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Resenhas

KRUGER, Haidee. Postcolonial polysystems: the production and reception of translated children’s literature in South Africa. Amsterdam: Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 2012. 312

Como sua própria autora afirma, este volume (lançado como parte da aclamada coleção de obras com enfoque tradutológico da editora John Benjamins) veio à tona com o objetivo de aprofundar o debate com relação a um tema sobre o qual muito pouco foi dito até hoje: a complexa questão da tradução de literatura infantil na África do Sul, um país multilíngue e emergente com uma trajetória histórica e cultural extremamente interessantes. Vale ressaltar que toda a análise de Kruger é permeada pelas particularidades do atual momento pós-colonial daquela nação marcada por conflitos de diferentes ordens.

Esta já inovadora e ambiciosa proposta se torna ainda mais intrigante quando se considera o contexto teórico-metodológico no qual se insere: Kruger desenvolve sua análise no âmbito dos Estudos da Recepção, uma área cujo espectro e cuja interação com os Estudos da Tradução ainda podem ser, até certo ponto, considerados pouco explorados, em especial no que se refere à literatura infantil/ infanto-juvenil. Um fato em especial serve para ilustrar quão pioneira é a contribuição de Kruger: apesar de seu livro haver sido lançado há pouco tempo, meses após o início de sua distribuição Brems e Pinto (2013), ao traçar um perfil enciclopédico das pesquisas associando os Estudos da Recepção com os Estudos da Tradução disponíveis na atualidade, já exaltavam sua complexidade e originalidade.

O livro em questão é fruto da tese de doutorado de Kruger (concluída na área de Estudos da Tradução, no ano de 2010, junto à University of the Witwatersrand, na África do Sul). Talvez devido a esta origem, o primeiro elemento que chama a atenção já na leitura do sumário é o fato de o livro parecer ser desenvolvido de maneira extremamente didática em todos os seus sete capítulos. E, ao realizar a leitura completa, fica claro que, na verdade, não seria exagero afirmar que a ênfase na apresentação didática do conteúdo é algo que vai além de uma impressão, sendo a tônica dessa publicação como um todo. As características de natureza didática observadas que levam a esta avaliação são várias, com destaque para as seguintes: a disposição do conteúdo como um todo já no início do livro, incluindo um resumo geral do que é abordado em cada capítulo; a utilização de introduções individuais bem como de conclusões sobre o que foi abordado para cada capítulo; a abundante presença de notas de rodapé por todo o texto (grosso modo, parece possível afirmar que a autora utiliza ao menos uma nota de rodapé a cada duas páginas); a cuidadosa explanação de cada aspecto da abordagem teórico-metodológica, por menor ou mais óbvio que possa parecer ao leitor suficientemente familiarizado com a temática; e a utilização da repetição constante de elementos de grande relevância para a compreensão do estudo como forma de auxiliar o leitor em sua trajetória pela obra. Sendo assim, desde o princípio o livro se apresenta como uma espécie de “aula” que vai do nível macro ao micro, conduzindo o leitor através de uma rede intrincada de relações presentes no polissistema de literatura infantil traduzida da África do Sul.

Inicialmente, e seguindo em consonância com seu posicionamento didático, a autora busca aclimar seu leitor com o contexto a ser trabalhado desenvolvendo uma minuciosa introdução (que compõe seu primeiro capítulo), dando a impressão de querer fazê-lo se sentir “em casa” o suficiente tanto no que diz respeito à temática básica de seu estudo quanto com relação à realidade sul -africana, para que consiga compreender os próximos passos da pesquisa relatada. Assim sendo, em um primeiro momento Kruger introduz o conceito de literatura infantil adotado na perspectiva de sua pesquisa, e apresenta um panorama geral do “estado da arte” das áreas de literatura infantil e literatura infantil traduzida em nível mundial. Após fazer isto, o próximo passo adotado é a problematização da situação sociolinguística da África do Sul, introduzindo dados concretos sobre a mesma. E, a seguir, a autora parte para a apresentação de um “estado da arte” mais específico, enfocando a produção na área de literatura infantil traduzida no âmbito da África do Sul.

É válido abrir um parêntese neste momento para destacar uma estratégia positiva adotada pela autora por todo o seu estudo: a vasta utilização de gráficos e tabelas. Devido à grande quantidade de material trabalhado, tais recursos facilitam grandemente a visualização da totalidade dos dados apresentados.

Após estabelecer os alicerces mencionados acima, já no segundo capítulo Kruger começa a tratar de sua contribuição específica para a compreensão do contexto sul-africano, apresentando ao leitor um questionário desenvolvido por ela e aplicado junto a editores de literatura infantil naquele país. Este questionário revela pontos importantes sobre a dinâmica das políticas editoriais adotadas especificamente para o gênero literatura infantil. Para complementar os dados encontrados através do seu questionário, Kruger utilizou também os dados disponibilizados em um documento intitulado Nine Tongues Catalogue. Com base nestas informações e com o auxílio de gráficos e números, torna-se evidente que (conforme era de se esperar), um grande número dos livros infantis traduzidos na África do Sul são cartilhas escolares, utilizadas no sistema educacional em outras línguas africanas que não sejam o africâner ou o inglês. Tal informação serve para comprovar que, conforme afirma Kruger, o principal enfoque da tradução de literatura infantil na África do Sul é, realmente, a educação formal. A autora indica aqui um aspecto bastante intrigante daquele cenário: o papel duplo cumprido pela tradução, que ao mesmo tempo eleva o status de uma língua africana ao produzir literatura na mesma, e a marginaliza através da tradução de livros da língua inglesa, tida como a suposta lingua franca. Outro ponto que desperta o interesse de pesquisadores de um país como o Brasil, onde o multilinguismo, embora não possa ser taxado de inexistente, apresenta-se de forma bem menos acentuada, é uma pluralidade que pode não ser tão clara para muitos dependendo de seu ambiente sociocultural: a existência não de um, mas de vários mercados editoriais no território sul-africano, a saber, o mercado africâner e o mercado inglês, dominantes, e os bem menos expressivos mercados em línguas africanas. Tal característica é, claramente, muito definida e acaba por ser também definidora na cultura sul-africana, servindo como um termômetro do status linguístico.

Reiterando esta questão do status das línguas, na próxima etapa do estudo um novo questionário é apresentado ao leitor: desta vez, um documento respondido por tradutores de literatura infantil na África do Sul. Estes profissionais da tradução revelaram em suas respostas as impressionantes e surpreendentes relações de poder que regulam a abordagem adotada tanto na literatura infantil traduzida quanto naquela produzida na língua vernácula de cada um.

No terceiro capítulo a autora apresenta aquilo que denomina como sua base teórica. Uma rápida leitura dos títulos e subtítulos adotados nesta seção já é suficiente para perceber que a posição teóricometodológica adotada por Kruger se baseia grandemente nas abordagens descritivas do fenômeno tradutório. No entanto, há algumas surpresas para o leitor com relação à forma como a autora discorre sobre a sua utilização de tais abordagens.

Desde os parágrafos iniciais Kruger já afirma que seu estudo será permeado pelos conceitos de domesticação e estrangeirização que, como se sabe, foram cunhados e bastante debatidos por Venuti (1995). E, realmente, estes conceitos são observados como grandes direcionadores de toda a sua análise. Entretanto, ao mesmo tempo em que adota tais noções, Kruger as questiona e desafia a sua visão binária e simplista do que classifica como “either this or that” (em tradução literal, “ou isto ou aquilo”), para a seguir indicar que, com o auxílio de teorias pós-coloniais em somatória com as ideias de Venuti, a situação sul-africana pode ser melhor entendida, uma vez que as enxerga como algo muito mais complexo do que a possibilidade de simplesmente alocar uma tradução específica ou uma abordagem tradutória como um todo em um dos extremos de domesticação ou estrangeirização. Posteriormente, Kruger demonstra de modo competente em vários momentos da análise que seu ponto de vista faz muito sentido.

Um aspecto da abordagem teórica de Kruger que surge como surpreendente é que, tanto no capítulo que trata de seu referencial teórico quanto em outras partes do texto, e apesar de sua postura abertamente descritivista, parece prevalecer uma visão excessivamente crítica e por vezes, talvez, até pouco provável com relação às contribuições teóricas de Gideon Toury e de Itamar Even-Zohar, os nomes imediatamente associados aos Estudos Descritivos da Tradução. Kruger classifica ambos os autores como “binários” e, em suas considerações finais, no que parece (salvo engano) ser uma referência clara aos mesmos teóricos, alega que a situação da África do Sul “desestabilises the very system of binaries upon which a considerable amount of theoretical thinking on translation studies depends” (p. 273) (em minha tradução, “desestabiliza o próprio sistema de binários do qual depende considerável parte do pensamento teórico dos estudos da tradução”). Kruger afirma que, para que as teorias de Even-Zohar e Toury funcionem no caso sul-africano, foi necessário lançar mão também de referenciais teóricos pós-colonialistas. E isto, obviamente, não consiste em problema algum. O que a autora não deixa claro é que, ao mesmo tempo em que Toury e Even-Zohar deram o que poderia ser considerado o “primeiro impulso” para uma abordagem sociológica da tradução (deste modo talvez até servindo parcialmente como base para Venuti e para alguns pensadores dos estudos pós-coloniais da tradução), eles nunca afirmaram estar propondo a abordagem final e última ao fenômeno tradutório, nem tampouco recusaram a possibilidade de ter suas ideias adaptadas ou combinadas com as de outros teóricos. Por este motivo, na verdade tais autores não poderiam ser “desestabilizados” por associações como aquelas propostas (e bem desenvolvidas) por Kruger. Como é visto de imediato nos próximos capítulos do livro em apreço, o conceito de normas de Toury bem como a noção de polissistemas de Even-Zohar vêm a ser instrumentais em seus elaborados debates, dando margem a um amplo espectro de abordagens que englobam diferentes esferas da tradução, em um claro contraponto ao suposto binarismo já mencionado. O ponto a que se pretende chegar aqui é que, embora existam sim limitações nas ideias desenvolvidas por Toury e por Even-Zohar, e haja sem dúvida espaço para questionamento de suas posições, parece demasiadamente radical taxar seu posicionamento como um binarismo simplista.

Após a apresentação de seu longo debate teórico, com o início do quarto capítulo Kruger anuncia ao leitor que, a partir de então, devido às limitações impostas pela sua ausência de proficiência nas diversas línguas da África do Sul, ela passará a lidar somente com as traduções em inglês e em africâner. Apesar de tal abordagem já ser esperada e, como é feito abundantemente claro pela argumentação da autora, ser necessária, não é possível evitar um certo sentimento de decepção. Embora seja visível a clara impossibilidade, é quase inevitável desejar saber mais sobre a situação das línguas africanas. E esta reação não serve, de forma alguma, para mostrar falhas no livro: ao contrário, serve como termômetro de quão interessante é a leitura, provando que seu conteúdo é tão envolvente que acaba por fazer o leitor desejar conhecer mais sobre o todo. É claro que todos os estudos desta sorte, ainda mais aqueles desenvolvidos no âmbito de uma pesquisa de doutorado por um único pesquisador, precisam ser bem delimitados para que sejam eficientemente concluídos. Assim sendo, a autora não merece ser culpada por cumprir bem sua função de provocar a curiosidade de seu leitor para possíveis futuros estudos sobre a situação de outras línguas em seu país.

Conforme a análise de Kruger é estreitada, indo do nível macro ao nível micro, é apresentado ao leitor um corpus específico de traduções de livros infantis a serem consideradas. Neste momento dá-se grande destaque aos aspectos relacionados aos conceitos de domesticação e estrangeirização. A autora desenvolve uma descrição textual e paratextual impressionantemente detalhada, a qual informa o quarto e o quinto capítulos, nos quais as noções de normas preliminares e operacionais de Toury, respectivamente, desempenham papel central.

O sexto capítulo continua a seguir a tendência inovadora perceptível em todo o texto ao introduzir a utilização de outro elemento de ponta nas pesquisas da área de Estudos da Tradução: as ferramentas de rastreamento ocular. Neste capítulo Kruger apresenta os detalhes de um teste de recepção no qual foram combinados o rastreamento ocular e questionários tradicionais. A autora expõe, através da utilização de análises estatísticas dos dados obtidos, resultados quantitativos para interpretar o significado das reações aos elementos de domesticação e estrangeirização nos textos, reações estas observadas tanto em leitores na faixa etária alvo das publicações (ou seja, crianças), quanto em leitores adultos.

Por fim, o sétimo e último capítulo é utilizado para o fechamento da obra, sendo desenvolvido no mesmo tom didático já abundantemente enfatizado: todos os achados de cada etapa da pesquisa são descritos mais uma vez em linhas gerais. Para concluir, Kruger apresenta ao leitor as possibilidades de pesquisas futuras que poderiam ser derivadas de seu estudo.

A singularidade da combinação competente de uma abordagem tão ampla da questão tradutória em um dado contexto (ainda mais tendo em conta que o contexto selecionado para isto foi o sul-africano, com todas as suas complexidades), dando voz aos diferentes atores que participam do ciclo de uma tradução, a saber, os editores, os tradutores, e o público-alvo, em uma só publicação, por si só tornam este livro um estudo valioso. A utilização e combinação bem-sucedida de aportes teóricos tão diferenciados e nem sempre adotados em conjunto, como os Estudos da Recepção, os Estudos Descritivos da Tradução, as teorias pós-coloniais da tradução e as ferramentas de rastreamento ocular, além do uso de ferramentas estatísticas para a apresentação dos dados, vêm somar para uma sincera recomendação do livro de Kruger. Até mesmo a franqueza da autora ao expressar sua surpresa quando resultados inesperados foram obtidos em sua análise, bem como em sua declaração direta das limitações do estudo, também acaba por dar credibilidade à sua obra e funciona como aspecto positivo, indicando que, embora talvez não seja o estudo ideal almejado por Kruger, consiste sem dúvidas em um estudo real elaborado com bases sólidas e definitivamente merecedor da atenção dos pesquisadores da área.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    20 Ago 2015
  • Aceito
    16 Out 2015
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