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ANÁLISE DE ELEMENTOS PARATEXTUAIS NAS TRADUÇÕES DE GUIMARÃES ROSA PARA O INGLÊS

ANALYSIS OF PARATEXTUAL ELEMENTS IN GUIMARÃES ROSA’S TRANSLATIONS INTO ENGLISH

Resumo

O paratexto, como definido por Genette (2009), é uma das formas pelas quais o texto se apresenta como livro para o leitor. Estendendo o conceito à tradução, temos ainda, como coloca Pellatt (2013), mais uma camada de interpretação, formada pelos elementos que moldarão a recepção do texto estrangeiro pelo leitor, como prefácios e notas introdutórias. Neste artigo1 1 Este artigo apresenta parte dos resultados da pesquisa desenvolvida em Oliveira (2021). , apresentamos uma análise de elementos paratextuais selecionados das obras de Guimarães Rosa traduzidas para o inglês, como capa, contracapa, orelhas, prefácio e introdução, compreendendo o período de 1963 a 2020. A partir desta análise, tornam-se evidentes como estereótipos sobre a literatura brasileira e o Brasil e até mesmo o interesse dedicado a esta literatura são refletidos nos elementos analisados, assim como sua evolução em traduções mais recentes.

Palavras-chave
Guimarães Rosa; Paratexto; Tradução; Literatura brasileira traduzida

Abstract

Paratext, as defined by Genette (2009), is one of the ways in which the text presents itself as a book to the reader. Extending this concept to translation, we also have, as Pellatt (2013) argues, another layer of interpretation, formed by the elements that will shape the reader’s reception of the foreign text, such as prefaces and introductory notes. In this paper, we present an analysis of selected paratextual elements of Guimarães Rosa’s works translated into English, such as cover, back cover, flaps, preface, and introduction, comprising the period from 1963 to 2020. From such analysis, it becomes evident how stereotypes about Brazilian literature and Brazil and even the interest devoted to this literature are reflected in the analyzed elements, as well as their evolution in more recent translations.

Keywords
Guimarães Rosa; Paratext; Translation; Brazilian Literature in Translation

A obra de Guimarães Rosa é exaltada no Brasil pela forma como o autor parece criar regras que separam seu trabalho de outros que vivenciaram o mesmo período na literatura brasileira. O caráter não convencional da sua obra se manifesta na intimidade que o autor tem com a língua portuguesa, sendo capaz de levá-la ao seu extremo com a criação e uso de neologismos, dialetos regionais, arcaísmos, estrangeirismos em um texto com sonoridade e ritmos bem planejados.

O autor chega ao público leitor anglófono ao ser traduzido pela primeira vez por Harriet de Onís ao final dos anos 1950, quando a tradutora, “impressionada pelo enredo e pelo estilo do autor, [...] começa a escrever para Rosa, em uma correspondência que duraria até 1966” (Oliveira & Freitas, 2019Oliveira, Kamila Moreira de. Guimarães Rosa retraduzido: aspectos da mitologia indígena nas traduções de “Meu tio o Iauaretê” para a língua inglesa. 2021. 89 f. Dissertação (Mestrado em Estudos da Tradução) – Centro de Humanidades, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2021., p. 355). A publicação da tradução do conto “Duelo” (“Duel”) acontece em 1960 na revista Noonday. A maior parte das traduções de Rosa para o inglês acontece na década de 1960, a encerrando com a publicação da tradução de Primeiras estórias (The Third Bank of the River and Other Stories, em 1968), e o autor só voltaria a ter alguns contos traduzidos após um hiato de quase trinta anos.

Durante sua vida, Rosa comunicou-se intensamente com alguns de seus tradutores, uma vantagem, por assim dizer, não tão comum no processo tradutório. Mesmo por vezes não se sentindo tão seguro com o próprio conhecimento da língua inglesa, Rosa procurava garantir ao leitor anglófono uma experiência de leitura similar à dos leitores brasileiros, como orienta em uma das cartas para Harriet de Onís, em 1964:

[...] a Senhora poderá retrabalhar certas passagens, preocupando-se só com o texto em inglês em si, sua música, ritmo, força expressiva. Creio que não devemos temer um pouco de ousadia, de impregnação do texto inglês pelas esquisitices do texto português.

(Verlangieri, 1993Verlangieri, Iná Valéria Rodrigues. J. Guimarães Rosa – Correspondência inédita com a tradutora norte-americana Harriet de Onís. 1993. 357 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 1993., p. 264).

No entanto, o contexto da tradução, publicação e recepção destas obras passa por uma série de influências que não se resumem somente ao conhecimento da língua portuguesa por parte dos tradutores, ou da qualidade da tradução em si. Entram em cena ainda o contexto político da relação entre Brasil e Estados Unidos, as exigências do mercado editorial, entre outros fatores. A fim de discutir um aspecto da recepção destas traduções em particular, neste artigo consideraremos o conceito de paratexto como descrito por Genette (2009)Genette, Gérard. Paratextos editoriais. Tradução de Álvaro Faleiros. Cotia: Ateliê Editorial, 2009., aplicado especificamente à tradução.

Nesse sentido, podemos considerar que um dos modos de apresentar o texto e buscar moldar ao menos parte de sua recepção é feita por meio do seu paratexto, definido como “aquilo por meio de que um texto se torna livro e se propõe como tal a seus leitores, e de maneira mais geral ao público” (Genette, 2009Genette, Gérard. Paratextos editoriais. Tradução de Álvaro Faleiros. Cotia: Ateliê Editorial, 2009., p. 9). Por sua vez, ao distinguir a análise do paratexto de livros traduzidos àquela de obras originais, Carneiro (2015, p. 114)Carneiro, Teresa Dias. “Proposta de parâmetros para análise de paratextos de livros traduzidos”. Tradução em Revista, 19, p. 133-127, 2015. DOI: https://doi.org/10.17771/PUCRio.TradRev.25577
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destaca elementos como “o prefácio do tradutor e a posição do nome do tradutor na publicação”, enfatizando ainda que o destaque maior ou menor do tradutor na capa depende de sua notoriedade, seja ela acadêmica ou autoral.

Tradutores-escritores recebem bem mais destaque na capa do que os tradutores profissionais não escritores, ou mesmo tradutores acadêmicos. No caso dos tradutores-escritores, o profissional empresta uma identidade e uma fama em destaque a serviço do livro, para fins midiáticos. Em suma, o destaque do nome do tradutor-escritor famoso ajuda a vender o livro, sendo do interesse dos editores que ele apareça.

(Carneiro, 2015Carneiro, Teresa Dias. “Proposta de parâmetros para análise de paratextos de livros traduzidos”. Tradução em Revista, 19, p. 133-127, 2015. DOI: https://doi.org/10.17771/PUCRio.TradRev.25577
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, p. 116).

Ainda de acordo com a autora, “o leitor em primeiro lugar é atraído pelos dizeres da capa, quarta capa e orelhas, nesta ordem” (Carneiro, 2015Carneiro, Teresa Dias. “Proposta de parâmetros para análise de paratextos de livros traduzidos”. Tradução em Revista, 19, p. 133-127, 2015. DOI: https://doi.org/10.17771/PUCRio.TradRev.25577
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, p. 117). Em uma breve análise destes elementos paratextuais, portanto, é possível perceber como os autores são apresentados ao público leitor anglófono em cada iniciativa de tradução. Desse modo, consideramos como elemento paratextual as capas, contracapas e orelhas de obras selecionadas de Guimarães Rosa traduzidas para o inglês, assim como as notas introdutórias e prefácios incluídos nas obras, em consonância com os elementos propostos por Carneiro (2015)Carneiro, Teresa Dias. “Proposta de parâmetros para análise de paratextos de livros traduzidos”. Tradução em Revista, 19, p. 133-127, 2015. DOI: https://doi.org/10.17771/PUCRio.TradRev.25577
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para a análise de elementos paratextuais de livros traduzidos.

Paratextos roseanos

Grande sertão: veredas é a primeira obra completa de Guimarães Rosa traduzida para o inglês. A tradução, realizada por James L. Taylor e Harriet de Onís, é publicada em 1963 pela editora Alfred Knopf, responsável também pela publicação de autores como Jorge Amado e Gilberto Freyre pela primeira vez nos Estados Unidos.

Figura 1
Capa e contracapa de The Devil to Pay in the Backlands (1963)

A partir da capa e contracapa de The Devil to Pay in the Backlands podemos depreender que a editora Knopf de fato investiu na imagem do autor ao tentar lançá-lo para o público. A capa é a mesma utilizada desde a primeira edição original em português, com as ilustrações de Poty, e a foto do autor na contracapa, em destaque, é creditada ao próprio Alfred Knopf. O editor também assina a orelha do livro, que conta com uma apresentação da obra, em que cita o prefácio de Jorge Amado e o fato de que a obra de Rosa também está sendo publicada na França e na Alemanha. Consta ainda na orelha uma biografia atualizada do autor. Percebe-se ainda que o nome do autor vem em destaque, sem menção aos tradutores, que só serão mencionados na folha de rosto.

Para além da capa, elementos como prefácio e introdução, “preparam o leitor, que se lançará no primeiro capítulo com um conjunto de expectativas controladas ou pelo menos guiadas pelo escritor da introdução” (Pellatt, 2013Pellatt, Valerie (Ed.). Text, Extratext, Metatext and Paratext in Translation. Cambridge: Cambridge Scholars Publishing, 2013., p. 3, tradução nossa). No caso da tradução, existe ainda mais uma camada a ser levada em consideração, pois “a introdução ou prefácio pode moldar a leitura intercultural do texto consideravelmente”2 2 “[…] they prime the reader, who will set about the first chapter with a set of expectations controlled or at least guided by the writer of the introduction. In the case of a translated work, the introduction or preface may shape the intercultural reading of the text very substantially.” (Pellatt, 2013, p. 3). (Pellatt, 2013Pellatt, Valerie (Ed.). Text, Extratext, Metatext and Paratext in Translation. Cambridge: Cambridge Scholars Publishing, 2013., p. 3, tradução nossa). No caso de The Devil to Pay in the Backlands, Jorge Amado parecia ser a melhor opção de autor para o prefácio, devido ao sucesso da publicação de Gabriela, Clove and Cinammon apenas um ano antes.

Três anos depois, a tradução de Sagarana é publicada precedida por uma introdução escrita por Franklin de Oliveira, intitulada “The Epigraphs in Sagarana”. Diferente do prefácio de Jorge Amado, “The Place of Guimarães Rosa in Brazilian Literature”, o objetivo da introdução de Franklin de Oliveira já não é apresentar o autor e dar referências do seu trabalho para um público que entra em contato com Rosa pela primeira vez, mas sim comentar mais especificamente o uso de epígrafes na obra. O livro também traz uma nota da tradutora, Harriet de Onís, em que ela comenta brevemente como conheceu Rosa e menciona como a tradução de Sagarana não foi fácil, dependendo de comunicação constante com o autor. A nota sobre o autor, ao final do livro, é atualizada com os novos idiomas para os quais Rosa já foi ou estava sendo traduzido (naquele momento, francês, alemão, italiano, norueguês e sueco, além traduções anunciadas para a então Tchecoslováquia, Dinamarca, Finlândia, Holanda e Espanha).

Figura 2
Capa e contracapa de Sagarana (1966)

As diferenças de paratexto mais marcantes na tradução de Sagarana, no entanto, podem ser vistas logo na capa e contracapa (Figura 2). Distanciando-se totalmente de The Devil to Pay in the Backlands, que apenas adaptara a capa original, Sagarana – A Cycle of Stories apresenta um projeto gráfico mais moderno, assinado por Adelson & Eichinger. A contracapa ainda traz o autor em destaque, a cavalo no sertão, apresentando uma imagem totalmente oposta àquela em que está de terno, no livro anterior, imagem que o coloca em posição mais exótica aos olhos do leitor estrangeiro do que a anterior. O texto na contracapa é igual à nota sobre o autor no interior do livro, e o nome da tradutora, Harriet de Onís, mais uma vez aparecerá somente na folha de rosto, embora dessa vez tenha sido incluída também a nota da tradutora após a introdução.

Figura 3
Capa e contracapa de The Third Bank of the River and Other Stories (1968)

The Third Bank of the River and Other Stories, última obra de Rosa a ser publicada pela Knopf, volta a apresentar ilustrações com elementos regionais do sertão, dessa vez assinada por David Holzman (Figura 3). O diferencial dessa obra, em termos de paratexto, começa no original: cada conto de Primeiras estórias recebeu uma ilustração horizontal de Poty no sumário3 3 Rosa voltaria a brincar com seu próprio paratexto em Tutameia, onde apresenta um novo sumário “de releitura” ao final do livro, definindo então seus quatro prefácios e uma nova ordem de leitura. . Em The Third Bank of the River and Other Stories, a ordem dos contos foi alterada, mas o sumário foi adaptado e as ilustrações foram mantidas nas orelhas do livro (Figura 4).

Figura 4
Ilustrações de Poty em The Third Bank of the River and Other Stories

Em The Third Bank of the River and Other Stories, o nome da tradutora aparece pela primeira vez na capa do livro, com a informação “Translated from the Portuguese and with an introduction by Barbara Shelby”. Embora essa informação não aparecesse em traduções anteriores de Rosa, em entrevista a Cary Roberts, Shelby comenta que Alfred Knopf compreendia como o tradutor pode se tornar o intérprete mais qualificado de um autor, e “era um dos poucos editores [...] que colocava o nome dos tradutores na capa e na folha de guarda dos livros”4 4 “Alfred Knopf understood that and was one of the few publishers to put the translator’s name on the cover of the book as well as the flyleaf.” (Roberts, 1999, p. 17). (Roberts, 1999Roberts, Cary L. “Barbara Shelby Merello: A Translator’s Life in Letters”. The Texas Writer. 1(1), p. 15-20, 1999. Disponível em: http://kinemage.biochem.duke.edu/barbara/Merello_TXwriter. Acesso em: 7 jun. 2021.
http://kinemage.biochem.duke.edu/barbara...
, p. 17, tradução nossa). Além disso, após o texto sobre o autor na contracapa – atualizado com a informação da sua morte e sua recente entrada na Academia Brasileira de Letras – há ainda um parágrafo curto sobre a tradutora, destacando suas traduções de Jorge Amado, Gilberto Freyre e Guimarães Rosa. É importante ressaltar, no entanto, que a introdução “por Barbara Shelby”, na verdade, foi escrita pela mãe da tradutora.

Barbara Shelby não chegou a ler nenhum dos outros livros de Guimarães Rosa, apenas algumas partes de Grande sertão: veredas. Também por isso, ela afirma haver pedido à mãe que escrevesse o prefácio da obra porque, segundo ela, a mãe sabia muito mais de literatura do que ela mesma e havia adorado Primeiras estórias.

(Liporaci, 2013Liporaci, Vanessa Chiconeli. Um estudo da tradução de Primeiras Estórias para o inglês. 2013. 238 f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2013. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/154629. Acesso em: 20 ago. 2020.
http://hdl.handle.net/11449/154629...
, p. 88).

Na introdução de Masterworks of Latin American Short Fiction, antologia na qual “My Uncle, the Jaguar” foi publicado, Ilan Stavans não faz alusão ao tradutor, mas comenta como Guimarães Rosa parecia ter nascido no “no lugar errado”.

O fato de ele ser do Brasil, que, embora seja o maior e mais populoso de todos os países da América Latina, também é linguística e culturalmente isolado, obscurece seu trabalho, que é dedicado a explorar as complexidades humanas do sertão.5 5 “The fact that he comes from Brazil, which, while being the largest and most populated of all Latin American countries, is also linguistically and culturally isolated, has obscured his work, which is devoted to exploring the human complexities of sertão.” (Stavans, 1996, p. xviii).

(Stavans, 1996Stavans, Ilan. “Introduction by Ilan Stavans”. In: Canfield, Cass (Ed.). Masterworks of Latin American Short Fiction. New York: Westview Press, 1996. p. ix-xxii., p. xviii, tradução nossa).

A nota sobre o autor ao final da antologia, curiosamente, traz várias datas erradas na sua biografia. O texto situa a publicação de Sagarana em inglês em 1938, que na verdade é o ano em que a primeira versão do livro, ainda intitulado Contos, foi inscrita no Concurso Humberto de Campos. A nota ainda afirma haver duas outras traduções para o inglês: The Third Bank of the River [sic], em 1962 – na verdade, ano da publicação do original em português – e Tutameia, em 1967, sendo que este último nunca foi traduzido. A nota de direitos autorais também contém alguns erros de grafia, atribuindo os créditos do conto original a “Livraria Jose Olympia Editoria” [sic].

A nosso ver, o que o conjunto do paratexto das obras de Rosa até então nos revela é uma certa indiferença a autores que se afastam do exotismo idealizado para o Brasil na época, a exemplo do próprio Jorge Amado e Gabriela, cravo e canela. De fato, os sertanejos com preocupações metafísicas de Rosa não agradaram imediatamente o público leitor, mas possivelmente muito mais por não serem um tema esperado da imagem do Brasil do que por serem “complexos demais”. A série de erros biográficos constatada em uma antologia relativamente recente ainda é mais um exemplo desse despreparo. A mudança de ponto de vista em relação ao Brasil nas últimas duas décadas, no entanto, parece também ter afetado a recepção crítica de Rosa e permitido novos olhares sobre o autor.

Essa mudança de perspectiva pode ser percebida a partir da publicação da antologia compilada e traduzida por David Treece, em 2001. A primeira impressão de The Jaguar and Other Stories, como o título sugere, coloca em evidência na capa a onça do conto homônimo (Figura 5).

Figura 5
Capa de The Jaguar and Other Stories (2001)

Essa é também a primeira vez, nas traduções de Rosa, em que trechos de críticas positivas fazem parte da capa: “profundamente subversivo”, segundo o Guide to Modern World Literature, e “uma das mais extraordinárias criações artísticas da literatura latino-americana no século XX”, segundo a Encyclopaedia of Contemporary Latin American Culture. Nota-se que o nome do tradutor não está presente na capa. Por outro lado, Treece se faz presente na seção sobre o autor ao final da obra, assim como no projeto do livro como um todo, considerando que também atua, neste caso, como antologista.

Britto (2016)Britto, Paulo Henriques. “O tradutor como antologista”. In: Torres, Marie-Hélène Catherine; Freitas, Luana Ferreira de & Costa, Walter Carlos (Org.). Literatura traduzida: antologias, coletâneas e coleções. Fortaleza: Substânsia, 2016. p. 23-36. discute a questão do tradutor como antologista especialmente em relação à tradução de poesia, embora note que em certos casos essa atuação também se estenda a produção de contistas. Segundo ele, portanto, o que é selecionado para a tradução passa a ser considerado então “não como representando a obra do poeta [ou, no caso, contista] traduzido, e sim, metonimicamente, como sendo a própria obra” (Britto, 2016Britto, Paulo Henriques. “O tradutor como antologista”. In: Torres, Marie-Hélène Catherine; Freitas, Luana Ferreira de & Costa, Walter Carlos (Org.). Literatura traduzida: antologias, coletâneas e coleções. Fortaleza: Substânsia, 2016. p. 23-36. , p. 25). A antologia compilada por Treece não é a primeira tradução de Rosa para o inglês mas, se considerarmos aqui tanto o grande hiato entre uma tradução e outra quanto a seleção de contos, ela traz uma certa mudança na imagem do autor. Consideremos, por exemplo, que o conto que mais foi incluído em antologias de Rosa até o momento é “The Third Bank of the River”6 6 Este é, também, o conto mais traduzido de Rosa, tendo sido traduzido por Barbara Shelby, William Grossman e David Treece. , a insólita história do pescador que decide deixar a família para viver entre as duas margens do rio. A característica mais marcante de Rosa que chega ao século XXI em inglês, se considerarmos o autor como sendo o conjunto de sua obra, é, de fato, o aspecto metafísico de sua obra. Ou, como Treece coloca, Rosa é um autor cujo tema é a “jornada de desafio e descoberta da vida, a jornada existencial para a solidão, alienação e loucura, e a jornada em direção ao mistério da morte”7 7 “[…] a writer whose perennial theme is the journey – life’s journey of challenge and discovery, the existential journey into solitude, alienation and madness, and the journey towards the mystery of death […].” (Treece, 2008, p. 178-179). (Treece, 2008Treece, David. “About the author”. In: Rosa, João Guimarães. The Jaguar and Other Stories. Translated by David Treece. Oxford: Boulevard Books, 2008. p. 175-183., p. 178-179, tradução nossa).

No posfácio “About the author”, assinado por David Treece, o tradutor apresenta alguns fatos da vida de Rosa, além de comentar alguns dos contos traduzidos, indicando também o que talvez se possa considerar como parte da razão para esses contos em particular terem sido escolhidos para comporem a antologia:

[...] no coração de todas essas histórias, e da extraordinária prosa-poesia em que estão escritas, está um princípio fundamental e unificador: o limite, a fronteira, o entre-lugar – a “terceira margem” do rio – onde destinos, relações, identidades e palavras existem em um estado de fluxo incessante.8 8 “[…] at the heart of all these stories, and of the extraordinary prose-poetry in which they are written, is a fundamental, unifying principle: the frontier, the borderland, the between-place – the ‘third bank’ of the river – where destinies, relationships, identities and words all exist in an endless state of flux.” (Treece, 2008, p. 176).

(Treece, 2008Treece, David. “About the author”. In: Rosa, João Guimarães. The Jaguar and Other Stories. Translated by David Treece. Oxford: Boulevard Books, 2008. p. 175-183., p. 176, tradução nossa).

Assim como as cartas trocadas entre Rosa e de Onís, os comentários de Treece neste texto de acompanhamento da obra e seus artigos sobre o assunto também fornecem um material valioso para a análise de seu projeto de tradução, dessa vez com a importante diferença de não haver mais a mediação direta com o autor.

Quanto a sua publicação, The Jaguar and Other Stories foi editado com apoio da Lei de Incentivo à Cultura do Ministério da Cultura, FAAP e Brasil 500, e foi reimpresso em 2008, com alguns novos elementos significativos. A ilustração da capa, assinada por Mary Pierce, passa a trazer elementos de outros contos além de The Jaguar, com um mapa do Brasil como plano de fundo (Figura 6). Na contracapa, temos o logotipo do Governo Federal do Brasil, e no verso da folha de rosto consta a informação “This reprint was supported by the Ministry of External Relations of Brazil as part of the commemoration of the centenary of the author in 2008”. Trata-se, portanto, de uma reimpressão que remete bem mais à identidade brasileira da obra, embora não necessariamente por meio de estereótipos.

Figura 6
Capa da reimpressão de The Jaguar and Other Stories (2008)

Um trecho da crítica de Ilan Stavans no Times Literary Suplement é destacado na capa (“O maior escritor do Brasil no século XX”). Um parágrafo mais longo da mesma crítica é citado na contracapa:

O livro traz “The Third Bank of the River”, um conto frequentemente reimpresso sobre um pai que parte à deriva em uma canoa, e o extraordinário “Soroco, his Mother, his Daughter”… As demais escolhas de Treece chegam a nós pela primeira vez, entre elas; “The Mirror”, um tour de force da descrição da desintregação do eu, e “Treetops”, sobre o poder redentor de um tucano, que por si só vale o preço do volume... Essa miscelânea é encantadora. Treece… deve ser aplaudido por seu esforço em trazer o centrífugo poliglota Guimarães Rosa de volta do esquecimento.9 9 The volume includes “The Third Bank of the River”, an often reprinted tale about a departing father adrift in a canoe, and the extraordinary “Soroco, his Mother, his Daughter”... The rest of Treece’s choices come to us for the first time, among them; “The Mirror,” a tour de force of description of the disintegration of the self, and “Treetops”, about the redemptive power of a toucan, which is alone worth the price of the volume… This miscellany is enchanting. Treece… ought to be applauded for his effort to bring the polyglot, centrifugal Guimarães Rosa back from oblivion. (“Ivan Stavans in the Times Literary Supplement”, tradução nossa).

(“Ivan Stavans in the Times Literary Supplement”, tradução nossa).

Em 2020, a editora canadense Orbis Tertius publicou uma reimpressão da tradução de Barbara Shelby de The Third Bank of the River and Other Stories, em formato paperback, alterando a ordem dos contos de volta para aquela pretendida pelo autor (Figura 7). Esta edição segue atribuindo a introdução à tradutora, creditada como Barbara Shelby Merello.

Figura 7
Capa e contracapa da reimpressão de The Third Bank of the River and Other Stories (2020)

Após a análise desses elementos, observamos que as iniciativas de retradução e reimpressão de Rosa a partir de 2000 apresentam menos estereótipos do que as primeiras traduções, corroborando a conclusão de que a imagem do Brasil, e por extensão da sua literatura, passa por momentos distintos no exterior. Vale ressaltar, também, que essas iniciativas mais recentes realizadas até então partiram de editoras de pequeno porte e, no caso de The Jaguar and Other Stories e da nova tradução de Grande sertão: veredas, com apoio do governo federal brasileiro ou de ações culturais privadas brasileiras.

Considerações finais

O principal atrativo de um leitor desavisado em uma biblioteca ou livraria são os elementos paratextuais, em particular capa, contracapa e orelhas. Elas fornecem as primeiras informações que farão o leitor decidir abrir ou não aquele livro. É também por meio desses paratextos que se pode ter uma visão de como o mercado enxerga o autor.

No caso de Guimarães Rosa, fica claro o despreparo para lidar com um autor que fugia do estereótipo atribuído às obras brasileiras, especialmente durante os anos 1960, onde ocorreram a maioria de suas traduções. Nas obras desse período, percebe-se uma tentativa de colocar Rosa nesse papel exótico, como quando se utiliza uma fotografia sua a cavalo na contracapa de Sagarana em 1966, ou o comentário sobre o autor ter nascido no lugar errado feito por Ilan Stavans em Masterworks of Latin American Short Fiction. As traduções mais recentes se mostram menos estereotipadas, trazendo imagens mais neutras e um maior cuidado com as informações sobre autor, tradutor e críticas.

O incentivo à publicação destas obras também se diferencia nos diferentes períodos de tradução. As obras de Guimarães Rosa estavam, de certa forma, inseridas no contexto do incentivo para publicação de obras latino-americanas nos Estados Unidos na década de 1960, mas gradualmente deixam de circular e passam um período de tempo considerável sem uma nova tradução. Nos anos 2000, os incentivos, desta vez do próprio governo brasileiro, geram novas traduções em um novo contexto político. Constantemente revisitado enquanto autor canônico brasileiro, Guimarães Rosa segue agora com a promessa de uma nova tradução para o inglês de Grande sertão: veredas a ser lançada, com tradução da australiana Alison Entrekin. Com as novas traduções, novos paratextos serão adicionados a sua obra e estudados, ajudando assim na difusão e circulação do conhecimento acerca deste autor, sua literatura e sua recepção fora do Brasil.

  • 1
    Este artigo apresenta parte dos resultados da pesquisa desenvolvida em Oliveira (2021)Oliveira, Kamila Moreira de. Guimarães Rosa retraduzido: aspectos da mitologia indígena nas traduções de “Meu tio o Iauaretê” para a língua inglesa. 2021. 89 f. Dissertação (Mestrado em Estudos da Tradução) – Centro de Humanidades, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2021..
  • 2
    “[…] they prime the reader, who will set about the first chapter with a set of expectations controlled or at least guided by the writer of the introduction. In the case of a translated work, the introduction or preface may shape the intercultural reading of the text very substantially.” (Pellatt, 2013Pellatt, Valerie (Ed.). Text, Extratext, Metatext and Paratext in Translation. Cambridge: Cambridge Scholars Publishing, 2013., p. 3).
  • 3
    Rosa voltaria a brincar com seu próprio paratexto em Tutameia, onde apresenta um novo sumário “de releitura” ao final do livro, definindo então seus quatro prefácios e uma nova ordem de leitura.
  • 4
    “Alfred Knopf understood that and was one of the few publishers to put the translator’s name on the cover of the book as well as the flyleaf.” (Roberts, 1999Roberts, Cary L. “Barbara Shelby Merello: A Translator’s Life in Letters”. The Texas Writer. 1(1), p. 15-20, 1999. Disponível em: http://kinemage.biochem.duke.edu/barbara/Merello_TXwriter. Acesso em: 7 jun. 2021.
    http://kinemage.biochem.duke.edu/barbara...
    , p. 17).
  • 5
    “The fact that he comes from Brazil, which, while being the largest and most populated of all Latin American countries, is also linguistically and culturally isolated, has obscured his work, which is devoted to exploring the human complexities of sertão.” (Stavans, 1996Stavans, Ilan. “Introduction by Ilan Stavans”. In: Canfield, Cass (Ed.). Masterworks of Latin American Short Fiction. New York: Westview Press, 1996. p. ix-xxii., p. xviii).
  • 6
    Este é, também, o conto mais traduzido de Rosa, tendo sido traduzido por Barbara Shelby, William Grossman e David Treece.
  • 7
    “[…] a writer whose perennial theme is the journey – life’s journey of challenge and discovery, the existential journey into solitude, alienation and madness, and the journey towards the mystery of death […].” (Treece, 2008Treece, David. “About the author”. In: Rosa, João Guimarães. The Jaguar and Other Stories. Translated by David Treece. Oxford: Boulevard Books, 2008. p. 175-183., p. 178-179).
  • 8
    “[…] at the heart of all these stories, and of the extraordinary prose-poetry in which they are written, is a fundamental, unifying principle: the frontier, the borderland, the between-place – the ‘third bank’ of the river – where destinies, relationships, identities and words all exist in an endless state of flux.” (Treece, 2008Treece, David. “About the author”. In: Rosa, João Guimarães. The Jaguar and Other Stories. Translated by David Treece. Oxford: Boulevard Books, 2008. p. 175-183., p. 176).
  • 9
    The volume includes “The Third Bank of the River”, an often reprinted tale about a departing father adrift in a canoe, and the extraordinary “Soroco, his Mother, his Daughter”... The rest of Treece’s choices come to us for the first time, among them; “The Mirror,” a tour de force of description of the disintegration of the self, and “Treetops”, about the redemptive power of a toucan, which is alone worth the price of the volume… This miscellany is enchanting. Treece… ought to be applauded for his effort to bring the polyglot, centrifugal Guimarães Rosa back from oblivion. (“Ivan Stavans in the Times Literary Supplement”, tradução nossa).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    18 Set 2022
  • Aceito
    12 Dez 2023
  • Publicado
    Jan 2023
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