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ENTREVISTA COM JOSÉ ANTÔNIO ARANTES

Em notas sobre Dante Alighieri, um dos muitos poetas por ele ilustrados, William Blake revela desconfiança pelo ofício de tradução, afirmando que tradutores apequenam os grandes Gênios (Notes on Dante, E634). Não tendo vivido o suficiente para ver sua própria obra traduzida, BlakeBlake, William. O matrimônio do céu e do inferno e O livro de Thel. Tradução de José Antônio Arantes. 3.ed - 5ª reimpressão. São Paulo: Iluminuras, 2007. provavelmente reconsideraria sua invectiva ao deparar-se com o trabalho de José Antônio Arantes (São Paulo, 1948), o mais profícuo tradutor de sua obra no Brasil. Sua lavra blakeana compreende as obras O Matrimônio do Céu e do Inferno e O Livro de Thel (1987) e Visões de William Blake (2020), um tomo que inclui as Canções de Inocência e de Experiência e as 11 profecias menores do extenso ciclo profético do artista, além da obra inacabada Vala, com lançamento previsto para 2024 (Iluminuras).

Autodidata, Arantes aprendeu inglês através de manuais populares e mais tarde bacharelou-se em Língua e Literatura pela Universidade de São Paulo. Ingressou no mercado editorial e de tradução na década de 70 após breve experiência em dublagem, havendo traduzido mais de 40 obras, dentre as quais se destacam os escritores e poetas de língua inglesa do século XX James Joyce, Virginia Woolf, Oscar Wilde, George Orwell, Seamus Heaney, Marianne Moore e Anthony Burgess.

A entrevista a seguir é a primeira concedida pelo tradutor, oferecendo em caráter inédito a oportunidade de nos acercarmos de sua trajetória multifacetada, em grande medida responsável por provê-lo com ferramentas valiosas no ofício de tradução. Arantes também discorre sobre particularidades dos muitos autores que passaram por suas mãos, apresentando sua metodologia, critérios, procedimentos e estratégias, além de uma breve reflexão sobre a questão do papel do tradutor. Por fim, Arantes elucida questões específicas referentes ao processo de tradução da idiossincrática e heterogênea obra de Blake, autor a que Arantes tem se dedicado com especial interesse nos últimos anos.

Janeiro de 2023

Cadernos de Tradução (CT): Conte-nos um pouco sobre a sua formação.

José Antônio Arantes (JAA): A minha formação tem cicatrizes deixadas por percalços e marchas e contramarchas. Depois do primário, hoje a primeira etapa do ensino fundamental, seguiu-se um longo período sem educação formal até cursar Letras na USP aos 22 anos, idade em que geralmente os estudantes se diplomam. Fui admitido no ensino superior graças a um curso de madureza. Mas o percurso universitário foi marcado por dois trancamentos de matrícula e pelo abandono dos idiomas escolhidos (alemão e inglês). Após a graduação, e muita hesitação, antes mesmo de começar desisti de um mestrado na Unicamp, no qual, sob a orientação de Modesto Carone, planejava estudar a obra de Clarice Lispector com base nas ideias de Carl Jung.

(CT): Como se deu o seu envolvimento com a tradução? Como você se tornou tradutor?

(JAA): Naquele período sem educação formal, trabalhei como ator infantil; primeiro, num filme, depois em radionovelas na extinta Rádio Piratininga e dublagem de filmes para TV na extinta Ibrasom. Na rádio, por incentivo de colegas, aos poucos passei para a redação de noticiário, com a oportunidade de traduzir/adaptar notícias internacionais (autodidata, aprendia inglês com um manual da Ediouro). Na Ibrasom, travei amizade com o principal tradutor, que me incentivou a praticar tradução e me alertou para os problemas envolvidos. No caso da dublagem, era óbvia a dificuldade da sincronização labial de idiomas diferentes e da exatidão do sentido: o simples “thank you” traduzido como “obrigado” era um exemplo que deixava claro um problema básico criado pelo maior número de sílabas enunciadas num tempo mais longo. Em poemas com os quais eu exercitava, constatei que isso tinha implicações para o ritmo e a métrica.

(CT): Qual foi o seu primeiro trabalho como tradutor? Como foi essa experiência?

(JAA): No início da década de 70, trabalhei como revisor das principais publicações da Editora Abril, e pouco depois, também por incentivo de excelentes colegas, passei a traduzir artigos de fascículos, livros românticos populares da Mills and Boons, entrevistas e contos para a revista Playboy. Não me lembro exatamente do primeiro trabalho, mas, no formato livro, lembro-me de ter dividido com o falecido amigo Heitor Ferreira da Costa a tradução de Anarquismo, de George Woodcock. Mas sobretudo me lembro de que, ainda como parte do esforço de me envolver com essa ocupação, traduzi um conto de Edgar Allan Poe. Por intermédio do Davi Arrigucci Jr., então meu professor de teoria literária, mostrei a tradução para o José Paulo Paes, editor da Cultrix. Paciente e gentilmente, Paes me apontou qualidades e handicaps, e sua orientação me encorajou a traduzir Uma Casa Assombrada, de Virginia Woolf. Enviei o trabalho para o Pedro Paulo de Sena Madureira, então editor da Nova Fronteira, que enfim o publicou em 1984.

(CT): Você já trabalhou para editoras importantes, como Iluminuras e Companhia das Letras. Como é o seu relacionamento com os envolvidos no processo de edição de suas traduções (profissionais de revisão, preparação, editoração)?

(JAA): Além de revisor, trabalhei também como preparador e editor, por isso entendo bem o processo. Qualquer intervenção deve ser positiva e construtiva, pois se trata de um trabalho colaborativo que visa à melhor qualidade possível. No caso de traduções, a principal tarefa é, a meu ver, garantir que não haja saltos de palavras, frases ou parágrafos, e que o texto seja claro e preciso, ou seja, esteja isento de imprecisões ou erros. Na Editora Globo, fui incumbido da revisão de dois dos sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido, com as célebres traduções de, entre outros, Mário Quintana e Carlos Drummond de Andrade. Logo se pôs a questão de estilo, que me pareceu intocável. A meu ver, Quintana foi quem melhor capturou a fluência e o encanto do original (como o fizera com Mrs. Dalloway), enquanto o Proust de Drummond parecia, em comparação, seco e entrecortado. O senso comum me fez concluir que era impensável refazer o trabalho de Drummond. Cito esses dois exemplos porque acho que, em muitos casos, os profissionais tendem a alterar o estilo que o tradutor julgou adequado e a reescrever frases ou parágrafos inteiros. Embora, sem dúvida, algumas intervenções possam melhorar o texto, penso que às vezes seria necessário estabelecer um bottom line sensato, evitando uma intervenção, seja na preparação, seja na edição, que se confunde negativamente com revisão da tradução. Lamentavelmente, vi-me em algumas situações do tipo.

(CT): Você já traduziu vários autores de língua inglesa, entre eles Marianne Moore, Anthony Burgess, George Orwell e James Joyce. Qual dos textos que você traduziu foi o mais desafiador? Por quê?

(JAA): Prosa e poesia colocam dificuldades específicas, assim como cada poeta e cada prosista tem idiossincrasias. Os poemas de Marianne Moore e Seamus Heaney foram os mais desafiadores. No caso de Moore, os versos aparentemente corriqueiros e apoéticos, carregados de citações, na verdade são compostos com a mestria de recursos perfeitamente absorvidos de Gerard Manley Hopkins, cujos poemas traduzi na década de 80, mas não publicados. Para recriar esses recursos, como auxílio recorri à releitura e ao exame de parte da obra de João Cabral de Melo Neto, confessadamente influenciado por Moore. Quanto a Seamus Heaney, a maior dificuldade, insuperável em português, foi o uso da língua inglesa ao lado do modo expressivo típico do irlandês, o contraste de duas culturas conflitantes. Anthony Burgess, em Homem Comum Enfim, apresentava a dificuldade do próprio estilo exuberante de escritor e não-acadêmico combinada com a dificuldade da idiossincrasia e singularidade de James Joyce nos inúmeros trechos das obras, inclusive de Finnegans Wake. O livro requeria uma certa ousadia criativa, e espero ter sido ousado o suficiente, sem prejudicar a comunicação clara com o leitor.

(CT): Como costuma ser a sua rotina de trabalho durante a tradução de uma obra literária? Quais ferramentas você utiliza?

(JAA): Acho que tenho uma rotina comum à maioria dos tradutores: um rascunho “selvagem” que busca apreender os sentidos denotativos e conotativos, ambiguidades, metáforas, e assim por diante; um segundo rascunho, de “poda”, em que, comparado com o original, o texto começa a ganhar forma e legibilidade; seguem-se outras versões, em geral cinco ou seis, nas quais o texto é elaborado como independente do original, mas ao mesmo tempo procurando conter uma espécie de replicação dos recursos do original. Esse processo se aplica igualmente à prosa e à poesia. No caso da poesia, substituí as versões manuscritas pela prática utilização de arquivos em Word, mas sem uso de track changes, porque gosto de me surpreender com o experimento de soluções, ainda que isso torne o trabalho mais árduo. De modo geral, recorro à consulta de livros de referência e de dicionários especializados e conceituados, como o OED, o Aurélio e o Houaiss.

(CT): Qual a relação que você tem com os autores e textos que você traduz? Quais critérios você utiliza para aceitar ou assumir um trabalho de tradução? Você (sempre) escolhe o que traduzir?

(JAA): Se entendi a primeira pergunta, a relação é inicialmente a do leitor curioso que lê outras obras além daquela a ser traduzida, e depois a do leitor-tradutor que arregaça as mangas e se interessa pela biografia e visão de mundo do autor. No caso de autor vivo, quando absolutamente necessário, procuro entrar em contato com questões concretas que ajudem no trabalho. Foi o caso de Seamus Heaney e Graham Swift. Quanto às outras perguntas, raramente o tradutor se dá ao luxo de escolher o autor, embora seja possível traduzir um autor com quem haja afinidades. Mais recentemente, traduzo o que julgo importante ou relevante e depois ofereço o trabalho para publicação, o que nem sempre é fácil.

(CT): Como você vê o trabalho e o papel do tradutor?

(JAA): Talvez seja simplista, mas entendo que o tradutor tem uma função social ao contribuir para a introdução e a comunicação de uma cultura estrangeira que de outra maneira permaneceria ignorada ou inacessível àqueles que não dominam determinado idioma. Essa função se dá em várias áreas, da técnica, científica ou jornalística, por exemplo, à da cultura humana em geral, incluindo a literatura e suas especificidades. Quanto à literatura, o meu principal foco de interesse, tomando a poesia como exemplo, o tradutor conta com a edição bilíngue (tendência que aparentemente se tornou obrigatória), podendo acompanhar o original de uma tradução literal em prosa ou, o que é mais frequente, de uma tradução que busca a recriação da forma do idioma de partida. Qualquer que seja a opção, a comunicação com o leitor é fundamental.

(CT): Como foi o seu primeiro contato com a obra de Blake? O que lhe atraiu em sua obra?

(JAA): O primeiro contato se deu num período anterior à universidade, quando eu buscava desenvolver um certo talento para as artes visuais e ampliava as referências artísticas. Mas foi na universidade que, ao participar dos cursos de gravura que o Evandro Carlos Jardim ministrava na ECA, no final da década de 70 planejei realizar uma série de gravuras baseadas na poética (vista sob a influência de Carl Jung) e nas técnicas de impressão de Blake. O projeto requeria intensa pesquisa e muito experimento. Enviei uns poucos exemplos para a Slade School, de Londres, esperando obter uma colocação e encontrar um ambiente propício para o desenvolvimento do projeto. Fui aceito, mas a dificuldade de conseguir fundos para o alto custo do curso e da estadia inviabilizaram todo o projeto, que permaneceu apenas um sonho. Mas a leitura e a tradução, ainda que esparsa, de Blake continuaram comigo.

(CT): A Iluminuras relata que sua tradução de The Marriage of Heaven and Hell, de William Blake, foi uma das duas publicações inaugurais da editora, iniciada em 1987 [a outra publicação foi o romance Respiração Artificial, de Ricardo Piglia]. A edição de Matrimônio do Céu e do Inferno e O Livro de Thel, desde então, tem sido reimpressa continuamente. Você poderia nos contar a história desta tradução?

(JAA): Parte da história está na resposta à pergunta anterior. O editor da Iluminuras, Samuel Leon, a quem conhecia havia algum tempo, contou que planejava abrir a nova editora em parceria com a recém-falecida Beatriz Costa. Sugeri a publicação do Matrimônio, por ser um texto autônomo e singular que serve como uma espécie de chave para o entendimento de toda a obra, acompanhado de O Livro de Thel, por ser uma narrativa lírica pastoral e fabular de imediata compreensão que contém, embora não de maneira óbvia, elementos presentes no Matrimônio, por exemplo a tensão entre percepção e experimentação do mundo, inocência e experiência, alma e corpo, sensualidade e espiritualidade. A ideia era uma breve representação significativa de Blake num pequeno volume de custo relativamente baixo. Felizmente teve uma boa recepção.

(CT): Com Visões, antologia formada pela tradução de onze livros de Blake (Iluminuras, 2020), você se torna, juntamente com Manuel Portela, uma referência central na tradução do poeta inglês em língua portuguesa. Como surgiu a ideia deste projeto? Quais elementos ou características você gostaria de destacar na sua tradução destes onze livros?

(JAA): Começou com a vontade de traduzir toda a obra, uma tarefa ambiciosa que encontraria inúmeros obstáculos, da viabilidade editorial num mercado de livros precário a imprevistos e empecilhos na vida pessoal. Mas me ocorreu que no Brasil a obra do poeta estava demasiado espalhada em antologias que incluíam textos publicados postumamente e organizados por estudiosos. Pareceu-me sensato reunir num único volume apenas os livros iluminados que Blake publicou em vida, em ordem cronológica, de modo a oferecer uma visão coerente do seu desenvolvimento. Ficaram excluídas as profecias maiores, Milton e Jerusalém, que caberiam em volumes separados. Atualmente trabalho na tradução de Vala, inacabado poema-profecia que provém das profecias menores e que originou as duas profecias maiores. Nas profecias menores, o poeta introduz um mundo visionário habitado por personagens arquetípicos numa narrativa mítica em que predominam valores éticos. O resultado final da tradução dessas profecias não me satisfaz totalmente, uma vez que não reproduzo a regularidade métrica, embora Blake nem sempre a tenha observado. Resta, portanto, trabalhar numa revisão que aprimore o aspecto formal.

(CT): Em Visões de William Blake você traduziu, dentre outras coisas, as profecias mais curtas de Blake. É sabido que nas profecias há uma série de termos/conceitos bastante específicos do universo blakeano. Como foi o processo de traduzir esses termos?

(JAA): Tendo a seguir a valiosa concordância de termos que aparecem tanto nos poemas líricos de Inocência e Experiência quanto nas profecias menores. Dadas as diferenças semânticas existentes em inglês e português, nem sempre o mesmo termo admite a mesma tradução, condicionada ao contexto. No caso das profecias menores, tratadas como um universo autônomo, procurei manter a maior coerência possível, não levando em consideração a ocorrência dos mesmos termos nas profecias maiores.

(CT): Como você tratou a tradução onomástica nas profecias?

(JAA): Mantive os nomes originais, porque pertencem ao mundo mítico peculiar de Blake, exceto em dois casos. Usei a forma aportuguesada Tirzá (Tirzah) na versão da Kings James feita por João Ferreira de Almeida, publicada pela Sociedade Bíblica do Brasil em 1956, ciente de que aparece com grafias diferentes em outras Bíblias. A outra exceção é o nome lendário da Inglaterra, cujo uso não é exclusivamente blakeano: em vez de Alba ou Albião, adotei o aportuguesamento Álbion (Albion), que pode complicar soluções de tradução, mas que sugere o gênero neutro de “país” no original: a opção por Alba ou Albião indicariam feminino e masculino.

(CT): Em sua apresentação do livro Visões de William Blake há uma grande ênfase à relação entre Blake e música, bem como de sua recepção musical na contemporaneidade. Como esse processo interferiu em seu processo de tradução?

(JAA): Creio que há apenas dois registros em que Blake se referiu a si mesmo como músico, embora não existam registros de qualquer composição. Sabe-se que costumava entoar os poemas, e achei interessante mencionar essa faceta depois de ouvir a extraordinária interpretação do barítono Mack Harrell, em Five Songs of William Blake, num arranjo especial do compositor norte-americano Virgil Thomson. De tão sentido e profundo, imaginei que só assim Blake poderia ter cantado. Propus-me então traduzir os poemas com uma musicalidade tal que poderia permitir ao leitor também experimentar o canto em voz alta. Fiz os meus experimentos, mas não sei se isso vale para todos.

(CT): Ainda na apresentação, há também menção à relação da obra de William Blake e da Bíblia quando trata da influência de Blake sobre Patti Smith. Como sua tradução responde a essa influência do texto bíblico?

(JAA): Leio a Bíblia regularmente, não por ser religioso, mas por suas qualidades literárias, por seu simbolismo e pelo impacto que teve sobre os mais importantes escritores ingleses, dos neoclássicos aos modernos. Ao traduzir Blake, foi imperativo reler os livros mais significativos para ele e procurar absorver termos e expressões relevantes às obras. Para dar apenas um exemplo, usei parte do texto “Mulher, que tenho eu contigo? Ainda não é chegada a minha hora” (Evangelho de João, 2:1-4) no último verso do poema “A Tirzá”, a qual, além de corresponder à métrica adotada, rima com o verso anterior: “Com a Morte de Jesus fui redimido, / Mas então que tenho eu contigo?”.

(CT): Qual a relevância e influência das iluminuras em seu processo de tradução?

(JAA): É lamentável que a reprodução das iluminuras continue sendo um problema editorial incontornável, devido ao custo altíssimo. Fiz na introdução umas poucas observações a respeito para não ser omisso, mas ao longo do processo de tradução eram uma presença constante, porque, longe de serem ilustrações, é do consenso geral que introduzem significados que complementam, contrastam ou remetem a outras direções o conteúdo de cada poema. Mas não acho que essa presença subliminar seja perceptível na tradução.

(CT): Para você, como é traduzir a prosa de Blake em comparação a traduzir os poemas do autor? Quais as estratégias próprias para cada tarefa?

(JAA): À parte as características sintáticas, o tratamento da prosa e da poesia é a meu ver praticamente o mesmo, porque a prosa de Blake emana do poeta, sempre atento ao ritmo e à sonoridade, sempre denso e condensado, com, digamos, uma lógica da emoção.

(CT): Na sua visão, de que maneira Blake pode interessar ao leitor de hoje?

(JAA): Mais de dois séculos nos separam de Blake, no entanto nos defrontamos com as mesmas questões do seu tempo: autoritarismo, tirania, exploração do homem pelo homem, guerras, crises de identidade e sexualidade, falsidade e verdade, religiosidade, ateísmo, e assim por diante. Tudo está presente nas obras visuais e poéticas, não apenas como resistência política, mas também como proposta de aprimoramento de valores éticos e de autoconhecimento. Blake é, como poeta-profeta, um guia para o interior de nós mesmos, para a humanidade no interior de cada indivíduo. No entanto ele requer que compreendamos os símbolos com os quais ilumina a escuridão que impede o autoconhecimento. E são muitos os caminhos para essa compreensão, tal a profundidade de sua obra. Um bom começo é que aprendamos a gostar de poesia para apreciar e desvendar o poeta. Creio que se pode aplicar a Blake o que Percy Bysshe Shelley afirmou sobre poetas no brilhante ensaio Uma Defesa da Poesia (embora controverso, visto com ceticismo por Seamus Heaney e com desdém por Wystan Hugh Auden, entre outros): “Os poetas são os legisladores não reconhecidos do mundo”.

(CT): Na sua opinião, quando uma tradução pode ser considerada bem-sucedida?

(JAA): Difícil responder. Tão difícil quanto se considerar o texto terminado, o que em geral se deve, por exemplo, a circunstâncias e a cumprimento de prazos de entrega. Idealmente, considera-se bem-sucedida quando realiza a contento forma e conteúdo, com algum paralelo com o original. O julgamento depende de critérios relativamente objetivos e de uma concepção de tradução. Há várias tendências e concepções, das quais ao menos duas são correntes: a recriação radical praticada por Haroldo e Augusto de Campos, e a transposição que de certo modo dilui elementos formais do idioma de partida em favor da absorção pelos elementos formais do idioma de chegada. Neste caso, ocorre-me o extraordinário trabalho que Paulo Rónai nos ofereceu com Mar de Histórias, em que praticamente desaparecem os traços característicos dos vários idiomas representados. E quanto a isso lembro a crítica que Rónai recebeu com humor do amigo Guimarães Rosa, para quem a tradução ganha ao conter algum traço do idioma de partida. Concordo com Rosa e aceito com moderação a prática dos concretos, sobretudo de Haroldo de Campos, que tive o privilégio de conhecer e cujo trabalho sempre me foi uma referência.

(CT): Dentre todas as traduções que você já realizou, qual é a sua preferida? Por quê?

(JAA): Se me permite, tenho duas preferidas. Uma Casa Assombrada, de Virginia Woolf, porque nela trabalhei sem prazo, com uma dedicação que desafiava a minha competência para obter um resultado que transmitisse a clareza e o encanto do original. A segunda são os poemas de Marianne Moore. Embora tenha trabalhado sob prazo, a excelente seleção do poeta e crítico João Moura Jr. me permitiu uma dedicação comparável com a da obra de Woolf. Quando se trata de introduzir um poeta ao leitor brasileiro, a meu ver é recomendável uma seleção pontual representativa. Quando propus Heaney após a premiação com o Nobel, sugeri uma seleção de quarenta poemas, mas a editora responsável se decidiu pela obra quase completa naquele momento. Com a seleção proposta, acredito que teria realizado um trabalho mais satisfatório, mesmo num prazo apertado.

(CT): Gostaríamos de ouvir um pouco de sua experiência como leitor de traduções. Qual a tradução que você mais admira? Por quê?

(JAA): Há várias traduções que admiro graças à habilidade artística, para mencionar alguns, de Mário Quintana, Manuel Bandeira, José Paulo Paes e Décio Pignatari, este injustamente à sombra dos irmãos Campos. Mas destaco a tradução pioneira de Ulisses por Antonio Houaiss, a meu ver a melhor até agora. Recebeu inúmeras críticas pelo uso de latinismos e pelo pecado de encerrar o monólogo de Molly com “Sins”, mas espero que seja reavaliada e continue sendo lida.

(CT): Na sua avaliação, qual é a situação profissional do tradutor literário no Brasil atualmente?

(JAA): Embora não acompanhe essa questão, arrisco afirmar que os intérpretes são os mais justiçados profissionalmente, e, talvez, os tradutores de obras científicas. O tradutor literário no Brasil padece os mesmos problemas encontrados em países mais desenvolvidos: atividade negligenciada, mal reconhecida e mal remunerada. Deve-se ter em mente que, em geral free lancer, ele vive de empreitada e cede os direitos do trabalho mal remunerado, enquanto espera uma adequada regularização da profissão.

Referências

  • Blake, William. O matrimônio do céu e do inferno e O livro de Thel. Tradução de José Antônio Arantes. 3.ed - 5ª reimpressão. São Paulo: Iluminuras, 2007.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Fev 2023
  • Aceito
    22 Fev 2023
  • Publicado
    Mar 2023
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