempre se perde um pouco na tradução. Assim como se perde também ao escrever. Quando escrevemos tratamos de pôr em linguagem alguma coisa que pode ser tudo (imagem, sentimento, som, pensamento etc) menos linguagem de texto. E nesta transposição há sempre uma perda. Na tradução, a transposição se dá dentro do mesmo terreno, o da linguagem textual, mas de um idioma a outro, onde as palavras não têm correspondência direta em um e noutro, onde as maneiras de expressar são diferentes, assim como a própria maneira de pensar. Neste contexto, a tradução implicaria um duplo caminho de perdas. Mas isto não quer dizer que as perdas, tanto ao escrever como ao traduzir, obrigatoriamente diminuem o texto. No primeiro caso não há texto inicial a ser diminuído, a perda ocorre antes. E no segundo, uma perda pode muito bem fazer aparecer uma face nova do texto.

Carol Bensimon

Nasceu em Porto Alegre em 1982. Publicou o livro de contos Pó de parede (Não Editora, 2008), e dois romances, Sinuca embaixo d’água (2009) e Todos nós adorávamos caubóis (2013), ambos publicados pela Companhia das Letras. É mestre em Escrita Criativa pela PUCRS. Em 2012, foi escolhida como uma das melhores jovens escritores brasileiras pela revista inglesa Granta. Seus livros foram traduzidos na Argentina e na Espanha e, em 2018, Todos nós adorávamos caubóis será lançado nos Estados Unidos.

Cadernos de Tradução (CT): Como você começou a escrever?

Carol Bensimon (CB)Bensimon, Carol. Sinuca embaixo d’água. Editora Companhia das Letras, 2009.: Foi um pouco assim “de lado”. Quer dizer, eu já escrevia desde a infância e a adolescência, sempre gostei de criar universos ficcionais. Acho que comecei mais com a ideia de escrever uma literatura policial, porque era o que eu conseguia mais ou menos criar na época. Mas, no momento de escolher que faculdade cursar, fiquei entre jornalismo e publicidade e meio por acaso acabei parando na publicidade. Ainda não enxergava a carreira de escritora como uma possibilidade concreta. Mas aí, quando ainda eu trabalhava na publicidade, depois de eu já ter feito uma oficina literária com o Luiz Antônio de Assis Brasil, se criou uma linha de mestrado de escrita criativa na PUC, que era a universidade onde ele ensinava. Foi o primeiro programa de pós-graduação no Brasil nessa linha. Eu ganhei uma bolsa, então saí do meu emprego na publicidade e daí se abriu a minha nova carreira, porque eu publiquei o meu primeiro livro enquanto ainda eu lá cursava. E virei escritora profissional.

(CT): Já foi traduzida? Para quais idiomas?

(CB): Eu fui traduzida para espanhol, e vou ser publicada nos EUA pela Transit, uma editora independente de São Francisco focalizada em literatura estrangeira. A tradução já está pronta, mesmo que ainda não tive ocasião de a ver. Eles conheceram a minha escrita na revista Granta sobre os 20 melhores jovens escritores brasileiros, e chamaram a mesma tradutora que traduziu o meu trecho para aquela revista.

(CT): Já traduziu? De que idiomas?

(CB): Eu traduzi graphic novels do francês. Tenho uma relação com o francês, por causa da minha família, e morei dois anos em Paris. Mas agora faz muito tempo que eu não faço traduções. Não sei se a tradução é muito minha praia…

(CT): Qual a diferença entre traduzir e escrever?

(CB): Bem, é justamente isso. Eu sentia que com a tradução eu ficava mais cheia de pudores, porque sabia que tinha que ter uma criação, mas ao mesmo tempo eu não sabia o quão longe eu podia ir. Eu achava difícil mediar.

(CT): Já entrou em contato com os seus tradutores?

(CB): Na tradução para uma editora argentina do meu primeiro livro, Pó de parede, eu tive uma troca de ideias com o meu tradutor, ele me enviou umas perguntas, queria esclarecer alguns pontos. Foi ele a entrar em contato comigo. O mesmo aconteceu com a minha tradutora inglesa, que está traduzindo Todos nós adorávamos caubóis. Foram questões pertinentes, com o tradutor para espanhol inclusive discutimos sobre a tradução do título. Ele não estava totalmente seguro em fazer uma tradução literal do título, tinha pensado em dar como título do livro o do primeiro conto. Ele tinha a impressão de que Pó de parede pudesse significar mais do que Polvo de parede, mas não era – a não ser a imagem engraçada em português de um polvo agarrado na parede. No fim, o título ficou traduzido de maneira literal. Acho que foi bom entrar em contato com eles. Quando a tradução é para uma língua que eu conheço, pelo menos um pouco, acredito poder ajudar nas soluções. Não que eu tenha problemas se o tradutor não me quiser consultar, mas acho interessante entrar em contato, não para controlar o trabalho dele ou dela, mas para entrar naquela troca de ideias que sempre pode ajudar num trabalho de criação.

(CT): Que tipo de processo envolve o trabalho de escritura?

(CB): Eu tendo a vê-lo como um trabalho bastante artesanal. Desde que escrevo romances, sinto uma necessidade de esquematizar um pouco o processo. Para não perder o controle. Não quero deixar totalmente soltas as lógicas internas que há na narrativa. Por exemplo, em Sinuca embaixo d’água tem vários narradores que se alternam sempre na mesma ordem, portanto eu sabia que a trama tinha que se encaixar naquele esquema. Isso ajuda, de certa maneira, a não viajar muito com a inspiração. Mas é óbvio que além disso tem todo um processo inconsciente de coisas que vão surgindo na escrita. Eu tento planejar alguns elementos básicos. Por exemplo, sei que num capítulo um dos personagens terá que dizer uma certa coisa a outro, que por sua vez depois vai ter que sair. Isto é, há três o quatro ações que eu sei que vou colocar lá. Então planejo bastante, vou à procura de uma estrutura forte, mas sempre deixando bastante coisa para além, que não enxergo. Por exemplo o final.

(CT): Como escritora (e ex tradutora) o que você pensa do trabalho do tradutor?

(CB): Bem, com certeza a tradução tem alguma coisa a ver com o trabalho da escrita, dentro daquele equilibro delicado de que falei antes, de respeitar o original e, ao mesmo tempo, criar alguma coisa. É um trabalho bastante misterioso, porque tem ainda muito a ver com o que o autor faz. Por exemplo, eu vendi os direitos dos meus livros para o cinema, e vão adaptar Sinuca embaixo d’água e Todos nós adorávamos caubóis, e nesse caso acho que o resultado é mais descolado do original. Um produto diferente. Eu não vou colaborar a adaptação, justamente porque a considero outro tipo de trabalho. A tradução, ao contrário, continua muito mais perto do original. Embora tenha lá dentro umas mudanças, e até uma criação de uma outra pessoa que também está envolvida no processo, ela continua tendo a palavras e as imagens do original. Enfim, não vejo isso como algo tão distante. O livro é outro, mas continua meu.

(CT): O que não pode se perder em tradução?

(CB): Eu diria o ritmo. Sei que é um assunto bastante complicado. Por exemplo, talvez nas línguas latinas não seja tanto assim, mas no inglês tudo muda muito. E sei que deve ser uma coisa com que também é difícil lidar. Contudo, seria a primeira coisa que eu diria ao meu tradutor. Claro, tem as referências culturais, com que também tem que se lidar tentando evitar as “notas de rodapé”. E tem o registro linguístico: se eu escolhei uma palavra, digamos assim, coloquial, não queria ver colocada em sua vez um termo pomposo. Também há um estudo sobre algumas mudanças que fizeram nesse sentido dentro uma tradução de Todos nós adorávamos caubóis. E também há o problema das variantes. Por exemplo, numa conversa que tive com alunos da UCLA, eles me disseram que alguma palavra empregada, não me lembro qual, mas acho que se relacionava a sexo, soava adequada em inglês britânico, mas talvez boba para um americano. Tem todas essas dificuldades. Mas eu diria que o ritmo é mesmo a coisa mais importante.

(CT): E há alguma coisa específica que não se pode perder em um dos seus romances?

(CB): Acho que quando estou falando de ritmo me refiro a certa dicção de narrador, que engloba ritmo, escolha lexical, e outras coisas que você tem que detectar para respeitar no texto. E esta dicção tem a ver com a voz da Carol, mas também com a dos personagens de cada livro, e em cada um vai ser um pouco diferente.

(CT): Está trabalhando sobre algum novo romance?

(CB): Estou terminando, sim, o meu novo romance. Passei seis meses no norte da Califórnia justamente para escrevê-lo, porque é ali que se desenvolve a ação. Acho que é um livro bastante diferente dos outros, a história tem a ver com o cultivo de maconha, é uma coisa muito típica de uma região para onde os hippies foram no final dos anos Setenta e que hoje depende economicamente muito desse cultivo, na maioria ilegal. No livro tem um personagem brasileiro que viaja por ali e se envolve com isso, mas há também outros personagens, americanos, que são quase tão importantes como o protagonista. Portanto, como para mim as paisagens são muito importantes, resolvi ir até lá para ver como elas são de fato.

(CT): Você fez pesquisas antes de escrever?

(CB): Antes da experiência lá no lugar, sim, eu fiz bastante pesquisas sobre Califórnia, sobre botânica, entrevistei cultivadores. Mas normalmente o meu material é muito mais de observação.

(CT): E acha que o trabalho do tradutor tenha que ficar ancorado também nas pequisas, ou ele deveria repercorrer o percurso interior, o trabalho criativo do autor que ele vai traduzindo?

(CB): Não acho que o percurso do tradutor deva ser o mesmo do que o do escritor. Mas talvez seja mais verdadeiro o contrário. Escrever tem algo de um processo de tradução. Pensando no meu livro novo, nesse momento eu estou escrevendo sobre outra cultura, com outra língua, então, mesmo nos detalhes, eu tenho algum percalço de tradutor. Por exemplo, tem uma árvore muito importante naquela cultura, que em inglês é redwood, cuja tradução portuguesa seria “sequoia”, mas eu não quero largar a palavra redwood. O mesmo me acontece com os diálogos. Estou escrevendo em português, mas como os meus personagens falam em inglês eu quase tento imitar o ritmo da fala, como se eu realmente tivesse ouvido aquele em inglês.

Tabajara Ruas

Tabajara Ruas é escritor e cineasta. Seus nove romances estão publicados no Brasil e traduzidos em 11 países. Entre eles: A região Submersa; Os varões Assinalados; O amor de Pedro por João; Netto perde sua alma; Perseguição e cerco a Juvêncio Gutierrez. Escreveu também ensaios, contos, crônicas e livros juvenis. Tabajara recebeu três vezes o Prêmio Açorianos de Literatura; e entre outros, recebeu o Prêmio Erico Verissimo, a Medalha do Mérito Farroupilha, o título de cidadão de Porto Alegre, a Medalha da Vitória do Ministério da Defesa e foi condecorado com a ordem do Mérito Judiciário do Trabalho, no grau de Comendador. Em cinema, dirigiu, roteirizou e produziu quatro longas-metragens: Netto Perde Sua Alma (o mais premiado filme gaúcho), Brizola Tempos de Luta, Netto e o Domador de Cavalos e Os Senhores da Guerra. Roteirizou outros 12 longas, vários curtas e programas de televisão. Adaptou o clássico O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo, para filme e minissérie da Rede Globo. Em novembro de 2017 Tabajara RuasBensimon, Carol. Todos nós adorávamos caubóis. Editora Companhia das Letras,2013. dirige A cabeça de Gumercindo Saraiva, com roteiro de sua autoria, premiado pelo FSA-Fundo Setorial do Audiovisual.

Cadernos de Tradução (CT): Quando você começou a escrever?

Tabajara Ruas (TR): Eu pus-me a escrever quando eu já tinha vinte e sete, vinte e oito anos. Eu já vivia aqui em Porto Alegre. Era a época da ditadura militar, e, enquanto eu estava escrevendo o meu primeiro livro, comecei a ser perseguido. Eu era estudante da arquitetura, morava no bairro Moinhos de Vento, e era ativista, com uma turma de colegas da faculdade, num grupo chamado Ação Popular (AP). Um grupo de origem católica, que depois se tornou marxista-leninista. A polícia foi lá onde eu vivia e eu tive mesmo que fugir. Foi até uma fuga cômica, eu tive que pular por uma janela dos fundos que dava para o pátio. Eu nunca mais voltei e perdi o meu primeiro livro, que ficou lá no lugar onde eu morava. Acho até que a perda foi um bem para a literatura. >Depois disso, eu fiquei um pouco mais de um ano vivendo clandestinamente aqui em Porto Alegre e em Florianópolis, onde moro ainda agora. Chegou um momento em que eu tive que sair do país. Isso foi em 1971. Aqui era realmente muito difícil. Fui para o Chile, lá também comecei a escrever outro livro, mas aí veio o golpe militar chileno, em 1973, e também perdi o meu segundo manuscrito. Eu escrevia a mão. Eu não tinha nem máquina de escrever naquela época. Do Chile eu fui para a Dinamarca, e só ali comprei a minha primeira máquina de escrever. O computador veio bem depois. Logo depois do golpe militar chileno, eu refugiei-me na embaixada de Argentina, onde fiquei aproximadamente três meses. Dali, nos levaram para Buenos Aires, onde morei um ano tentando me organizar junto com os milhares de refugiados de toda parte da América do Sul, que estavam lá sem documentos e se espalharam pelo mundo. Fui para Dinamarca, onde estudei cinema ao longo de dois anos. Mas comecei a fazer cinema só depois de ter voltado para o Brasil.

(CT): Qual diferença entre escrever e fazer cinema?

(TR): A essência da escrita e do cinema é a mesma: narrar, contar histórias. São ferramentas, mais que artes, ferramentas narrativas. Contudo, elas são essencialmente diferentes porque a escrita trabalha, como instrumento principal, com a palavra, enquanto o cinema trabalha com imagens e som. Isso torna a escrita uma ferramenta muda. Ademais, a escrita se faz a sós, e com instrumentos muito simples: basta um lápis e papel. O cinema, ao contrário, precisa de instrumentos técnicos mais complexos, e de uma equipe. Não se pode fazer sozinho. Você precisa de um orçamento, mesmo que seja mínimo, e de uma equipe, mesmo pequena. Mas para fazer cinema precisa de parceiros. Na escrita, não.

(CT): Você já traduziu uma das histórias dos seus romances para o cinema?

(TR): Sim, eu adaptei meu livro Netto perde sua alma. O Netto é um personagem aqui do Sul, um general da época da República do Rio Grande do Sul. Contei a história toda dessa época, a da guerra dos Farrapos, também em outro livro, Os varões assinalados. Enquanto Netto perde sua alma concentra-se mais sobre esse personagem, é uma história gótica, com fantasmas. E eu adaptei esse livro para o cinema, fiz o roteiro, e tive que mudar muito, já só pela questão do tamanho. Um livro pode ter qualquer dimensão, ele pode compor-se de uma frase só como de mil páginas. Num filme, digamos de noventa minutos, o roteiro deve ter mais o menos noventa páginas. Netto perde sua alma não é um romance longo, mas ele conta 170 páginas, e eu tive que eliminar noventa. Eliminei episódios, transformei dois ou três personagens num só, são processos típicos da adaptação para o cinema. O sentimento que as pessoas têm de que o livro seja sempre melhor do filme, por um lado é verdadeiro, porque a gente fica com o livro ao longo de muitos dias. Mas também é um tanto injusto, porque nem sempre o livro é tão bom quanto o filme. Adaptar um livro para o cinema significa fazer uma coisa bem diferente. Eu adaptei para o cinema O tempo e o vento. Foi uma grande produção da Globo, um filme dirigido pelo Jayme Monjardim. Das oitocentos páginas da obra tive que produzir um roteiro com cento e oitenta só, porque era um filme de três horas. Tivemos muitas reuniões, eu, o diretor, e a Letícia Wierzchowski, que escreveu o roteiro comigo, para decidir como fazer isso. Portanto, traduzir, ou melhor, adaptar um livro para o cinema é um trabalho que envolve grandes mudanças.

(CT): Voltando à tradução “de livro a livro”: para quantos idiomas você já foi traduzido?

(TR): Fui traduzido para italiano, francês, dinamarquês, espanhol e inglês, e fui publicado em Portugal também. Tempo atrás, para as edições portuguesas de livros brasileiros, eles faziam uma adaptação linguística, mas isso hoje em dia não acontece mais. Não aconteceu com as edições portuguesas dos meus livros.

(CT): Entrou em contato com alguns dos seus tradutores?

(TR): Meu tradutor para espanhol (não para a publicação em Espanha – naquele caso o tradutor foi outro e não entrei em contato com ele – mas para Argentina e Uruguai) é o Pablo Rocca, professor de literatura na universidade de Montevidéu e crítico literário. A Banda Oriental, minha editora uruguaia, nos pôs em contato e ele acabou traduzindo quase toda a minha obra. Até veio várias vezes para Porto Alegre e ficamos muito amigos. Traduziu muitas das minhas coisas na minha casa de Florianópolis, onde a gente conversava muito sobre os respetivos trabalhos.

(CT): Então você acha bom ter contato com os seus tradutores?

(TR): A minha visão é que a gente sempre precisa de ajuda. Sempre precisamos contar com o próximo, com um parceiro. >Ademais, no caso de duas línguas parecidas como português e espanhol, sempre há pontos que parecem iguais mas não sou, e por isso é bom esclarecer as coisas com o autor. O meu livro mais difícil que o Pablo Rocca traduziu foi O amor de Pedro por João. Para os uruguaios já era bem difícil lidar com o título, tanto que eles o mudaram para El cerco. O título espanhol tem mesmo a ver com a história contada no livro, que é a de um bando de guerrilheiros brasileiros em fuga pela América Latina. Foi o primeiro livro que escrevi e não perdi, lá na Dinamarca, um pouco baseado na minha experiência. Ainda hoje acho que é meu livro mais ambicioso, o que mais trabalhei pensando em fazer literatura. Ele integra a grande onda de literatura latino-americana, de que muito se discutia naqueles anos (Borges, Cortázar, Vargas Llosa), e que diz respeito a jogos e pensamentos literários. O título desse meu livro é justamente de se interpretar: a palavra “amor” tem vários sentidos. Então, é sempre bom entrar em contato, pedir esclarecimentos, pedir ajuda. Na temporada em que fiquei na Dinamarca, o meu livro A região submersa foi traduzido para dinamarquês pelo Peter Poulsen, escritor e roteirista dinamarquês, além de tradutor. E como naquela época eu morava em Copenhague, a gente se encontrava e discutia sobre a minha escrita e a sua tradução. Eu também, como tradutor, sempre pedi ajuda e isso sempre funcionou. Traduzi do dinamarquês e do espanhol. Do espanhol traduzi literatura juvenil. Do dinamarquês traduzi seis contos do Andersen. Foi a primeira vez que esses contos foram traduzidos diretamente da língua original. Antes, se passava das traduções francesas, ou de outras línguas. A minha tradução causou muita surpresa, porque, traduzindo do original, saía uma linguagem muito direta, muito coloquial. De fato, o Andersen escrevia assim, direto, contava para as crianças. Ele se referia à plateia. Mas disso você só se dá conta lendo o original. Até os títulos saíram um pouco diferentes, por exemplo O soldadinho de chumbo no original é O perseverante soldadinho de chumbo, e eu deixei-o assim.

(CT): Qual a diferença entre traduzir e escrever, segundo a sua experiência?

(TR): Acho que sejam dois trabalhos bem diferentes. Escrevendo um texto original, tu mergulhas na imaginação, te deixas dominar por ela. Na tradução, a relação para com o texto é mais intelectual. E tem ainda a exigência da fidelidade. Por isso acho melhor traduzir coisas de que gosto, que acho interessantes. Não quero traduzir algo que me pareça desagradável. Assim é mais fácil ser fiel ao texto, achar o jeito de reproduzir as intenções da escrita para outra língua. Por exemplo, traduzindo o Andersen, o que eu fiz foi ler todas as versões que havia do Patinho feio, do Pequeno polegar, ou do próprio Soldadinho de chumbo, e vi que nelas se cortava muito. Até tinha uma versão que cortava o final do Soldadinho. Isso chega a ser mais adaptação do que tradução.

(CT): O que não tem que se perder em tradução?

(TR): Acho que não tem que ceder o compromisso com o autor. É um fato ético. Tem que se fazer só as mudanças que não vão contra o sentido original da obra. Quando, por exemplo, os meus editores uruguaios mudaram o título do meu livro, eu discuti muito com eles, e só aceitei a mudança depois de conferir que a tradução do texto não ia em direção contrária ao meu entendimento. O mesmo aconteceu com a tradução da Região submersa para o dinamarquês. Ora, para entender o sentido original da obra, tem justamente que ter contato com o autor. Lembro-me de que o meu tradutor dinamarquês não conseguia entender direito algumas coisas no meu livro, e conversar comigo sobre isso ajudou bastante. A escrita, qualquer tipo de escrita, como qualquer trabalho humano, tem uma ética. Assim como o escritor tem o seu compromisso com o texto que escreve, o tradutor tem que ter o seu com a tradução.

Luisa Geisler

Luisa Geisler nasceu em Canoas (RS) em 1991. É autora dos livros Luzes de Emergência se Acenderão Automaticamente (Alfaguara, 2014), Quiçá (Record, 2011), Contos de Mentira (Record, 2011). Foi duas vezes vencedora do Prêmio SESC de Literatura, além de ter sido duas vezes finalista do Jabuti. Participou de produções artísticas em parcerias com instituições internacionais como a OMI International Arts Center Residency, de Nova York, e a Serpentine Gallery, de Londres. Além disso, tem textos publicados da Argentina ao Japão (pelo Atlântico) e acha a ideia simpática. É tradutora literária desde 2012.

Cadernos de Tradução (CT): Como você começou a escrever?

Luisa Geisler (LG): Comecei a escrever desde muito pequena, em especial por um interesse com leitura. Por gostar tanto de ler, uma coisa levou à outra e (assim que saí do ensino médio) entrei numa oficina de criação literária.

(CT): Está trabalhando em algum projeto de escrita neste momento?

(LG): Sim. Estou trabalhando em um livro de ficção sobre brasileiros na Irlanda em português e em inglês. O livro em português é parte de um projeto que iniciou alguns anos atrás e o livro em inglês é parte de minha tese de mestrado em Processo Criativo.

(CT): O que é o mais importante, para você, no trabalho do escritor?

(LG): A escrita, não? Sei que pode parecer óbvio, mas muitos autores se preocupam tanto com ‘o que’ está sendo escrito, e não com o ‘como’ isso está sendo tratado. Todos os temas podem entrar em literatura, desde que o ‘como’ seja observado. Então, de certa forma, apesar do olhar de análise da sociedade ser importante, eu diria que o mais importante é saber transferir isso para o texto.

(CT): E no do tradutor?

(LG): Acho que “sentir o texto”, no sentido de compreender o tom geral. Muitas coisas não poderão ser traduzidas literalmente, mas se o autor consegue encontrar o tom em que o texto está, ele conseguirá achar um equivalente. Isso ainda é muito difícil para tradutores do português brasileiro, tenho notado, porque o português no Brasil é tão cheio de tons e variações. Já tive uma experiência divertidíssima de uma sessão de Skype inteira explicando regionalismos gaúchos para a tradutora de um de meus livros. Eram expressões bastante recentes e locais, portanto ainda não dicionarizadas.

(CT): Já foi traduzida? Para quais idiomas?

(LG): Já. Contos foram traduzidos para o alemão, inglês, espanhol, francês, japonês. E Quiçá, meu primeiro romance, foi traduzido para o espanhol da Espanha e Luzes de Emergência se acenderão automaticamente foi traduzido para o espanhol da Argentina.

(CT): Já traduziu? De que idiomas?

(LG): Traduzo do inglês para o português.

(CT): Qual a diferença entre traduzir e ser traduzido?

(LG): Ambos são processos de re-escrita, me parece. Mas traduzir é um processo muito mais autônomo, porque faço a escolha de literalmente cada palavra. Ao ser traduzido, existe um salto de confiança maior. É difícil para o escritor que é fluente em um idioma estrangeiro não querer “meter o bedelho” e sugerir coisas. Então ser traduzido requer um pouco mais de confiança no trabalho tanto editorial quanto do tradutor. Por exemplo, quando fui traduzida para o japonês, não faço ideia do que está dito. Enquanto quando traduzo, sei com relativa precisão o que está dito em ambos os idiomas, e estou em controle disso. Ser traduzido é confiar no próprio texto, na habilidade que ele tem em ser entendido pelo seu leitor.

(CT): Entrou em contato com um (o mais) dos seus tradutores?

(LG): Com a tradutora de Luzes de emergência se acenderão automaticamente, sim. Com a de Quiçá, não.

(CT): Isso foi por iniciativa dele ou de você?

(LG): Iniciativa dela (a tradutora é Julia Tomasini).

(CT): Acha bom entrar em contato com o tradutor? Por quê?

(LG): Acho que para o autor é bom sim. Em especial para o meu trabalho, que tem uma ênfase grande em linguagem e (como comentei antes) no “como” uma história é contada. Acho importante se certificar do que está sendo dito. Às vezes há sentidos duplos e seria interessante confirmar que, sim, é ambíguo e seria ideal achar um equivalente ambíguo em traduções.

(CT): O que pensa do trabalho do tradutor, comparado ao do escritor?

(LG): Acho um trabalho imenso, incrível, quase mágico. Confesso que às vezes gosto mais de traduzir do que de escrever, porque é um processo criativo de emular uma outra mente, mas ao mesmo tempo sem ter a preocupação de para onde vai a história. A história já está estabelecida, e agora é só linguagem. É um trabalho difícil, mas de resultados incríveis.

(CT): O que, no seu entendimento, não se deve perder em tradução?

(LG): Acho que o tom da história e sua fluidez. Se um personagem tem um tom mais pomposo, se usa expressões arcaicas, se comete erros gramaticais, isso deve permanecer. O geral, essa intenção deve permanecer, não os pequenos detalhes que talvez não tenham tradução. É claro que não estou sugerindo apagar todas as expressões, e o ideal seria que se encontrassem equivalentes.

Kathrin Rosenfield

Professora Titular no Dpto. de Filosofia UFRGS; atua nos departamentos de Filosofia e nos PPGs Filosofia e na Letras da UFRGS. Desde 1984, pesquisadora do CNPq. Atua nas áreas Filosofia e Literatura (Estética e Filosofia da Arte, literaturas anglo-americana, alemã, brasileira e francesa). Kathrin ganhou o prêmio Mario de Andrade pelo ensaio Desenveredando Rosa – a obra de J.G.Rosa (que ganhou em 2006 o prêmio Mario de Andrade). Sua produção abrange autores tão diversos quanto Machado de Assis, Hegel e Aristóteles, Kleist e C. Lispector, T.S. Eliot, Gilberto Freyre e Sófocles. Publicou recentemente Antígona – Intriga e Enigma. Sófocles lido por Hölderlin, Perspectiva, São Paulo, 2016; e J. M. Coetzee, Sobre a Censura (org. e posfácio K. Rosenfield e LF Pereira), Ed. UFSM 2016. Criou o Núcleo Filosofia-Literatura-Arte em 2000 e dirige esse centro de pesquisa que desenvolve as relações entre pesquisa acadêmica, criação artística e comunicação com a sociedade. O Núcleo promove eventos científicos – colóquios, ciclos de palestras e eventos culturais. Além disto, promove e produz espetáculos como Antígona (2004-5) e Hamlet (2006-7), em colaboração com o diretor Luciano Alabarse e o tradutor Lawrence Flores Pereira.

Cadernos de Tradução (CT): Como você chegou a se ocupar, teorica e praticamente, de tradução?

Kathrin Rosenfield (KR): Para mim, a preocupação com a tradução vem da interpretação. Muito provavelmente ela vem também de uma influência musiliana a respeito de conceitos e preconceitos sobre interpretação e transposição. Porque a interpretação sempre é um ato de leitura, que repete o texto e que, ao mesmo tempo, o transforma – porém não o transforma de modo qualquer, arbitrário ou idiossincrático, como acontece quando procuram torcer um texto para esse corresponder a um tema, a uma chave de leitura predeterminada. Lembro em particular uma anotação nos diários de Musil que se distancia do entusiasmo mistificante na recepção de Hölderlin no início do século XX. Comentando um ensaio de Hellingrath (o estudioso que redescobriu o poeta esquecido), Musil observa laconicamente: “O ensaio traz poemas em versões precoces e tardias (mas eu não consigo descobrir nenhuma alteração ou melhoria).” (Tagebücher, I: 752)

Então foi muito cedo, por volta dos meus 18 anos, que a leitura do Homem sem qualidade, e mais tarde dos diários e dos ensaios de Musil, teve um grande impacto sobre a minha visão, hoje se diria conservadora, do ato de ler, interpretar e traduzir. Musil, no princípio, quando jovem, não é um literato, não faz parte do mundo literário. Ele faz o seu vestibular literário e humanístico muito tarde na vida, depois de já se ter formado como cientista. Portanto não compartilha os conceitos, os preconceitos, do mundo propriamente artístico a respeito desse tema. Ele tem uma atitude muito mais lacônica e cética com relação às convicções dos poetas decadentistas que conheceu na sua juventude, depois dos modernistas da sua época, simplesmente porque tem uma gama de parâmetros muito mais ampla – conhecimentos sólidos das ciências exatas, da filosofia e da antropologia – que torna mais difícil de compartilhar uma série de convicções éticas, políticas e culturais dos seus contemporâneos. Eu acho que essa postura musiliana me inspirou certo ceticismo diante do ensino de literatura na França dos anos 1970: me refiro ao viés teórico e sociológico que muitas vezes foi usado como biombo para as convicções políticas (e politicamente corretas) que reinavam na universidade pública. Retrospectivamente, acredito que um dos maiores estragos na educação se faz com essas tranquilas convicções que se consolidam como consenso tácito. Eu fui educada na França, formei-me na Sorbonne, portanto numa universidade muito de esquerda. E comparando a minha educação universitária com aquela que receberam os meus colegas na École Normale, ou na École Polytechnique, percebi que nós éramos educados para não termos uma cultura ampla, nem conhecimentos suficientes para sequer pôr em debate opiniões diversificadas. Certos autores, como Sainte-Beuve, ou Saint-Simon, Barbey d’Aurevilly eram tabu. Senti esse deficit, e, posteriormente, tive que recuperar muitas leituras necessárias para desenvolver distinções de estilo, registros diversificados de expressão, tons, atmosferas – o que, no âmbito da tradução, representa as ferramentas básicas.

Uma formação pobre, evidentemente, estreita o olhar da gente, e também estreita a nossa capacidade de julgar. Muitas vezes isso nos tira totalmente a independência, a vontade de julgarmos por conta própria.

(CT): Como o seu trabalho de pesquisadora (na história da literatura e das culturas) se relaciona com a prática da tradução?

(KR): Primeiro tenho que dizer que nunca pensei em mim mesma como tradutora – primeiro porque passar de uma língua para a outra (sou fluente em alemão, inglês, francês e português) é para mim tão natural que levei tempo em perceber que estou traduzindo o tempo todo, por exemplo, os meus próprios livros em quatro idiomas. Por isso eu sei que em cada língua pensamos e sentimos as “mesmas” coisas de uma certa maneira muito peculiar. Mas por mais que sempre fique um resíduo intraduzível, temos a linguagem para traduzir uma cultura para a outra. A segunda razão pela qual demorei tanto a me definir como tradutora (comecei há 5 anos, traduzindo Musil) é que não posso competir com os grandes tradutores que admiro – os trechos do Fausto de Goethe por Haroldo de Campos, o Rilke de Augusto de Campos, a bela tradução do Dom Quixote por Eugênio Amado, o Shakespeare de Lawrence Flores Pereira, os Canterbury Tales do Francisco Botelho. Como vivi na maior parte de minha vida no estrangeiro, sempre me esforcei de traduzir para outras línguas que minha língua materna, tentando encontrar nelas refinamentos para melhor verter o que me parece precioso no alemão, no francês, no inglês ou no grego. Nisso preciso muitas vezes da ajuda de native speakers em português. O meu trabalho sempre foi um trabalho de colaboração, cooperação – de um lado, com tradutores: eu ajudando com meu conhecimento de línguas e culturas que domino melhor (por exemplo, o alemão e o grego no caso da tradução da Antígone de Sófocles via tradução do Hölderlin na edição da Topbooks, tradução de Lawrence F. Pereira). De outro, com artistas – traduzindo o texto em outras linguagens (teatro, dança, música). Enfim: dramaturgia, crítica, tradução são para mim facetas de um mesmo trabalho que consiste em estabelecer aquele horizonte de escolhas, que de um lado depende de conhecimento e erudição, de outro, da sensibilidade linguística (capacidade de distinguir ironias, imaginar tons e atmosferas etc.).

É este o meu papel principal. Por exemplo, muitos anos atrás comecei a trabalhar com Lawrence Flores Pereira nas suas traduções de Eliot e Baudelaire. E, como eu tenho muita familiaridade com o inglês, nós tivemos muitas discussões sobre o lado semântico da obra de T.S. Eliot. Ora, tanto na prática como na teoria da tradução, o lado semântico foi muito negligenciado pela minha geração. Embora Haroldo sempre tenha repetido o mote de Ezra Pound insistindo na importância do tecido fono-semântico, a tradição brasileira optou muito mais pelo mote benjaminiano que santifica a introdução de todo tipo de estranheza da língua de origem, e muitas vezes às custas da clareza semântica. Acho que tem que haver uma certa boa medida de naturalidade-e-estranheza, senão tudo se reduz a um “número” repetitivo. A minha contribuição, pois, tem a ver com a tentativa de reequilibrar o lado da forma com o do conteúdo.

(CT): Nos seus estudos sobre Hölderlin e Musil, você também salienta os pontos de contato desses autores com o contexto literário e cultural brasileiro. O seu trabalho de ampliamento do horizonte contextual dos tradutores, além do, digamos assim, contexto-fonte, diz também respeito ao contexto em que eles traduzem (nesse caso, o contexto brasileiro)?

(KR): Eu acho que sempre é uma questão de equilíbrio – e de perícia. Apropriar-se de um texto numa outra língua ou, como dizemos no Brasil, canibalizá-lo, torná-lo nosso e metabolizá-lo. Mas nisso não se deveria esquecer, primeiro, da tarefa do leitor capaz de reconhecer as particularidades estilísticas e semânticas do original, nem, segundo, da tarefa do tradutor que precisa encontrar equivalentes das características fono-semânticas no português do Brasil. >Não tem muito sentido em tornar um texto alemão de uma época remota num jargão popular do Brasil atual, simplesmente para adaptá-lo. Ou, como também se faz muito, transformar textos clássicos em versões portuguesas cheias de neologismos, germanismos, grecismos (somente porque W. Benjamin disse que a língua de recepção teria de receber as marcas do idioma do original); ou então, partir para uma tradução deliberadamente incompreensível – simplesmente porque W. Benjamin disse delas uma vez que nelas as palavras parecem cair num abismo insondável – uma fórmula extremada da tradução que, talvez, seja adequada para certas passagens da versão hölderliniana, mas certamente não para a tradução qua tradução. O fato que George Steiner tenha retomada essa formulação benjaminiana parece ter criado um consenso que valoriza a incompreensibilidade (quem olha na internet vai encontrar uma verdadeira doutrina supostamente “hölderliniana” nesse sentido, por exemplo, os ensaios de Tom MacCall). Mas eu acho isso uma mistificação ou talvez até uma preguiça que isentaria o tradutor da árdua tarefa de fazer sentido e de encontrar as modulações de tom e estilo de um grande poeta. E por falar em estranheza e alteridade: o estranhamento apenas se torna perceptível quando ela mantém um certo equilíbrio com a normalidade e a familiaridade.

(CT): Então, se entendi bem, talvez possamos dizer que seria preciso ajudar os tradutores a mediar entre eles próprios e a mediação deles, a acertar a medida exata do seu gosto no trabalho para com as obras de arte alheias?

(KR): Acho que sim. O meu trabalho sobre Hölderlin salienta a diferença entre a abordagem filosófica (que filtra o texto poético pela grade da linguagem conceitual) e o trabalho de crítica literária, que ajuda a captar as nuanças semânticas, a riqueza de associações, o poder sugestivo das imagens, que levam o leitor a “refletir” de modo implícito, sem mobilizar a consciência discursiva. Eu acredito que seria muito útil para os leitores, críticos e tradutores de hoje voltar aos textos filosóficos que Hölderlin conhecia bem – por exemplo, Leibniz, que distingue na sua Monadologie1 1 Uma tradução portuguesa da Monadologia do Leibniz é disponível online: http://www.leibnizbrasil.pro.br/leibniz-traducoes/monadologia.htm. Ver parágrafos 12 e 14. (parágrafos 12 e 14) a apercepção racional e consciente, da não-ainda-consciente percepção: essa última registra as distinções mais sutis e sensitivas, e isso de modo tão ligeiro que seus conteúdos, embora percebidos (na forma de configurações com inúmeras relações, diferenças e distinções) permanecem inaccessíveis à linguagem conceitual. Hölderlin sem dúvida conhecia essa terminologia leibniziana e a prolonga quando sublinha que o poeta, o leitor – e o tradutor –, precisam do talento e da perícia do rápido apanhar (“rasches Erfassen ”), ou da “lógica poética” que é diferente do pensamento conceitual. Acho abusivas as abordagens cada vez mais teóricas da poesia e da tradução e, no caso de Hölderlin, me parece prejudicial também a recepção predominantemente heideggeriana. A leitura de Heidegger é importante no âmbito do pensamento filosófico; mas para fins de crítica literária e para o trabalho do comentarista e do tradutor de poesia, a terminologia de Heidegger introduz um eixo e um filtro que é prejudicial para o “rápido apanhar” dos inúmeros outros eixos e associações do texto poético enquanto obra poética densa (Dichtung). O próprio Heidegger, na Introdução à metafísica, alerta, e pede desculpas pelo foco reduzido de sua abordagem das traduções hölderlinianas de Sófocles. No entanto, a Academia, inclusive nos cursos de literatura, gasta hoje em dia mais tempo e energia ensinando teoria, desestimulando a leitura e o comentário da literatura ela mesma. Ou seja, desaprendemos cada vez mais a leitura com atenção poética que rapidamente apanha inúmeras sugestões, ironias, tons, associações, duplos sentidos. Em compensação (nefasta), começamos a construir uma espécie de teoria abstrata (senão fantasiosa) da tradução, segundo a qual Hölderlin seria uma espécie de precursor de Benjamin. Mostrei num artigo que os maiores comentaristas do trabalho tradutório de Hölderlin, registraram pouquíssimos versos de sua tradução, alguns deles (Beaufret) completando seu argumento sobre a modernidade de Hölderlin e o descentramento do sujeito com versos tirados da tradução de Schadewaldt! Outros, como Lacoue-Labarthe, passam desse argumento – filosófico – para uma avaliação filológica: como Hölderlin é tão moderno, sua tradução não pode ser fiel ao espírito de Sófocles. Meu trabalho ao contrário mostrou que esse juízo é falso, consequência da falta de leitura atenta da tradução alemã e do original grego. Os preconceitos teóricos e abstratos inviabilizaram o acesso à leitura e à compreensão propriamente poéticas, que estão baseadas numa outra forma de pensar – Leibniz (com a distinção de percepção vs apercepção), Bergson (com sua análise dos dados imediatos da consciência), Musil (opondo o racioïde vs não-racioïde) deveriam voltar a orientar a prática da tradução, que requer um cultivo da capacidade de discriminar, distinguir, notar tons e nuanças. Temos que ganhar distância de novo daquelas teorias da tradução que nasceram de desejos teóricos. Nada contra teoria em si, mas as paixões teóricas desenfreadas criaram mistificações que impedem perceber o texto literário naquilo que é: poesia.

(CT): Passando à tradução de Antígona em colaboração com Lawrence Flores Pereira, como vocês trabalharam? Quem fez o primeiro esboço, e como isto foi retrabalhado por vocês?

(KR): Lawrence fez a tradução do grego, tendo conhecimento do meu trabalho sobre a visão hölderliniana dos enredos de Sófocles. Hölderlin leu as tragédias tendo um conhecimento da literatura e dos mitos gregos – uma familiaridade infinitamente melhor que nós. Sua tradução revela associações, referências e alusões a contextos literários e míticos que a maioria de nós ou desconhece ou não consegue imediatamente ativar (perdendo assim a compreensão poético do “rápido apanhar” do contexto amplo). Meu trabalho foi alertar o tradutor do fato que há certas passagens do texto grego que até hoje não foram comentadas ou interpretadas na forma como Hölderlin as interpretou e traduziu. Fiz um rastreamento de uma série de passagens, criei uma espécie de guirlanda, um fio vermelho, um rendilhado significante que dá um novo sentido, um novo enredo à história de Antígone e Creonte. É claro que Lawrence num primeiro momento ficou muito desconfiado e cético, ele avisou inclusive que ia traduzir o texto grego. E eu concordei, disse apenas que considerasse a possibilidade de Hölderlin, enquanto poeta, ter lido melhor a poesia de Sófocles (pois perícia filológica, gramática não é necessariamente perícia poética). Quanto mais Lawrence se debruçava sobre o texto grego, mais plausível ficou para ele a interpretação implícita nas estranhezas da tradução de Hölderlin. Assim, a bela tradução portuguesa do Lawrence, embora não seguisse o texto alemão, mas o grego, chega muito próxima da leitura hölderliniana de Sófocles. É preciso mobilizar inúmeros conhecimentos e reconhecer a plausibilidade de certas conexões que Hölderlin estabelece entre imagens – conexões que a crítica literária nunca notou, nem comentou como tal – para começar a ver rendilhado significante já presente dentro do texto grego: the figure in the carpet. A “minha” teoria da tradução procura pôr em prática o que aprendi com Hölderlin e Leibniz, Musil e Bergson: o sentido poético é um rendilhado de incontáveis conexões, ele vem em mil folhas. Tem uma camada superficial, e depois outras camadas de sentido lá em baixo. E a nossa percepção, quando ela não é completamente pré-formatada por desejos (teóricos ou idiossincráticos), deixa vir a tona essa riqueza de conexões, permitindo que acontecimentos e coisas se desenrolem, mesmo que ainda não sejam compreendidas, que permaneçam na percepção, para que a consciência vigilante, mais tarde, faça sentido deles, formulando com mais clareza o que significam. Foi esse o trabalho que fiz com o Lawrence, antes de ele se debruçar sobre o texto grego, de forma que a tradução já vinha em função de uma certa leitura, que honrava o texto grego naquilo que Hölderlin viu nele. Então não é uma tradução do texto de Hölderlin, mas uma visão do texto grego segundo Hölderlin. Aliás o Lawrence Flores Pereira fala disso na sua introdução ao comentário do tradutor. É muito importante para mim resgatar Hölderlin como um tradutor fiel, porque até hoje tem um consenso que se resume no seguinte paradoxo: se diz que Hölderlin é o poeta que melhor entendeu o espírito de Sófocles, mas como tradutor ele teria traído e alterado aquele espírito. É curioso que ninguém se insurgiu contra esse juízo completamente esquizofrênico. Para rejeitá-lo, é preciso mostrar que sua tradução faz sentido no contexto de Sófocles.

(CT): E praticamente, como você interveio sobre os primeiros esboços da tradução?

(KR): Bem, eu lia o que o Lawrence traduziu e sempre de novo voltava a insistir que talvez a interpretação de Hölderlin fosse melhor. Sei bem que não é a única possível mas ela tem a virtude de ser coerente. Fazia parte do meu argumento uma certa performance: eu contava o enredo à moda de Hölderlin; dava exemplos de como se poderia entonar um verso (treinamento de Stanislavskij), mostrava como a expressão muda quando temos em mente um segundo pensamento (por exemplo, a corajosa piedade carregada pela audácia aristocrática de uma moça que sabe que ela é filha epicler, que é a portadora da dignidade monárquica). Então eu sempre de novo insistia numa releitura do texto grego, porque na minha cabeça a dramaturgia já estava pronta, eu tinha todo um projeto de “tradução” do texto nas linguagens do palco (corpo, gesto, voz, música, dança), formas de expressão adequadas para aquela interpretação hölderliniana. Mas é claro que eu nunca intervim no trabalho tradutório propriamente dito. O Lawrence é um mestre da tradução, eu admiro a sua capacidade artesanal de encontrar correspondências, aquele equilíbrio entre som e sentido, que é uma coisa única. Eu sei que não tenho esse talento.

(CT): Você fez este trabalho de interpretação, que parte diretamente do texto, também durante a encenação, com os atores e o diretor?

(KR): Isto foi verdadeiramente único, porque Luciano Alabarse, o diretor da peça, estava à procura de alguém que pudesse explicar para ele come se encena uma tragédia. Então eu tive a sorte maravilhosa de poder expor a minha ideia; isto é, na tragédia convivem duas formas de expressão – a lírica e a argumentativa – que acentuam a tensão entre o pensamento racional (em conceitos) e o pensamento poético (em imagens, nuanças, tons). Sugeri que mudássemos o hábito de encenar as partes líricas em forma de declamação e que voltássemos à forma clássica: ao contraste entre canto-e-dança rítmicos e musicais, de um lado, de outro, os diálogos com os argumentos racionais. É claro que isso é possível apenas para quem dispõe de um texto ritmado, metrificado, belo e emocionante – e que se deixa cantar! Para isso, eu precisava do talento de Lawrence. Para trabalhar as nuanças complexas da expressão dramática, as ambiguidades do texto, eu comecei com um curso, espécie de leitura dramática explicativa com os atores e o diretor – eu até escrevi um pequeno livro para eles lerem. A montagem demorou um ano. Trabalhei nos ensaios com o diretor e com os atores. O Lawrence trabalhou com os músicos, explicando os princípios rítmicos da tradução. Assim aprendemos que é possível ser fiel e exigente no trabalho poético, tradutório e crítico, e ao mesmo tempo traduzir essa complexidade poética sofisticada para o grande público.

Lawrence Flores Pereira

É professor da Universidade Federal de Santa Maria (RS). É pós-doutor e professor pesquisador do Massachusetts Center for Renaissance Studies, na Universidade de Massachusetts, Amherst. Suas publicações incluem um livro de poemas, Engano especular (sob o pseudônimo Lawrence Salaberry), e inúmeras traduções poéticas: Antígona, de Sófocles, poesia barroca francesa, Charles Baudelaire, T.S. Eliot, entre outros. É organizador de uma série de volumes sobre a literatura dos séculos XVI e XVII e editor da revista acadêmica «Philia&Filia» (em parceria com Kathrin Rosenfield).

Cadernos de Tradução (CT): Como você começou a traduzir?

Lawrence Flores Pereira (LFP): Meu interesse pela tradução começou com o interesse pela poesia. A tradução foi como que um caminho intermediário para a poesia, e depois acabou se tornando o caminho principal. Nisso, entrei em contato com o que na minha época, isto é, a partir do início dos anos noventa, ainda era um paradigma da tradução: o grupo concretista. Passei a ler e a observar todas as traduções do grupo e dos seus integrantes. Mas a tradução veio depois. A poesia estava lá primeiro e esta é a razão de eu ter traduzido quase que somente poesia ou teatro versificado.

>Excepcionalmente agora estou trabalhando também com a tradução de prosa, nesse caso trata-se do conjunto das Uniões de Musil, em colaboração com a Kathrin Rosenfield.

(CT): Você também é professor na Universidade Federal de Santa Maria. Nas suas aulas também trabalha com tradução?

(LFP): Ocasionalmente, mas não de modo predominante. Trabalho com o ensino de literatura de língua inglesa e, no curso de pós-graduação da UFSM, com literatura comparada. Minha especialidade é a literatura inglesa do século XVII. O meu trabalho sobre tradução com os alunos se restringe aos que querem seguir uma carreira de tradução literária. Isto não significa que o meu trabalho como tradutor não esteja relacionado com o ensino, porque a tradução é, num certo sentido, a forma mais sofisticada de close reading. Muitas vezes noto que os comentários que, como tradutor, faço sobre o teatro do Shakespeare seriam estranhos para os seus comentaristas, pois as questões para um tradutor são específicas, enquanto que o intérprete e o comentarista pode se limitar a notas de contexto. Isto acontece pelo tipo de dúvidas que a atividade de tradutor impõe. Questões que são óbvias para um leitor nativo não o são para nós: e essa percepção do estranhamento é uma parte fundamental do processo de tradução. É justamente dessa forma de close reading proporcionada pela tradução que os alunos precisam, especialmente os que se formam naquela língua.

(CT): Qual a diferença entre traduzir poesia lírica e teatro em versos?

(LFP): Há uma diferença radical. Comecei traduzindo poetas líricos, T.S. Eliot e Baudelaire entre outros. Passei a traduzir teatro graças ao convite que a Kathrin Rosenfield me fez para eu traduzir Antígona para representação em Porto Alegre. Mas já antes disso estava tentando novas formas de traduzir Hamlet num novo formato de verso. Em todos os casos, tinha em mente que a tradução do verso teatral trazia imperativos diferentes: devia levar em conta a compreensibilidade do texto para o público e devia ser comunicável, ainda que também tinha em mente que não poderia jamais baratear o texto, simplificá-lo. Na tradução da poesia lírica este tipo de problema é secundário, já que o leitor pode retornar ao texto – aliás, sempre fará isso.

(CT): Que verso escolheu para traduzir Shakespeare? E qual o seu trabalho com o ritmo?

(LFP): Shakespeare escreveu seus dramas usando em pentâmetro iâmbico. Escolhi um verso de doze sílabas. Prefiro chamá-lo dodecassílabo que alexandrino, porque as possibilidades de acentuação do português podem se tornar bastante diferentes das do alexandrino francês. Levei em conta, contudo, os ritmos mais comuns do alexandrino, que assim poderiam me servir de base sonora mínima. Mas também trabalhei com uma grande variabilidade de ritmos internos que são acompanhados por assonâncias, dissonâncias e contra-assonâncias. Neste sentido, na minha adaptação do alexandrino, ou melhor, do dodecassílabo, para o português, aprendi que a minha própria língua, o português, me mostraria o caminho através de suas sedimentações acentuais. Quem lê minha tradução de Hamlet encontrará ritmos, modulações, cadências típicas do alexandrino francês do século XVII, mas essencialmente não se trata do mesmo verso. Usá-lo seria impossível numa tradução do drama shakespeareano, porque na obra do Bardo há um elemento conversacional que se manifestou mais claramente no verso francês apenas no século XIX. Com a base do ritmo, mesmo assim eu procurei criar rupturas internas no verso que dessem conta de um tipo de operação semelhante na poesia dramática de Shakespeare a partir de 1600, quando ele se lança na composição de suas tragédias. O que eu fiz não foi afrancesar Shakespeare. Procurava, sim, um verso um pouco mais longo, que desse “direito de cidadania” àquelas palavras mais longas e faustosas do português que não raro desaparecem nas traduções decassilábicas, devido à necessidade de poupar sílabas. De modo geral, as palavras do português trazem mais sílabas do que as palavras de língua inglesa, e os sucessos e fracassos da tradução de Shakespeare no Brasil estão relacionados com o manejo que cada tradutor adotou para estas questões. Outra preocupação que tive era de manter o contraste entre end-stopped verse e versos com enjambement que, em Shakespeare, define o registro, o tipo de discurso e tantas outras coisas. Quis evitar o fenômeno tão comum de passar uma palavra ou conjunto para o verso seguinte, pois compreendia que o end-stopped verse era uma unidade formal – e estética! Unidade que se valorizava ainda mais pelo contraste com o uso mais frequente que Shakespeare fez do enjambement, da pausa e outros elementos disruptivos e mesmo “interiores”. Minha escolha não era uma inovação… Outros já haviam feito o mesmo trabalho, como por exemplo Augusto de Campos. A outra razão se origina da percepção analogicamente semelhante da que podemos ter com os princípios rítmicos do verso grego. Assim como o ritmo grego não é traduzível, mas apenas se encontra algo equivalente, o mesmo ocorre, porém com diferenças menos acentuadas, com relação ao iambo da poesia inglesa. O iambo inglês é um verso cujo ritmar, se usado indiscriminadamente, se torna insuportável em línguas latinas. Nossos versos, tanto em português como em italiano, francês ou espanhol, têm acentos principais, o restante é variável. Agora, se a forma sequenciada do iambo pode ser insuportável em português, não é verdade que não podemos substitui-los por outra ordem de sequenciamento rítmico. Por exemplo, em português existe obviamente o iambo, mas raramente sequenciado ao longo de um verso inteiro. O anapesto também é bastante comum, sobretudo na poesia popular do nordeste. Ora, estas duas formas produzem os principais sequenciamentos no alexandrino clássico, elas se alternam de modo variado, estão ali para serem exploradas como possíveis equivalências. Estas duas estruturas do alexandrino, iâmbica e anapéstica, são digamos assim as formas que mais se repetem, mesmo que não sejam as únicas. Elas servem para manter, para “agarrar” o blank verse, pois este tende a se esfarelar, em português, quando você não cria nenhum sistema de ligação no verso – a rima, por exemplo. Então a dificuldade era criar um verso conversacional, mas que não o fosse demais. Encontrar a justa medida. É preciso sublinhar: o Shakespeare da tragédia criou muito verso que soa como prosa e muita prosa que soa como verso. Isto é bastante claro em Shakespeare. O meu contraste, traduzindo suas peças, era: qual o tipo de verso que ele usa nos sonetos? Trata-se quase sempre do iambo, que às vezes ele estrategicamente transgride, por razões de ênfase… Mesmo assim, nos sonetos, a “correção” iâmbica é considerável se a compararmos com o verso dramático. Passando para o teatro, nota-se que ali as quebras são muito mais frequentes. Então, assim como Shakespeare trabalhava e transgredia dentro do cercado do seu verso, do mesmo modo poderíamos, em português, estabelecer uma norma generosa – apenas para também termos a oportunidade de, na hora certa, abandonar os trilhos do ritmo ou da acentuação – mantendo sempre a quantidade. O que eu fiz foi criar uma regra principal, para a poder transgredir no caminho.

(CT): Sempre falando em teatro, o trabalho sobre o ritmo também diz respeito à construção das personagens, às diferenciações entre elas, ou é uma coisa que se constrói mais por meio da linguagem?

(LFP): O trabalho com o verso pode afetar o registro, mas há outras coisas também. Vários elementos entram na formação do registro, da situação, do discurso retórico. No discurso político (de Creonte, ou ainda Claudius, nos seus primeiros discursos em Hamlet) vão se encontrar claramente certas modulações. Por exemplo, na minha tradução do primeiro discurso de Cláudio, a cesura do alexandrino coincide sempre com a cesura semântica do discurso, reforçando os paradoxos que ele formula ao sintetizar a sua (falsa) situação sentimental após a morte de seu irmão. No discurso oximórico do Claudius, os contrastes de que o verso se compõe coincidem sempre com a forma do verso, mostrando de modo escandalosamente evidente o esqueleto da estrutura retórica da sua fala (enganadora). Mas geralmente os registros da fala das personagens são mais afetados pelo tipo de pontuação interna, pelo léxico e a sintaxe, sem falar da coloração das palavras, dos timbres que se combinam com os ritmos, etc.

(CT): Qual o seu trabalho com a rima?

(LFP): Os problemas que eu tive diziam respeito sobretudo aos dísticos rimados, por exemplo aqueles da “peça dentro da peça” em Hamlet. A preocupação do tradutor, em casos como este, é buscar e reproduzir o contraste presente no original entre o estilo da peça dentro da peça e o do blank verse: são duas ideias de teatro que estão em jogo, o teatro de Shakespeare e o teatro das masques, o naturalismo shakespeareano e um certo maneirismo teatral que está mais próximo do teatro do Século de Ouro espanhol. Como se vê, sempre trabalhamos com contrastes. O simples fato de serem dísticos rimados produz esse contraste, reforçado pela densidade metafórica, simbólica dos versos na peça dentro da peça. Aqui também uso o dodecassílabo, mas o leitor ou o espectador percebe logo que estamos num registro completamente diferente. É linguagem no mais alto nível – linguagem que era apreciada nas cortes: alusiva, simbólica, ligeiramente sentimental. Ora, no caso das rimas, a minha preocupação é, mais de que achar a rima rara, de evitar rimas que não produzem um efeito específico de coloração. Preocupo-me com isso em todas as passagens com dísticos rimados (por exemplo, nos finais de cena). Tento sempre evitar rimas que sejam fáceis demais, como os infinitivos dos verbos, mas não busco reproduzir o mesmo sistema do inglês porque não acredito que seja possível reproduzi-lo tal qual. Mas creio que seja importante encontrar um tipo de contraste qualquer na língua de chegada. Sempre procuro entender qual o contraste, o que é que define cada elemento em cada caso e como isso pode ser transposto para o português. Trabalho detalhadamente com o português, forço-o, mas sempre cuido para que este tour de force, apesar de incomum, seja de algum modo compreensível dentro do universo de possibilidades e de combinações que existem em nossa língua. Por exemplo, nas minhas traduções há muita palavra inventada, muitas aglutinações, que não são comuns em português. Um pouco como fazia o Guimarães Rosa. Essas palavras que invento não existem no dicionário, mas qualquer pessoa na rua poderia tê-las criado. Eu procuro o que preciso no universo in potentia da língua, não na língua já atualizada. Quando, raramente, alguém mais estrito me pergunta sobre essas invencionices, eu lembro que existem outras com origem semelhante que já estão na boca do povo. Por exemplo, “calça-frouxa” não está, creio, nos dicionários, mas sim “boca-mole”, que tem o mesmo tipo de formação. É um tipo de trabalho não só morfológico, como também cultural. E funciona. As pessoas não se perguntam sobre a existência dessas palavras, porque observam que elas podem fazer parte da nossa cultura, são coisas que você encontra a caminho da abertura, da receptividade de uma língua. Esse experimento do tradutor que revela sua veneração com o original pode ser chamado realmente de criativo.

(CT): Na tradução de Antígona, que você fez com Kathrin Rosenfield, trabalharam também com os atores. Pode me falar disso? O fato de ouvir pronunciar o seu texto levou você a modificá-lo?

(LFP): Foi um dos momentos mais fascinantes no meu trabalho de tradutor. Primeiro: sabia que não podia mais traduzir como traduzia poesia lírica. Na tradução para o teatro aparece um terceiro personagem que é o espectador ideal, e também o ator. O ator já se encontra talvez no tradutor, o tradutor é também um intérprete, também possui uma voz que experimenta cada vocábulo, cada sílaba. Nem sempre a tradução de Shakespeare buscou essa comunicação – e o verso era um obstáculo sobretudo, por causa de uma tradição poética que acabava reproduzida nas traduções. A coloquialidade de Shakespeare não existiu no teatro da península ibérica – são qualidades estilísticas diferentes. Na tradição luso-brasileira, existe, de Camões para adiante, certa tendência à obscuridade lírica. Mais do que isso, a sintaxe que nós usamos é muito mais, se me for permitido o termo, barroquizante. As tradições dramáticas francesa e inglesa sempre buscaram certa clareza de expressão, imprimindo na forma artificiosa do verso algo que se origina na oralidade. Por quatro anos estudei a poesia popular nordestina com o objetivo de observar essa harmonia entre o verso e a comunicabilidade, qualidade que a poesia culta havia perdido. Nestes poetas cantadores, sempre me impressionou a capacidade que eles tinham de dizer coisas complexas, numa improvisação rápida, que tornava imediatamente compreensíveis seus temas. Inspirei-me neles no sentido que busquei uma tradução que fosse dizível (ao dizê-la eu não tenho que perder o ritmo nem o sentido das palavras), que fosse poética mas também uma imitação da fala, do coloquial. Não o coloquial urbano, não qualquer linguagem e registro, mas que tivesse algo de conversacional, que oferecesse o mínimo sentido comum no tempo de encenação. O processo de tradução foi regido por esses imperativos. Para falar mais especificamente, a tradução foi sempre feita em voz alta, eu a lia até para pessoas que não tinham o aporte cultural de um acadêmico, com o objetivo de perceber se o efeito era o que desejava reproduzir e se, mesmo com todas as suas complexidades, o ritmo era capaz de arrebatar. Fiz isso com a cuidadora de minha avó, quando estava traduzindo Hamlet – e o efeito era interessante. Explorando também a recepção dos atores, com relação a Antígona, eu lembro que meu medo era que todo o experimento fracassaria: mas foi grande a minha surpresa ao notar que, depois de um estranhamento inicial dos atores com o verso, eles logo descobriram as riquezas que podiam explorar. Houve até mesmo o caso de atores esquecendo partes de um verso no palco e que imediatamente, no improviso, preenchiam as sílabas faltantes com palavras diferentes, mas cujos acentos caíam perfeitamente no lugar correto – uma relação de familiaridade que me alegrou muito na época.

(CT): Em 2016 você ganhou o Jabuti pela sua tradução do Hamlet. Isso o ajudou nas suas relações com as editoras?

(LFP): Acredito que sim. Mas o fato é que com a editora com que publico agora, a Companhia das Letras, que edita a coleção da Penguin brasileira, minha relação foi sempre magnífica. Desde que eu cheguei lá, graças ao Leandro Sarmatz, sempre tive liberdade para fazer o que eu queria. Por exemplo, minha ideia era publicar um livro que fosse também um instrumento para as salas de aula, com notas, prefácio, o que não era bem o projeto da coleção Penguin. Mas, quando eu propus esta forma, aceitaram imediatamente. Inclusive acho que o sucesso do meu Hamlet se deva não só à tradução mas a todo o seu aparato de notas, comentários, introduções, numerações de verso, algo que inovamos na publicação de Shakespeare. Esta é, de fato, uma edição comentada e traz pela primeira vez no Brasil, incluídos no volume, os contextos históricos para a leitura de Hamlet, colocando-o em sua época. Fico feliz também que a editora seja tolerante como o meu trabalho vagaroso. Demoro para traduzir uma peça de Shakespeare mais do que o próprio Shakespeare demorou para escrevê-la. É claro que para nós, tradutores, que trabalhamos solitários por anos a fio, o reconhecimento é algo que quase assusta, quando chega. No meu caso isto foi particularmente especial, porque a minha tradução do Hamlet ficou presa numa outra editora por dez anos, com a promessa nunca mantida de publicá-la. Então, para mim, o Jabuti foi particularmente bem-vindo.

(CT): No que está trabalhando, agora?

(LFP): Em King Lear, antes de tudo, a mais impressionante peça de Shakespeare cuja tradução interrompi para me dedicar a Otelo. As dimensões desse projeto de tradução são imensas e me causam certo terror: conseguirei transmitir todo o sublime? O grotesco? A linguagem de Poor Tom? Mas também estou traduzindo com a Kathrin os contos das Uniões de Robert Musil. Como muitos dos meus projetos, este é um projeto que a Kathrin Rosenfield me propôs. São novelas cujo estilo, em certas passagens, lembram a escrita de Clarice Lispector, mas com uma sintaxe e um fraseado que nos deixam tontos. Meu trabalho com a Kathrin, neste caso, era de trabalhar sobre o primeiro draft que ela fez quando estávamos em Amherst, até encontrar uma síntese boa, artisticamente poderosa, para o longo fraseado de Musil. Nessa colaboração, o que há é um trabalho de muitas correções e recorreções, leituras e releituras com o original. É um tipo de colaboração que vem ainda dos tempos da Antígona – mas eu poderia ir mais longe e pensar nos comentários da Kathrin para minha tradução de Waste Land – quando Kathrin me convidou para traduzir com elas os coros, com algumas interferências da tradução de Hölderlin. Desde aquela época desenvolvemos uma sintonia impressionante e uma capacidade notável de esclarecer detalhes de precisão e expressão.

>A tradução dessas novelas me interessa porque, como tradutores, nós sempre recebemos de uma maneira muito direta a percepção dos sentimentos, das impressões estéticas que o texto produz, sem a intermediação de outra pessoa. O meu conhecimento do alemão não é suficiente para ter essa percepção plenamente viva, ao contrário da Kathrin que, como native speaker, o possui em todas as nuanças. No entanto, tenho certamente uma intuição que, conduzida pela checagem de Kathrin, acaba encontrando o caminho através das pedras. Esse espaço de comunicação entre nós existe desde muito tempo, de modo tal que hoje, já nos primeiros drafts dela, consigo encontrar um fraseado alternativo e mais apropriado. Nessa estilização há sempre a criatividade descontrolada querendo avançar, mas aí relemos e reatamos com o sentido original onde houve algum desvio. Muitos tradutores acreditam que esse trabalho de colaboração não seja possível. Estou certo que estão errados pelo menos no nosso caso. O tradutor de poesia ou de literatura possui uma familiaridade ímpar com sua língua, muitas de suas técnicas são difíceis de transmitir, e é preciso buscar essa colaboração, pois nem sempre as duas especialidades do filólogo e do tradutor se encontram numa única pessoa. Acho que o exemplo da colaboração de Augusto de Campos e Haroldo de Campos com Boris Schnaiderman é um exemplo feliz desse tipo de associação – e ela deveria ser procurada com mais frequência. Mas convém dizer: essa colaboração só é possível em um texto relativamente curto como Uniões. Não ousaria fazer o mesmo com O homem sem qualidades. Seria impossível. Esse tipo de colaboração enriquece o trabalho de tradução. Nosso trabalho comum reverte, por sua vez, no modo como a Kathrin traduz o terceiro draft: já incorpora o traço do segundo tradutor. É colaboração real, não apenas em sentido único – mas circular e revitalizante. E devo dizer que os meus primeiros drafts são muito duros, muito rígidos. Depois, nas revisões sucessivas surge a boa alquimia, que se manifesta em um adensamento da precisão com estilo e o ritmo.

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    Uma tradução portuguesa da Monadologia do Leibniz é disponível online: http://www.leibnizbrasil.pro.br/leibniz-traducoes/monadologia.htm. Ver parágrafos 12 e 14.

Referências

  • Bettega, Amilcar. O vôo da trapezista Instituto Estadual do Livro, 1994.
  • Bettega, Amilcar. Deixe o quarto como está, ou, Estudos para a composição docansaço: contos Companhia das Letras, 2002.
  • Bettega, Amilcar. Os lados do círculo Companhia das Letras, 2004.
  • Bensimon, Carol. Sinuca embaixo d’água Editora Companhia das Letras, 2009.
  • Bensimon, Carol. Todos nós adorávamos caubóis Editora Companhia das Letras,2013.
  • Ruas, Tabajara. Os varões assinalados: o romance da Guerra dos Farrapos L&PM Editores, 1985.
  • Ruas, Tabajara. O amor de Pedro por João Editora Record, 1998.
  • Ruas, Tabajara. Netto perde sua alma Mercado Aberto, 1995
  • Ruas, Tabajara. Perseguição e cerco a Juvêncio Gutierrez L&PM Editores,1990.
  • Geisler, Luisa. Luzes de emergência se acenderão automaticamente Alfaguara,2014.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    25 Mar 2019
  • Aceito
    28 Jun 2019
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