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SEIS SONETOS FRANCESES DE SÉRGIO MILLIET (PAR LE SENTIER, 1917)

SIX FRENCH SONNETS BY SÉRGIO MILLIET (PAR LE SENTIER, 1917)

Resumo

O presente artigo tem por objetivo apresentar seis sonetos publicados no livro de estreia de Sérgio Milliet, Par le sentier (1917), no original e acompanhados de tradução. Se não primam pela criatividade, tais sonetos revelam um jovem e sensível escritor que não apenas tinha boas noções do fazer poético em voga no sistema literário francês, mas também familiaridade com a obra de autores menos conhecidos dos leitores de hoje, como Albert Samain. Não obstante tenha abandonado a escrita em língua francesa quando de seu retorno definitivo ao Brasil em 1925, Sérgio Milliet guardará dessa experiência literária um repertório que será continuamente acionado em sua crítica. A apresentação dos poemas é precedida de alguns comentários acerca dessa obra inaugural e é sucedida de uma breve análise das estratégias de tradução.

Palavras-chave
Sérgio Milliet; Simbolismo; Soneto; Tradução comentada

Abstract

The purpose of the present article is to present six sonnets featured in first book published by Sérgio Milliet, Par le sentier (1917), in their original language and accompanied by their corresponding translation. They may not excel in creativity, but they reveal a young and sensitive writer who not only had good notions of the poetry-making process in fashion at the time in the French literary system, but also some familiarity with the work of authors less known to the contemporary reader, such as Albert Samain. Even though Sérgio Milliet abandoned writing in French when he returned definitely to Brazil in 1925, from this literary experience he kept a repertoire that was constantly drawn upon in his literary criticism. The presentation of such sonnets is preceded by a few comments about this inaugural work and is followed by a brief analysis of the translation strategies involved.

Keywords
Sérgio Milliet; Symbolism; Sonnet; Annotated Translation

Sérgio Milliet da Costa e Silva (1898-1966) firmou-se na historiografia da cultura brasileira como um dos mais prolíficos escritores da geração de 1922. Passados mais de cinquenta anos de sua morte, de sua extensíssima produção literária e crítica – de que sobressaem as resenhas e rodapés publicados em periódicos (dos quais boa parte foi posteriormente reunida nos dez volumes que compõem o Diário crítico), os ensaios sobre artes plásticas e literatura, as obras ficcionais e poéticas, os estudos históricos e os livros de cunho memorialista publicados no fim da vida – conhece-se, hoje, devido muito verossimilmente à não reedição de seus escritos nas últimas décadas1 1 Salvo engano, neste século foram republicados no Brasil apenas o ensaio “Marginalidade da pintura moderna”, no volume de artigos organizado por Gonçalves (2004), e algumas crônicas extraídas dos volumes do Diário crítico e dos memorialistas De ontem, de hoje, de sempre e De cães, de gatos, de gente selecionadas por Regina Salgado Campos (Milliet, 2006). , quase unicamente seu trabalho tradutório.

Das traduções de língua francesa realizadas por Sérgio Milliet, destacam-se as que foram lançadas pela Difusão Europeia do Livro, de São Paulo – como os Pensamentos, de Pascal (1957); os três volumes dos Caminhos da liberdade, de Sartre (1957-1959); As relações perigosas, de Laclos (1961); Os frutos da terra, de Gide (1961); O segundo sexo, Todos os homens são mortais, Memórias de uma moça bem comportada e Sob o signo da história, de Beauvoir (entre 1959 e 1965) –, a primeira tradução integral dos Ensaios, de Montaigne (Editora Globo, 1961), e diversos relatos de viajantes publicados pela Livraria Martins Editora: Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, de Debret (1940); Viagem à terra do Brasil, de Jean de Léry (1941); e História da missão dos padres capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas, de Claude d’Abbeville (1945). Tradutor de forno e fogão, Milliet traduzia tanto prosa quanto verso: nas Obras-primas da poesia universal (de que fora responsável pela seleção dos poemas, introdução e notas), volume que integra a “Coleção Obras-Primas”, da Martins (Milliet, 1957Milliet, Sérgio. Obras-primas da poesia universal. São Paulo: Martins Editora, 1957.), diversos são os poemas cuja tradução leva sua assinatura (dentre os quais os de Max Jacob e Jean Cocteau).

A despeito da relevância dos títulos supracitados e da importância do papel desempenhado por Sérgio Milliet como tradutor (suas reflexões sobre as atribuições do tradutor e os limites da tradução traspassam o Diário crítico e amiúde despontam no aparato peritextual das obras traduzidas), poucos são os estudos que têm por finalidade examinar suas traduções. Citam-se, à guisa de exemplo, as dissertações de Fuhrmann (2011)Fuhrmann, Sonia Maria da Silva. Dos “Essais de Michel de Montaigne”: tradução e reformulação. Dissertação (Mestrado em Letras). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8146/tde-25072011-174449/pt-br.php.
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e de Dell’Antonia (2019)Dell’antonia, Laís Zampol. Laclos no Brasil: análise crítica das traduções contemporâneas de Les Liaisons dangereuses. Dissertação (Mestrado em Letras). Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019. https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/30964.
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, em que são avaliadas, respectivamente, a tradução de Sérgio Milliet para os Essais de Montaigne e as duas últimas traduções lançadas no Brasil para as Liaisons dangereuses de Laclos. Conquanto não tenha sido o objeto central da dissertação de Dell’Antonia, a tradução efetuada por Milliet para esse romance epistolar é por diversas vezes passada em revista pela pesquisadora, que compara as duas traduções escolhidas para análise às quatro publicadas anteriormente, dentre as quais a de Sérgio Milliet.

Menos numerosas – mas cuja importância para a divulgação de nossa literatura no Velho Mundo é contínua e enfaticamente destacada pelos críticos – são as versões em língua francesa realizadas por Milliet para contos e poemas brasileiros publicados em periódicos literários europeus nas décadas de 1920 e 1930. Os artigos lançados por Milliet em 1922 na revista Lumière, “Une semaine d’art moderne à São Paulo” e “La jeune littérature brésilienne”, foram, assinale-se, traduzidos por Marta Rossetti Batista para a Revista do Instituto de Estudos Brasileiros e republicados por Boaventura (2010)Boaventura, Maria Eugenia. 22 por 22: A Semana de Arte Moderna vista pelos seus contemporâneos. São Paulo: Edusp, 2010., e a relação entre os modernistas paulistanos e os parceiros do periódico belga, investigada por Lara (1975)Lara, Cecília de. “Klaxon e Lumière”. Caravelle, (25), p. 77-102, 1975. DOI: https://doi.org/10.3406/carav.1975.1988
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e Velloso (2016)Velloso, Monica Pimenta. Revistas e redes literárias: reflexões sobre a Lumière. Revista Territórios e Fronteiras, 9(2), p. 43-63, 2016. DOI: https://doi.org/10.22228/rt-f.v9i2.591
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Sérgio Milliet não apenas traduziu textos alheios do português para o francês: ele integra o rol (bastante extenso, aliás) de literatos brasileiros que escreviam nas duas línguas. Desse grupo, alguns já tiveram suas vozes não vernaculares perscrutadas, como Manuel Bandeira, Pethion de Villar e Freitas Valle; outros, como Alphonsus de Guimaraens, Guilherme de Almeida e Oswald de Andrade, lograram ter suas obras em língua francesa reimpressas; e os demais – dentre os quais Ismael Martins, Homero Prates, Alberto Ramos, Eduardo Guimarães e Jean Itiberê da Cunha – mantêm-se até o presente em um desconfortável limbo crítico.

Em sua primeira longa temporada europeia (de 1912 a 1920), o jovem Milliet, estudante de Ciências Econômicas e Sociais na Escola de Comércio de Genebra, publicou três livros: Par le sentier (Milliet, 1917Milliet, Sérgio. Par le sentier. Genebra/Paris: Éditions du Carmel, 1917.), Le départ sous la pluie (1919) e, em parceria com Charles Reber, En singeant...: pastiches littéraires (1918). Um quarto – e último – volume de versos em língua francesa seria publicado em sua segunda passagem pela Europa (de 1923 a 1925): Œil-de-bœuf (1923). Par le sentier e En singeant sequer integram o acervo das principais bibliotecas brasileiras, mas sobre ambos os títulos já foram publicados dois estudos (Pinheiro, 2018Pinheiro, Valter Cesar. A estreia literária de Sérgio Milliet: Par le sentier. Remate de Males, 38(2), p. 990-1017, 2018. DOI: https://doi.org/10.20396/remate.v38i2.8651936
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; 2020Pinheiro, Valter Cesar. “À moda de”: notas acerca de En singeant...: pastiches littéraires, de Sérgio Milliet e Charles Reber. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, 1(76), p. 220-240, 2020. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v1i76p220-240
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). Passados cem anos da realização da Semana de Arte Moderna de 1922 – evento do qual Milliet participou (alguns de seus poemas foram lidos no palco do Theatro Municipal de São Paulo pelo amigo Henri Mugnier) –, aguarda-se ainda a revisita, por nossos pesquisadores, de Le départ sous la pluie e Œil-de-bœuf.

A partir do exposto, o objetivo deste artigo é apresentar seis sonetos publicados no livro de estreia de Sérgio Milliet, Par le sentier, no original e acompanhados de tradução. Se não primam pela criatividade, tais sonetos revelam um jovem e sensível escritor que não apenas tinha boas noções do fazer poético em voga no sistema literário francês (em que Baudelaire e Verlaine ainda reinavam absolutos), mas também familiaridade com a obra de autores menos conhecidos dos leitores de hoje, como Albert Samain e Émile Verhaeren. Não obstante tenha abandonado a escrita em língua francesa quando de seu retorno definitivo ao Brasil em 1925 – e, já a partir de Œil-de-bœuf, aderido aos preceitos modernistas –, Sérgio Milliet guardará dessa experiência literária inaugural um repertório que será continuamente acionado em sua crítica e uma concepção de poesia que não faz concessões aos valores dito sociais (isto é, ao engajamento) se em sua realização não houver, por parte do criador, consciência estética. A leitura dessa pequena seleta intenta, à vista disso, revelar um ângulo do plurifacetado Milliet que poucos conhecem: o de versificador em língua francesa. Antes de passar aos poemas, faz-se oportuna uma breve apresentação de Par le sentier.

Figura 1
Capa do livro Par le sentier

Em meados da década de 1910, Milliet associa-se ao círculo literário genebrino Le Carmel. É no periódico do grupo2 2 A revista Le Carmel alcança a admirável marca de 21 números lançados entre abril de 1916 e junho de 1918. que Milliet, que se assinava Serge (a forma aportuguesada de seu nome só será retomada após o retorno da segunda estadia na Europa), publica seu primeiro poema intitulado “La Chimère”, que, com poucas alterações, será reproduzido – na editora do grupo, incumbida da publicação das obras dos membros do cenáculo – em Par le sentier.

Milliet reúne nesse livro 48 poemas, repartidos em cinco seções: “Idéal” (Ideal), “Demi-teintes” (Meios-tons), “Le Chemin des Sens” (O Caminho dos Sentidos), “Lassitudes” (Lassidões) e “Vers la Joie” (Rumo à Alegria). A disposição dos poemas – e a própria organização em subdivisões, com destaque para o título da primeira delas, que manifestamente alude a “Spleen et Idéal”, parte inaugural das Fleurs du mal baudelairianas – seria o prenúncio do modelo seguido pelo jovem poeta brasileiro se a edição exigisse que o leitor percorresse a coletânea de versos para fazer essa aproximação. No entanto, basta consultar o índice no final do volume ou ler os dois textos preliminares, “Introduction” e “Préface”, assinados respectivamente por Charles Baudouin e Henri Mugnier, para ver apontada tal afinidade (não apenas no nível da forma, mas igualmente no tema). Para os amigos exegetas, os poemas de Milliet seriam compostos à moda de Baudelaire e Verlaine numa espécie de amálgama desses dois poetas franceses.

Ecoam por todo o livro aquelas que se tornariam as marcas registradas da personalidade e da postura crítica millietianas: a melancolia e o ceticismo. Não obstante, o que sobressai nessa obra inaugural de forte matiz neorromântico é o predomínio da vida interior do eu-lírico – lacerada pela tristeza, pela solidão e pela rejeição – sobre a realidade exterior e cotidiana, que se define, a poucas centenas de quilômetros de grandes zonas de combate, pela brutalidade da guerra. Mugnier, antecipando uma possível censura ao alheamento de Milliet em relação ao conflito que dizimava milhões de pessoas à sua volta, adverte de que o jovem poeta estrangeiro não tinha obrigações militares a cumprir na Europa, o que o tornava, justamente por fazer versos que falavam de amor em uma época tão nefasta, um legítimo arauto da paz.

A julgar pelos excertos de rodapés em que se trata de Par le sentier reproduzidos como apêndice em Le départ sous la pluie, Mugnier e Baudouin acertaram a mão em suas análises: nos fragmentos selecionados, assinados por europeus e brasileiros, prevalece o entendimento dos versos de Sérgio Milliet como grito de uma alma em crise (Reber), pranto de um jovem motivado por um amor não correspondido (Cougnard), e canto triste e solitário, numa paisagem noturna, imprecisa e sem grande brilho, de um pássaro exótico (Violette e Rodrigo Otávio Filho). Baudouin novamente associa o poeta brasileiro a Baudelaire e a Verlaine, e Guilherme de Almeida sentencia: Milliet é um Verlaine filtrado pelos trópicos (Milliet, 1919Milliet, Sérgio. Le départ sous la pluie. São Paulo/Genebra: Édition du Groupe Littéraire Jean Violette, 1919.).

A despeito da significativa variação rímica do conjunto de versos, verificável na multiplicidade de rimas, medidas e estruturas estróficas empregadas, nota-se a primazia, em mais de um terço de Par le sentier, do soneto alexandrino sobre as demais formas poéticas. O arranjo desses sonetos é igualmente diverso: à configuração mais usual (catorze versos repartidos em duas quadras e dois tercetos), Milliet propõe outras alternativas, como a divisão dos versos em duas estrofes (uma oitava e uma sextilha) ou em cinco (um dístico e quatro tercetos), ou ainda o acréscimo de um décimo-quinto verso, sob a forma de monóstico, às quatro estrofes de molde petrarquiano (arranjo muito usado por Albert Samain, citado em epígrafe em um dos poemas selecionados). Eis a razão pela qual se optou por traduzir, da obra primeira de Sérgio Milliet, unicamente sonetos. Ademais, nas seis peças escolhidas evidenciam-se não apenas alguns dos procedimentos mais empregados por Milliet (e tão caros à escola simbolista), como a sinestesia e o uso de maiúsculas alegorizantes, mas igualmente temas e termos recorrentes em Par le sentier que são representativos da poesia francesa fin de siècle, como a femme fatale et sadique metamorfoseada em gata, a solidão e o tédio, as dores e as lágrimas de um fracasso amoroso ou as melancólicas noites de outono.

Integram esta seleta os seguintes sonetos: “Sous la lampe voilée, au milieu des coussins” (que tinha sido publicado com o título de “La Chimère” na revista Le Carmel), da seção “Idéal”; “Nonchalamment blottie en des coussins moelleux”, de “Demi-teintes”; “Il est des soirs d’automne où je te sens très proche” e “J’ai laissé mon pays d’azur et de soleil”, de “Le Chemin des Sens”; e “Maintenant que je suis loin de la populace” e “Je suis triste toujours quand ton visage est triste”, de “Lassitudes”. A última parte do volume, “Vers la Joie”, não foi, por sua exígua extensão, contemplada nesta compilação.

Por fim, uma advertência e um pedido: sendo Par le sentier uma obra de juventude (Milliet, ao publicá-la, mal havia atingido a maioridade), que não sejam julgados com rigor excessivo os sonetos que aqui se apresentam. Parte significativa dos literatos da geração modernista renegou, nos anos subsequentes à realização da Semana de 1922, seus versos iniciais. Se não tomou declaradamente idêntica resolução, Milliet praticamente suprimiu de seus escritos menções diretas a seus primeiros livros3 3 Não há, nos dez volumes do Diário crítico, referência explícita a nenhum de seus títulos publicados em Genebra. Par le sentier é mencionado uma vez nos Ensaios (Milliet, 1938); e En singeant, em duas ocasiões, no memorialista De ontem, de hoje, de sempre (Milliet, 1960, 1962). (sem nunca tê-los, contudo, excluído da lista de “obras do autor” de suas publicações posteriores). Conquanto voltasse, de tempos em tempos, à sua mocidade – e à fase suíça de sua vida –, Sérgio Milliet o fazia de forma genérica, sem avaliar ou singularizar nenhuma obra sua especificamente. Poderosa ferramenta de sociabilidade, esses versos franceses franquearam-lhe o acesso aos círculos literários de Genebra. Porém, para o jovem brasileiro sua importância era de outra ordem: foi por meio deles que pôde dar início, em território suíço, à sua vida afetiva e sexual. Tal confissão será feita décadas depois, no prefácio ao segundo volume do Diário crítico: “[...] fui jogado aos 14 anos na liberdade excessiva da Suíça. [...] abusei convenientemente dessa liberdade, estudei pouco e escrevi versos para arranjar pequenas” (Milliet, 1981aMilliet, Sérgio. Diário crítico (1944). São Paulo, Martins Editora, 1981a [1945]., p. 7). Milliet, no entanto, jamais deixará de fazer poesia: em língua materna, publicará sete coletâneas, dos Poemas análogos (1927) às Cartas à dançarina (1959), mas essa já é outra história. Vejamos, então, os sonetos.

I     Sous la lampe voilée, au milieu des coussins,Pâle, les yeux mi-clos, la pose languissante,La Chimère s’endort – merveilleuse Bacchante –Et les illusions s’abreuvent à ses seins. Les poètes – enfants soumis à des desseinsGrandioses et fous – l’haleine haletante,Cherchent à conserver cette toison puissanteQui tombe en boucles d’or, en ourlets sarrasins, De sa tête féline et pleine de tendresse.Elle laisse approcher et douce elle caresseD’un regard enivrant les beaux aventuriers; Mais tout à coup, farouche, elle montre ses ongles,Et comme une tigresse habitant dans les junglesLes arrache à la gloire et brise leurs lauriers. Sob uma turva luz, deitada em finos panos,Olhos cerrados, fraca, em pose inebriante,A Quimera adormece – estupenda Bacante –E mamam fartamente em seu seio os enganos. Os poetas – guris tomados por insanosDesejos colossais –, em um suspiro arfante,Intentam conservar esta crina pujanteQue pende em cachos de ouro, em galões muçulmanos, Da cabeça felina e cheia de ternura.Ela acolhe quem chega, e mima com doçuraE um sedutor olhar os belos destemidos; Mas de súbito, arisca, as garras ela acera,E tal fera da selva, assombrosa pantera,Arranca-lhes a glória e os louros recebidos.
II     Nonchalamment blottie en des coussins moelleux,Une chatte en bâillant fait briller ses dents fines;Son corps se pâme tout en des poses félines,Un vert phosphorescent scintille dans ses yeux. Comme à l’approche d’un plaisir exquis et vague,La fourrure soyeuse et sombre de sa peauReluit plus chatoyante, ainsi que fait la dagueQu’un geste lent tira de l’ombre du fourreau. Et la voluptueuse enfant de la paresseQui savamment cherche l’étoffe qui caresse,Cligne un peu ses yeux lourds, hypocrites, méchants; Et dans l’alcôve rouge où règne le silenceOn entend vaguement le murmure en cadenceQue fait Ninon, la sombre chatte, en se léchant. Em cômodos coxins, toda concupiscente,Uma gata boceja e ostenta as presas finas;Seu corpo desfalece em posições felinas,E brilha em seu olhar um verde reluzente. Tal carícia que chega inebriante e vaga,De seu couro o pelame escuro e acetinadoRefulge cintilante, assim como uma adagaSe a tira da bainha um gesto demorado. E a cria da preguiça e do deleitamento,Que sabiamente busca o aveludado assento,Os duros olhos pisca, algozes e espúrios; E na purpúrea alcova onde o silêncio imperaOuvem-se com vagar desta gata megera,Ninon, quando se lambe, os constantes murmúrios.

Em cômodos coxins, toda concupiscente,

III     Il est d’étranges soirs où les fleurs ont une âme.A. SAMAIN Il est des soirs d’automne où je te sens très proche,Où je sens que ta chair a frissonné en moi,Où dans un air plus tendre et tout empli d’émoisVoltigent doucement de timides reproches. Ces soirs tout est tranquille et mystique et flottant,Et l’étoile palpite et la lune s’enflamme;Des senteurs de fleur morte et des parfums de femme,D’une douceur étrange et lointaine d’antan, Entrent dans mon alcôve à flots par la fenêtre.Ces soirs le souvenir de notre grand amourVient à moi comme un souffle et caresse mon être; Et je ressens sur moi ta bouche aux fins contours,Et fougueuse et timide et douce tour à tour.Ces soirs le souvenir de tes lèvres s’approche... Et je te sais très loin mais je te sens très proche.Há noites anormais em que as flores têm alma.A. SAMAIN Há noites anormais em que as flores têm alma. Há noites outonais em que perto te sinto,Em que sinto fremir na minha pele a tua,Em que com emoção em ar brando flutuaLenta e timidamente um juízo sucinto. À noite tudo é calmo e oculto e movediço,A lua resplandece e brilham as estrelas;Perfumes de flor morta e aromas de donzelas,De singular e doce e remontado viço, Pela janela, à farta, entram na alcova minha.À noite vem a mim de nosso amor divinoComo um sopro a lembrança e o meu ser acarinha; E sinto tua boca e teus lábios tão finos,De recato e doçura e de arroubos contínuos.À noite volve à mente o teu beijo faminto... Sei-te longe, meu bem, porém perto te sinto.
IV     J’ai laissé mon pays d’azur et de soleilOù l’Idéal revêt les formes les plus pures,Pour plonger dans un gouffre où, loin de la nature,L’homme a l’âme plus triste et le sang moins vermeil. Et j’ai cru m’enivrer d’un bonheur nonpareilEn respirant l’amour de la femme parjure.Hélas! La Volupté m’a laissé sa brûlureEt depuis je connais bien des nuits sans sommeil. J’ai le goût de la mort qui m’effleure la bouche,J’appelle le malheur sur tout ce que je touche.Je sais ma route ignoble, et cependant, farouche, Je chemine quand même au milieu des poisonsGrisé par leur terrible et lente exhalaison;Et je sens la folie embraser ma raison. Eu deixei meu país cerúleo e ensolaradoOnde o Ideal reveste as formas as mais puras,Para saltar num poço onde o ser, às escuras,Tem sua alma mais triste e seu sangue gelado. E cri me embriagar de uma intensa alegriaAo respirar o amor da falsa criatura.Ai! Deixou-me a Volúpia a sua dura agruraE às noites desde então a calma é fugidia. Sinto o gosto da morte aflorando-me a boca,Eu desperto a desgraça em tudo que me toca.Sei que meu rumo é torpe e que a barbárie evoca, Ainda assim caminho em meio de venenos,Ébrio de seu odor intenso, vil e obsceno,E à loucura escaldante o juízo alieno.
V À Tullio ChavesAo ver teu interior tira a máscara e chora.T. CHAVES Maintenant que je suis loin de la populaceJe puis sonder mon âme et recueillir mes pleurs.J’ai mis un voile sur le front de mes douleurs,Et personne n’a vu la souffrance en ma face. Car j’ai trop de fierté pour montrer mes émoisEt tout ce que mes yeux reflètent d’amertume,Et mon rire toujours comme une dense brumeEmpêche l’étranger de connaître mon “moi”. Je fais semblant de rire alors que dans moi-mêmeQuelque chose de las, de lourd et d’étouffantContemple ma gaîté et, sombre, la blasphème. Devant l’indifférent je sonne l’olifant,Pour que le monde croie encor ma vie heureuseEt ne découvre point ma lassitude affreuse. Agora que distante estou da populaçaPosso sondar minha alma e recolher meu pranto.Minhas dores cobri com um espesso manto,E ninguém entreviu em meu rosto a desgraça. Pois sou muito vaidoso e não mostro o que sintoNem o que meu olhar reflete de amargores,E tal qual densa bruma afinal meus humoresVedam ter de meu “eu” ao estranho o instinto. Eu simulo sorrir, dentro de mim, contudo,Um quê de farto e árduo e muito sufocanteContempla meu contento e o blasfema, sisudo. Ante o desimportante eu toco um olifante,Para que o mundo creia em minha alegre vidaE que nunca descubra a minha alma abatida.
VI     Je suis triste toujours quand ton visage est triste,Je pleure quand tes yeux sont mouillés par les pleurs,Car tu es mon seul but, mon rêve trismégiste,Et l’âme que mon âme enchâsse en sa douleur. Et mon amour pour toi n’est pas un égoïsteQui cherche le plaisir de la chair et du cœur;Non, même loin de toi mon grand amour subsistePour me guider vers l’Idéal, grave et songeur. Comme un religieux aux pieds de la Madone,Mon âme s’en va toute en prières vers toi,En soupirs aussi doux qu’une brise d’automne. Aux lentes fins de jour quand chantent les émois,Je pense à ton bonheur – ô belle souveraine –Si nous pouvions partir les mains encore pleines De rires, de sanglots, de douleurs et de joies. Tristonho sempre estou se teu rosto é tristonho,Eu choro se por choro alaga-se tua vista,Pois meu desejo és tu, meu trismegisto sonho,Uma alma que minha alma em sua dor conquista. E meu amor por ti não é um interesseiroQue quer da alma e da carne o prazer tão somente;Mesmo longe de ti meu amor é parceiroQue ao Ideal conduz, sonhador e imponente. Tal fiel da Madona ajoelhado ao trono,Minha alma, em oração, busca em ti moradia,Em suspiros sutis como um vento de outono. E quando ao pôr do sol cantarola a agonia,Eu penso em teu deleite – ó soberana airosa –Se possível nos for partir com generosa Soma de riso e dor, de lamento e alegria.

Em seu Petit traité de poésie française, Théodore de Banville afirma que a tradição literária francesa faculta ao poeta, em relação ao soneto, tanto a escolha do metro quanto a da rima do verso inicial, que pode ser feminina (aquela que termina pela átona -e, seguida ou não da marca de plural no caso dos substantivos e adjetivos) ou masculina (todas as demais terminações). Banville (1998)Banville, Théodore de. Petit traité de poésie française. Cœuvres-et-Valsery: Ressouvenances, 1998 [1871]. adverte, no entanto, de que essas são, no nível da forma, as únicas opções passíveis de serem feitas pelo poeta que intenta escrever um soneto convencional. Para que seja considerada regular, essa estrutura poética tem de seguir, segundo o autor do tratado, as seguintes regras: 1. Seus catorze versos devem ser distribuídos em duas quadras e dois tercetos, nessa ordem; 2. O primeiro e o quarto versos da primeira quadra precisam rimar com os versos que ocupam posição respectiva na segunda quadra; 3. Do mesmo modo, o segundo e o terceiro versos da primeira quadra devem rimar com o segundo e o terceiro versos da quadra seguinte; 4. É preciso que os dois primeiros versos do primeiro terceto, o terceiro verso do primeiro terceto e o segundo do segundo terceto e o primeiro e o terceiro versos do segundo terceto rimem entre si. A configuração rímica do soneto regular seria, portanto, a seguinte: abba / abba / ccd / ede. Qualquer modificação nesse arranjo afastaria o soneto de sua forma clássica, tornando-o, por conseguinte, irregular (Banville, 1998Banville, Théodore de. Petit traité de poésie française. Cœuvres-et-Valsery: Ressouvenances, 1998 [1871].). Maurice Grammont, no Petit traité de versification française, não leva tal restrição tão a sério, mas insiste para que se mantenham a disposição dos catorze versos em duas quadras e dois tercetos e a mesma distribuição rímica nas estrofes: alternadas ou interpoladas nas quadras (Banville, como vimos, admite apenas a forma interpolada), e três rimas – as duas primeiras, paralelas; as quatro últimas, alternadas ou interpoladas – nos tercetos (Grammont, 2015Grammont, Maurice. Petit traité de versification française. Paris: Armand Colin, 2015 [1911].).

Os poemas selecionados nesta compilação são, a despeito das irregularidades apontadas adiante, indubitavelmente sonetos. À disposição gráfica dos versos, evidência maior de obediência (ainda que relativa) às regras de composição da mais tradicional forma poética fixa, alia-se a adoção, por Milliet, do alexandrino clássico, ou seja, do dodecassílabo divisível em dois hemistíquios de seis sílabas, para quase todos os seus versos4 4 As exceções nesta seleta são os versos 5, 10 e 14 do poema II, 3 do poema V e 8 do poema VI, que são alexandrinos românticos (com tônicas na quarta, oitava e décima-segunda sílabas). .

Nenhum desses sonetos, no entanto, segue à risca as regras preconizadas por Banville5 5 Autor que Milliet, por sinal, conhecia (Milliet, 1981b). Grammont é mencionado no mesmo volume. . O que mais se aproxima da regularidade é o soneto I, que infringe apenas uma parte da quarta norma supracitada: os quatro versos finais do poema (o último do terceiro terceto e os três do quarto) não têm rimas alternadas, como preconiza Banville, mas interpoladas (Banville, 1998Banville, Théodore de. Petit traité de poésie française. Cœuvres-et-Valsery: Ressouvenances, 1998 [1871].). O soneto IV mantém em suas quadras, como o primeiro, rimas idênticas em posição interpolada, porém apresenta uma disposição rímica inusual nos tercetos, cujos versos rimam apenas com os de sua estrofe (ccc / ddd). O soneto VI, no qual sobressai um décimo-quinto verso, sob a forma de monóstico, no final6 6 Muito verossimilmente à moda de Albert Samain, citado, não por acaso, em epígrafe no terceiro soneto (também composto por quinze versos) trazido neste estudo. , preserva rimas idênticas nas duas quadras, dispostas, todavia, de modo alternado. Nos tercetos, Milliet inverteu a ordem proposta por Banville (1998)Banville, Théodore de. Petit traité de poésie française. Cœuvres-et-Valsery: Ressouvenances, 1998 [1871].: a rima dos quatro primeiros versos é alternada; e a dos dois últimos, paralela. Os demais poemas apresentam irregularidades ainda mais evidentes, dentre as quais se assinala a adoção de rimas diferentes nas quadras.

Optou-se, neste projeto tradutório, pela manutenção da métrica e da configuração rímica originais. Preservou-se, portanto, a medida alexandrina clássica nos seis sonetos traduzidos. Para esse fim, atentou-se especialmente na acentuação tônica que assinala o final do primeiro hemistíquio, ora rematado por uma palavra oxítona, ora por uma paroxítona que termina por vogal e é seguida por outra vogal átona no início da segunda metade do verso. Cita-se como exemplo a abertura do soneto IV: “Eu deixei meu país cerúleo e ensolarado / Onde o Ideal reveste as formas as mais puras”. No verso inicial, a tônica da sexta sílaba incide sobre uma oxítona; no subsequente, sobre uma paroxítona cuja átona restante se liga à primeira sílaba do segundo hemistíquio por sinalefa.

Alguns tradutores transpõem a alternância entre rimas masculinas e femininas presente na lírica francesa interpolando de modo similar, em português, rimas agudas e graves. Essa solução, no entanto, contraria a regra que prescreve, para a composição de sonetos em nosso idioma, tão somente o uso de rimas graves7 7 “No soneto clássico, todos os versos são graves”, preconizam Bilac & Passos em seu Tratado de Versificação (Bilac & Passos, 1905, p. 174). . Decidiu-se, então, exclusivamente por esse tipo de rima, a fim de que as traduções se aproximassem o máximo possível do modelo clássico de soneto, como amiúde o fez Milliet em relação à tradição francesa.

No que se refere à qualidade, observa-se que as rimas de Milliet são preponderantemente do tipo suffisant, isto é, apoiam-se sobre dois sons. Raramente o poeta recorre à rima pobre, escorada apenas na repetição da vogal tônica final, ou à rica, em que há reincidência de ao menos três sons. À guisa de ilustração, tomem-se algumas rimas transcritas do soneto II: peau / fourreau (pobre), fines / félines (suficiente), paresse / caresse (rica). Optou-se, nas traduções, pela rima soante perfeita, na qual a repetição de sons a partir da última vogal tônica do verso é completa. Logrou-se, em alguns casos, chegar à forma opulenta, em que se recupera igualmente o som anterior à tônica. Ocasionalmente, porém, recorreu-se a rimas soantes que, pelo acréscimo de uma consoante (normalmente, o -s indicativo de plural) ou mudança do timbre vocálico da tônica, são incompletas ou imperfeitas. Do soneto III tiram-se os seguintes exemplos: sinto / sucinto (rima opulenta); movediço / viço, minha / acarinha (soantes completas); estrelas / donzelas, finos / contínuos (soantes imperfeitas). Não há, contudo, nenhuma rima nos sonetos traduzidos que não seja soante.

Para encerrar os comentários relativos ao material sonoro dos poemas, ressalta-se também o valor atribuído às aliterações e às assonâncias nas traduções. Nas duas quadras do soneto V, por exemplo, recupera-se a abundância de encontros consonantais (em especial com o fonema /r/) presentes no texto original: pranto, cobri, entreviu, desgraça, mostro, bruma, estranho. No primeiro verso do último terceto, preferiu-se preservar a repetição do som /ã/, emulando-se o /ɑ̃/ francês, à tradução literal do verso (que, assinale-se, se encaixaria perfeitamente se se observassem tão somente questões relativas à métrica). Traduziu-se, então, “Devant l’indifférent je sonne l’olifant” não literalmente (“Perante o indiferente eu toco um olifante”), mas de maneira que, sem alterar significativamente o sentido original, fossem restabelecidas as repetições da vogal anasalada /ã/: “Ante o desimportante eu toco um olifante”.

É de igual importância a observação da estrutura sintática dos versos. O soneto III, por exemplo, caracteriza-se pelo emprego de alguns mecanismos de repetição e pela retomada, em ritornelo, do final do primeiro verso no fechamento do último (“je te sens très proche”). Tais aspectos não podem, por sua relevância na composição, ser negligenciados ou suprimidos pelo tradutor. Por respeito à métrica – e sem que houvesse alteração no sentido do texto –, traduziu-se “ces soirs” por “à noite” e inseriu-se um vocativo, “meu bem”, no monóstico final. Vale ainda assinalar que Milliet frequentemente recorre ao uso de polissíndetos (em especial à repetição da conjunção “et”). Manteve-se, nas traduções, o uso dessa figura de linguagem, como evidenciam o primeiro e o último versos da segunda quadra do soneto supramencionado: “À noite tudo é calmo e oculto e movediço” e “De singular e doce e remontado viço”.

Duas pequenas notas, por fim, em relação a questões de ordem semântica. Em alguns casos, optou-se por vocábulos cujo significado é mais facilmente apreendido pelo leitor brasileiro do que aquele de seus correspondentes mais imediatos. Tome-se por exemplo o verso final da segunda quadra do soneto I, no qual aparece o adjetivo “sarrasins”. Embora tenha um sentido mais restrito do que aquele escolhido nesta tradução, esse termo – utilizado, na Idade Média, para designar os muçulmanos da África, da Espanha e do Oriente Médio – é mais usual na França do que no Brasil. Por essa razão, decidiu-se pelo emprego de seu equivalente genérico “muçulmanos”. Em outras situações, a redução do número de palavras de um fragmento ocasionou uma pequena perda de sentido. Veja-se o último verso do supracitado soneto, “Les arrache à la gloire et brise leurs lauriers”, assim traduzido: “Arranca-lhes a glória e os louros recebidos”. Os dois verbos do verso francês, “arracher” e “briser”, amalgamam-se, na tradução proposta, num só, “arrancar”. Essa fusão, associada à atribuição de dois complementos diretos ao mesmo verbo, leva à inversão de sentido do primeiro hemistíquio em relação ao verso original: em francês, a Quimera arrebata da glória os aventureiros; na tradução, ao contrário, a glória é usurpada dos aventureiros pela Quimera. A perda do duplo movimento presente no verso original, ainda que pequena, não pode deixar de ser assinalada.

Limites – e limitações – dessa ordem não inviabilizam a produção de traduções que correspondam de modo satisfatório aos textos originais. Buscou-se, nas traduções aqui apresentadas, tal correspondência, iniciativa complexa que “comporta vários subproblemas que não podem ser desprezados: o do ritmo, o da musicalidade, o do pensamento” (Milliet, 1981cMilliet, Sérgio. Diário crítico (1951-1953). São Paulo: Martins Editora, 1981c [1953]., p. 255). Ademais, “[...] quando se traduz prosa”, lembra-nos o autor desses sonetos franceses, “[...] a menos que se trate de prosa poética, procura-se sempre uma equivalência de expressão em primeiro lugar e, somente depois, de estilo. Na poesia, porém, o estilo é quase tudo” (Milliet, 1981cMilliet, Sérgio. Diário crítico (1951-1953). São Paulo: Martins Editora, 1981c [1953]., p. 255).

O número significativo de sonetos traduzidos tornou inexequível a tarefa de, nos níveis formal e semântico, “quase tudo” examinar. Colocar a análise das estratégias de tradução à frente de poemas que, como afirmado no início, permanecem praticamente desconhecidos até hoje não foi, em nenhum momento, o objetivo de um trabalho cujo propósito é dar visibilidade aos primeiros versos escritos por um dos nomes mais relevantes do modernismo brasileiro – e um de nossos maiores tradutores. Dos 18 sonetos que compõem a obra de estreia de Sérgio Milliet, Par le sentier, publicada há mais de cem anos, o leitor brasileiro tem agora em mãos, na versão original e em tradução, a terça parte.

  • 1
    Salvo engano, neste século foram republicados no Brasil apenas o ensaio “Marginalidade da pintura moderna”, no volume de artigos organizado por Gonçalves (2004)Gonçalves, Lisbeth Rebollo (Org.). Sérgio Milliet: 100 anos – trajetória, crítica de arte a ação cultural. São Paulo: ABCA/Imprensa Oficial, 2004., e algumas crônicas extraídas dos volumes do Diário crítico e dos memorialistas De ontem, de hoje, de sempre e De cães, de gatos, de gente selecionadas por Regina Salgado Campos (Milliet, 2006Milliet, Sérgio. Sérgio Milliet. Seleção e prefácio de Regina Salgado Campos. São Paulo: Global, 2006.).
  • 2
    A revista Le Carmel alcança a admirável marca de 21 números lançados entre abril de 1916 e junho de 1918.
  • 3
    Não há, nos dez volumes do Diário crítico, referência explícita a nenhum de seus títulos publicados em Genebra. Par le sentier é mencionado uma vez nos Ensaios (Milliet, 1938Milliet, Sérgio. Ensaios. São Paulo: Brusco, 1938.); e En singeant, em duas ocasiões, no memorialista De ontem, de hoje, de sempre (Milliet, 1960Milliet, Sérgio. De ontem, de hoje, de sempre: amigos, amiga.... São Paulo: Martins Editora, 1960., 1962Milliet, Sérgio. De ontem, de hoje, de sempre: recordações com devaneios. São Paulo: Martins Editora, 1962.).
  • 4
    As exceções nesta seleta são os versos 5, 10 e 14 do poema II, 3 do poema V e 8 do poema VI, que são alexandrinos românticos (com tônicas na quarta, oitava e décima-segunda sílabas).
  • 5
    Autor que Milliet, por sinal, conhecia (Milliet, 1981bMilliet, Sérgio. Diário crítico (1949-1950). São Paulo: Martins Editora, 1981b [1953].). Grammont é mencionado no mesmo volume.
  • 6
    Muito verossimilmente à moda de Albert Samain, citado, não por acaso, em epígrafe no terceiro soneto (também composto por quinze versos) trazido neste estudo.
  • 7
    “No soneto clássico, todos os versos são graves”, preconizam Bilac & Passos em seu Tratado de Versificação (Bilac & Passos, 1905Bilac, Olavo & Passos, Guimarães. Tratado de versificação. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1905., p. 174).

Referências

  • Banville, Théodore de. Petit traité de poésie française Cœuvres-et-Valsery: Ressouvenances, 1998 [1871].
  • Bilac, Olavo & Passos, Guimarães. Tratado de versificação Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1905.
  • Boaventura, Maria Eugenia. 22 por 22: A Semana de Arte Moderna vista pelos seus contemporâneos São Paulo: Edusp, 2010.
  • Dell’antonia, Laís Zampol. Laclos no Brasil: análise crítica das traduções contemporâneas de Les Liaisons dangereuses Dissertação (Mestrado em Letras). Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019. https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/30964
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  • Fuhrmann, Sonia Maria da Silva. Dos “Essais de Michel de Montaigne”: tradução e reformulação Dissertação (Mestrado em Letras). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8146/tde-25072011-174449/pt-br.php
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  • Gonçalves, Lisbeth Rebollo (Org.). Sérgio Milliet: 100 anos – trajetória, crítica de arte a ação cultural. São Paulo: ABCA/Imprensa Oficial, 2004.
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  • Milliet, Sérgio. Par le sentier Genebra/Paris: Éditions du Carmel, 1917.
  • Milliet, Sérgio. Le départ sous la pluie São Paulo/Genebra: Édition du Groupe Littéraire Jean Violette, 1919.
  • Milliet, Sérgio. Ensaios São Paulo: Brusco, 1938.
  • Milliet, Sérgio. Obras-primas da poesia universal São Paulo: Martins Editora, 1957.
  • Milliet, Sérgio. De ontem, de hoje, de sempre: amigos, amiga... São Paulo: Martins Editora, 1960.
  • Milliet, Sérgio. De ontem, de hoje, de sempre: recordações com devaneios São Paulo: Martins Editora, 1962.
  • Milliet, Sérgio. Diário crítico (1944) São Paulo, Martins Editora, 1981a [1945].
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    03 Set 2022
  • Aceito
    10 Dez 2022
  • Publicado
    Fev 2023
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