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UMA APLICAÇÃO DA TEORIA DO GATO DE SHRÖDINGER PARA ENTENDER O APOCALÍPTICO E CONTEMPORÂNEO FINNEGANS WAKE?

AN APPLICATION OF THE SHRÖDINGER’S CAT THEORY TO UNDERSTAND THE APOCALIPTIC AND CONTEMPORARY FINNEGANS WAKE?

Resumo

O texto a seguir propõe uma aplicação da Teoria do Gato de Shrödinger, da mecânica quântica, na compreensão e tradução de um trecho da obra Finnegans Wake de James Joyce. Para que este exercício pudesse ser feito, encontramos respaldo na noção de obra aberta (ECO, 2010) e na compreensão de que a referida obra de Joyce é um texto contemporâneo (AGAMBEN, 2009), resultado possível da errância (OLIVIERI-GODET, 2010) do autor.

Palavras-chave:
Finnegans Wake; A Obra Aberta; Obra contemporânea; errância; Teoria do Gato de Shrödinger

Abstract

The text that follows proposes an application of the Shrödinger’s Cat Theory from quantum mechanics in the understanding and translation of a given excerpt of Finnegans Wake by James Joyce. In order to carry out such exercise, we found support in the notion of open work (ECO, 2010), and in the understanding that the aforementioned book is a contemporary text (AGAMBEN, 2009) possibly resulting from the author’s wander (OLIVIERI-GODET, 2010).

Keywords:
Finnegans Wake; The Open Work; Contemporary work; Wander; Shrödinger’s Cat Theory

E quanto mais a compreensão se complica, tanto mais a mensagem originária (...) em vez de gasta, parece renovada, pronta para “leituras” mais aprofundadas. (ECO, 2010ECO, Umberto. Obra Aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. Trad. Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 2010.)

Introdução

Finnegans Wake tem tirado o sono dos interessados na obra de Joyce e atropelado teorias das mais variadas que apresentam uma compreensão possível de sua mensagem, ou mensagens. A gramática interna, lembrando a estrutura da língua inglesa na maioria dos casos e sendo ‘invadida’ por outros 86 idiomas1 1 Segundo GALINDO (2010, p. 42). O fato de haver múltiplas línguas presentes na obra mostra que há múltiplos pontos de referência, mesmo identitária. Para mais informações, veja também: <http://www.fweet.org>. ,2 2 Reconheço que outros autores apontaram 65 idiomas (cf AMARANTE, 2002), mas levo em consideração o esforço de SLEPON (2009) e seu <http://www.fweet.org>. , merece ainda estudos futuros. Ademais, muitas ‘lacunas’ de compreensão não podem ser preenchidas pelo fato de haver uma estrutura muito peculiar na redação das frases, que mesmo assim comunicam sentidos, e parecem seguir uma cronologia e uma progressão, ainda que mais se assemelhem a alguém tentando contar um sonho logo depois de acordar: só fazem sentido para quem sonhou, quer dizer, para quem escreveu Wake. Tal intriga parece ser o que tem instigado alguns estudiosos a analisar a obra, tentando adentrar esse locus desconhecido, e muitos outros mais a simplesmente abandonar a empreitada depois de várias (ou poucas) tentativas frustradas. Como se a obra fosse hermeticamente fechada. Ou pior, desafiadoramente aberta.

Por concordar com a segunda proposição, lerei um trecho de Finnegans Wake primordialmente à luz da noção de obra aberta proposta por Umberto Eco (2010ECO, Umberto. Obra Aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. Trad. Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 2010.). Faço isso por concordar que tal noção e tal obra são frutos da noção de contemporâneo (AGAMBEN, 2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009.), e por considerar que o autor e a referida obra apresentam traços de errância (OLIVIERI-GODET, 2010OLIVIERI-GODET, Rita. Errância/Migrância/Migração. In: BERND, Zilá. (org.). Dicionário das mobilidades culturais: percursos americanos. Porto Alegre: Literalis, 2010, p. 189-210.), uma vez que James Joyce residiu em vários países durante sua vida (apesar de colocar a cidade natal, Dublin, na Irlanda, como cenário de seus romances). Ainda, e considerando que a obra de Joyce é representativa do modernismo e pode ser lida como um sonho (ou pesadelo), mostrarei como um dado episódio, logo no primeiro capítulo e que apresenta um conflito bélico, ilustra o momento histórico vivido pelo autor entre as duas grandes guerras do século XX, num sentido mais internacional ao propor uma compreensão em língua portuguesa de como lê-lo.

Todas estas escolhas, bem como as escolhas tradutórias, ilustrarão, de forma mais abrangente, uma das possíveis aplicações da teoria do gato de Shrödinger3 3 Esta teoria foi desenvolvida pelo físico austríaco Erwin Shrödinger em 1935, ou seja, poucos anos antes da publicação de Finnegans Wake (1939, em Londres e em Nova York). Pressuponho que James Joyce teve conhecimento da teoria e a aplicou na tessitura de sua obra. , por entender que algo central na leitura de Finnegans Wake como um todo, e em especial em relação ao trecho lido, é o princípio da incerteza, postulado da mecânica quântica proposto pelo físico Werner Heisenberg no final da década de 1927, e no qual o experimento da teoria do gato de Shrödinger se baseia. Entendo que este conceito da física (que impõe restrições à acuidade com que podemos efetuar medidas simultâneas de uma classe de pares observáveis em nível subatômico) ajudaria a explicar porque mesmo os trechos que mais se assemelham à língua inglesa na obra de Joyce não podem ser lidos com ‘certeza’ naquela língua. A sombra da incerteza é tangível para qualquer leitor, ou estudioso que se atreva a propor traduções da obra ou de excertos dela. (AMARANTE, 2002AMARANTE, Dirce W. do. A tradução da língua de Finnegans Wake. Anuário de Literatura 1, Florianópolis, 2002, p. 93-107.)

Ora, é possível argumentar, e adequadamente, que tal teoria da física quântica não foi proposta para explicar fenômenos da linguagem, apenas “classes de pares observáveis em nível subatômico”. A teoria, porém, invade a análise se e quando tecemos hipóteses sobre o que a linguagem comunica, e sobre as intenções do comunicador, com base no conhecimento do interlocutor, ou leitor. E, por fim, se não mostrar que a aplicação prática é possível, tal exercício será no mínimo curioso e mostrará que Finnegans Wake ainda está por ser entendido; uma obra aberta de várias formas!

1. O Princípio da Incerteza

O Princípio da Incerteza de (Werner) Heisenberg parte de uma possibilidade de ‘certeza’. Poucas são as certezas levantadas sobre Finnegans Wake. E por entender que o exercício realizado por outros antes de mim deve ser valorizado, vou me apoiar em Anthony Burgess (2008BURGESS, Anthony. A literatura inglesa. São Paulo, Ática, 2008.) para apresentar um possível e sucinto resumo do enredo.

De acordo com o autor,

Em Finnegans Wake, Joyce tentou mostrar toda a história humana como um sonho na mente de um zelador de Dublin chamado H. C. Earwicker, e aqui o estilo - com o qual Joyce, que ficara cego, despendeu um enorme trabalho - é adequado ao sonho, a linguagem se desloca e muda, as palavras se aglutinam, sugerindo a mistura de imagens no sonho e fazendo com que Joyce seja capaz de apresentar a história e o mito em uma só imagem, com todos os personagens da história se transformando em alguns tipos eternos, que afinal são identificados por Earwicker como ele próprio, sua mulher e três filhos. (BURGESS, 2008BURGESS, Anthony. A literatura inglesa. São Paulo, Ática, 2008., p. 256)

O enredo da obra em questão é ‘recheado’ de episódios não apenas individuais, mas que podem ser relacionados com a história da humanidade4 4 Há que se enfatizar, também, o caráter histórica e socialmente engajado da obra de Joyce (BOOKER, 1995). , desde os primórdios da criação do universo. Essa mesma história5 5 Entendo que há diferentes “histórias” e “estórias”, por concordar que há diferentes pontos de vista e por acreditar que a história oficial é contada do ponto de vista do vitorioso. Essa é a história “oficial” e é com base nela que podemos ler Finnegans Wake, até porque esta é mais acessível ao grande público, mesmo que a referida obra não o seja. foi ‘recheada’ também por conflitos bélicos de toda ordem. E é um desses conflitos que será analisado e para o qual irei propor uma tradução na sequência.

Colocando de forma bem concisa e leiga, no princípio da incerteza temos operadores observáveis (que no caso de Wake considero serem as palavras ou sintagmas) de posição e de momento. Os diferentes operadores observáveis/palavras dependem de sua posição em uma dada frase para serem compreendidos, e dependem do momento (histórico) vivido pelo leitor e de sua bagagem de conhecimento (de mundo) para serem compreendidos. Ou seja, variando-se a posição de dada palavra, com interferências da ordem de outras línguas ou de mudanças na grafia dita oficial em inglês e variando-se o leitor, teremos a incerteza do significado. Algo como uma mistura de processos top-down e bottom-up de leitura.6 6 De acordo com Christine Nuttall (1996), no processo top-down, o leitor faz previsões sobre o que está lendo (com base em seu conhecimento prévio da língua, de mundo), enquanto que no bottom-up, o leitor verifica tais previsões. Uma combinação dos dois é chamada de leitura interativa, e seria uma abordagem bemsucedida de leitura. No caso de Finnegans Wake, parece que essa leitura interativa não é suficiente...

Não é possível saber o que Joyce queria escrever (ou dizer?), mas é possível levantar alternativas de leitura que parecem funcionar principalmente do ponto de vista do leitor e de acordo com o seu conhecimento prévio (de língua(s) (?), de mundo...). Ou seja, de acordo com o leitor (observador) é possível dizer se o gato está morto ou vivo. No caso de Finnegans Wake, o leitor pode construir uma leitura ‘assim assado’ de determinado fragmento. Qualquer leitura de se o gato está morto ou vivo, porém, depende de a caixa ser aberta ou fechada (para reflexão), ou melhor, de como Finnegans Wake é lido, entendendo que o gato (morto/vivo) é a leitura do romance, e tomando Joyce como um Shrödinger que conduziu o experimento; e os leitores, os observadores.

2. O gato de Shrödinger e Finnegans Wake

Descrita usualmente como uma experiência mental, a teoria do gato de Shrödinger é um experimento que procura mostrar a aplicação de noções da mecânica quântica, mais especificamente do princípio da incerteza, em objetos do dia-a-dia. No referido experimento, há um gato trancado dentro de uma caixa não transparente juntamente com um frasco de veneno, um contador Geiger, e um martelo. O contador Geiger será ativado ou não. Se for ativado, este pode acionar um martelo que pode quebrar o frasco de veneno que pode matar o gato. Se não for ativado, nada acontece com o gato. Do ponto de vista do observador, sem que a caixa seja aberta, não é possível afirmar se o gato7 7 Shrödinger relacionou o átomo ao gato. Eu relacionei a teoria à forma de ler um trecho específico de Wake (a teoria poderia ser usada para entender fragmentos mais longos). está vivo ou morto, pois não sabemos se o contador foi acionado ou não, condição que levaria à conclusão de que está morto e vivo simultaneamente.8 8 Uma explicação um pouco mais longa e aplicada da teoria pode ser encontrada em: <https://www.youtube.com/watch?v=UjaAxUO6-Uw>, enquanto que outra, mais simples, e adicionando pólvora ao experimento (sugestão de Einstein, o que tornou o experimento mais conhecido do grande público...) pode ser encontrada em: <https://www.youtube.com/watch?v=ndZl7L_ciAQ> Acessos em 01/06/2016. Sabemos somente que ele está vivo ou morto quando abrimos a caixa para verificar, o que, para uma quantidade infinita de verificações, nos leva estatisticamente a aceitar que o gato vive em 50% das vezes e morre nas outras 50% das vezes.

A experiência de abrir a caixa e observar o gato é similar à experiência de abrir e ler Finnegans Wake. Para o leitor que leu uma vez a obra, o gato poderia estar na caixa vivo - ou o narrador estaria tendo um sonho. Para outro leitor, o gato estaria morto - ou o narrador (assumindo que há um! E apenas um!) estaria contando o seu sonho (em fragmentos e de forma estrebuchada, pouco lembrando um gato, ou um sonho). Quando se abre a caixa infinitas vezes - ou se lê o livro infinitas vezes - não é possível dizer se o gato está morto ou vivo - ou se o narrador está sonhando ou acordado. Diz-se que nesse caso o gato está vivo e morto simultaneamente, e por similaridade, o narrador está acordado e dormindo, simultaneamente. A leitura fica imprecisa, mas paradoxalmente, algumas ‘certezas’ começam a se formar, muito em função da repetição do número de leituras feitas (da abertura da caixa). Essa imprecisão interfere na compreensão do que está escrito. Qual é a relevância disso para uma leitura de Finnegans Wake? Toda. Ou nenhuma. Ou as duas. Depende do leitor. E é esta a grande contribuição de Finnegans Wake: deixar para o leitor decidir, dando-lhe uma autoridade que outro escritor não se atreveu a dar ao leitor antes!

3. Finnegans Wake É obra aberta

A possibilidade de ler Finnegans Wake dessa forma encontra apoio principalmente em Obra Aberta (2010) de Umberto Eco. O termo “obra aberta” parece ser o mais adequado para interpretar as necessidades de expressão e comunicação da arte contemporânea9 9 Uma possível definição para o termo ‘contemporâneo’, para fins didáticos, será oferecida mais adiante. , terminação que abarca de certo modo, o referido livro. Wake pode muito bem representar esse gênero, uma vez que ‘habita’ o campo dos prováveis, é “obra indefinida e plurívoca10 10 As noções de dialogismo e polifonia de Bakhtin cabem para expandir essa compreensão de obra aberta, mas não serão referenciadas por restrições de espaço. , aberta” (ECO, 2010ECO, Umberto. Obra Aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. Trad. Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 2010., p. 12). É perfeita dialética “entre “forma” e “abertura” (ECO, 2010ECO, Umberto. Obra Aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. Trad. Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 2010., p. 23, grifos no original), onde pode “lograr o máximo de ambiguidade e depender da intervenção ativa do consumidor, sem contudo deixar de ser “obra”. (ECO, 2010ECO, Umberto. Obra Aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. Trad. Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 2010., p. 23) A intervenção do consumidor/leitor, no entanto, não se dá na escrita da obra, mas em sua leitura e compreensão. Ora, devem alguns achar, toda e qualquer obra é assim. Mas não Finnegans Wake, uma vez que, sendo escrita em tantos idiomas, e não apresentando, pois, caminhos singulares, mas múltiplos, a leitura se complica. E se singulariza para cada leitor, como se para que ela acontecesse, cada leitor precisasse utilizar seu repertório de leituras anteriores, que se mostra falho e pequeno, e se beneficiasse de leituras compartilhadas do romance, como aquelas que podem acontecer em um grupo de estudos.

Retrato dos tempos (ainda inacabados), ou, como coloca Eco,

[p]poder-se-ia perfeitamente pensar que esta fuga da necessidade segura e sólida e esta tendência ao ambíguo e ao indeterminado refletem uma condição de crise do nosso tempo; ou então, ao contrário, que estas poéticas, em harmonia com a ciência de hoje, exprimem as possibilidades positivas de um homem aberto a uma renovação contínua de seus esquemas de vida e saber11 11 Basta considerar quantas vezes James Joyce mudou de país com sua família (ELLMANN, 1983). , produtivamente empenhado num progresso de suas faculdades e de seus horizontes. (2010, p. 60)

Considero, ainda, que Finnegans Wake é uma obra em movimento, concordando com a explicação dada por Eco de que o autor desta “não sabe exatamente de que maneira a obra poderá ser levada a termo” (2010, p. 62), não considerando aqui a escrita ou feitura da obra, mas as possibilidades de leitura desta que variam de momento a momento. Apesar disto, ela será

sempre e apesar de tudo, a sua obra, não outra, e que ao terminar o diálogo interpretativo ter-se-á concretizado uma forma que é a sua forma, ainda que organizada por outra de um modo que não pode prever completamente: pois ele, substancialmente, havia proposto algumas possibilidades já racionalmente organizadas, orientadas e dotadas de exigências orgânicas de desenvolvimento. (ECO, 2010ECO, Umberto. Obra Aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. Trad. Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 2010., p. 62)

Umberto Eco afirma que “o modo pelo qual as formas de arte se estruturam reflete (...) o modo pelo qual a ciência ou, seja como for, a cultura da época veem a realidade” (2010, p. 55). Ao concordar com essa premissa, entendo que o momento histórico vivido pelo autor estabeleceu o cenário de produção de uma obra que lembra um sonho e que representa, ainda que de forma imprecisa, a realidade entre duas guerras mundiais, um momento de ‘errância.’12 12 Várias leituras entendem que Finnegans Wake apresenta a história da humanidade. Um aspecto da vida de Joyce em particular permite uma leitura algo soturna do livro em questão. Joyce viveu quase que ‘espremido’ entre duas Guerras Mundiais. A escrita de Finnegans Wake com todos os seus enigmas, e inexatidões não parece coincidência! Como detentor de um conhecimento enciclopédico sobre vários assuntos e uma mente brilhante e inquieta, sua obra não deve ter deixado passar em branco acontecimentos com consequências tão nefastas, e tão mal resolvidos. Como ‘errante’ que era em diferentes países, Joyce pode acompanhar as diferentes posturas perante a primeira guerra mundial, e mesmo perceber o início da segunda. E, entendendo que Joyce era um expatriado, me apoio no conceito de errância, conforme proposto no Dicionário das mobilidades culturais (2010)OLIVIERI-GODET, Rita. Errância/Migrância/Migração. In: BERND, Zilá. (org.). Dicionário das mobilidades culturais: percursos americanos. Porto Alegre: Literalis, 2010, p. 189-210. organizado por Zilá Bernd para perceber, ainda que de forma superficial, o contexto de produção da obra e a posição de Joyce como escritor. Considero Finnegans Wake um exemplo de descontinuidade, na definição mais abrangente do termo. Como se a errância pudesse ser condição para a produção de uma obra ‘errante’ na transmissão de significados.

De acordo com Rita Olivieri-Godet (2010)OLIVIERI-GODET, Rita. Errância/Migrância/Migração. In: BERND, Zilá. (org.). Dicionário das mobilidades culturais: percursos americanos. Porto Alegre: Literalis, 2010, p. 189-210., as figuras da errância, ou migrância, “exploram diferentes aspectos, mas têm em comum a ideia de deslocamento físico ou mental, voluntário ou involuntário.” (p. 189) Este aspecto é caro a Wake como um todo, bem como ao seu autor. Ainda, não é possível saber se a errância é positiva ou negativa, cabendo a cada um a sua leitura. Ou seja, intrínseco ao conceito encontra-se a ambiguidade de seu valor. O conceito de errância está atrelado ao de deslocamento, de mobilidades transculturais. Uma possível justificativa para situações de heterolinguismo presentes tanto na obra de Joyce, e mais especificamente em Finnegans Wake.

Ainda de acordo com a autora, e se referindo a um estudo realizado por um pesquisador francês, a migrância [ou errância] não diz respeito apenas à travessia física de territórios. A esta dimensão exterior da migrância como deslocamento físico, sobrepõe-se a dimensão interior, ontológica e simbólica (...). (OLIVIERI-GODET, 2010OLIVIERI-GODET, Rita. Errância/Migrância/Migração. In: BERND, Zilá. (org.). Dicionário das mobilidades culturais: percursos americanos. Porto Alegre: Literalis, 2010, p. 189-210., p. 192)

Um dos pontos positivos da errância seria a consciência da pluralidade cultural que os errantes - ou exilados são levados a adquirir.13 13 Poderia ser esta uma outra compreensão para os possíveis diálogos que Joyce estabeleceu em sua obra com alguns de seus predecessores (BOOKER, 1995)? Sem apontar uma única influência, ele entabula conversa com vários. O escritor errante não tem necessariamente que escolher entre o país que o acolheu e o país que deixou (OLIVIERI-GODET, 2010OLIVIERI-GODET, Rita. Errância/Migrância/Migração. In: BERND, Zilá. (org.). Dicionário das mobilidades culturais: percursos americanos. Porto Alegre: Literalis, 2010, p. 189-210., passim). Mesmo assim, não é possível apenas romantizar a errância, e uma experiência e perdas desagradáveis podem ser infligidas. Seria essa uma explicação para Finnegans Wake ter sido escrito na língua que foi, ou seja, nenhuma unicamente? Seria o retrato das perdas, inclusive linguísticas, que seu autor sofreu? Ou seria o retrato das perdas que as línguas e culturas sofrem em contato umas com as outras, porque estão ‘errantes’? Esta é uma compreensão possível, ainda que parcial, mesmo porque Joyce levou 17 anos para terminar a obra (iniciada em 1923, quando a Guerra Civil Irlandesa acaba, e publicada em 1939, quando a Alemanha invade a Polônia), e após haver residido em vários países antes disso. No entanto, precisamos entender que se James Joyce não precisou necessariamente fugir de onde se encontrava no início do século XX por conta de conflitos bélicos, este é o principal motivo para os deslocamentos migratórios deste início de século XXI. Os atuais migrantes, exilados e errantes, são expatriados angustiados, titubeantes na comunicação, por vezes, e por demais, atingidos em sua identidade e subjetividade.14 14 Mais informações acerca do tema em SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

Outra compreensão possível é a de que somos todos migrantes, e a referida obra seria representação de nossa condição nesse mundo. Tantos foram os conflitos e invasões, e tantas foram as “misturas” entre povos, que fica difícil “rastrear” a ascendência de um indivíduo e chegar à conclusão de que ele não sofreu “alterações”. Somos sujeitos culturais híbridos (OLIVIERI-GODET, 2010OLIVIERI-GODET, Rita. Errância/Migrância/Migração. In: BERND, Zilá. (org.). Dicionário das mobilidades culturais: percursos americanos. Porto Alegre: Literalis, 2010, p. 189-210.). Em outra instância, podemos entender a errância em Finnegans Wake como metáfora para a escrita literária de Joyce. Cabe a cada leitor ler e estabelecer um território do possível para compreender o que está escrito. E as possibilidades só são viáveis porque Wake é obra aberta.

4. Lendo um dos trechos de Finnegans Wake

O trecho a ser lido e traduzido se encontra à página 04, no primeiro capítulo. Proponho uma leitura deste com implicações perturbadoras sinalizando para o momento de incertezas pós-Primeira Guerra Mundial e que pode explicar o acontecimento da Segunda, uma vez que a obra é produção artística de uma época de incertezas e experimentações. Uma outra possível leitura da obra, de sua escrita e das diferentes interpretações que suscita como um todo, pode colocá-la como representação do apocalipse15 15 A autora faz referência a estudos de Jacques Derrida (1982), Julia Kristeva (1989) e Linda Hutcheon (1988) que se debruçam com mais detalhes sobre as narrativas apocalípticas, em contexto pós-moderno. , entendendo que como tal “a linguagem linear da narrativa necessariamente colapsa.” (BARROS, 2004BARROS, Deborah P. de. Fast Cars and Bad Girls. New York: Peter Lang, 2004., p. 132, tradução minha)16 16 No original: “The linear language of narrative necessarily collapses.” (BARROS, 2004, p. 132) ,17 17 Reconheço que a informação fornecida sobre narrativas pós-apocalípticas originalmente considerava outras produções (as road narratives de autoras norte-americanas, para ser mais exata). Como resultado disso, a literatura precisa se expressar em um novo dialeto, com palavras e tons fraturados, com a perda da certeza sendo acompanhada da perda de origens, destinos, significados e verdades (BARROS, 2004BARROS, Deborah P. de. Fast Cars and Bad Girls. New York: Peter Lang, 2004., passim), precisamente o caso de Wake e que pode ser ilustrado no trecho e em sua tradução a seguir.

O trecho é:

What clashes here of will gen wonts, oystrygods gaggin fishygods! Brékkek Kékkek Kékkek Kékkek! Kóax Kóax Kóax! Ualu Ualu Ualu! Quaouauh! Where the Baddelaires partisans are still out to mathmaster Malachus Micgranes and the Verdons catapelting the camibalistics out of the Whoyteboyce of Hoodie Head. Assiegates and boomeringstroms. Sod’s brood, be me fear! Sanglorians, save! Arms apeal with larms, appaling. Killykilkilly: a toll, a toll. What chance cuddleys, what cashels aired and ventilated! What bidimetoloves sinduced by what tegotetab-solvers! What true feeling for their’s hayair with what strawng voice of false jiccup! O here here how hoth sprowled met the duskt the father of fornicationists but, (O my shining stars and body!) how hath finespanned most high heaven the skysign of soft advertisement! But was iz? Iseut? Ere were sewers? The oaks of ald now they lie in peat yet elms leap where askes lay. Phall if you but will, rise you must: and none so soon either shall the pharce of the nunce come to a setdown secular phoenish. (JOYCE, 2012JOYCE, James. Finnegans Wake. Oxford: Oxford University Press , 2012., p. 04)

Realizarei o trabalho de uma analista do discurso18 18 De acordo com Eni Orlandi (2003), a noção de que ao analista do discurso cabe identificar o real sentido do que está sendo dito, “procurando ouvir, naquilo que o sujeito diz, aquilo que ele não diz, mas que constitui igualmente o sentido de suas palavras” (ORLANDI, 2003, p. 39). , ao organizar e reorganizar os diferentes sintagmas para obter uma ideia possível do todo.19 19 Como um artesão a colocar os diferentes tesserae em diferentes posições para verificar se compõem uma imagem (texto) passível de ser lida, e a descobrir a cada leitura que há mais possibilidades e diferentes tesselas a cada nova (re) organização. O texto admite essas (re)organizações, principalmente por ser uma obra aberta. Ao contrário de Eco, não assumo aqui que as tesselas obedecem “a rigorosas regras de probabilidade” ou insistem “num determinado contorno, sem possibilidade de equívoco” (p. 167), até porque estamos tratando de linguagem, algo muito mais abstrato do que peças de um mosaico de pedras. Mas a metáfora do mosaico e das tesserae é relevante. Reconheço que apenas apresentarei possibilidades de leitura das referidas unidades. Estarei também realizando a proposta de tradução de fragmentos, mesmo considerando que a unidade e sentido podem extrapolá-los, ou não respeitá-los.20 20 Como já apontado por Dirce Amarante, “Em Finnegans Wake, uma só palavra pode concentrar dois ou mais significados, sendo que essa acumulação de significados se realiza através de associações semânticas, fônicas, gráficas e morfológicas.’ Esse efeito multiplicador de significados Joyce obteve ao utilizar principalmente dois recursos estilísticos: o trocadilho e a palavra-valise.” (AMARANTE, 2002, p. 95) Acima de tudo, considero toda e qualquer possibilidade de leitura e compreensão ambígua, no sentido proposto por Eco (2010ECO, Umberto. Obra Aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. Trad. Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 2010.) ao elencar outro aspecto da obra aberta, quando afirma que “[t]odo signo que apareça ligado a outro e dos outros receba sua fisionomia completa significa de modo vago. Cada significado, que não possa ser apreendido senão ligado com outros significados, deve ser percebido como ambíguo.” (p. 84-85)

Eco acrescenta que,

o fato de uma frase do Finnegans Wake assumir uma infinidade de significados não se explica em termos de resultado estético (...); Joyce visava algo mais e diferente, organizava esteticamente um aparato de significantes que por si só já era aberto e ambíguo. E, por outro lado, a ambiguidade dos signos não pode ser separada de sua organização estética, muito pelo contrário, os dois valores se sustentam e motivam um ao outro.” (2010, p. 89)

Ao realizar a leitura deste fragmento (e mesmo da obra como um todo), e após realizar escolhas lexicais que dão conta, ainda que incertamente, da tradução dos termos, o que acontece é que encontramos uma situação de gato morto/vivo. Vejamos o primeiro fragmento:

What clashes here of will gen wonts, oystrygods gaggin fishygods! Que embates aqui de vontades e vetos, ostragodos contra piscosogodos!21 21 Mesmo sabendo que mais do que duas possibilidades de leitura e tradução deste fragmento são possíveis, apresento apenas duas viáveis. E informo que todas as traduções aqui fornecidas são de minha autoria.

Após realizar escolhas que dessem conta de “oyster” como “ostra” e “fishy” como “piscoso” - gato vivo - ainda assim, ficamos com a sensação de que o sintagma (se é que podemos chamar assim!) não está resolvido, pois outra leitura se insinua. Tentamos então “oystrygods” como “ostrogodos” e “fishygods” como “visigodos”... E, ainda assim, a leitura não está resolvida - gato morto. Ficamos, pois com a situação gato morto/vivo: “ostragodos contra piscosogodos”. Mesmo assim, a situação-problema não se resolveu, uma vez que todas as outras possibilidades (e outras leituras a elas relacionadas) ficam na esteira, como se estivessem a repetir o experimento do “gato na caixa com veneno” ad eternum. E há que se considerar que outros elementos para além do léxico como, por exemplo, a gramática e a fonologia, não foram contemplados nem resolvidos! A situação gato morto/vivo se apresenta clara ao leitor que precisa fazer escolhas e que as considera com base no que lê (a língua, ou o sonho que lhe é contado pelo narrador) e/ou no que tem de conhecimento de mundo (individual, em constante mudança): as definições não são posições fixas, são errantes.

Considerando que o papel do tradutor é fazer escolhas, façamos mais algumas.

O fragmento que vem na sequência é:

Brékkek Kékkek Kékkek Kékkek! Kóax Kóax Kóax! Ualu Ualu Ualu! Quaouauh!

Por concordar com a maioria das leituras até hoje feitas de que neste fragmento temos o coaxar de sapos ou rãs (possivelmente em um brejo próximo ao campo de batalha que tiveram sua rotina perturbada pelo conflito entre homens, ou deuses, ou ainda “ostragodos” e “piscosogodos”), não o traduziremos. São sinal de que ‘a vida continua’.

Na sequência, temos a confirmação de que outro conflito está acontecendo:

Where the Baddelaires partisans are still out to mathmaster Malachus Micgranes and the Verdons catapelting the camibalistics out of the Whoyteboyce of Hoodie Head.

Onde os bandelaires parisenses estão ainda à vista para mestrematicar Malaquias Granadas e os Verdons catapeltando os canibalisticos para fora do promontório dos nacionalistas irlandeses.

Há outros embates, e nomes de batalhas, presentes neste fragmento. E temos uma possibilidade de compreensão que reorganiza os elementos da língua de origem para ‘facilitar’ o trabalho da tradução. Temos, porém, uma espécie de interrupção da linha,

Assiegates and boomeringstroms.

Portões de bundas e pobres diabos em tempestades.

A cena pode levar o leitor a pensar em muitos corpos abandonados no campo de batalha após o término de uma luta, em estados lastimáveis e posições nada honrosas. O resultado esperado das batalhas da humanidade.

Sod’s brood, be me fear! Sanglorians, save!

Ninhada de sodomitas, sejam o meu medo! Sem glória, salve!

Enquanto alguns perecem, outros continuam a luta. As frases acima se assemelham a xingamentos e imprecações proferidos quando soldados estão em guerra.

Arms apeal with larms, appaling.

Braços apelam com armas, apavorante.

Killykillkilly: a toll, a toll.

Matarmatamatança: um dobrado, todos.

What chance cuddleys, what cashels aired and ventilated!

Que abraços fortuitos, que castelos aerados e ventilados!

Não apenas a moral dos soldados é abalada pelo conflito; estruturas concretas caem, assim como os soldados, perfurados por tiros, todos.

What bidimetoloves sinduced by what tegotetab-solvers!

Que champramar pecaduzidos por ego te absolvo!

Uma das possíveis motivações para um soldado participar de um conflito bélico talvez seja a possibilidade de morrer em combate, e receber o perdão por seus pecados.

What true feeling for their’s hayair with what strawng voice of false jiccup!

Que verdadeiro sentimento por seu bel cabelo com voz folte de um falso gago!

E enquanto as lembranças (ou visões) de uma dama desejada parecem trazer certo alento ao soldado em luta, o conflito segue.

O here here how hoth sprowled met the duskt the father of fornicationists but, (O my shining stars and body!) how hath finespanned most high heaven the skysign of soft advertisement!

Ei aqui aqui como o dia nasceu encontrou o pai dos fornicadores mas, (Ó minhas estrelas brilhantes e corpo!) como tem bemabrangido os mais altos céus o sinaldocéu de anúncio suave!

Possivelmente, no raiar do dia alguns soldados seguem para o além.

But was iz? Iseut? Ere were sewers?

Mas foi é? Isolda. Primeiro houve esgotos?

A errância do soldado que não vê ou não entende o que vê se confunde com a do leitor que ‘erra’ para fazer sentido de um fragmento que pode ter sido escrito com línguas se misturando, ou simplesmente seguindo os moribundos questionamentos de um ébrio.

The oaks of ald now they lie in peat yet elms leap where askes lay.

Os carvalhos de ontrora já estão lançados onde as cinzas se deitam.

Claramente, não apenas os homens perecem em conflitos bélicos; a natureza também paga o preço. Mas é preciso seguir em frente, até o fim dos dias:

Phall if you but will, rise you must: and none so soon either shall the pharce of the nunce come to a setdown secular phoenish.

Caia se você quiser, levantar-se você precisa: e já estava na hora de a farsa neste caso chegar ao assentamento secular do finalizar.

As escolhas feitas não resolvem as ambiguidades e circularidades entrevistas e acabam por acrescentar mais um problema na lista já algo imensa: as escolhas que seguem a sintaxe são reducionistas e parciais. A sombra das escolhas não feitas continua pairando. E medir um dos parâmetros nos condena a deixar o outro, a perder a possibilidade de medir o outro ao mesmo tempo. Ademais, apenas confirmam a colocação de Eco de que “a vontade de comunicar de modo ambíguo e aberto influi na organização do discurso, determinando sua fecundidade sonora, sua capacidade de provocação imaginativa e a organização formal que esse material sofre” (ECO, 2010ECO, Umberto. Obra Aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. Trad. Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 2010., p. 91). Se há alguma certeza sobre Finnegans Wake esta é a incerteza do que é comunicado.

O leitor tem a liberdade de fazer escolhas para sua forma de ler o trecho; lhe é permitido ‘errar’, mas ao fazer suas escolhas (gato vivo) ele fica com a impertinência das alternativas que deixou para trás (gato morto) a assombrá-lo, uma situação de gato morto/vivo. E o paradoxo se mantém enquanto não houver mediação.

É possível, no entanto, fazer algumas declarações acerca deste trecho, como as que seguem: a de que representa a história da humanidade que foi permeada por conflitos, nos quais os seres humanos podem ter chegado ao mais baixo nível de ações para sua sobrevivência; a de que os homens que se juntam às batalhas, o fazem pelas razões mais diversas; e que, enquanto os homens brigam, a natureza acha um jeito de seguir seu curso, com sapos coaxando e um dia nascendo depois do outro, até o final dos tempos.

5. Breves considerações parciais

Finnegans Wake é acima de tudo uma produção de um autor contemporâneo, considerando a definição fornecida por Giorgio Agamben (2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009.):

Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo. (AGAMBEN, 2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009., p. 58)

Eco (2010ECO, Umberto. Obra Aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. Trad. Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 2010.) ainda complementa afirmando que

a narrativa contemporânea tem-se orientado cada vez mais rumo a uma dissolução do enredo (...) para construir pseudo-histórias baseadas na manifestação de fatos (...) inessenciais. (p. 192)

Por mais não essenciais que possam parecer, em uma primeira leitura, os fatos auxiliam no desenho de ações e apresentam um discurso sobre o mundo. A natureza desse discurso, que pode ser entendido de múltiplas formas e possibilitar interpretações diferentes e complementares, é o que pode ser definido como a abertura22 22 Claro que esta não é a única característica possível de uma poética contemporânea (ECO, 2010, p. 193). de uma obra narrativa. E “[a] abertura pressupõe, portanto, a longa e cuidadosa organização de um campo de possibilidades.” (ECO, 2010ECO, Umberto. Obra Aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. Trad. Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 2010., p. 194, grifo do autor). O contemporâneo é aquele que mantem fixo “o olhar no seu tempo (...) para nele perceber não as luzes, mas o escuro” (AGAMBEN, 2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009., p. 62).

(...) [N]ão é apenas aquele que, percebendo o escuro do presente, nele apreende a resoluta luz; é também aquele que, dividindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com os outros tempos, de nele ler de modo inédito a história, de “citá-la” segundo uma necessidade que não provém de maneira nenhuma do seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode responder.” (AGAMBEN, 2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009., p. 72)

Acredito ser isso o que James Joyce viu em seu tempo - o nosso tempo ainda - e que lhe tirava o sono e o punha a escrever o ininteligível: as trevas dos conflitos, a indefinição de um tempo e a inexistência de uma linguagem para defini-lo.

Este ininteligível justificaria o tom apocalíptico de Finnegans Wake, onde passado e presente se misturam de forma fraturada, sugerindo outro atributo da narrativa contemporânea: a de dissipar sua própria referencialidade (BARROS, 2004BARROS, Deborah P. de. Fast Cars and Bad Girls. New York: Peter Lang, 2004.), e a ‘errância’ que se apresenta na escrita e nas possíveis leituras. É a resposta literária para os questionamentos do momento então presente: há o caos, e há também a ordem. Ambos simultaneamente. Cabe ao leitor estabelecer certa ordem para seu próprio conforto. Lembrando sempre que aquela e este não perduram. O gato está morto/vivo...

Referências

  • AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009.
  • AMARANTE, Dirce W. do. A tradução da língua de Finnegans Wake Anuário de Literatura 1, Florianópolis, 2002, p. 93-107.
  • BARROS, Deborah P. de. Fast Cars and Bad Girls New York: Peter Lang, 2004.
  • BOOKER, M. Keith. Joyce, Bakhtin, and the literary tradition Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1995.
  • BURGESS, Anthony. A literatura inglesa São Paulo, Ática, 2008.
  • ECO, Umberto. Obra Aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. Trad. Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 2010.
  • ELLMANN, Richard. James Joyce Oxford: Oxford University Press, 1983.
  • GALINDO, Caetano W.. Sobre a possibilidade de que o Finnegans Wake, de James Joyce, represente uma espécie de síntese literária em moldes bakhtinianos. BAKHTINIANA, São Paulo, v. 1, n. 4, 2010, p. 38-49.
  • JOYCE, James. Finnegans Wake Oxford: Oxford University Press , 2012.
  • NUTTALL, Christine. Teaching Reading Skills in a Foreign Language Oxford: Heinemann, 1996.
  • OLIVIERI-GODET, Rita. Errância/Migrância/Migração. In: BERND, Zilá. (org.). Dicionário das mobilidades culturais: percursos americanos. Porto Alegre: Literalis, 2010, p. 189-210.
  • ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 5 ed. Campinas: Pontes, 2003.
  • SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
  • SLEPON, Raphael. The Finnegans Wake Extensible Elucidation Treasury (FWEET) Website. <http://www.fweet.org/> Last updated: 11 September 2009. Acesso em 12 December 2017.
    » http://www.fweet.org
  • 1
    Segundo GALINDO (2010GALINDO, Caetano W.. Sobre a possibilidade de que o Finnegans Wake, de James Joyce, represente uma espécie de síntese literária em moldes bakhtinianos. BAKHTINIANA, São Paulo, v. 1, n. 4, 2010, p. 38-49., p. 42). O fato de haver múltiplas línguas presentes na obra mostra que há múltiplos pontos de referência, mesmo identitária. Para mais informações, veja também: <http://www.fweet.org>.
  • 2
    Reconheço que outros autores apontaram 65 idiomas (cf AMARANTE, 2002AMARANTE, Dirce W. do. A tradução da língua de Finnegans Wake. Anuário de Literatura 1, Florianópolis, 2002, p. 93-107.), mas levo em consideração o esforço de SLEPON (2009)SLEPON, Raphael. The Finnegans Wake Extensible Elucidation Treasury (FWEET) Website. <http://www.fweet.org/>. Last updated: 11 September 2009. Acesso em 12 December 2017.
    http://www.fweet.org...
    e seu <http://www.fweet.org>.
  • 3
    Esta teoria foi desenvolvida pelo físico austríaco Erwin Shrödinger em 1935, ou seja, poucos anos antes da publicação de Finnegans Wake (1939, em Londres e em Nova York). Pressuponho que James Joyce teve conhecimento da teoria e a aplicou na tessitura de sua obra.
  • 4
    Há que se enfatizar, também, o caráter histórica e socialmente engajado da obra de Joyce (BOOKER, 1995BOOKER, M. Keith. Joyce, Bakhtin, and the literary tradition. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1995.).
  • 5
    Entendo que há diferentes “histórias” e “estórias”, por concordar que há diferentes pontos de vista e por acreditar que a história oficial é contada do ponto de vista do vitorioso. Essa é a história “oficial” e é com base nela que podemos ler Finnegans Wake, até porque esta é mais acessível ao grande público, mesmo que a referida obra não o seja.
  • 6
    De acordo com Christine Nuttall (1996)NUTTALL, Christine. Teaching Reading Skills in a Foreign Language. Oxford: Heinemann, 1996., no processo top-down, o leitor faz previsões sobre o que está lendo (com base em seu conhecimento prévio da língua, de mundo), enquanto que no bottom-up, o leitor verifica tais previsões. Uma combinação dos dois é chamada de leitura interativa, e seria uma abordagem bemsucedida de leitura. No caso de Finnegans Wake, parece que essa leitura interativa não é suficiente...
  • 7
    Shrödinger relacionou o átomo ao gato. Eu relacionei a teoria à forma de ler um trecho específico de Wake (a teoria poderia ser usada para entender fragmentos mais longos).
  • 8
    Uma explicação um pouco mais longa e aplicada da teoria pode ser encontrada em: <https://www.youtube.com/watch?v=UjaAxUO6-Uw>, enquanto que outra, mais simples, e adicionando pólvora ao experimento (sugestão de Einstein, o que tornou o experimento mais conhecido do grande público...) pode ser encontrada em: <https://www.youtube.com/watch?v=ndZl7L_ciAQ> Acessos em 01/06/2016.
  • 9
    Uma possível definição para o termo ‘contemporâneo’, para fins didáticos, será oferecida mais adiante.
  • 10
    As noções de dialogismo e polifonia de Bakhtin cabem para expandir essa compreensão de obra aberta, mas não serão referenciadas por restrições de espaço.
  • 11
    Basta considerar quantas vezes James Joyce mudou de país com sua família (ELLMANN, 1983ELLMANN, Richard. James Joyce. Oxford: Oxford University Press, 1983.).
  • 12
    Várias leituras entendem que Finnegans Wake apresenta a história da humanidade.
  • 13
    Poderia ser esta uma outra compreensão para os possíveis diálogos que Joyce estabeleceu em sua obra com alguns de seus predecessores (BOOKER, 1995BOOKER, M. Keith. Joyce, Bakhtin, and the literary tradition. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1995.)? Sem apontar uma única influência, ele entabula conversa com vários.
  • 14
    Mais informações acerca do tema em SAID, EdwardSAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
  • 15
    A autora faz referência a estudos de Jacques Derrida (1982), Julia Kristeva (1989) e Linda Hutcheon (1988) que se debruçam com mais detalhes sobre as narrativas apocalípticas, em contexto pós-moderno.
  • 16
    No original: “The linear language of narrative necessarily collapses.” (BARROS, 2004BARROS, Deborah P. de. Fast Cars and Bad Girls. New York: Peter Lang, 2004., p. 132)
  • 17
    Reconheço que a informação fornecida sobre narrativas pós-apocalípticas originalmente considerava outras produções (as road narratives de autoras norte-americanas, para ser mais exata).
  • 18
    De acordo com Eni Orlandi (2003)ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 5 ed. Campinas: Pontes, 2003., a noção de que ao analista do discurso cabe identificar o real sentido do que está sendo dito, “procurando ouvir, naquilo que o sujeito diz, aquilo que ele não diz, mas que constitui igualmente o sentido de suas palavras” (ORLANDI, 2003ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 5 ed. Campinas: Pontes, 2003., p. 39).
  • 19
    Como um artesão a colocar os diferentes tesserae em diferentes posições para verificar se compõem uma imagem (texto) passível de ser lida, e a descobrir a cada leitura que há mais possibilidades e diferentes tesselas a cada nova (re) organização. O texto admite essas (re)organizações, principalmente por ser uma obra aberta. Ao contrário de Eco, não assumo aqui que as tesselas obedecem “a rigorosas regras de probabilidade” ou insistem “num determinado contorno, sem possibilidade de equívoco” (p. 167), até porque estamos tratando de linguagem, algo muito mais abstrato do que peças de um mosaico de pedras. Mas a metáfora do mosaico e das tesserae é relevante.
  • 20
    Como já apontado por Dirce Amarante, “Em Finnegans Wake, uma só palavra pode concentrar dois ou mais significados, sendo que essa acumulação de significados se realiza através de associações semânticas, fônicas, gráficas e morfológicas.’ Esse efeito multiplicador de significados Joyce obteve ao utilizar principalmente dois recursos estilísticos: o trocadilho e a palavra-valise.” (AMARANTE, 2002AMARANTE, Dirce W. do. A tradução da língua de Finnegans Wake. Anuário de Literatura 1, Florianópolis, 2002, p. 93-107., p. 95)
  • 21
    Mesmo sabendo que mais do que duas possibilidades de leitura e tradução deste fragmento são possíveis, apresento apenas duas viáveis. E informo que todas as traduções aqui fornecidas são de minha autoria.
  • 22
    Claro que esta não é a única característica possível de uma poética contemporânea (ECO, 2010ECO, Umberto. Obra Aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. Trad. Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 2010., p. 193).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2018
  • Aceito
    16 Jul 2018
  • Publicado
    Set 2018
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