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O NÚCLEO PIVOTANTE DA VOZ

THE PIVOTING CORE OF VOICE

Resumo

Partindo do modo de funcionamento da voz nos discursos políticos recentes no Brasil, o artigo busca mostrar como eles são corolários de características muito reconhecidas historicamente e que se ligam em torno da noção de homem cordial, tomada aqui como esse pivoteamento constante da voz entre o privado e o público, a amabilidade e a violência, em todos os casos permanecendo como o núcleo do funcionamento do poder. Essa forma de funcionamento está ligada a um certo modo de conceber a voz de Deus e sua hipóstase política, mecanismo fundante do processo colonial. No entanto, a poesia brasileira tem assumido esse pivoteamento para apontar outros modos de funcionamento da voz, não apenas na tradição europeia, como a questão da voz na Grécia, mas, para além dessa outra báscula Jerusalém-Atenas, para potencializar e traduzir poeticamente os efeitos do complexo oral canibal apontado por Viveiros de Castro a respeito do mundo ameríndio e a dinâmica entre Orfe(x)u e Exunouveau por Edmilson de Almeida Pereira sobre a literatura negra e/ ou afro-brasileira. Esses outros modos de existência da voz, colocados em variação, produzem uma nova dinâmica do espaço poético como partilha e dissenso, assumindo o pivoteamento e a variação para possibilitar a emergência de uma outra ética e outra política da voz, como também a sobrevivência dos mundos que elas colocam em jogo.

Palavras-chave
Poesia Brasileira; Voz; Variação; Tradução

Abstract

Taking as a point of departure the way voice operates in recent political speeches in Brazil, this article aims to demonstrate how they are associated with historically remarkable characteristics that converge upon the notion of cordial man, considered here as a continuous pivoting of voice between the private and the public, amiability and violence, remaining the core of the operation of power in any given case. Such an operation is connected to a certain way of conceptualizing the voice of God and its political hypostasis, a founding mechanism of the colonial process. Brazilian poetry, however, has taken on this pivoting role in order to call attention to different ways in which voice operates, not only in the European tradition - the question of voice in Greece, for instance - but, going beyond the Jerusalem-Athens spectrum, to enhance and poetically translate the effects of the cannibal oral complex highlighted by Viveiros de Castro in reference to the Amerindian world, and the dynamics between Edimilson de Almeida Pereira’s Orfe(x)u and Exunouveau, regarding black and/or Afro-Brazilian literature. When there are variations in these different modes of existence of voice, a new dynamics of poetic space as distribution and dissent appears, in a way in which pivoting and variation enable the emergence of a renewed ethics and politics of voice, as well as the survival of the worlds that they put into play.

Keywords
Brazilian Poetry; Voice; Variation; Translation

E nós?

Qual voz esteve, está ou estará à altura da necropolítica tropical

passada, presente e futura cometida por este país

contra os vários povos que habitam sua terra?

Quem cantará os outros futuros que fariam bifurcar a história?

Peter Pál Pelbart Necropolítica tropical

A ubiquidade da voz1 1 Este texto foi escrito inicialmente para uma palestra na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) a convite de Michel Riaudel e Monica Schpun, a quem agradeço a oportunidade.

Em um domingo, 21 de outubro de 2018, uma semana antes do segundo turno das eleições presidenciais, vimos uma das cenas mais espantosas da política da voz que entremeada às mídias digitais definiram uma dinâmica muito própria do seu funcionamento antes e depois do pleito. O candidato do PSL fala do celular a partir do quintal de sua casa para uma massa de pessoas que o apoiavam em uma manifestação de rua na Avenida Paulista. O contraste entre a cena familiar e a violência das palavras de ordem, o espaço externo da casa e a rua, alcançavam uma simultaneidade que acelerava e comprimia em um mesmo gesto as duas lógicas tão cantadas em verso e prosa das idiossincrasias nacionais. A cena não poderia ser mais atávica e brasileira, embora moderna e tecnológica: a partir de um espaço privado, pessoal, quase íntimo, atravessado pela suposta pureza dos lençóis que secavam ao balanço do vento e ao sol, proferia-se um discurso de uma violência paranóica atacando toda possibilidade de resistência ou alteridade do espaço público onde só cabe expulsão, exclusão, tortura, enfim, necropolítica. Os lençóis pareciam os fantasmas de um passado sem luto que retornava na ubiquidade da voz ao mesmo tempo dentro e fora do espaço público, dentro e fora da lei, isto é, um chamado à violência que sustenta a lei para autorizar tacitamente a violência sempre velada de sua instauração e do seu excesso. O lugar paradoxal da voz como um excesso que legitima a exceção. Tudo se passa como se o rei e o bobo de corte enfim se encontrassem na mesma enunciação2 2 Muitas das colocações que seguem a respeito da relação entre excesso e exceção resultam da leitura de um número notável da revista Travessia no. 5 (2005) com ensaios brilhantes sobre esse cruzamento da retomada da noção de estado de exceção por Agamben sem perder de vista a questão do excesso em Bataille e mantendo a tensão fina da singularidade de funcionamento político e poético. Como pano de fundo dessa discussão sobre a voz paira a busca de uma política do ato poético posta em perspectiva com uma poética do ato político como proposto por Fabio Roberto Lucas (2018). .

A cena não poderia ser uma demonstração mais literal do que fala Mladen Dolar em “política da voz”: o autoritarismo tem como última instância de decisão esse lugar da voz que se confunde com o próprio poder3 3 Nesse capítulo incontornável das teorias da voz (que é parte de seu livro A voice and nothing more), Dolar parte da política de Aristóteles para mostrar o quanto a diferenciação entre phoné e logos ainda está na base de dois dos maiores tratados políticos da atualidade O Dissenso de Jacques Rancière (1995) e Homo Sacer de Giorgio Agambem (2002). Ao tomar a “voz como objeto”, Dolar (2012) a situa em um lugar paradoxal entre phoné e logos, zoé e bios, corpo e linguagem em um movimento que escapa a toda tentativa de reduzir a enunciação ao enunciado e que escapa ao longo da história para se tornar uma questão decisiva na relação com a lei e a escrita em diversos contextos políticos. Muito do que falamos a respeito do “discurso para a Paulista” é corolário da análise extraordinária que ele faz do discurso de Hinkel (e sua retomada final) em O grande ditador de Chaplin, com a diferença de que no Brasil o ditador e o tradutor, a paródia e o discurso autoritário estão pateticamente colados. . Temos ao mesmo tempo a afirmação da lei e seu escamoteamento pela voz e a afirmação da voz e sua negação da lei. Num jogo perturbador de presença e ausência, a voz afirma a vontade de ordem para simultaneamente conceder uma “licença para matar”, prega um apelo ao monopólio da violência e à repressão e, no mesmo ato, uma promessa de suspensão da lei para desreprimir e autorizar implicitamente o ódio, a violência, a morte.

A cena ressoava ainda, em chave ambígua, os pronunciamentos radiofônicos de Hitler ou dos generais durante a ditadura (que contavam também com os programas televisivos). Mas a banalidade paradoxal do cruzamento entre o público e o privado, atravessado pela voz, deixava uma dinâmica clara no corpo político ao mesmo tempo afastado das ruas em suas intenções privadas e incitando a partir dali a violência no espaço público: como se o discurso ficasse entre a “oikonomia” e as armas, a economia doméstica e a domesticação econômica, no limite da impossibilidade de mediação4 4 E há ainda um uso maquínico e manipulador das redes sociais que avançam no mundo privado e das crenças como se fossem uma comunicação pessoal e o questionamento contínuo das instituições públicas por estarem corroídas pela corrupção e pelos interesses de funcionários públicos e políticos, como se a própria linguagem simplista que o aproxima das pessoas não escamoteasse uma outra partilha do privado e do público, especialmente na versão tupiniquim de um ultra parcial liberalismo econômico associado à “nova direita”. . O núcleo pivotante dessa dupla inscrição simultânea em dois espaços, dando à voz e não ao que se diz a fonte do poder, torna impossível discernir quem fala e qual o protocolo de verdade que guia sua enunciação. As frases coordenadas (praticamente sem a possibilidade de matizes e complexidades da subordinação) e o acento sempre no final das palavras (impondo a entonação autoritária sobre a própria música da língua) reforçam essa (in)diferença das duas situações de fala e o próprio lugar ambíguo da voz como fonte do poder. Como lembra Dolar, “a voz está estruturalmente na mesma posição da soberania”5 5 Claro que essa discussão, como propõe o próprio Dolar, evoca o “estado de exceção” como retomado por Agambem na esteira de Carl Schmitt, mas é importante notar que na enunciação dupla que analisamos, o ato paradoxal se realiza quando ao afirmar a lei ao mesmo tempo projeta pela voz a sombra de um fora da lei que se mantém ambíguo a tal ponto que torna impossível definir qual dos discursos está operando. Claro que isso cria um estado paranóico que nos deixa sempre em sobressalto diante da possível instauração legal de uma “excludente de ilicitude” que alargando a noção de legitima defesa daria ao exército e à polícia – ao próprio militar e ao policial - a possibilidade de agir violentamente pela “garantia da lei e da ordem” (a lei, aqui, se confunde com a moeda e o capital, demandando um exército para garanti-las). Na prática, esse funcionamento já está em operação e se desdobra em um desejo de parte da sociedade de fazer coincidir a percepção e a realidade, a economia e a sociedade, a lei e a moeda, a norma e o fato, o juiz e o político e, na ausência de qualquer debate, confundir a política e a polícia. A questão da voz se impõe pela ausência de mediação entre essas instâncias que encarnam em figuras concretas como o presidente e seus superministros. .

Para um país que até hoje tem um programa de rádio de uma hora de duração veiculando uma propaganda do governo chamado Voz do Brasil (note-se o uso do singular)6 6 Esse programa é uma continuação do Hora do Brasil lançado pela ditadura Vargas. , a cena de violência paradoxal do comício que se inclui no espaço público excluindo-se no âmbito privado, mostrava que algo se apertava na volta do parafuso da intrincada relação entre lei e voz, estado e mercado, público e privado: é como se ali tudo se jogasse junto e de uma vez, comprimindo e tornando infinitamente ambígua a possibilidade de determinação do lugar de fala.

Impossível não ver aqui, ainda, os desdobramentos do homem cordial pelo viés de Sérgio Buarque de Holanda, vez que aqui não é a palavra, mas a voz (não o enunciado, mas a cordialidade, a passionalidade implícita na enunciação) que se torna central. É como se o homem cordial estivesse para os tipos sociais como a voz está para os enunciados postos em circulação. A cordialidade aqui se confunde com o núcleo pivotante da voz do privado ao público, do religioso à política, do corpo à palavra, do mais amável ao mais violento. A voz em seus infinitos matizes guarda essa qualidade de atrelar-se à própria pessoa como locus do poder, basculando entre a amabilidade dos favores e a violência dos caprichos.

Daí o estatuto ontológico da estratégia de atrelar à lembrança da tortura esse excesso que funda a lei: trata-se de reencenar o fantasma do pai morto – “dublê de uma presença impossível” – que volta para se vingar dos filhos7 7 E é notável como os filhos do atual presidente estão a todo momento nesse espaço tenso de submissão e negação do lugar institucional do pai. na conhecida versão freudiana como repetição ritual de seu sacrifício e a “lembrança da origem impossível da lei”8 8 Neste ponto, tendo em vista os desdobramentos deste artigo, vale a pena transcrever a nota de Fabio Roberto Lucas tradutor de “A política da voz” (2014, p. 205): «Dolar se refere aqui à seção “Shofar” (p. 52-56) do capítulo 2 – “A metafísica da voz”, no qual se retoma um texto de Lacan chamado “A voz de Javé” (in: Seminário livro 10 – a angústia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005, p. 266-280). O autor esloveno então analisa o papel do shofar, instrumento de sopro usado em rituais da religião judaica: “Devemos reconhecer, no som do shofar, a voz do Pai, o lamento [cry] de morte do pai primevo da horda primordial, a sobra [leftover] que vem tanto para assombrar quanto para selar a fundação da lei. Ao ouvir essa voz, a comunidade dos crentes estabelece seu pacto [covenant], sua aliança com Deus; eles confirmam sua submissão e obediência à lei. A própria lei, em sua forma pura, antes de comandar algo especificamente, tem seu epítome na voz, a voz que comanda observância total, ainda que ela não tenha sentido em si mesma. A letra da lei adquire sua autoridade a partir dos resíduos do pai morto, de sua parte não totalmente morta, aquilo que ficou depois de sua morte e que continua a atestar sua presença – sua voz – mas também sua ausência: trata-se do dublê de uma presença impossível, envolvendo um vazio central. Ele funciona como a repetição ritual de seu sacrifício e como lembrança da origem impossível da lei, acobertando sua falta de origem” (p. 53)». . No Brasil, o que se dá a ver nesse resto nostálgico do pai morto é o fundo patriarcal da cordialidade como parte do funcionamento da nossa democracia. E a partir daí a subsunção do corpo à voz, da voz à violência direta sobre os corpos, o limite tênue que a sustenta da escravização à tortura.

Na nova cena, no entanto, nunca se sabe (não com quem, mas) quem está falando, a própria cena de fala se tornou perigosamente ambígua. Se a pessoa pública que se compromete com o que diz ou a pessoa privada que desdiz no mesmo ato a determinação que emitia. As ideias aqui estão literalmente fora do lugar e o lugar fora das ideias, girando continuamente em falso. Poder-se-ia mesmo falar de um contínuo deslizar do puro arbítrio à pura norma, da lei ao crime, da sinceridade ao cinismo, mas a característica desse ato de enunciação ganha outro relevo ao atrelar-se, ao mesmo tempo, aos dois lados.

O familiar, o espontâneo, o afetivo, o aparentemente sincero, no entanto, aqui são pura reprodução de falas autoritárias do nosso passado recente, reafirmando continuamente como negação histérica na voz a própria voz como violência, como passagem ao ato destituída de qualquer experiência de mediação. O gesto quase mecânico busca um espaço de determinação em oposição a tudo que não é ele mesmo. Uma determinação vazia, a pura voz grossa da autoridade que nega e destitui para apenas reafirmar o seu direito à voz, afirmando pela ameaça que o vitimiza uma estratégia de ação afirmativa da maioria: homem branco hétero machista misógino mas... ferido. A ameaça, materializada na ferida, autoriza um discurso com a estrutura de defesa das minorias, mas agora para proteger a maioria vitimizada, em um pivoteamento do lugar da voz que produz essa estranha ação afirmativa dos privilégios.

Nessa cena de enunciação a diferença está cooptada pela compulsão mimética, o privado e o público, o fundamentalismo de mercado e o recurso à religião se fundem, assim como a vitimização e a violência. Sequer há passagem de um a outro: toda enunciação é atravessada por esse lugar paradoxal e a própria enunciação esvazia a lei da qual ela finge ser a representação, a ordem e a desordem enfim pivotam em torno do mesmo eixo e encontram-se no mesmo ato.

Como não deve ter passado despercebido ao leitor, o movimento de análise da cena da Paulista retoma com força (constrangedoramente renovada) o topos de muitas discussões do campo literário das últimas décadas que, no entanto, encontram aqui um momento limite que exige retomá-las a partir da voz: as consequências desse movimento não são poucas e, por conta do nosso objetivo, ficarão latentes ao longo dos desdobramentos que propomos.

A voz, as vozes

“Os deuses são hóspedes fugidios da literatura”

Roberto Calasso

Como compreender a dinâmica dessa voz – como se dá a ver no discurso da Paulista e que se mantém como prática presidencial – e o funcionamento da voz nas práticas artísticas?

Talvez ela ajude a nos aproximarmos de uma questão candente, como vimos, com larga tradição na crítica literária, abrindo a possibilidade de pensarmos que esse não é o único modo de configuração da voz. A literatura, especialmente a poesia, vem respondendo a essa questão há muito tempo. Na medida em que assumimos que um texto implica uma articulação do lugar da voz em suas infinitas cenografias, sabemos também que há uma forte determinação social para limitar essa voz àquela voz muda, interna, identificada com a experiência de uma unicidade no seu funcionamento que se aplicaria a todas as experiências e a todos os textos. De fato, essa é uma estrutura poderosa e muitas vezes extremamente aberta a possibilidades de reconstrução da experiência, mas que tem sido instrumentalizada como o único funcionamento possível atrelado à submissão de um corpo a uma estrutura puramente fonética, à obediência do gesto de escrita e à pura decodificação9 9 Como apontam Deleuze e Guattari em O Anti-Édipo a redução da escrita a um funcionamento fonético implica em um alinhamento forçado e homogêneo entre o corpo (que se submete à carteira), a voz (que se torna um ditado atravessada pela figura do ditador), o olho (que registra apenas um signo gráfico), condicionando a escuta e o gesto: «O que muda singularmente na organização de superfície da representação é a relação da voz com o grafismo: os mais antigos autores viram bem que o déspota é que faz a escrita, que a formação imperial é que faz do grafismo uma escrita propriamente dita. Legislação, burocracia, contabilidade, cobrança de impostos, monopólio de Estado, justiça imperial, atividade dos funcionários, historiografia, tudo se escreve no cortejo do déspota. Voltemos ao paradoxo que emana das análises de Leroi-Gourhan: as sociedades primitivas são orais não por lhes faltar grafismo, mas, ao contrário, porque o grafismo é aí independente da voz, e marca nos corpos signos que respondem à voz, que reagem à voz, mas que são autônomos e não se ajustam a ela; em contrapartida, as civilizações bárbaras são escritas, não porque tenham perdido a voz, mas porque o sistema gráfico perdeu sua independência e suas dimensões próprias, ajustando-se pela voz, subordinando-se à voz, pronto para extrair dela um fluxo abstrato desterritorializado que ele retém e faz ressoar no código linear da escrita” (268). . O beabá. posto desse modo, exclui toda relação de reinvenção da voz pela escrita, subsumindo a voz a uma única determinação e tornando o que escapa a essa determinação como um resto a ser desprezado.

Quando o campo da política traz de volta questões abertamente religiosas ao centro do debate público, traz-se também a política da voz que subssume os corpos à potência inexorável dessa unicidade da voz10 10 A naturalidade dessa presença pode ser averiguada de maneira simples pelo crucifixo que se estende sobre a sala do STF ou mesmo no preâmbulo da Constituição de 1988:“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”. (g. n.) . A defesa de um método pedagógico fonético atrelado ao projeto político é corolário dessa submissão. Todo corpo que colocar em cheque esse funcionamento passa a ser um corpo a ser eliminado pela militarização do ensino, pelo controle da sala de aula e de outros espaços sociais. Assim, o que se traz para o meio da arena, embora excluída do seu interior, é a vida nua, passível de ser excluída toda vez que destoar do modus operandi pressuposto na visada perversa da lei, do dinheiro, da letra, entremeadas ao conservadorismo moral. Por sua vez, como vimos, o caráter paradoxal desse uso da lei é afirmar, pelo excesso da voz, a exceção que diz que há vidas matáveis, isto é, que cabe à política a separação da fronteira que demarca, embora não defina claramente, a vida dos “cidadãos de bem” e as vidas que ficam em uma fímbria do simbólico, dentro e fora dele, à mercê de um gesto que as destituam.

Há assim, nesse pressuposto fonético da leitura muda, um funcionamento particular da voz que, como toda ideologia, se propõe como universal. Como mostrou AuerbachAuerbach, Erich. “A cicatriz de Ulisses”. In: Mímesis. São Paulo: Perspectiva, 1987., no clássico capítulo “a cicatriz de Ulisses” de Mímesis (1987), o pressuposto metafísico da existência de um Deus oculto vincula a própria possibilidade de leitura do texto bíblico. O estilo da Bíblia (e as mudanças de seu estilo) são tributárias desse modo de acionamento de um espaço metafísico que instaura o “lugar” de onde vem a voz de Deus nas cenas bíblicas (particularmente no Gênesis) e a encenação da voz na leitura do texto como um espaço interno (a voz do leitor, do recitador que se complexificam significativamente quando se coloca em questão o “narrador”). É como se a internalização da voz de Deus fosse necessária para que a própria leitura se faça. Lembremos que é esse resto de voz e da lei que paira para além das palavras que Freud chamou de superego.

Nesse capítulo seminal de abertura de Mímesis realiza-se ainda a ousadia de comparar o funcionamento da voz desse Deus escondido da Bíblia com outro funcionamento um tanto diverso que se delineia a partir da famosa cena da descoberta da cicatriz de Ulisses por Euricléia na Odisséia. Ora, o que se evidencia aqui é um tipo de narrativa que não se dá pela tensão opressiva de subsunção a uma voz onipotente, onisciente e onipresente, mas por uma expansão da oralidade por meio de formas digressivas que dilatam o tempo desconstruindo sua linearidade e abrindo espaço para uma constante presentificação de todos os acontecimentos e falas (sem segundo plano) que permite uma fruição entre o prazer sensível da voz e os enunciados que ela encena, isto é, nas nossas palavras, o embate entre phoné e logos.

Entramos aqui – e sairemos muito rapidamente – no eixo Jerusalém-Atenas que encontra nos estudiosos da voz, as posições mais diversas. Seja, por exemplo, em Adriana Cavarero (2011)Cavarero, Adriana. Vozes plurais. Belo Horizonte: UFMG, 2011. que, contra a desvocalização da phoné operada pelo logos ao longo da história da Grécia Antiga, propõe uma retomada da voz como sopro e fluxo no velho testamento. Em um movimento próximo, Henri Meschonnic (1970Meschonnic, Henri. Les cinq rouleaux. Paris: Gallimard, 1970.;2006)Meschonnic, Henri. Linguagem: ritmo e vida. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2006. retoma os estudos de Benveniste sobre a noção mais arcaica de “Ruthmos” na Grécia como fluxo, como modo particular de fluir (e portanto não desvocalizado pelo logos), para propor uma leitura da Bíblia por um ritmo não métrico, dos muitos modos de organização do movimento e das muitas temporalidades das pausas que se configuram em torno da divisão do versículo bastante diverso da crescente prosaização das traduções bíblicas11 11 Nas teorias da voz, ao lado da voz de Deus e das digressões homéricas há uma discussão seminal em torno da voz das sereias que Blanchot identifica com o próprio surgimento de algo da ordem da literatura: “É ouvindo o Canto das Sereias que Ulisses se torna Homero, mas é somente na narrativa de Homero que se realiza o encontro real em que Ulisses se torna aquele que entra em relação com a força dos elementos e a voz do abismo» (2005, p.9). Visão esta, por sua vez, totalmente antagônica àquela proposta por Adorno e Horkeimer na Dialética do esclarecimento onde se mostra no mesmo mito a subsunção do corpo ao campo simbólico .

Se desdobrarmos a amplitude do espantoso gesto crítico de Auerbach com algum debate contemporâneo sobre a questão da voz, é notável o fato de que na própria configuração do que seria o espaço literário (e não vamos entrar aqui na representação da realidade ocidental) se dá pela admissão de diferentes modos de funcionamento da voz (e da leitura na relação com o texto). A quase obviedade de se mostrar que o lugar da voz na Bíblia e na Odisséia não é o mesmo, ao invés de implicar um mera diferença, instaura o lugar da literatura como um lugar de agenciamento de diferentes modos de relação entre a letra e a voz, isto é, a potência da literatura é a própria variação dessa possibilidade do modo de articulação do texto com aquilo que não é ele mesmo e, particularmente para o que nos interessa aqui, com a voz, como se vê na própria historicidade das leituras desses textos ditos canônicos12 12 Em um movimento que não seguiremos aqui, mas que muito determinou a leitura que sugerimos, François Julien mostra, em Entrer dans une pensée, outra ordem de funcionamento da escrita totalmente diferente tanto da entrée bíblica quanto da grega (especialmente focada em Hesíodo) – como se lê desde a primeira frase do I Ching – onde o próprio fundamento metafísico na voz (seja ela a voz de Deus ou do par phoné/logos) é deslocada para uma metafísica do traço e do vazio, da implicação recíproca entre princípios antagônicos e complementares (como o Yin e o Yang) que configuram um não-início, uma não diferenciação com os animais, uma outra teoria da alma, enfim, um outro mundo.s .

Este brevíssimo resumo, longe de qualquer pretensão de circunscrever o assunto, enfoca a importância da relação entre a voz, o texto e a performance, como também a variação contínua dessa relação. Nesse sentido, é importante darmos ainda um passo para entender que aquilo que muitas vezes chamamos de “déficit” de escrita da cultura brasileira ou a dificuldade mesma de ler, o seu constante descompasso com a cultura europeia, talvez possa ser não apenas um corolário da nossa “má formação”, mas também um sintoma da emergência de outros modos de existência da voz.

Claro que do ponto de vista da ordem, como mostra Tales Ab´Saber retomando o debate da cordialidade, há na experiência brasileira um déficit de internalização da lei – tanto psíquica, escrita ou jurídica – que aciona um mecanismo perverso de utilização sempre particular dos seus fins. “Aos amigos, tudo, aos inimigos a lei” diria Roberto Damatta em eco a Maquiavel. A experiência recente da política, como vimos, reforça suficientemente esse funcionamento.

Mas isso se dá, talvez, porque ainda não tenhamos sido capazes de produzir uma experiência à altura da multiplicidade de funcionamentos da voz que constituem o nosso tecido de socialidade. Talvez não haja apenas uma lei a ser aplicada, mas normatividades heterogêneas que clamam por serem ouvidas. Desde o desconstrucionismo de Derrida até a antropologia histórica da linguagem de Meschonnic, passando pela poética da relação de Glissant ou a outridade de Otavio Paz, o que se vislumbra é exatamente que esse “déficit”, esse “descompasso”, revela a imposição de um modo de subjetivação da escrita que pressupõe uma voz única, uma espécie de superego literário que exige sempre a mesma forma de leitura para todos os textos, esvaziando qualquer possibilidade de invenção da reenunciação – como se todos os textos estivessem subsumidos à estrutura internalizada de uma voz unívoca que funcionasse como fiadora da enunciação. Esse seria o pressuposto intrínseco do literário que vem sendo colocado em questão por um movimento de reinvenção da cenografia enunciativa da escrita que ganha pregnância sobretudo a partir dos anos 1970 e que se impõe aos ouvidos, como no poema de Leminski: “Lá vamos nós/ lendo sempre/ a mesma voz”.

Essa mudança tectônica do modo de se conceber a literatura vem sendo apontada com precisão por Marilia Librandi-RochaLibrandi-Rocha, Marilia. Escutar a escrita: por uma teoria literária ameríndia. O eixo e a roda. v. 21, n. 2 (2012): 179-202. ao enfatizar as escritas de ouvido e o lugar determinante da escuta no circuito de funcionamento da voz. Na esteira de Philippe Willemart (1996Meschonnic, Henri. Linguagem: ritmo e vida. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2006.;2009)Willemart, P. Os processos de criação na escritura, nas artes e na psicanálise. São Paulo: Perspectiva, 2009. que atrela a escritura à pulsão invocante, à pulsão de ouvir, Librandi-Rocha propõe outras formas de escuta, outros modos de habitar o texto que pressupõe outras teorias da voz e da própria literatura como ela indica em “Escutar a escrita: por uma teoria literária ameríndia” (2012).

Desse modo, o que procuramos mostrar é o quanto a dinâmica dessa voz única e universal – que seria garantida ao longo do processo de aprendizagem pela redução do letramento ao sistema fônico – seria de fato uma metafísica do texto pautada na imparcialidade da escrita (e sua mera decodificação) que busca esconder um artifício enunciativo de subsunção a essa voz que de tão óbvia se torna inaudível. E mesmo o artifício da vulgata romântica da autoria e do dispositivo de leitura pela relação autor/obra nada mais faz do que atribuir a outrem a invisibilidade dessa voz interna. Do ponto de vista dessa voz, toda experiência de deslocamento dos seus mecanismos soa como “desordem”, como caos, como indeterminação13 13 É interessante notar que ao longo da história da literatura europeia sempre houve um basculamento entre a defesa do contínuo e da voz como modo de resistir à racionalidade do logos e de suas divisões binárias e, por outro lado, uma defesa da necessidade do logos, do metro, da proporção, da construção como um modo de controlar a idiossincrasia igual a si mesma desse núcleo pivotante vocálico. .

Assim, apenas os que falam dentro dos modos de funcionamento dessa voz é que estão autorizados a falar. Se no artigo seminal de Spivak a questão é se “Podem os subalternos falar?”, hoje essa questão se mostra não apenas pela possibilidade de fala e de escuta, mas também pela cena de fala na qual se coloca em conflito essas vozes e, sobretudo, pela possibilidade de que os subalternos falem a partir de outras dinâmicas da voz. Isso quer dizer que onde se via caos ou desordem, hoje se vê outras formas de organização do lugar da voz.

No Brasil, quando pensamos desse ponto de vista a possibilidade de emergência de um lugar da voz dos subalternos, fica patente o quanto aquela dinâmica da voz de Deus como espaço único de determinação da enunciação está atrelada ao positivismo do desenvolvimento da ordem e do progresso, como se a subsunção àquela voz fosse estruturalmente idêntica à subsunção à voz da autoridade e da lei que garantiria a identidade nacional e o desenvolvimento – “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”14 14 Esse slogan, que ecoa um brado nazista “Alemanha acima de tudo” por sua vez retomado pela “Centelha nativista” como “Brasil acima de tudo” e utilizado pela brigada paraquedista, marcou a campanha com sua estrutura sintática coordenada que implica na ambiguidade de dois sujeitos em uma frase aparentemente única: Brasil e Deus. Daí se vê que aquele movimento entre o dentro e o fora da lei se complexifica para circunscrever um outro fora da lei da pólis, da política, para adentrar na seara de uma lei religiosa que parece se sobrepor ao tudo (aqueles que compartilham um ideal implícito de “Brasil”) para alcançar os corpos (todos, os que não se submetem à univocidade dessa voz). . Como mostrou Roberto Damatta, nesse modo de funcionamento a diferença entre pessoas, classes, raças, gênero, orientações sexuais, são diferenças naturais suportadas no limite, nas bordas do campo simbólico, mas, acrescentaríamos, essas pessoas não teriam prática discursivas próprias, formas de pensamento ou regimes de imaginação15 15 Veja-se que aqui retomamos a cordialidade, a partir de uma compreensão de um regime ontológico específico da relação entre corpo e lei, que dialoga com a discussão proposta por Dolar (2014) aproximando o conceito de biopoder ao de homo sacer: “Na pessoa do führer, zoé e biós coincidem. Ele representa a unidade do Volk e suas aspirações, suas ambições e propósitos biopolíticos (vale lembrar que a ideia de ‘biopolítica’ em Foucault indicava precisamente a aniquilação da distinção entre zoé e biós), ou seja, nos termos de nossa pesquisa, ele está também entre a voz e o lógos. O biopolítico engole o sagrado, a voz devora a letra, a divisão colapsa e o colapso dessa divisão necessariamente faz emergir a ‘vida nua’ no outro lado: a vida que qualquer um pode matar impunemente e que, contudo, não pode ser sacrificada, ou seja, submetida à economia do sacrifício, do dom, da penitência e da expiação, em gesto de intercâmbio com o (divino) Outro. Essa é a vida dos judeus, homines sacri por excelência de nosso tempo”. Como pobres, negros, índios, muçulmanos, LGBTs... ainda hoje. Mudam os corpos (e os preconceitos) mas não as formas de exclusão, cuja especificidade, no Brasil, procuramos singularizar. . É como se elas pudessem falar entre si, fossem até capazes de entender o que os eleitos dizem, mas não fossem capazes de produzir um sentido, apenas “mimimi”. Isto é, a voz que ascende à palavra e que estabelece o que é visível e dizível no espaço público se coloca acima e se impõe aos corpos, razão pela qual se pôde constituir a falácia de uma democracia racial composta pela mistura de três raças, pois como a diferença é natural, simbolicamente pode-se produzir uma falsa relação pacífica entre elas. Talvez seja preciso ser mais claro: a lei não precisa discriminar porque a diferença entre brancos, negros e índios é uma diferença de natureza, dos próprios corpos, de tal modo que é natural que a lei se aplique a uns corpos e não a outros. Esse gigante pela própria natureza garante o desdobramento da lei em violência – outro desdobramento daquele núcleo pivotante – porque a lei e todo o plano simbólico pressupõe que alguns corpos – como negros e índios, gays e mulheres – naturalmente não ocupem esse lugar.

O racismo por ser natural se desdobra diretamente em uma violência sobre os corpos, debilitando a capacidade de sobrevivência, imobilizando as reações e atuando “contra o sistema nervoso”, tendendo “a drenar as capacidades de suas vítimas criarem um mundo simbólico próprio” (PELBART, 2018Pelbart Peter Pál. Necropolítica tropical: fragmentos de um pesadelo em curso. São Paulo: N-1 Edições; 2018., p.20). Na ontologia de funcionamento dessa voz, há o reconhecimento da diferença pela evidência mesma de que somos diferentes (isso é um dado), como se a imposição de um hierarquia de ordem social sobre a natureza fosse natural16 16 Na medida em que durante a redemocratização houve a chance real de emancipação e construção de um ponto de vista negro e índigena como parte do campo simbólico, assim como de mulheres e LGBTQHAI+, parece que, de fato, a explicitação da discriminação se fez necessária. .

No entanto, essa diferença não é de natureza, mas um pressuposto metafísico da colonização (e também um pressuposto colonial da metafísica) como propõe Viveiros de Castro (2002)Viveiros de Castro, Eduardo. 2002. “O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem”. In: A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naify, 183-264.. Daí a necessidade de uma descolonização permanente do pensamento que começa por reconhecer que há outros modos de conceber aquilo que chamamos de natureza e essa diferença possibilita diferentes modos de articulação simbólica. Como propõe Henri Meschonnic (2006)Meschonnic, Henri. Linguagem: ritmo e vida. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2006., a linguagem é natural e simbólica, ao mesmo tempo corporal e incorpórea, pessoal e social, sendo a voz o lugar mesmo dessa articulação. O modo como o corpo entra nessa equação – como submetido à palavra ou como um mundo do qual a voz é o ponto de articulação – diz muito da relação com o mundo e com os outros corpos em que essa voz se realiza. A linguagem, sob o prisma da voz, fala não apenas dos corpos, mas no corpo e com o corpo, assim como fala não apenas sobre o mundo, mas no mundo e com o mundo.

Tanto assim que, como tem insistido o próprio Viveiros de Castro, há outros modos de pensar a dinâmica de funcionamento da voz, especialmente no mundo ameríndio, por aquilo que ele chama em “O mármore e a murta” (2002) de “complexo da oralidade canibal”, uma forma de funcionamento da voz em que a alteridade e a metamorfose constitutiva da relação com o outro se tornam pregnantes. No mundo ameríndio, como propõe ao seu turno Pedro CesarinoCesarino, Pedro de Niemeyer. Corporalidades heterotópicas: montagens e desmontagens do humano nos mundos ameríndios e além. Revista Brasileira de Psicanálise, v.50, n.2, (2016): 158-175. em “A voz falível – ensaio sobre as formações ameríndias de mundos” (2014) não há “a palavra” e uma distribuição hierárquica da voz no corpo social, mas uma relação entre vozes múltiplas, intensivas, di-visíveis e não apenas humanas17 17 Neste ponto, valeria a pena aprofundar a relação dessa submissão à voz entre Deus e os humanos, com aquela entre os humanos e os animais e ao conceito de animalidade com que operamos nessas relações. Marília Westin Garcia mostrou fortemente essa relação no campo da literatura fantástica, especialmente em Murilo Rubião (2019). . Nesse campo ontológico da relação com a voz, não se trata de colocar a voz contra a palavra, mas a voz contra a voz, um multinaturalismo das infinitas maneiras de se produzir choque entre vozes. Na visão do antropólogo, não se trata dividir o mundo hierarquicamente a partir de uma voz soberana para saber qual o ponto de vista predominante, mas sim de perguntar de que mundo cada voz é um ponto de vista.

Nesse regime de alteridade radical são os mundos que atravessam as vozes e cada voz é a possibilidade de composição de outros mundos em permanente negociação. Daí o xamã ser essa espécie de tradutor, de embaixador da relação entre os mundos metamorfoseados na multiplicidade enunciativa que agencia entre humanos e não-humanos (seres da terra, plantas, animais, “espíritos”, “duplos”, “imagens”). Mas não se pense aqui que o oral é a “ausência de escrita”, pelo contrário é transformação de tudo em escrita, rastro, possibilidade de variação entre materialidades heterogêneas: nessa floresta poliglota, as imagens são índices de agências, o sensível é o lugar mesmo de exploração desses universos intelectivos.

Vê-se por aí que pelo complexo oral canibal produz-se um espaço metamórfico, um “devir-outro do eu” que acrescenta algumas outras possibilidades para a alternativa infernal de se suprimir no outro ou manter-se unívoco, idêntico e fiel a si mesmo. Mas veja-se que não é o único. Esse movimento de viração também precisa ser colocado em variação para abrir-se a outros regimes de voz como se dá no universo afro-brasileiro, excepcionalmente encarnado no Orixá Exu. Se aqui também parte-se do equívoco, do paradoxo, da figura que encarna o demiurgo e o trickster, esse orixá que é o axé da fala encarna o próprio fluxo da enunciação que escapa a todo instante, vira, revira, se torna a própria viração.

Exu, na tradição Iorubá, encarna a própria possibilidade de que as coisas virem, se tornem outras, o paradoxo mesmo da possibilidade de significação: só há sentido porque as coisas poderiam ser outras. Só há sentido porque há destino e só há destino porque há o sentido e o seu avesso. Aqui a voz se faz equívoca atravessada por múltiplos caminhos que se cruzam: o senhor das encruzilhadas – abre/fecha caminhos, mas todos passam por Ele, por ali.

Exu como metonímia do lugar da voz no universo afro-brasileiro aponta para o axé da fala, para o próprio fluxo, a pura possibilidade. Não se trata da determinação última de uma cadeia enunciativa, nem de um conflito entre logos e phoné, nem mesmo de um devir-outro, mas da própria possibilidade de habitação do que temos chamado do núcleo pivotante da voz com sua boca que tudo devora e vocifera.

Esse lugar da voz ocupa um espaço topológico, pulsional, em que o fora e o dentro se atravessam, o próprio movimento se insinua no limiar entre o corpóreo e o incorpóreo, os tempos se atravessam – acerta um pássaro ontem com a pedra que atirou hoje – as instâncias se sobrepõem em um atravessamento de muitos níveis de interseccionalidade. Faz da báscula da voz e do tempo e os atravessamentos de tempos e dos mundos o próprio lugar paradoxal da existência. Suas duas cores, suas duas faces, seu “ser duplo” instaura uma dinâmica que possibilita um outro modo de lidar com as dicotomias infernais que rondam o ocidente

Como mostra Vagner Gonçalves da Silva (2018, p.392Silva, Vagner Gonçalves da. “Exu do Brasil: tropos de uma identidade afro-brasileira nos trópicos”. In: Histórias afro-atlânticas vol. 2”. São Paulo: Masp, 2018.), “Exu, devido ao caráter de mensageiro, é uma espécie de mediador cultural, fornecendo metáforas potentes para se pensar as relações entre os grupos étnicos-raciais que compõem a sociedade brasileira. Ou, mais exatamente, um ‘tropo’ por meio do qual podemos refletir sobre os conflitos e alianças existentes nessas relações”. Ao invés de pensar a demonização de Exu marcada pela associação do Orixá com o diabo cristão, tristemente ainda em voga hoje no Brasil, Silva propõe uma “exuzição” do demônio, uma capacidade de lidarmos com o atravessamento entre as diferenças, com a hibridização dos corpos, com o devir de toda experiência.

Muito, mas muito ainda há a dizer sobre essas matizes da voz e suas possibilidades, sobra as infinitas variações internas da relação com Deus, com os mitos, com as diversas tradições indígenas e afro-brasileiras… Apenas começamos a nos dar conta do alcance dessas questões, mas importa agora entender como esses modos de funcionamento da voz estão relacionados a um gesto de colocar em variação a literatura como forma de acionamento de mundos distintos que se evitam mas se chocam a todo momento, mesmo no que parecia um simples ato de ler em voz baixa ou no limiar mesmo da voz.

Voz múltipla

Em “Ver o que o canto ensina a ver”, Júlia de Carvalho Hansen (2017)Hansen, Júlia de Carvalho. Ver o que o canto ensina a ver. Caderno de Leituras n.57. Chão da Feira. Acessível em http://chaodafeira.com/wp-content/uploads/2017/01/caderno_de_leituras_n.57.pdf.
http://chaodafeira.com/wp-content/upload...
retoma a ideia de Eliot do escritor como placa de platina, como agente capaz de impulsionar as reações. Essa imagem de catálise, de meio de acesso que ela atribui ao xamã e ao canto xamânico pode ressoar em eco no campo da poesia se a pensarmos como um meio, um canal, um espaço de elaboração no qual os muitos modos de funcionamento da voz se atravessam, se chocam, se interpenetram, se sobrepõem. Nesse modo de uma literatura anti-mestiça, anti-relativista, pós-autônoma e pós-plural, o poiético não seria algo dado e igual a si mesmo, mas um agente-reagente de um campo infinito de reenunciações onde se negocia constantemente os limiares de seus rastros e a potência de performances e leituras. O poema, por sua vez, não seria apenas um objeto sobre o qual diversos sujeitos projetam suas leituras, mas um espaço de variação ontológica marcado por diferentes modos de acionamento da voz em sentido amplo (e com isso diferentes modos de passagem entre os rastros sensíveis, entre diferentes materialidades, os regimes de imaginação e as formas de pensamento).

O que está em jogo aqui é pensar essa placa – onde tudo é meio (o poeta é meio, o poema é meio, o meio é meio18 18 Como afirma Júlia de Carvalho Hansen (2016) a respeito do canto xamânico: “Durante um ícaro o xamã é o meio, a planta é o meio, o canto é o meio e o paciente é o meio. É tudo meio, mídia, médium. Interligado”. ) – como um espaço – público! – em que diferentes modos de reinventar as cenas de enunciação apontam para esses outros regimes de funcionamento da voz e do gesto como parte de uma torção da nossa noção de literatura para que ela se abra a essas variações ontológicas dos seus modos de existência.

Como a voz, o poema é um espaço de regulação entre variações heterogêneas. Como explica Maniglier (2006)Maniglier, Patrice. La vie énigmatique. Paris: Léo Scheer, 2006. via Saussure essas variações se dão em diversos campos. Mas, para encurtar o caminho, basta imaginar que a maneira como os espaços da boca se articulam, como o ar da respiração a atravessa, o espaço de ressonância que se produz no corpo e aquilo que ouvimos da nossa própria emissão não formam um campo homogêneo, são experiências sensíveis radicalmente distintas (diferente do que pensa a doxa foneticista). As sensações da boca variam, os obstáculos da passagem do som também, assim como variam o grau de ressonância corporal e a maneira como nos permitimos escutar a nossa própria voz (para não falarmos do cruzamento dessa escuta com a voz dos outros e dos radicalmente outros). O que fazemos é encontrar correlações regulares entre essas variações, estabilizando os constantes reenvios entre elas.

No entanto, vejam, esse é um pequeno recorte. Para que algo como um signo surja é preciso que esse sistema de reenvios se cruze com outro, digamos, por exemplo, de ordem visual, tátil, acionando uma diferença entre sistemas. É nesse complexo jogo que se produz o plano semântico que ressignifca aquelas variações estabilizando o signo como um “ser duplo” formado por essa dupla determinação sonora e semântica. O que significa que – agora ressoando a teoria da voz – um signo seja algo material e imaterial, corpóreo e incorpóreo, natural e cultural, singular e social.

A experiência poética reabre esses reenvios que ficam soterrados pela determinação fonética, pela nostalgia da univocidade e pela “desvocalização do logos” de que fala Cavarero. Entramos em um universo em que a escrita não se subssume à voz, nem se restringe a uma transcrição da fala, como a própria voz escapa da escrita para fazê-la abarcar o gesto, o traço, o oral, etc.. Retomando Deleuze e GuattariDeleuze, Gilles e Guattari, Felix. O Anti-Édipo. São Paulo: 34, 2010.:

As formações selvagens são orais, vocais, mas não por carecerem de um sistema gráfico: uma dança sobre a terra, um desenho na parede, uma marca no corpo, são um sistema gráfico, um geografismo, uma geografia. Estas formações são orais precisamente porque têm um sistema gráfico independente da voz, que não se orienta por ela e nem a ela se subordina, mas que lhe está conectado, coordenado numa organização de certo modo radiante e pluridimensional.

(2010, p. 249)

E mais ainda, nessa oralidade selvagem, não só fazemos coisas com as palavras como fazemos palavras com as coisas, expandindo o processo de significação para antes e depois de nossa passagem por este planeta, delinenado aquilo que Pedro CesarinCesarino, Pedro de Niemeyer. “A voz falível: ensaio sobre as formações de mundos ameríndias”. In: Dossiê Voz. Revista Literatura e sociedade no.19, 2014, pp.76-99.o chama de ontografias dos sentidos, que se abre para outros modos de escritura e de sentido mesmo não-humanos.

Quando admitimos essa escritura voraz, o núcleo pivotante, a variação, enfim, a equivocidade, no entanto, faz-se necessária uma ética, um outro ethos de inter-traduzibilidade de pressupostos, práticas, regimes de imaginação e de vozes (e mesmo da relação com o modo de existência da pópria voz em um corpo coletivo de vozes heterogêneas) e uma política que se trava no embate entre os modos de regulação (a “equivocação controlada” de que fala Viveiros de CastroViveiros de Castro, Eduardo. 2002. “O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem”. In: A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naify, 183-264.), o modo como se dão as acoplagens entre elas e sua relação com os corpos (as “partial connections” de Marylin Strathern), os modos como agenciamos as redes de intencionalidades mesmo não-humanas (a abdução de agência de Alfred GellGell, Alfred. Arte e agência. Tradução Jamile Pinheiro Dias. São Paulo: Ubu, 2018.) e como relacionamos o conflito de pressupostos dos modos de funcionamento da voz.

Uma política da voz a partir daí se daria pelo reconhecimento desse espaço de variação e sobredeterminação (ManiglierManiglier, Patrice. La vie énigmatique. Paris: Léo Scheer, 2006.), da singularidade da voz (CavareroCavarero, Adriana. Vozes plurais. Belo Horizonte: UFMG, 2011.), pelo lugar de fala e de escuta dos subalternos (Spivak), pelo questionamento da exclusão inclusiva que atravessa a voz na relação entre phoné e logos, mas também entre zoé e bios (Agambem, DolarAgambem, Giorgio. Homo Sacer. Belo Horizonte: UFMG, 2002.) e, sobretudo, na reinvenção das cenas de fala (o conflito entre o que se entende por voz, por fala, por mundo nas cenas de dissenso como propõe Rancière (1995)Rancière, Jacques. La mésentente. Paris: Galilée, 1995. a respeito do “político”).

Mas é importante frisar como esse embate, como propõe Mladen Dolar, “não cria dois deuses, mas tampouco [constitui] um só” (2012, p.190). Isto é, estamos em uma situação em que há mais de um mundo e menos do que dois como propõe ao seu turno Marisol de la Cadena (2010)Cadena, Marisol de la. Indigenous cosmopolitics in the Andes. Cultural Anthropology, Vol. 25, Issue 2, pp. 334–370, 2010.. A questão é que o conflito não se dá pela construção de diferentes pontos de vista sobre uma realidade já dada, mas por uma outra cena enunciativa que coloca em questão essa realidade fazendo com que os diferentes mundos se coloquem em conflito. Encenam-se novas formas de dissenso entre diferentes regimes de voz que articulam de diferentes maneiras a diferença entre os mundos19 19 Como mostra Marisol de la Cadena, um conflito de terras entre índios e o agronegócio, não é apenas um conflito entre diferentes pontos de vista sobre o modo de utilização dos recursos naturais, mas sim sobre diferentes modos de relação com a natureza e de conceber aquilo que chamamos de natureza. A diferença que vai de Pachamama a terra. E que começa por conceber o humano como parte da natureza. As consequências entre esses diferentes regimes se tornou significativa nas Constituições Andinas que reconhecem essa diferença ontológica – e, portanto, um conflito ontológico – que redunda em normatividades heterogêneas. .

Não se trata, portanto, apenas de afirmar o lugar de uma voz, mas de mudar o próprio espaço em que essa voz é determinada ética e politicamente pelas vozes que a atravessam. Como se o lugar da experiência poética como meio fosse o próprio lugar da partilha entre as vozes (Rancière, 1982Rancière, Jacques. Le partage des voix. Paris: Galilée, 1982.), vez que toda voz se faz múltipla por se constituir em um espaço de relação, pelas conexões que produz entre “diferentes capacidades” (Cesarino, 2017Cesarino, Pedro de Niemeyer. Conflitos de pressupostos na antropologia da arte. Revista Brasileira de Ciências Sociais - Vol. 32, N° 93, 2017). Esse é um dos movimentos tectônicos mais fortes da poesia brasileira das últimas décadas em que ao lado da dicção mais tradicional20 20 Esse movimento que tem seu rastro no dispositivo retórico-teológico-político-poético enfatizado por Joaão Adolfo Hansen no período colonial de nossa literatura, reverbera até o romantismo e mesmo em autores modernistas como Jorge de Lima e Murilo Mendes, entre outros. surgem potências enunciativas ligadas expressamente a outros funcionamentos da voz que a abrem a um movimento incessante de transformações e possibilidades. São vozes que assumindo o pivoteamento realizam a partir dele um outro modo de produção do sentido, uma outra ética da voz (a qual, claro, passa por uma ética da escuta que lhe é constitutiva)21 21 Como lemos no sintomático “Tiranias” de Ruy Proença: Antigamente diziam: cuidado, as paredes têm ouvidos. Então, falávamos baixo, nos policiávamos. Hoje as coisas mudaram: os ouvidos têm paredes. De nada adianta gritar. e uma possibilidade de emergência do político com a inveção de novos corpos coletivos e agências sociais. Creio que alguns exemplos de escritores e tradutores contemporâneos podem nos ajudar na compreensão dessa dinâmica.

Vemos isso já na relação com a voz bíblica e seu desdobramento entre os cristãos novos em Matula de Moacir Amâncio, como também na potência de reinvenção dos mitos (sobretudo greco-latinos) na distância justa da voz dos poemas de Antonio Cícero e mesmo naqueles de Waly Salomão dos anos 1990. Como mostrou Roberto CalassoCalasso, Roberto. A Literatura e os deuses. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. em A Literatura e os deuses, aquilo que entendemos por literatura está fortemente ligado à presença de deuses pagãos e de um funcionamento do signo que lhes dão vida, como se a literatura fosse um espaço de sobrevivência desse modo de ser que os deuses destituídos do aparato institucional da religião carregam. E afinal é disso que se trata: de sobrevivência a partir de outros modos de agenciamento que colocam em questão não apenas aquilo que se diz mas os modos de existência do dizer. Portanto, não se trata apenas de saber o que se diz, como ou porque se diz, mas os modos de existência que se insinuam pela sua voz.

É o que vemos também em torno do complexo oral canibal que, atravessado pela antropofagia modernista e pelas incitações do perspectivismo de Viveiros de Castro, vem produzindo desde Antonio Risério um conjunto potente de teorias e escritas que alimentam produções como as de Leonardo Fróes, Nestor Perlongher e Josely Viana Batista. Como poetas ou tradutores, os cantos ameríndios reconfiguram a voz da poesia no Brasil, acionando pontos de vista de plantas e animais, dos deuses e dos mortos, forçando os limites da enunciação como em outra chave vemos em Sérgio Medeiros, Álvaro Faleiros e Júlia de Carvalho HansenFaleiros, Álvaro. Traduções canibais: uma poética xamância do traduzir. Ilha do Desterro: Cultura e Barbárie, 2019.. Esses poetas também se tornam embaixadores entre esses mundos, como propõe o próprio Faleiros em Traduções canibais e como fazem Viana Batista e Medeiros responsáveis por potentes traduções de cantos, às quais se somam as traduções e torções conceituais de Pedro Cesarino, entre outros. E como ápice dessa confluência surge uma miríade de cantos e de narradores indígenas como Aylton Krenak e Davi Kopenawa.

Ao lado desse movimento tectônico ameríndio, vemos outro da mesma ordem que retoma um movimento da poesia negra e/ou afro-brasileira de longa duração e que encontra em Edmilson de Almeida Pereira e Ricardo Aleixo (com suas perfomances e seu Poemanto) uma nova potência. De uma literatura negra, feita por negros sobre temas relativos à negritude, passando por uma literatura de cunho afro-brasileiro até um gesto de reinvenção da literatura pelo atravessamento do regime de voz entre Orfe(x)u e exu nouveau. Esse movimento chega ainda a um pensador-compositor como Tiganá Santana e mesmo em um disco magistral como (J)Esù(S) de Baco Exú do Blues.

Ora, o que se vê nessas passagens, entre a voz única desvocalizada como garantia da autonomia do texto, passando pelo paganismo e as profanações/novas sacralizações que marcam a poesia moderna, assim como no infindável debate entre o ritmo bíblico de Walt Whitman ou no limiar entre phoné e logos em Baudelaire (a discussão sobre o verso livre se não é uma disputa teológica é certamente metafísica), até o espaço metamórfico animista e interespecífico de viés ameríndio ou a enunciação em um espaço topológico de revirão do mundo negro e/ou afro brasileiro, é o papel da variação que se produz na medida em que esses outros regimes da voz acionam outros mundos, outros modos de ser, outros corpos e outros modos de produzir corpos22 22 Como mostra Cesarino, em “Corporalidades heterotópicas” (2017), as próteses, acoplagens e conexões parciais se tornaram uma dinâmica que liga o mundo ameríndio às demandas contemporâneas de novas corporalidades. Creio que a poesia, ao encarnar essa relação corporal com a língua, traz em seu corpo essa prótese linguística, esse inconsciente estruturado como linguagem, que é a prótese das próteses, um ciborgue quando era ainda um centauro, um minotauro, um fauno, uma eco, uma ninfa, um santo, um Exu. Para Lacan, aqui se abrem as conexões parciais das pulsões, “eco no corpo do fato de que há um dizer” e o eco no dizer do fato de que há um corpo, acrescentaríamos. Entre animal e máquina, entre o agenciamento maquínico dos corpos e o agenciamento coletivo da enunciação (Deleuze/Guatarri). Como eco, ressonância, mas também como possessão e ex-corporação. Essas diferenças são delicadas e um dos pontos mais sensíveis da démarche que propomos, mas que certamente se opõe à sua visão como uma idolatria a ser exorcisada nos templos pentecostais como propõe Edir Macedo em “Orixás, Caboclos e Guias: Deuses ou Demônios”. .

Daí a importância nesse campo de variações das experiências poéticas que dialogam com as transformações LGBTHQAI+... na medida em que esses campos de transformação possibilitam a variação das formas de produzir corpos e desejos com as dinâmicas da voz que elas implicam. Os exemplos aqui seriam muitos e muitos variados, mas A cadela sem logos de Ricardo DomeneckDomeneck, Ricardo. a cadela sem Logos. São Paulo: Cosac Naify; Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007. (e muitas de suas performances) e Um útero é do tamanho de um punho de Angélica FreitasFreitas, Angélica. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Cosac Naify, 2012. se tornaram inescapáveis, pela possibilidade de diferenciação do mesmo e por essa multiplicidade em construção que explodem a ontologia determinista e unívoca do ser, para as acoplagens infinitas das palavras e dos corpos e dos seus infinitos modos de existência. Essa é a força também de uma antologia como aquela de Poesia erótica brasileira feita por Eliane Robert MoraesMoraes, Eliane Robert. Poesia erótica brasileira. São Paulo: Ateliê, 2015. que ressignifica as possibilidades de relação entre corpo e linguagem, erotizando todo o universo da poesia feita no Brasil.

Essa relação entre os funcionamentos da voz também encontra um espaço interseccional com os espaços nos quais elas se torna possível. Quando Lúcia SáSá, Lúcia. Literaturas da Floresta – Textos amazônicos e cultura latino-americana. Rio de Janeiro: EdUerj, 2012. nomeia as Literaturas da Floresta, ela já aponta para essa diferença geográfica significativa e as consequências ontológicas implicadas nos modos de habitar esses espaços e mesmo de colocar em questão as relações com o que chamamos de natureza. Essas literaturas dependem de um outro modo de relação com a terra, ligado a um conjunto de determinações e de formas de relação que são fortemente contextuais inscrevendo-se geo-graficamente com os mundos que habita. Sabemos também que boa parte da literatura brasileira trabalha no limite da expansão do litoral para o interior nesse espaço sempre deslocado do Sertão. E é claro que esses corpos do mundo se misturam no corpo da cidade de uma poesia onde a cenografia enunciativa se liga à paisagem urbana e a linguagem se desenha por roteiros entre múltiplos labirintos que atravessam a violência e as zonas de possibilidade críticas em um movimento que produz regimes singulares da voz como em Cláudia Roquette-Pinto, Carlito Azevedo, Marcos Siscar, entre muitos e muitos outros. Nela vemos também a explosão da violência que atravessa a linguagem e alcança uma voz cínica no limite das possibilidades do dizer como em Paulo Henriques Britto, que também é um dos responsáveis por recolocar o gesto tradutório como cerne de abertura dessas poiéticas. E em um movimento próximo da metamorfose, a voz passa a ser a matéria central de Nuno Ramos apontando um limite da relação com a visualidade, num atravessamento de materialidades heterogêneas que constitui tanto a relação da literatura com outras artes como as tensões internas do seu projeto poético (Goldfeder, 2018Goldfeder, André. Coisas-mapas para homens cegos. Nuno Ramos, voz e materialidades em atravessamento. Tese de doutoramento. São Paulo: FFLCH/USP, 2018.). Eles apontam para a capacidade da própria poesia de inventar novas cenografias enunciativas e possibilitar a experiência poética de outros funcionamentos da voz no interior mesmo do rolo compressor da contemporaneidade.

Ao lado desse movimento e de um modo intrinsecamente ligado à performance vemos a explosão urbana de Saraus e Slams (iniciados pela potente Roberta Estrela d´Alva), onde na esteira do RAP e no limiar da violência, ressoam uma oralidade pulsante, um revide político e não perverso da relação com a palavra que resiste com sua potência corporal, gestual, afetiva, criativa e que ainda se encontra em plena ebulição23 23 Como procurarei mostrar em outro artigo, esse viés da literatura pela questão da voz permite atravessar o contínuo entre a leitura, a declamação, a canção e a performance também como variações ontológicas, diferentes modos de existência da travessia das palavras. José Miguel Wisnik é tão presente nesse contexto que citá-lo seria demasiadamente pouco. .

Esses são apenas alguns exemplos da variação do funcionamento da voz e que de maneira alguma esgotam ou totalizam a cena poética, pelo contrário, eles apenas mostram como a possibilidade de variação é o mais interessante nessa relação. Diante da perda de lastro econômico, discursivo e religioso e a tentação nostálgica do fundamentalismo de mercado, da unicidade da voz e a imposição de crenças como uma política de extermínio, encontrar modos de experiência que assumam a variação, a escuta e a traduzibilidade de mundos heterogêneos possibilita a reinvenção de outras cenografias enunciativas que, por sua vez, reinventam o político e suas formas de dissenso.

Trata-se de tomar a experiência poética em sua ontologia variável que reverbera um devir-negro, devir-índio, devir-mulher, o próprio devir como espaço metamórfico de co-determinação recíproca que coloca aquilo que chamamos de literatura em uma potente variação ontológica. Aqui o espaço de variações heterogêneas da voz e dos diferentes modos de existência torna-se um espaço interseccional que evidencia, como na tradução, uma ética da relação, a invenção contínua de modos de habitar tanto as transformações históricas dos nossos modos de fazer como os choques e transformações nos modos de partilha no qual a composição de mundos opera. O momento que vivemos pede que nos posicionemos não apenas de um ponto de vista, mas de entender o modo de habitar mais de um ponto de vista24 24 O que significa habitar mais de um ponto de vista? Significa de pronto que a pessoa que performa poeticamente se distribui entre uma multiplicidade de posições que coloca em questão a sua experiência pela experiência do outro. Cria-se assim um entre-lugar (Santiago) perspectivístico (se quisermos transformar o conceito de Viveiros de Castro) que é mais do que a experiência de cada um e que constitui um corpo coletivo como relação entre os corpos. Como se todos lêssemos e escrevêssemos um mesmo poema – o “poemão” de Cacaso – que se constitui pelas variações de pessoas, ontologias, regimes de imaginação, formas de pensamento, corporalidades que se determinam reciprocamente. .

A pergunta de Peter Pál Pelbart sobre que voz estará à altura da necropolítica tropical é respondida por uma voz múltipla feita pelo dissenso potente das vozes desses poetas, xamãs, narradores, tradutores, cantadores que colocam sua voz nesse espaço múltiplo em que ela cede ao contato de outras, se tornando meio, canal, espaço de variação não só de outras vozes e os mundos de que são o ponto de vista, como de outras possibilidades de vida, outros modos de existência.

  • 1
    Este texto foi escrito inicialmente para uma palestra na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) a convite de Michel Riaudel e Monica Schpun, a quem agradeço a oportunidade.
  • 2
    Muitas das colocações que seguem a respeito da relação entre excesso e exceção resultam da leitura de um número notável da revista Travessia no. 5 (2005) com ensaios brilhantes sobre esse cruzamento da retomada da noção de estado de exceção por Agamben sem perder de vista a questão do excesso em Bataille e mantendo a tensão fina da singularidade de funcionamento político e poético. Como pano de fundo dessa discussão sobre a voz paira a busca de uma política do ato poético posta em perspectiva com uma poética do ato político como proposto por Fabio Roberto Lucas (2018)Lucas, Fabio Roberto. O poético e o político: últimas palavras de Paul Valéry. Tese de doutoramento. São Paulo: FFLCH/USP, 2018..
  • 3
    Nesse capítulo incontornável das teorias da voz (que é parte de seu livro A voice and nothing more), Dolar parte da política de Aristóteles para mostrar o quanto a diferenciação entre phoné e logos ainda está na base de dois dos maiores tratados políticos da atualidade O Dissenso de Jacques Rancière (1995)Rancière, Jacques. La mésentente. Paris: Galilée, 1995. e Homo Sacer de Giorgio Agambem (2002)Agambem, Giorgio. Homo Sacer. Belo Horizonte: UFMG, 2002.. Ao tomar a “voz como objeto”, Dolar (2012)Dolar, Mladen. O objeto voz. Prometeus – Filosofia em revista, Ano 5, Número 10, Julho-Dezembro/2012. a situa em um lugar paradoxal entre phoné e logos, zoé e bios, corpo e linguagem em um movimento que escapa a toda tentativa de reduzir a enunciação ao enunciado e que escapa ao longo da história para se tornar uma questão decisiva na relação com a lei e a escrita em diversos contextos políticos. Muito do que falamos a respeito do “discurso para a Paulista” é corolário da análise extraordinária que ele faz do discurso de Hinkel (e sua retomada final) em O grande ditador de Chaplin, com a diferença de que no Brasil o ditador e o tradutor, a paródia e o discurso autoritário estão pateticamente colados.
  • 4
    E há ainda um uso maquínico e manipulador das redes sociais que avançam no mundo privado e das crenças como se fossem uma comunicação pessoal e o questionamento contínuo das instituições públicas por estarem corroídas pela corrupção e pelos interesses de funcionários públicos e políticos, como se a própria linguagem simplista que o aproxima das pessoas não escamoteasse uma outra partilha do privado e do público, especialmente na versão tupiniquim de um ultra parcial liberalismo econômico associado à “nova direita”.
  • 5
    Claro que essa discussão, como propõe o próprio Dolar, evoca o “estado de exceção” como retomado por Agambem na esteira de Carl Schmitt, mas é importante notar que na enunciação dupla que analisamos, o ato paradoxal se realiza quando ao afirmar a lei ao mesmo tempo projeta pela voz a sombra de um fora da lei que se mantém ambíguo a tal ponto que torna impossível definir qual dos discursos está operando. Claro que isso cria um estado paranóico que nos deixa sempre em sobressalto diante da possível instauração legal de uma “excludente de ilicitude” que alargando a noção de legitima defesa daria ao exército e à polícia – ao próprio militar e ao policial - a possibilidade de agir violentamente pela “garantia da lei e da ordem” (a lei, aqui, se confunde com a moeda e o capital, demandando um exército para garanti-las). Na prática, esse funcionamento já está em operação e se desdobra em um desejo de parte da sociedade de fazer coincidir a percepção e a realidade, a economia e a sociedade, a lei e a moeda, a norma e o fato, o juiz e o político e, na ausência de qualquer debate, confundir a política e a polícia. A questão da voz se impõe pela ausência de mediação entre essas instâncias que encarnam em figuras concretas como o presidente e seus superministros.
  • 6
    Esse programa é uma continuação do Hora do Brasil lançado pela ditadura Vargas.
  • 7
    E é notável como os filhos do atual presidente estão a todo momento nesse espaço tenso de submissão e negação do lugar institucional do pai.
  • 8
    Neste ponto, tendo em vista os desdobramentos deste artigo, vale a pena transcrever a nota de Fabio Roberto Lucas tradutor de “A política da voz” (2014, p. 205): «Dolar se refere aqui à seção “Shofar” (p. 52-56) do capítulo 2 – “A metafísica da voz”, no qual se retoma um texto de Lacan chamado “A voz de Javé” (in: Seminário livro 10 – a angústia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005, p. 266-280). O autor esloveno então analisa o papel do shofar, instrumento de sopro usado em rituais da religião judaica: “Devemos reconhecer, no som do shofar, a voz do Pai, o lamento [cry] de morte do pai primevo da horda primordial, a sobra [leftover] que vem tanto para assombrar quanto para selar a fundação da lei. Ao ouvir essa voz, a comunidade dos crentes estabelece seu pacto [covenant], sua aliança com Deus; eles confirmam sua submissão e obediência à lei. A própria lei, em sua forma pura, antes de comandar algo especificamente, tem seu epítome na voz, a voz que comanda observância total, ainda que ela não tenha sentido em si mesma. A letra da lei adquire sua autoridade a partir dos resíduos do pai morto, de sua parte não totalmente morta, aquilo que ficou depois de sua morte e que continua a atestar sua presença – sua voz – mas também sua ausência: trata-se do dublê de uma presença impossível, envolvendo um vazio central. Ele funciona como a repetição ritual de seu sacrifício e como lembrança da origem impossível da lei, acobertando sua falta de origem” (p. 53)».
  • 9
    Como apontam Deleuze e Guattari em O Anti-Édipo a redução da escrita a um funcionamento fonético implica em um alinhamento forçado e homogêneo entre o corpo (que se submete à carteira), a voz (que se torna um ditado atravessada pela figura do ditador), o olho (que registra apenas um signo gráfico), condicionando a escuta e o gesto: «O que muda singularmente na organização de superfície da representação é a relação da voz com o grafismo: os mais antigos autores viram bem que o déspota é que faz a escrita, que a formação imperial é que faz do grafismo uma escrita propriamente dita. Legislação, burocracia, contabilidade, cobrança de impostos, monopólio de Estado, justiça imperial, atividade dos funcionários, historiografia, tudo se escreve no cortejo do déspota. Voltemos ao paradoxo que emana das análises de Leroi-Gourhan: as sociedades primitivas são orais não por lhes faltar grafismo, mas, ao contrário, porque o grafismo é aí independente da voz, e marca nos corpos signos que respondem à voz, que reagem à voz, mas que são autônomos e não se ajustam a ela; em contrapartida, as civilizações bárbaras são escritas, não porque tenham perdido a voz, mas porque o sistema gráfico perdeu sua independência e suas dimensões próprias, ajustando-se pela voz, subordinando-se à voz, pronto para extrair dela um fluxo abstrato desterritorializado que ele retém e faz ressoar no código linear da escrita” (268).
  • 10
    A naturalidade dessa presença pode ser averiguada de maneira simples pelo crucifixo que se estende sobre a sala do STF ou mesmo no preâmbulo da Constituição de 1988:“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”. (g. n.)
  • 11
    Nas teorias da voz, ao lado da voz de Deus e das digressões homéricas há uma discussão seminal em torno da voz das sereias que BlanchotBlanchot, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005. identifica com o próprio surgimento de algo da ordem da literatura: “É ouvindo o Canto das Sereias que Ulisses se torna Homero, mas é somente na narrativa de Homero que se realiza o encontro real em que Ulisses se torna aquele que entra em relação com a força dos elementos e a voz do abismo» (2005, p.9). Visão esta, por sua vez, totalmente antagônica àquela proposta por Adorno e HorkeimerAdorno. Theodor; Horkheimer, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. na Dialética do esclarecimento onde se mostra no mesmo mito a subsunção do corpo ao campo simbólico
  • 12
    Em um movimento que não seguiremos aqui, mas que muito determinou a leitura que sugerimos, François JulienJulien, François. Entrer dans une pensée ou des possibles de l´esprit. Paris: Gallimard, 2012. mostra, em Entrer dans une pensée, outra ordem de funcionamento da escrita totalmente diferente tanto da entrée bíblica quanto da grega (especialmente focada em Hesíodo) – como se lê desde a primeira frase do I Ching – onde o próprio fundamento metafísico na voz (seja ela a voz de Deus ou do par phoné/logos) é deslocada para uma metafísica do traço e do vazio, da implicação recíproca entre princípios antagônicos e complementares (como o Yin e o Yang) que configuram um não-início, uma não diferenciação com os animais, uma outra teoria da alma, enfim, um outro mundo.s
  • 13
    É interessante notar que ao longo da história da literatura europeia sempre houve um basculamento entre a defesa do contínuo e da voz como modo de resistir à racionalidade do logos e de suas divisões binárias e, por outro lado, uma defesa da necessidade do logos, do metro, da proporção, da construção como um modo de controlar a idiossincrasia igual a si mesma desse núcleo pivotante vocálico.
  • 14
    Esse slogan, que ecoa um brado nazista “Alemanha acima de tudo” por sua vez retomado pela “Centelha nativista” como “Brasil acima de tudo” e utilizado pela brigada paraquedista, marcou a campanha com sua estrutura sintática coordenada que implica na ambiguidade de dois sujeitos em uma frase aparentemente única: Brasil e Deus. Daí se vê que aquele movimento entre o dentro e o fora da lei se complexifica para circunscrever um outro fora da lei da pólis, da política, para adentrar na seara de uma lei religiosa que parece se sobrepor ao tudo (aqueles que compartilham um ideal implícito de “Brasil”) para alcançar os corpos (todos, os que não se submetem à univocidade dessa voz).
  • 15
    Veja-se que aqui retomamos a cordialidade, a partir de uma compreensão de um regime ontológico específico da relação entre corpo e lei, que dialoga com a discussão proposta por Dolar (2014)Dolar, Mladen. Política da voz. Literatura e sociedade, v.19, (2014): 192-206. aproximando o conceito de biopoder ao de homo sacer: “Na pessoa do führer, zoé e biós coincidem. Ele representa a unidade do Volk e suas aspirações, suas ambições e propósitos biopolíticos (vale lembrar que a ideia de ‘biopolítica’ em Foucault indicava precisamente a aniquilação da distinção entre zoé e biós), ou seja, nos termos de nossa pesquisa, ele está também entre a voz e o lógos. O biopolítico engole o sagrado, a voz devora a letra, a divisão colapsa e o colapso dessa divisão necessariamente faz emergir a ‘vida nua’ no outro lado: a vida que qualquer um pode matar impunemente e que, contudo, não pode ser sacrificada, ou seja, submetida à economia do sacrifício, do dom, da penitência e da expiação, em gesto de intercâmbio com o (divino) Outro. Essa é a vida dos judeus, homines sacri por excelência de nosso tempo”. Como pobres, negros, índios, muçulmanos, LGBTs... ainda hoje. Mudam os corpos (e os preconceitos) mas não as formas de exclusão, cuja especificidade, no Brasil, procuramos singularizar.
  • 16
    Na medida em que durante a redemocratização houve a chance real de emancipação e construção de um ponto de vista negro e índigena como parte do campo simbólico, assim como de mulheres e LGBTQHAI+, parece que, de fato, a explicitação da discriminação se fez necessária.
  • 17
    Neste ponto, valeria a pena aprofundar a relação dessa submissão à voz entre Deus e os humanos, com aquela entre os humanos e os animais e ao conceito de animalidade com que operamos nessas relações. Marília Westin GarciaGarcia, Marília Westin. Corpos à deriva: literatura e animalidade em Murilo Rubião. Tese de doutoramento. São Paulo: FFLCH/USP, 2019. mostrou fortemente essa relação no campo da literatura fantástica, especialmente em Murilo Rubião (2019).
  • 18
    Como afirma Júlia de Carvalho Hansen (2016) a respeito do canto xamânico: “Durante um ícaro o xamã é o meio, a planta é o meio, o canto é o meio e o paciente é o meio. É tudo meio, mídia, médium. Interligado”.
  • 19
    Como mostra Marisol de la Cadena, um conflito de terras entre índios e o agronegócio, não é apenas um conflito entre diferentes pontos de vista sobre o modo de utilização dos recursos naturais, mas sim sobre diferentes modos de relação com a natureza e de conceber aquilo que chamamos de natureza. A diferença que vai de Pachamama a terra. E que começa por conceber o humano como parte da natureza. As consequências entre esses diferentes regimes se tornou significativa nas Constituições Andinas que reconhecem essa diferença ontológica – e, portanto, um conflito ontológico – que redunda em normatividades heterogêneas.
  • 20
    Esse movimento que tem seu rastro no dispositivo retórico-teológico-político-poético enfatizado por Joaão Adolfo Hansen no período colonial de nossa literatura, reverbera até o romantismo e mesmo em autores modernistas como Jorge de Lima e Murilo Mendes, entre outros.
  • 21
    Como lemos no sintomático “Tiranias” de Ruy Proença:
    Antigamente diziam: cuidado, as paredes têm ouvidos. Então, falávamos baixo, nos policiávamos. Hoje as coisas mudaram: os ouvidos têm paredes. De nada adianta gritar.
  • 22
    Como mostra Cesarino, em “Corporalidades heterotópicas” (2017), as próteses, acoplagens e conexões parciais se tornaram uma dinâmica que liga o mundo ameríndio às demandas contemporâneas de novas corporalidades. Creio que a poesia, ao encarnar essa relação corporal com a língua, traz em seu corpo essa prótese linguística, esse inconsciente estruturado como linguagem, que é a prótese das próteses, um ciborgue quando era ainda um centauro, um minotauro, um fauno, uma eco, uma ninfa, um santo, um Exu. Para Lacan, aqui se abrem as conexões parciais das pulsões, “eco no corpo do fato de que há um dizer” e o eco no dizer do fato de que há um corpo, acrescentaríamos. Entre animal e máquina, entre o agenciamento maquínico dos corpos e o agenciamento coletivo da enunciação (Deleuze/Guatarri). Como eco, ressonância, mas também como possessão e ex-corporação. Essas diferenças são delicadas e um dos pontos mais sensíveis da démarche que propomos, mas que certamente se opõe à sua visão como uma idolatria a ser exorcisada nos templos pentecostais como propõe Edir Macedo em “Orixás, Caboclos e Guias: Deuses ou Demônios”.
  • 23
    Como procurarei mostrar em outro artigo, esse viés da literatura pela questão da voz permite atravessar o contínuo entre a leitura, a declamação, a canção e a performance também como variações ontológicas, diferentes modos de existência da travessia das palavras. José Miguel Wisnik é tão presente nesse contexto que citá-lo seria demasiadamente pouco.
  • 24
    O que significa habitar mais de um ponto de vista? Significa de pronto que a pessoa que performa poeticamente se distribui entre uma multiplicidade de posições que coloca em questão a sua experiência pela experiência do outro. Cria-se assim um entre-lugar (Santiago) perspectivístico (se quisermos transformar o conceito de Viveiros de Castro) que é mais do que a experiência de cada um e que constitui um corpo coletivo como relação entre os corpos. Como se todos lêssemos e escrevêssemos um mesmo poema – o “poemão” de Cacaso – que se constitui pelas variações de pessoas, ontologias, regimes de imaginação, formas de pensamento, corporalidades que se determinam reciprocamente.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    18 Set 2019
  • Aceito
    13 Nov 2019
  • Publicado
    Dez 2019
Universidade Federal de Santa Catarina Campus da Universidade Federal de Santa Catarina/Centro de Comunicação e Expressão/Prédio B/Sala 301 - Florianópolis - SC - Brazil
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