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ARLT, Roberto. A Vida Porca. Tradução de Davidson de Oliveira Diniz. Belo Horizonte: Relicário, 2014. 256 p

ARLT, Roberto. A Vida Porca. Diniz, Davidson de Oliveira. Belo Horizonte: Relicário, 2014. 256

A obra de Roberto Arlt, atualmente considerado um dos maiores prosadores da Argentina no século XX, não tem sido muito difundida para o público de língua portuguesa. Apesar de contar com algumas traduções para o português brasileiro desde a década de 1970, o verdadeiro boom de novas edições e traduções se deu a partir de 2013, ano em que a obra entrou definitivamente em domínio público – uma alteração nas leis argentinas sobre a matéria fez com que a obra estivesse também em domínio público em períodos entre 1973 e 2009. É na esteira do redescobrimento de Arlt pelo mercado editorial brasileiro que surgem edições como a de A Vida Porca, tradução de Davidson de Oliveira Diniz para El Juguete Rabioso, romance de estreia do escritor.

O romance, que tem como protagonista Silvio Astier, um inventivo e despossuído adolescente que aspira a ser um grande escritor e um grande bandido, opera em zona até então não explorada pela literatura argentina: a periferia, membrana de transição entre a cidade grande que se estabelecia e o mundo campesino, tão retratado literariamente até o início do século XX. Para tal abordagem, Arlt lança mão de recursos também inéditos no seu emprego literário: uma linguagem mais próxima à fala coloquial, com marcas como inversões, hesitações e suspensões do discurso, que é pontuado por coloquialismos e pelo uso do lunfardo, vocabulário corrente no arrabal portenho e renegado no campo literário até então. Costurando tais elementos, o escritor dá voz a personagens usualmente não representados e entrega uma obra verdadeiramente inovadora, por muitos considerada precursora do modernismo argentino.

Publicada em 2014 pela Relicário Edições, a edição de A Vida Porca pode ser considerada um espaço privilegiado para a exposição do fazer tradutório de Diniz, doutor em Teoria Literária pela UFMG e tradutor estreante. Editada com o apoio do Programa Sur, mecanismo de fomento às traduções de autores argentinos gerido pelo Ministério das Relações Exteriores daquele país, a obra oferece ao tradutor uma visibilidade poucas vezes encontrada em traduções no mercado editorial brasileiro: além de apresentar brevemente o autor na orelha da edição, Diniz escreveu um minucioso posfácio, em que pôde expor seu projeto tradutório, além de tecer considerações sobre o autor e a obra. Completa o conjunto de paratextos da edição o prefácio assinado por Eleonora Frenkel, mestre em Estudos da Tradução e doutora em Literatura pela UFSC, especialista na obra de Roberto Arlt.

As decisões tradutórias tomadas em A Vida Porca demonstram considerável autonomia do tradutor no processo editorial, a começar pelo título da obra: originalmente intitulada por Arlt La vida puerca, teve o título alterado para El juguete rabioso por sugestão de Ricardo Güiraldes (escritor de quem Roberto Arlt foi secretário e amigo), quando buscava editores para a publicação do romance, que ocorreria em 1926. Ao contrário das traduções anteriores do romance para diversas línguas (inclusive da primeira tradução para o português, O Brinquedo Raivoso, realizada por Maria Paula Gurgel Ribeiro para a editora Iluminuras, em 2013), Diniz opta por retomar o título original da obra, o que justifica em seu posfácio por considerar que o uso de um título “menos cético”, como sugerido por Güiraldes, realiza o apagamento do caráter grotesco marcante nas obras de Arlt, prejudicando a estrutura moderna adotada pelo autor (p. 225-226). Para a prefaciadora, no entanto, a escolha apontada se resolve de forma satisfatória, em consonância com a ideia de equivalência de ambos os títulos, exposta pelo próprio Güiraldes (p. 9-10).

Ainda em relação às escolhas tradutórias, Frenkel pontua, na introdução do volume que “aquele que traduz Roberto Arlt está, também, condenado a escrever mal” (p. 8). De fato, a associação do “bem traduzir” às práticas canônicas de pontuação, sintaxe e léxico não resultaria em outra coisa que não um apagamento de Roberto Arlt na obra traduzida. O autor, que por muito tempo permaneceu estigmatizado por escrever “mal”, ou em descompasso com as normas, o fazia consciente e metodicamente, sendo sua escrita peculiar um dos pilares de seu fazer literário. Assim, não restaria outra alternativa ao tradutor de Arlt que não a busca pelo estranhamento causado pelas “incorreções” de escrita, ou seja, travar, em seu próprio idioma, a mesma peleja com a normatização que o autor enfrentou, por vezes, alargando e enriquecendo o registro de seu sistema literário.

O tradutor, em seu posfácio, privilegia o panorama crítico da obra, em detrimento de comentários sobre a tradução. Realiza uma esmerada contextualização histórica e social do romance arltiano em seu sistema literário, delineando o caminho percorrido desde a fundação da literatura nacional até o surgimento da obra, dando especial atenção à construção dos cenários e vozes retratados no percurso, tendo como pano de fundo a construção da modernidade argentina. Entretanto, quando passa a tratar de questões práticas tradutórias, não define claramente seu projeto tradutório. Diniz, em sintonia com a prefaciadora Eleonora Frenkel, reconhece que a tarefa do tradutor arltiano é marcada pela renúncia à tentação de normatizar “imprecisões” do original. Assim, declara a intenção de abrir-se à multiplicidade de vozes presentes, sem, no entanto, entrar em detalhes. De todo modo, Diniz aborda os pontos que considera fundamentais para a abordagem do original, preocupando-se com a manutenção da “dicção suja e abrasiva” característica do escritor portenho, em sua opinião. Para levar a cabo esse intento, julga necessário enfrentar questões como as do lunfardo, da pontuação e sintaxe arltianas e de sua rítmica, aproximada em uma arguta comparação com aquela empregada pelos bandoneonistas suburbanos da Buenos Aires da época.

Com relação ao léxico, Diniz relata que procurou “não neutralizar o estranhamento dos diálogos originais”, trabalhando o linguajar popular. Ao invés de balizar-se por algum falar específico do português brasileiro, porém (cabe observar que a maioria das traduções brasileiras da obra de Arlt costuma buscar aproximações com o falar paulistano, por considerar que sua formação similar à do falar portenho), o tradutor realiza a tentativa de “adaptar o português brasileiro àquelas camadas linguísticas do espanhol argentino” (p. 238), buscando salvaguardar o estranhamento do original. Ao considerar equivocada a pretensão de se utilizar um falar brasileiro específico, o tradutor procura operar de forma generalista, o que, no texto traduzido se reflete na utilização de expressões contemporâneas ou relativamente recentes, como “vermes fardados” (p.43) e “fuzuê” (p. 116), por exemplo, ao lado de outras aparentemente de registro mais antigo, como “auê” (p. 67), “xilindró” (p. 67) e “biruta” (p. 144). Completam o panorama vocábulos de uso não tão estendido, como “birosca” (p. 25) e “caô” (p. 47), e algumas expressões chulas, como “cagando e andando” (p. 34) e “virar um peido” (p. 178). É certo que a utilização de tais marcadores, por um lado, pode evitar uma tentativa preciosista de localização espacial e temporal, mas, por outro lado, incorre-se no risco de descontextualizar a obra, não procurando aproximar o leitor do arrabal portenho dos anos 20.

Pode-se dizer que é certa, também, a impossibilidade de evitar apagamentos em relação ao original. Dessa forma, palavras em verse – uma modalidade do lunfardo que consiste em alterar a ordem das sílabas na palavra, visando à criação de um vocabulário hermético, acessível apenas aos iniciados – previsivelmente gerarão perdas tradutórias, visto que, apesar de factível, não é artifício corrente em português brasileiro, causando um estranhamento distinto daquele presente no texto de partida1 1 A esse respeito, Maria Paula Gurgel Ribeiro, tradutora brasileira de Arlt, faz considerações interessantes em sua dissertação de Mestrado, Tradução de Aguafuertes Porteñas, de Roberto Arlt (2001:72). . Por outro lado, o apagamento de marcadores culturais, como o vocábulo “sainete” (substituído por “ópera bufa”, p. 33), por exemplo, seria evitável através do uso de nota de tradução, costumeiramente sendo prerrogativa do editor se valer ou não desse recurso.

Com relação ao emprego de tais notas, deve-se observar que nem sempre se mostrarão produtivas ou pertinentes, correndo o risco de configurarem, ao invés de apoio, em entrave à leitura. No entanto, por diversas vezes, elas se sobressaem como ferramenta útil ao tradutor, seja para contextualização de elementos desconhecidos do leitor, seja para observações estético-literárias que enriquecem a leitura. Nesse sentido, Diniz maneja habilmente o recurso, evitando seu uso excessivo, ao mesmo tempo em que não hesita em lançar mão dele quando considera produtivo. Aa nota sobre a expressão “cielo raso” (p.56) pode ser tomada como exemplo disso: ao deparar-se com expressão sem correspondência na língua de chegada, mas que não possui apenas função referencial, operando também no plano estético, o tradutor apresenta sua correspondência mais imediata como opção tradutória, reservando para a nota de rodapé as explicações que buscam resgatar o aspecto teleológico da importância dos livros e das bibliotecas gerado pela metáfora arltiana.

Outro aspecto relevante são os versos citados, que são tratados de maneira não-uniforme: uma canção entoada por um bêbado, no primeiro capítulo (p. 61), ou o canto de roda de algumas crianças (p. 73-74) são mantidos no original, enquanto os versos de um jovem no capítulo seguinte são traduzidos, sem menção ao original. Já alguns versos de tango entoados pelo personagem Manco, no terceiro capítulo, são mantidos no original (p. 173; p. 176), acompanhados de nota de tradução. Finalmente, alguns versos de As flores do mal, declamados pelo protagonista (p. 58-59), mereceram tradução, além de nota em que consta o original em francês e a tradução livre de Arlt – versão efetivamente publicada nas edições argentinas da obra2 2 Sempre que citado cotejo com a obra em espanhol, trata-se da edição de El Juguete Rabioso organizada por Ricardo Piglia (Espasa Calpe: Buenos Aires, 1993). . Tal cuidado oportuniza uma digressão do tradutor, relacionando o ato tradutório de Arlt a sua obra, na qual o processo de tradução livre estaria calcado em seu projeto literário, algo que talvez pudesse ser mais bem aproveitado no posfácio. Note-se, ainda nesse sentido, que tal observação, em conjunto com a considerável quantidade de ocorrências de versos observada, parece ir ao encontro da comparação proposta por Diniz entre a narração arltiana e o bandoneon suburbano, retomada ainda pela arte de capa da edição.

Além dos itens explorados, pode-se dizer que o tradutor, na maior parte da narrativa, busca uma aproximação através da tradução literal direta, visando à recriação da sintaxe do autor. Tal estratégia, como é sabido, pode muitas vezes redundar em texto em que ressoam ecos da língua de partida, procedimento defendido por alguns teóricos da tradução. Tais ocorrências, no entanto, podem ser consideradas desprezíveis na obra, seja por não interferirem demasiado no desenvolvimento do enredo, seja por cumprirem, na língua de chegada, certa torção sintática semelhante à presente na obra de Arlt em espanhol.

Por fim, deve-se observar que o “estranhamento” buscado e defendido por Diniz opera no plano literário e é fundado no projeto literário arltiano, não havendo que se confundir com a mera incorreção. Assim, o esmero editorial de proporcionar paratextos de qualidade e conteúdo valioso não encontrou paralelo na revisão, havendo supressão de caracteres ou incorreções de grafia. Em alguns momentos, é possível observar omissões, que em alguns momentos atingem uma fala, em outros atingem parágrafos inteiros. Tais omissões, por vezes, apenas causam quebra do ritmo de leitura. Em outras, porém, alteram o sentido do texto. Ressalte-se, no entanto, que, os problemas apontados são menores, e por isso mesmo sanáveis em futuras reedições. Apesar desses problemas, A Vida Porca representa um importante acréscimo à bibliografia arltiana disponível para o leitor brasileiro.

  • 1
    A esse respeito, Maria Paula Gurgel Ribeiro, tradutora brasileira de Arlt, faz considerações interessantes em sua dissertação de Mestrado, Tradução de Aguafuertes Porteñas, de Roberto Arlt (2001:72).
  • 2
    Sempre que citado cotejo com a obra em espanhol, trata-se da edição de El Juguete Rabioso organizada por Ricardo Piglia (Espasa Calpe: Buenos Aires, 1993).

Referências

  • ARLT, Roberto. El Juguete Rabioso Buenos Aires: Espasa Calpe, 1993.
  • ______. O Brinquedo Raivoso Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: Iluminuras, 2013. 160 p.
  • ______. A Vida Porca Tradução de Davidson de Oliveira Diniz. Belo Horizonte: Relicário, 2014. 256p.
  • FRENKEL, Eleonora. Escrever mal: traduzir mal. Prefácio. In: A Vida Porca Tradução de Davidson de Oliveira Diniz. Belo Horizonte: Relicário, 2014. p. 6-19.
  • RIBEIRO, Maria Paula Gurgel. Tradução de Aguafuertes Porteñas, de Roberto Arlt 2001. 360 p. Dissertação (Mestrado em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana). Universidade de São Paulo, São Paulo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    18 Ago 2017
  • Aceito
    01 Out 2017
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