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Rui Barbosa e a razão clientelista

Rui Barbosa et la raison clientéliste

Rui Barbosa and the patron-client relation

Resumos

Dans cet article on part des demandes de faveurs adressées à Rui Barbosa, à l’époque Ministre des Finances du gouvernement provisoire, pour examiner le sujet du clientélisme dans la politique brésilienne. On essaie de montrer la continuité entre la monarchie et la république en ce qui concerne la domination des valeurs et pratiques clientélistes. On y soutient que le système de favoritisme, d’où provient le clientélisme, était profondément enraciné dans la société qui, à son tour, le transposait à la politique. Par conséquent, les valeurs égalitaires et la notion de chose publique, qui en principe devaient constituer la ligne d’action du nouveau régime, ne trouvaient pas de terrain propice à leur développement. Le citoyen devenait "Monsieur le citoyen", le politicien "cousin et ami".

clientélisme; politique brésilienne; système de favoritisme; Rui Barbosa


In a discussion of the patron-client relation within Brazilian politics, the article takes as an example political favors asked of Rui Barbosa when he was the provisional government’s Minister of the Treasury. It endeavors to demonstrate how the prevalence of patron-client values and practices carried over from the monarchy to the Republic. The argument is posed that patronage, from which the patron-client relation derives, was deeply embedded in Brazilian society and from there moved into politics. As a consequence, egalitarian values and the notion of res publica, which in thesis should have been an integral part of the new regime’s practices, did not find propitious ground upon which to develop. Citizens became "doutor cidadão", while politicians became "cousin and friend".

patron-client relation; Brazilian politics; patronage; Rui Barbosa


clientélisme; politique brésilienne; système de favoritisme; Rui Barbosa

patron-client relation; Brazilian politics; patronage; Rui Barbosa

Rui Barbosa e a Razão Clientelista* * Este trabalho não poderia ter sido escrito sem o auxílio de Patrícia de Souza Lima que fez boa parte do levantamento de dados e elaborou os quadros estatísticos. Agradeço ainda a cooperação de Rejane de Almeida Magalhães, chefe do Setor Ruiano da Fundação Casa de Rui Barbosa, e de suas colegas Solange Campello Taraciuc e Beatriz Guerra Martins. José Almino Alencar, diretor de Pesquisa da Fundação, proporcionou as condições materiais para a execução da pesquisa. Agradeço também os comentários dos pesquisadores do Setor de História e a argüição do diretor da Casa, feitos a uma primeira versão deste trabalho.

José Murilo de Carvalho

"A bandeira da República é muito grande [...] proteja-me". Jaime Serva a Rui, 15/2/1890.

"[...] esse animal multimâmico, a que ora se chama nação, ora administração, ora fazenda, orçamento ou erário, e de cujos peitos se dependuram, aos milhares, as crias vorazes na mamadura, mamões e mamadores, para cuja gana insaciável não há desmame". Rui Barbosa, 1920.

Quando ministro da Fazenda, Rui Barbosa recebeu centenas de ofícios, cartas, cartões, telegramas. Exatos 40% dessa correspondência referem-se a pedidos de favores. A análise desses pedidos será o objeto deste artigo. Ao mostrar quem pede favores, ela nos permitirá verificar a extensão do fenômeno clientelista na passagem do Império para a República. Ao indicar as razões dos pedidos e a linguagem em que são formulados, ela nos revelará os valores e as percepções sobre os quais se assentava a prática clientelista. Ela nos revelará a razão clientelista.

O PATRONATO

É conhecida a presença clientelística na política brasileira (Carvalho, 1996; 1997). Na época de Rui Barbosa, fim do Império início da República, a distribuição de favores governamentais tinha o nome de patronato e filhotismo. O meio pelo qual se exercia o patronato era o empenho, ou seja, o pistolão, o pedido, a recomendação, a intermediação, a proteção, o apadrinhamento, a apresentação. A prática era tão condenada quanto arraigada. Um conservador empedernido, Paulino José Soares e Sousa, falando na Câmara em 1874, referiu-se ao empenho como "cancro o mais estragador dos que corroem e perturbam a ordem moral na nossa sociedade"1 1 . A frase está em discurso feito na Câmara dos Deputados em 1/9/1874 (ver Anais da Câmara dos Deputados, 1874, vol. 5, apêndice). . A mesma metáfora foi usada em 1889 por Castro Carreira, estudioso das finanças imperiais, para se referir ao empreguismo: "O funcionalismo é um cancro que devora e aniquila as forças do país" (Carreira, 1889:615). Joaquim Nabuco também denunciou o empreguismo e a distribuição de favores. Segundo ele, "o funcionalismo é a profissão nobre e a vocação de todos. Tomem-se, ao acaso, vinte ou trinta brasileiros em qualquer lugar onde se reúna a nossa sociedade mais culta: todos eles ou foram ou são, ou hão de ser, empregados públicos; se não eles, seus filhos" (Nabuco, 1977:163). Se não era o emprego, continuava, eram os contratos, as subvenções, as garantias de juro, as empreitadas, os fornecimentos públicos. Tobias Monteiro, que foi secretário de Rui Barbosa quando este foi ministro, certamente refletindo essa experiência de trabalho, escreveu um libelo contra o funcionalismo, sobretudo contra sua parcela doutoral. Funcionários e doutores formariam, segundo ele, uma casta inútil que vivia à custa do Estado, legislava em causa própria e devorava, em alguns ministérios, mais de 80% do orçamento (Monteiro, 1916).

A ficção também se ocupou do assunto. Joaquim Manuel de Macedo expõe, nas Memórias do Sobrinho de Meu Tio, as pequenas barganhas e as trocas de favores, os empenhos, que costuravam a vida política do Império. O romancista leva à caricatura a atitude interesseira de todos diante da política. Ele repete, pela voz do narrador da história, outra imagem comum, retomada mais tarde pelo próprio Rui Barbosa, para se referir ao fenômeno: os ministros eram animais mamíferos que aleitavam, à custa da nação, as centenas de filhotes que compunham sua imensa ninhada (Macedo, 1995:39).

A correspondência passiva de Rui Barbosa permite-nos ir além dessas denúncias, talvez um tanto retóricas, e examinar mais a fundo a dimensão sociológica e cultural do clientelismo. Por várias razões ela constitui campo privilegiado para estudar o fenômeno. A primeira é sua riqueza, uma vez que Rui teve grande cuidado em preservar os documentos pertinentes à sua atuação política. Outra razão refere-se ao fato de ele ter ocupado dois postos-chave no novo regime, o de ministro da Fazenda e de primeiro vice-chefe do Governo Provisório. Uma terceira diz respeito à mudança da forma de governo, à passagem de um sistema que muitos condenavam como sendo de privilégios e de patronagem para outro exaltado pelos adeptos como baseado na igualdade e no mérito. A primeira razão garantiu a preservação dos documentos; a segunda a relevância dos dados; a terceira permite um teste da profundidade do fenômeno clientelista.

Apesar da importância do fenômeno e da riqueza dos dados, os muitos estudos sobre a passagem de Rui Barbosa pelo Ministério da Fazenda referem-se apenas à grande política (ver, entre outros, Barbosa, 1949; Baleeiro, 1954; Dantas, 1949; Bastos, 1949; Vianna Filho, 1943; Lacombe et alii, 1988). Nenhum se detém na pequena política do patronato. Mesmo nos textos introdutórios aos volumes já publicados da correspondência passiva, pouco se fala sobre o assunto2 2 . Uma exceção pode ser encontrada na apresentação escrita por Francisco Iglésias para o volume da correspondência com os Fonseca, onde se dá a devida importância aos pedidos de emprego, embora sem analisá-los (ver Arquivo da Casa de Rui Barbosa, 1994:7-19). . Tal omissão talvez provenha do viés de biógrafos receosos de que a imagem idealizada de estadista, de financista, de jurista, ficasse arranhada se posta em contato com a política miúda3 3 . A exceção aqui é, naturalmente, R. Magalhães Júnior em seu Rui, o Homem e o Mito. Mas Magalhães Júnior estava mais interessado em desmoralizar Rui Barbosa do que em estudar o clientelismo. . Recentemente, historiadores e cientistas sociais começaram a dar atenção à correspondência como fonte importante para o estudo do clientelismo4 4 . Ao que me consta, o primeiro trabalho acadêmico feito no Brasil dedicado à análise de pedidos a políticos é o de Elisa Pereira Reis, "Opressão Burocrática: O Ponto de Vista do Cidadão" (1990), em que examina cartas dirigidas ao ministro Hélio Beltrão. Posteriormente, Richard Graham (1997) analisou pedidos dirigidos a quatro políticos imperiais no livro Clientelismo e Política no Brasil do Século XIX. Mais recentemente, Luciana Quillet Heymann (1997) trabalhou com a correspondência de Filinto Müller em sua dissertação de mestrado As Obrigações do Poder: Relações Pessoais e Vida Pública na Correspondência de Filinto Müller. .

OS PIDÕES

Durante os quatorze meses de Ministério (de 15 de novembro de 1889 a 21 de janeiro de 1891), Rui Barbosa foi assediado pelos caçadores de emprego e outros favores. Muitos invadiam sua casa, como depõe seu cunhado e testemunha ocular, Carlos Bandeira: "Pedintes e solicitantes de todas as escalas sociais tomavam-lhe em casa os instantes que podia ter para ouvi-los" (Bandeira, 1960:31). Desses pedintes e desses pedidos feitos oralmente não nos restaram traços. Sobreviveram apenas os pedidos feitos por escrito preservados no arquivo de Rui. Eles estão classificados na série Ministério da Fazenda, que inclui 2.529 correspondências (cartas, cartões, telegramas). Dessas, 1.013, cerca de 40% do total, referem-se a pedidos de favor5 5 . Compare-se este número com os 577 pedidos feitos a quatro políticos imperiais que ocuparam vários postos ministeriais e mesmo a presidência do Conselho de Ministros (Graham, 1997:279). Compare-se também com os 14.448 pedidos feitos a Filinto Müller nos nove anos em que ocupou a chefatura de polícia do Distrito Federal (Heymann, 1997:4). Os dados de Heymann são mais comparáveis aos meus, uma vez que se referem a uma só pessoa e ao exercício de um só cargo. Essa autora trabalhou com uma amostra de 4.224 cartas. . Foram escritos por 409 pessoas, em uma média de 2,5 cartas por correspondente. Foram feitos 1.145 pedidos, ou seja, 2,8 por pedinte. Dos pedidos feitos, 1.012 o foram para pessoas físicas e 133 para pessoas jurídicas. Apesar de estarmos lidando apenas com os pedidos documentados, o número representa a média de 2,7 pedidos por dia de permanência de Rui no Ministério. É um número sem dúvida significativo.

As tabelas incluídas neste texto referem-se a três totais distintos, indicados em cada caso: aos 409 missivistas, às 1.013 cartas de pedidos, aos 1.012 pedidos para pessoas físicas. Os pedidos para pessoas jurídicas não foram tratados estatisticamente. A grande maioria dos pedintes, 67%, escreveu apenas uma carta. Mas outros foram mais insistentes e alguns sem dúvida exageraram, como se pode ver na Tabela 1.

Os quatro campeões de pedidos, com 30 ou mais cartas, são o conselheiro Dantas (44 cartas), José Isidoro Martins Júnior, professor da Faculdade de Direito do Recife e chefe de polícia interino (37 cartas), o paulista Francisco Glicério, ministro da Agricultura (35 cartas), e Manuel Vitorino Pereira, presidente da Bahia, amigo de Rui e futuro vice-presidente da República (30 cartas).

Quem pedia favores a Rui Barbosa? Muita gente. Colegas de governo, militares e civis, como Benjamin Constant e Campos Sales; políticos como Aristides Lobo, militares como o visconde de Pelotas; republicanos históricos e exaltados, como Saldanha Marinho, Silva Jardim, Sampaio Ferraz, Aníbal Falcão; escritores e professores como Júlio Ribeiro e Ernesto Carneiro Ribeiro; parentes, como a tia Luíza Adelaide e o primo Antônio Jacobina; amigos, colegas de faculdade, correligionários; desconhecidos. Seis mulheres fazem parte da lista de pidões, inclusive dona Marianinha, mulher de Deodoro. O marechal Floriano Peixoto, que entrou para a história com a imagem de austeridade, fez tantos pedidos (20 cartas) que, ao agradecer uma nomeação confessa: "são muitos os meus pedidos por isso não me recordo ter intercedido a favor desse Dr." (Rio, 25/8/1890). Barata Ribeiro, prefeito republicano do Rio de Janeiro, pediu a nomeação do irmão Atanagildo como governador de Goiás e não se esqueceu também do futuro genro. O ex-professor de Rui, Ernesto Carneiro Ribeiro, pediu para si um cargo na Faculdade de Medicina da Bahia, e quis também emprego para um irmão. O romancista Júlio Ribeiro, tísico, pediu um consulado na Europa a fim de poder tratar da saúde.

Menção especial merecem os Fonsecas, que ocuparam várias posições importantes no início da República. Eram grandes pidões, em alguns casos para si, na maioria para outros. A amostra inclui 74 cartas do clã, 25 das quais de seu chefe, Deodoro. Pedia o generalíssimo Deodoro, presidente da República, pedia sua mulher dona Marianinha, pedia o irmão João Severiano, secretário pessoal de Deodoro, pedia o irmão tenente-coronel Pedro Paulino, governador de Alagoas, com quem Rui teve alguns atritos, pedia o irmão marechal Hermes Ernesto, governador da Bahia, pedia o sobrinho e secretário do governo, major Hermes Rodrigues, futuro rival de Rui na campanha presidencial de 1910, pedia a tia Luíza Adelaide, e a cunhada, Rita Hermes, mulher de Hermes Ernesto6 6 . A correspondência completa de Rui com os Fonsecas está em Arquivo da Casa de Rui Barbosa (1994). Certamente, muitos pedidos não ficaram registrados por escrito, ou não foram preservados. . Dona Mariana da Fonseca fez cinco pedidos, um deles, de fiel de armazém, para um sobrinho, todos em papel timbrado do gabinete do chefe de Estado.

Outra família que merece referência à parte é a dos Dantas. Ao todo, o clã enviou 48 cartas de pedidos ao ministro Rui Barbosa. O campeão de cartas de pedidos foi o patriarca, conselheiro Manuel Pinto de Sousa Dantas. Sozinho, mandou 44 cartas. Eram íntimas as relações entre Rui, o conselheiro Dantas e os filhos deste último, sobretudo Rodolfo Epifânio7 7 . A correspondência completa do conselheiro Dantas e de Rodolfo Epifânio com Rui Barbosa pode ser encontrada em Arquivo da Casa de Rui Barbosa (1962; 1973). . Dantas fora chefe político e protetor de Rui. Em 1874, por ocasião da morte do pai de Rui, passou ao filho o emprego do pai, de Inspetor da Estação Central da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, da qual Dantas era o provedor. Na época da proclamação da República, era diretor do Banco do Brasil, cargo que manteve até a morte, em 1894, sem dúvida graças à presença de Rui no Ministério da Fazenda. Foram intensas as relações entre ele e o ministro da Fazenda. A situação era um tanto constrangedora, pois invertera-se a hierarquia, o antigo chefe tornara-se subordinado. As cartas de Dantas, sobretudo os pedidos de emprego, revelam, no entanto, que ele não abandonou a postura de chefe. Os pedidos soam muitas vezes como ordens. Isto certamente contribuiu para o esfriamento da relação entre os dois.

O grosso dos pidões era composto de funcionários públicos, civis e militares, e de políticos e profissionais liberais (ver Tabela 2).

Predominam os funcionários públicos, seguidos de políticos (muitos deles provavelmente também funcionários) e de profissionais liberais (advogados, médicos, professores, engenheiros). A predominância de funcionários públicos sugere que talvez Nabuco não estivesse totalmente correto ao dizer que o emprego público era a vocação de todos. Mas a conclusão pode ser precipitada, pois deixa de fora as 134 pessoas para as quais não há informação sobre profissão. Funcionários públicos dificilmente deixavam de indicar sua condição, podendo-se, portanto, supor que os 134 não estavam entre eles. A suposição será confirmada quando examinarmos os tipos de favores solicitados. De qualquer modo, os pedidos sempre vinham de quem podia escrever, ou de quem tinha amigos e protetores importantes, o que sem dúvida deixava de fora grande parte dos brasileiros da época.

Funcionários e pretendentes ao emprego público estavam muito bem informados sobre vagas atuais ou futuras. Sabia-se quando alguém pretendia aposentar-se ou ser transferido, abrindo vaga. Ou que alguém estava doente e teria que ser substituído. Alguns pedidos sugeriam operações complicadas, combinando transferências e demissões para que no fim se abrisse a vaga pretendida. Exemplo disso é a carta do ex-deputado do Império, Francisco Prisco de Sousa Paraíso (Cachoeira, 17/2/1890). Paraíso queria que Rui conseguisse junto ao ministro da Justiça a criação de um juizado em Riachão e junto a Manuel Vitorino, governador da Bahia, a transferência para lá do juiz municipal de Feira de Santana. Para a vaga aberta em Feira, pedia a nomeação do genro bacharel. Outro exemplo de boa informação é o do barão de Oliveira Castro. Ele pediu a intermediação de Dantas para conseguir de Rui vaga de fiscal do Banco Agrícola do Brasil para um protegido. Mas acrescentou que a nomeação teria que ser feita naquele mesmo dia, quando a vaga se abria, porque "amanhã será tarde" (Capital, 16/12/1889).

Os pedintes podem ser classificados em vários tipos. Havia o chato insistente. O juiz municipal Aristides Elias Penalva de França escreveu sete cartas pedindo uma comarca na Bahia ou Sergipe (há neste estado um juiz cego, informou). Veio ao Rio, bateu à porta de Rui e, não sendo recebido, escreveu à mulher deste, Maria Augusta. Depois disse aceitar comarca de Pernambuco para o sul. Mais tarde já se contentava com emprego na alfândega. Por fim, conformava-se em ser nomeado chefe de seção (primeira carta em 4/1/1890, última em 11/11/1890). Outro chato completo era o barão de Paranapiacaba, João Cardoso de Menezes e Sousa, funcionário público e ex-deputado geral, que atormentava Rui com pedidos constantes para si e para outros. Chegou a pedir aposentadoria com vencimento integral, gratificações e acúmulo de aposentadoria com novo emprego, alegando os trinta anos de serviços prestados à pátria (Rio, 20/11/1889). O oficial de gabinete de Rui, Antônio Joaquim de Sousa Botafogo, encarregado de administrar os pedidos, acabou perdendo a paciência com o barão e o acusou de se empenhar por pessoas ruins e exercer nefasta influência nepotista (Rio, 9/8/1890). Havia ainda o exigente. E. Vaz Ferreira, que se dizia colega e amigo de Rui, pediu emprego para o irmão na Bahia (Bahia, 9/1/1890). Podia ser qualquer emprego, desde que o vencimento não fosse inferior a dois contos de réis ao ano, soma razoável à época. J. J. Seabra, mais tarde vice-presidente da República, queria emprego de mais de três contos na alfândega da Bahia ou do Recife para educar os filhos (Bahia, 10/3/1890). Havia o arrogante, como o conselheiro Manuel Pinto de Sousa Dantas. O velho Dantas não pedia, mandava. Em uma carta (Rio, 25/1/1890) informou a Rui que seu amigo, barão de Araújo Maia, "aceitará [sic] um lugar na diretoria do Banco dos Estados Unidos do Brasil". E terminou: "A resposta darás verbalmente ao meu amigo, Sr. Barão, ou a mim por escrito e sem demora". Outro tipo era o chorão. Manuel do Nascimento Moreira diz que seu protegido dorme no chão e a mulher está grávida. Rui é chefe de família e sabe que "há misérias por este mundo que só os bons corações sabem suavizar" (carta sem data). Chorão também era o baiano Adolfo da Silva Pinto que escreve diretamente à Maria Augusta, mulher de Rui. Alegando penúria excessiva, apela para as qualidades de mãe extremosa de Maria Augusta e pede em nome dos bem-amados e inocentes filhinhos dela (Bahia, 2/9/1890). Antônio Alves Boaventura fazia o tipo modesto. Queria simplesmente a proteção e o amparo de Rui. Qualquer emprego estava bom: "Entrego o meu futuro e o de minha família a vós, brasileiro dos brasileiros" (Bahia, 14/4/1990). Havia, por fim, o prático. José Isidoro Martins Jr., professor da Faculdade de Direito do Recife, foi, como vimos, campeão de pedidos. Chegou a fazer sete em uma só carta. Para facilitar o trabalho de Rui, informou que este só deveria considerar as cartas marcadas como particulares. As outras ele as escrevia só para se livrar dos importunos (Recife, 12/2/1990).

Outra informação de interesse é sobre a origem geográfica dos pidões. Os dados de origem geográfica são aproximados. Eles foram deduzidos do local de remessa da correspondência, o qual nem sempre coincide com o de nascimento. A verificação da naturalidade de todos os missivistas é tarefa quase impossível, de vez que muitos deles são pessoas pouco conhecidas. De qualquer modo, excetuando-se o caso da capital (Rio de Janeiro), onde viviam muitas pessoas de outros estados, o estado de remessa não deve destoar muito do de nascimento. Os dados estão na Tabela 3.

A maioria esmagadora dos pidões (68%) provinha da capital federal e da Bahia. Rui Barbosa aparece como homem do governo federal e de seu estado natal. A presença da capital era de esperar pois nela se concentrava a burocracia federal. A forte presença da Bahia poderia surpreender tendo em vista que no Império a elite política era submetida a intenso processo de nacionalização. Lembre-se, no entanto, que Rui pertencia à nova geração de políticos que não percorrera a trajetória clássica da geração que o precedera, que passava pelo exercício da magistratura e da presidência de uma ou mais províncias distintas da de nascimento. É compreensível, então, que os pidões viessem da capital de sua Bahia natal onde tinha parentes e amigos e por onde se elegera deputado geral desde 1878. A baianidade foi, aliás, usada como argumento por alguns pidões, como se verá adiante8 8 . A importância da província de origem ou da atuação política aparece também no estudo de Graham (1997:294-300) e de Heymann (1997:108-111). O peso político das famílias era fator importante nesse provincianismo. .

Os outros estados dividiam os demais pedidos, com alguma vantagem para os do Norte (17% contra 12% do Sul). Digno de nota é o fato de que os dois grandes estados que iriam dominar a Primeira República, São Paulo e Minas Gerais, estão quase totalmente ausentes (apenas 5% dos missivistas). Mesmo levando-se em conta que pessoas desses estados, sobretudo os ministros, escreveram da capital, sua presença não reflete o peso que logo iriam ter no novo regime. Sob este ângulo, tratava-se, obviamente, de momento atípico e temporário da vida da República. No que se refere aos empregos públicos, parece ter havido no Governo Provisório algum entendimento no sentido de lotear os estados entre os ministros. É o que se deduz de carta de Francisco Glicério, ministro da Agricultura, em que afirma que "na divisão dos estados ficou com o Rio Grande do Sul" (Capital, 14/6/1890). Como Glicério dividia com Campos Sales a cota de São Paulo, acabava tendo uma situação privilegiada, embora seu Ministério não fosse dos mais atraentes do ponto de vista da oferta de empregos9 9 . Para os pedidos de paulistas dirigidos a Glicério, ver Abrahão (1996). Campos Sales entendia-se com Glicério sobre nomeações em São Paulo e Rio Grande do Sul, como mostra carta sua de 22/10/1890 (idem:165). . Outra indicação do loteamento dos estados pode ser encontrada em carta de Rui a Deodoro em 15/8/1890, na qual o ministro da Fazenda diz que Floriano Peixoto "com aprovação de V. Exa., tem o encargo dos negócios do Estado de Alagoas"10 10 . A carta está reproduzida em Arquivo da Casa de Rui Barbosa (1994:129). .

OS PEDIDOS

Os pedidos beneficiavam o próprio missivista ou algum protegido. Do total de 1.012 pedidos em favor de pessoas físicas, 28% enquadravam-se no primeiro caso, o restante, 72%, no segundo11 11 . A porcentagem é muito próxima dos 80% encontrados por Heymann (1997), e não muito distante dos 88% da amostra de Graham (1997:279). . Pedidos em benefício de outros constituíam os famosos empenhos, condenados por todos, praticados por todos. A decisão de se dirigir diretamente a Rui ou fazê-lo por intermédio de outro dependia do cálculo de cada um. Quem se julgava com trunfos suficientes, fazia o pedido diretamente. Do contrário, socorria-se de alguém que os tivesse. O alto número de empenhos indica que o patronato era elemento importante no exercício do poder, esperado pelos favorecidos, aceito pelos que o exerciam. Na análise dos pedidos e de suas justificativas não será feita distinção entre pedidos em benefício próprio e empenhos.

Eram muitos os tipos de favores solicitados. A Tabela 4 classifica-os de acordo com a freqüência.

A grande maioria dos que não eram funcionários públicos queria mesmo era um emprego no Estado, para si ou para parentes, amigos e protegidos. Uma minoria pedia auxílios, ajudas de custo, pecúlios, doações, empréstimos, intermediação. Cristine von Düring, alemã, dizendo-se descendente de nobres, com livro escrito sobre educação feminina, pediu ajuda para se empregar como educadora em casa de família (Hotel Carson, 29/11/1890). Cândida Muniz Barreto da Costa teve a cara-de-pau de pedir logo um empréstimo de 150$ (Capital Federal, 14/1/1891). Outro cara-de-pau meio desastrado era um tal de J. Ed. d’Alcântara que, escrevendo da Bélgica, alegou ser parente de D. Pedro II e pediu dinheiro para sustentar a família e abrir um negócio (Cirrey, 29/12/1889). Os funcionários pediam nomeações, promoções, gratificações, ajudas de custo, aumentos de vencimentos, licenças, dispensas, transferências, aposentadorias. As transferências eram particularmente importantes para juízes de direito em busca de comarcas mais rentáveis. Como caso único e quase folclórico, note-se o "favor negativo" solicitado por Aarão Reis, o futuro construtor de Belo Horizonte. Reis pediu a Rui que evitasse que o nomeassem vice-diretor dos Telégrafos (Catete, 7/1/1890).

Os pedidos para pessoas jurídicas eram em número reduzido (12% do total), e não estão incluídos nas tabelas. Referiam-se a empresas, associações beneficentes, governos estaduais. Nestes casos, pediam-se créditos, empréstimos, garantias de juros, isenções de impostos, subvenções, doações. Dentre os governadores, Manuel Vitorino, da Bahia, salienta-se como o maior pidão, tanto para beneficiar o estado como amigos e parentes. Serzedelo Correia, governador do Paraná, e Henrique Pereira de Lucena, de Pernambuco, também comparecem com pedidos pessoais e para seus estados. O empresário baiano João Ramos de Queirós, em carta do Rio de Janeiro, sem data, solicita vários privilégios para companhias de navegação e estradas de ferro, negados pelo ministro da Agricultura. Reclama que desde que veio a República não teve o prazer de ganhar um real do Estado. Caso raro, por vir de uma associação, é o do apelo dos comerciantes da praça do Rio de Janeiro contra a cobrança em ouro dos impostos de importação.

Embora Rui fosse ministro da Fazenda, portanto diretamente responsável apenas pelos empregos nesse Ministério, os pedintes sentiam-se à vontade para solicitar colocações em outros ministérios (Tabela 5).

Os pedidos concentram-se no Ministério da Fazenda, mas quase 30% deles referem-se a outros ministérios. Isto pode significar duas coisas. A primeira é que Rui era visto como figura influente, capaz de interferir direta ou indiretamente nos outros ministérios. A outra é que havia percepção pouco clara dos pedintes quanto à divisão das tarefas administrativas. Chama a atenção o grande número de pedidos referentes ao Ministério da Justiça. O fato talvez se explique pelas vinculações profissionais de Rui, advogado e jurista, com a área do direito. O Ministério da Fazenda tinha os cargos mais cobiçados do governo, localizados sobretudo no Tesouro Nacional, nas alfândegas e mesas de renda, nas coletorias e nas tesourarias. Era nas alfândegas que se concentrava a maioria dos pedidos (33%), pela boa razão de estarem nelas as maiores possibilidades de ganhos extra-salariais. Refletindo o momento de especulação financeira que caracterizou a gestão de Rui, aparecem 58 pedidos de nomeação de fiscal de banco, emprego excelente pela boa remuneração e pouco trabalho.

A RAZÃO CLIENTELISTA

O que a correspondência traz de mais importante, no entanto, não são os pedidos em si mas suas justificativas. São elas que nos revelam a razão clientelista, isto é, os valores sociais e a visão de governo que sustentavam moralmente os pedidos. As justificativas são muito variadas, mas podem, sem grande violência aos dados, ser agrupadas em três categorias. Da parte de quem pede, predomina o motivo da amizade, incluindo-se aí as relações de parentesco e coleguismo. Da parte do recomendado, que pode ou não ser o mesmo que pede, há duas razões principais, a necessidade financeira, pessoal ou familiar, e a competência, aí incluídas a habilidade, a experiência e a antigüidade. Ficam fora dessas três categorias 181 justificativas, classificadas como outras. Nelas se incluem cumprimento de promessas, reparação de injustiças, serviços pessoais e políticos, razões de serviço etc. (ver Tabela 6).

A análise das justificativas é dificultada porque muitas vezes mais de uma era alegada, sobretudo quando uma era usada para quem pede e outra para o protegido. Para dar conta dessa complicação foi construída a matriz da Tabela 6 que indica a menção de uma só justificativa e a combinação de duas. A tabela deve ser lida verticalmente. A última coluna indica que competência aparece como justificativa em 34,9% dos casos, seguida de amizade com 27,6%, e necessidade financeira com 18,8%, formando juntas 81,3% do total12 12 . Trato amizade e parentesco em um só bloco mas, obviamente, predomina a amizade. Poucos parentes de Rui recorreram a cartas para pedir favores. Não há muita discrepância em relação aos dados de Graham. Segundo este autor, 16% dos missivistas alegavam razões de amizade ou parentesco, 25,6% alegavam mérito, 12% necessidade (1997:331-332). Heymann não fornece números, mas afirma que "As relações de amizade [...] aparecem como o elemento mais recorrente na legitimação de um pedido" (1997:116). . Outras justificativas respondem pelos restantes 18,7%. As demais colunas indicam a combinação de justificativas, duas a duas. As três principais aparecem quase sempre combinadas. Apenas competência aparece na maioria das vezes (54%) isolada. Necessidade pessoal é a que menos aparece isoladamente (32,1%).

São muitos os exemplos de recurso à amizade e ao parentesco. O servente Carigé Baraúna queria ser bedel ou porteiro da Faculdade de Medicina da Bahia. Escreve: "fiado na nossa antiga amizade e relações de família" (Bahia, 22/1/1890). Sugere a demissão do porteiro ou do bedel em atividade por estarem velhos. Com imensa ingenuidade, diz que agora está confiante pois com a República "finalizou-se o reinado da afilhadagem". O juiz municipal Aristides Elias Penalva de França deslocou-se até o Rio de Janeiro para pedir uma comarca "confiado unicamente em nossas relações de Academia e coleguismo". Não pôde consegui-la "no tempo dos governos do filhotismo e das patotas", mas, como Baraúna, acredita nas instituições puras do novo regime (Rio, 15/2/1890). O juiz de direito Benvenuto Alves de Carvalho queria comarca melhor e lembra as relações acadêmicas com Rui e o fato de estar "cansado de andar por estes sertões inóspitos" (Piauí, 26/1/1890). Outro juiz de direito, Lino Cassiano Lima, também confia na amizade que o une a Rui desde os "mais verdes anos" (Inhambupe, 14/3/1890). O professor de colégio, Severo Américo Pessoa da Silva, quer ser arquivista da alfândega da Bahia. Como justificativa manda foto e nomeia várias testemunhas prontas a confirmarem que é primo de Rui (Bahia, 21/1/1891). Razões pertinentes à família do pidão também são alegadas. Virgílio Silvestre de Faria quer emprego para o futuro genro a fim de casar a filha (Bahia, 2/9/1890). Manuel Vitorino pede nomeação de parentes e desculpa-se dizendo que o faz "para atender a instâncias de família, cujo valor todos conhecem" (carta sem data). A viúva Escolástica Rodrigues Viana quer para um filho o emprego de condutor de 1a classe "pela amizade de sua Cota e de seus filhos" (Bahia, 10/12/1890). Apelo dramático em nome da amizade e da família é o do baiano Amâncio de Carvalho que pede emprego de fiel da alfândega para o pai. E apela: "Lembre-se que é um filho que pede por seu pai, lembre-se que é um amigo da infância que [ilegível] pede, suplica complacência para seu pai; lembre-se finalmente que é o teu Amâncio que assim fala" (s/l, 25/3/1890). Um sobrinho do conselheiro Dantas, João dos Reis de Souza Dantas Filho, pede, em nome da amizade com Rui, que um amigo, médico do exército, seja transferido. João dos Reis expressa de maneira contundente a justificativa da amizade: "os amigos foram feitos para servirem os amigos" (Bahia, 5/4/1890).

Necessidades pessoais ou familiares eram freqüentemente mencionadas, às vezes em tom dramático. Augusto José Chaves Jr., dizendo-se um infeliz, pede um emprego qualquer pois "onerado de família, fica desesperado em ver-se rodeado de crianças e não poder educá-las" (Bahia, 7/1/1891). O juiz de direito Benjamin Bandeira quer uma comarca pois precisa de renda para sustentar os oito filhos (Recife, 2/1/1890). Seu colega, Joaquim Spínola, quer a comarca de Cachoeira para reunir a família: mulher, seis filhos, a mãe, a sogra e três cunhadas (Porto Seguro, 4/7/1890). O general Benjamin Constant pede emprego para um amigo que tem dificuldade em manter imensa família (Capital, 28/2/1890). Drama maior era o de Camilo Borges de Barros. Quer emprego em qualquer repartição, pois é paupérrimo, o pai sofre dos pulmões, não tem notícias dos tios, e tem família de 14 pessoas (Bahia, 21/12/1889). Não ficava atrás o 2º escriturário Fortunato José de Andrade Jr.: "Sobrecarregado de família", há nove anos longe dos pais e irmãos, acha impossível continuar a vida sem que algum amigo o proteja. Rui é sua esperança (Recife, 6/3/1890). Outro que quer que Rui seja seu protetor é o jornalista Francisco Xavier Marques. Pai de família sem recursos, está desanimado. Quer emprego para servir à pátria e à família (Bahia, 8/11/1890). O romancista Júlio Ribeiro quer um consulado na França, Grécia, ou mesmo Egito, para se tratar da tísica que os médicos dizem estar em grau adiantado (Sorocaba, 19/1/1890). A indistinção entre o público e o privado fica nítida na carta do advogado Eduardo Guimarães Veloso. Ele quer ser curador de massas falidas pois tem dez filhos e "estes deve a República principalmente olhar" (Bahia, 28/1/1890).

Em quase 35% dos pedidos foi mencionada a competência, ou mérito, do pedinte ou do protegido, para o exercício do cargo pretendido, uma porcentagem significativa. Às vezes, admitia-se abertamente a incompetência própria ou do recomendado. É o caso do juiz de direito Benvenuto Alves de Carvalho que diz não ter "verdadeiras credenciais" (Piauí, 26/1/1890). Ou do jornalista Francisco Xavier Marques, para quem a bondade de Rui suprirá sua falta de merecimento (Bahia, 8/11/1890). Até mesmo Barata Ribeiro, ao pedir o governo de Goiás para o irmão Atanagildo, reconhece que ele não tem experiência. Mas votou em Rui, acrescenta (Rio, 21/11/1889). Um caso justificado de recurso ao argumento do mérito é o do romancista Júlio Ribeiro. Já mencionei seu pedido de um consulado na Europa para tratamento de saúde. Sem falsa modéstia, diz ser "um brasileiro que o Brasil não deveria deixar morrer à míngua" (Sorocaba, 19/1/1890). Em carta anterior alegara contra o argumento de não ser concursado: "há vinte e cinco anos que eu estou a fazer concurso público pela cátedra de mestre, pelo livro, pelo panfleto, pelo jornal" (Sorocaba, 12/12/1889).

Verdadeira avis rara, em toda a correspondência, e talvez em toda a burocracia da época, é Antônio Ennes de Sousa, nomeado por Rui diretor da Casa da Moeda. Ele pediu a Rui que não fizesse uma nomeação de praticante para evitar o empenho "que só consulta o interesse individual, por vezes bem ilegítimo, dos pretendentes e de seus patronos". Só se deveriam levar em conta, diz ele, provas de máxima capacidade, mais e melhores exames e prática anterior (Capital Federal, 30/9/1890). Tal posição era tão destoante que Ennes foi acusado de insano pelo oficial de gabinete de Rui, Antônio Joaquim de Sousa Botafogo. A irritação de Botafogo pode ser explicada pelo fato de o candidato recusado por Ennes ser seu recomendado (Botafogo a Rui, Rio, 29/9/1890).

Entre as outras justificativas não discriminadas na tabela, merece referência à parte a baianidade. Quando Rui é chamado de patrício, pode-se esperar um apelo ao provincianismo. Temístocles da Rocha Passos quer que um protegido seja nomeado médico do exército ou da armada. Faz o pedido por saber que Rui é "solícito com os baianos" (Bahia, 3/2/1890). Nosso já conhecido Fortunato José de Andrade Jr. confia em Rui porque "sendo filho da heróica Bahia, conserva no coração a auréola da caridade" (Recife, 6/3/1890). Antônio Alves Boaventura é outro que apela a Rui como baiano (Bahia, 14/4/1890). De Riachão do Jacuípe escreve Appiano Ambrósio de Figueiredo pedindo criação de comarca para o município e para um juiz amigo, dizendo-se "filho do nosso velho estado da Bahia" (11/2/1890).

Razões político-partidárias também aparecem, embora em número reduzido. Já vimos o caso de Barata Ribeiro. Aristides Lobo menciona a necessidade de "colocar os amigos com que podemos contar" (Rio, 24/12/1889)13 13 . Marcos Veneu observou que a palavra amigo pode ser usada também para se referir a amigos políticos. De fato, é o que acontece aqui. Mas na correspondência fica clara a distinção entre amizade pessoal e amizade política. De qualquer modo, merece atenção o fato de se transpor uma expressão própria do mundo privado para o mundo público. . Campos Sales também sempre fala em beneficiar os amigos políticos (Rio, 22/4/1890). O tenente-coronel Manoel Godolfim alega em seu favor ter-se exposto ao lado de Deodoro no dia 15 de novembro (Paraíba, 18/1/1890). Manoel Vitorino recomenda o coronel Durval Vieira de Aguiar que sempre serviu à República e apoiou Rui nas eleições para a Constituinte (Bahia, 20/11/1890).

Amizade, família, necessidade pessoal ou familiar, combinadas, formam o principal núcleo de justificativas para os pedidos de favor. Muitos pedintes estão absolutamente convictos de que são justificativas suficientes. A convicção baseia-se em dois elementos. Um é a certeza da obrigação moral que cada um tem de proteger a família e os amigos; o outro, a noção de que é legítimo usar recursos públicos para fins particulares. Os amigos foram feitos para servir os amigos, diz João dos Reis. A República deve olhar pelos filhos de seus cidadãos, completa Eduardo Guimarães F. Veloso. A bandeira da República é muito grande, resume Jaime Serva. A obrigação moral de Rui é aumentada pelo fato de ele se achar em situação privilegiada para ajudar, pois tem à disposição os cargos públicos.

Mas a referência à competência, isolada ou em combinação com outras justificativas, indica alguma noção de separação entre o público e o privado. No mínimo aponta que, para alguns, já não bastava alegar motivos pessoais. Ennes de Sousa era exceção absoluta, mas muitos se sentiam obrigados a usar justificativas pertinentes às necessidades do cargo e não apenas às da pessoa do pretendente. Até que ponto isto se devia à retórica e à tática, e não à convicção, é pergunta difícil de responder. Em favor da retórica está o fato de alguns missivistas pedirem emprego em nome da amizade, argumentando que o novo regime acabara com o filhotismo e as patotas do antigo. Tal falta de consciência do que se estava fazendo parece indicar que estamos em pleno domínio da retórica. Em favor da tática, está a informação de que era do conhecimento de muitos que Rui detestava o empenho e o filhotismo. Joaquim de Oliveira Machado, por exemplo, diz saber que Rui "despreza a via tortuosa do empenho" (Barra Mansa, 13/12/1890).

Na lista de pedidos, só um sugere alguma virtude republicana. Manoel Carlos de Gouveia pediu a Rui que o governo se abstivesse de influir na eleição para a Constituinte. Segundo ele, a República se impopularizava ao comprimir a liberdade de imprensa e de tribuna. Ela devia ser o governo do povo pelo povo (Paraíba, 18/1/1890). Manoel Carlos deve ter sido visto como tão insano quanto Ennes de Sousa.

A LINGUAGEM DOS PEDIDOS

A linguagem do tratamento e da despedida usada na correspondência não tem merecido a atenção dos estudiosos, talvez por parecer mera formalidade, parte da etiqueta que se aprendia na escola ou nos manuais disponíveis nas livrarias14 14 . Para o Brasil, a única exceção talvez seja Fernando Uricoechea que em O Minotauro Imperial (1978, cap. VIII) usa fórmulas de despedida na correspondência de oficiais da Guarda Nacional como indicação da passagem do patrimonialismo para a burocracia. Para exemplo de um manual, ver O Secretário Brazileiro, Contendo 306 Modelos de Cartas sobre Todos os Assuntos e um Formulário de Requerimentos e Memoriaes (s/d). O livro inclui cartas de pedidos de favores. Agradeço a Isabel Lustosa a indicação deste livro. . A impressão é enganosa. Sem dúvida, havia formalidade. "Sr.", "Exmo. Sr.", "Ilmo. e Exmo. Sr.", "Dr." são fórmulas tradicionais de tratamento que significam apenas isto, fórmulas. Mas um rápido exame da correspondência já revela grande variedade de tratamentos, algumas dezenas deles, mais do que justificariam as fórmulas tradicionais. Ao variar a forma de se dirigir a Rui, os missivistas iam além da formalidade, mandavam um recado. Não significava a mesma coisa, por exemplo, usar Exmo. Sr. ou primo e amigo, amigo e colega, patrício, cidadão, general, conselheiro, ou uma combinação desses tratamentos.

O mesmo pode ser dito das despedidas. Há as tradicionais: atento, obrigado, admirador, venerador, criado etc. Elas também não são ingênuas. Quem se despede como servo ou criado revela, talvez inconscientemente, postura distinta de quem o faz como admirador. E pode-se perguntar ainda por que alguém se definiria como criado ou servo. Aqui, também, a variedade encontrada nas cartas é grande: amigo, colega, patrício, correligionário, concidadão, subordinado, saúde e fraternidade, teu do coração etc.

Pode-se explorar o significado do tratamento e da despedida em duas dimensões. A primeira é a que se refere à intenção do missivista, à mensagem que queria mandar a Rui. O tratamento pode sugerir formalidade, respeito, admiração, intimidade, amizade. Ele classifica Rui e o coloca em um tipo de relação que favoreceria o atendimento do pedido feito. A despedida, por sua vez, autoclassifica o autor da carta, complementando a relação que deseja estabelecer, o constrangimento que deseja criar. A relação pode ser de amizade, coleguismo, parentesco, de líder-liderado, chefe-subordinado, benfeitor-beneficiado, superior-inferior etc. A segunda dimensão só pode ser detectada pelo analista pois foge à percepção do missivista. O tratamento e a despedida podem ser vistos como indicadores de valores e percepções sociais e políticas, de padrões de relações sociais. Pode-se perguntar, por exemplo, o que significa, do ponto de vista sociológico, o uso constante dos substantivos servo, criado, súdito, ou dos adjetivos obrigado, obediente, humilde, submisso.

"Eminente cidadão-general-doutor Rui Barbosa"

Dada a enorme variedade de tratamentos, fez-se necessária uma codificação. Eles foram divididos em três categorias. A primeira inclui os formais Dr., Sr., S. Exa., Exmo. Sr. As duas outras foram inspiradas nas classificações de "casa" e "rua" desenvolvidas por Roberto DaMatta a partir de sugestões de Gilberto Freyre (DaMatta, 1987:31-69). "Casa" inclui todos os tratamentos que se referem ao mundo doméstico e às relações pessoais afetivas, como amigo, compadre, primo, protetor, Rui. Os tratamentos referentes ao mundo extradoméstico foram classificados como de "rua". Como se vivia um momento de mudança de regime político, julguei útil subdividir os últimos de acordo com a definição de Rui como monarquista (conselheiro) ou como republicano. O tratamento republicano, por sua vez, foi subdividido em militar (general) e civil (cidadão, concidadão). Finalmente, vêm os outros tratamentos de "rua" não referentes à lealdade ao regime político. Entram aí chefe, correligionário, mestre, colega, patrício, compatriota. Foram classificados como "outros".

Uma complicação adicional é que raramente os missivistas usavam uma só forma de tratamento. Na maioria das vezes, faziam combinações, juntando, por exemplo, o formal e o familiar ou o político, o monárquico e o republicano, o militar e o civil etc. A Tabela 7 fornece um quadro geral dos tratamentos.

Observando os totais por coluna, vê-se que o tratamento formal é o mais utilizado, seguido, em parcelas iguais, por "casa" e "rua". Quem não era íntimo de Rui e não se movia por razões político-ideológicas dificilmente poderia dispensar a formalidade. A revelação mais importante, no entanto, é a de que 65,5% dos tratamentos são combinações e apenas 34,5% representam usos isolados. O tratamento menos usado isoladamente é o de "rua", o mais usado é o de "casa", ficando o formal em posição intermediária. Na metade dos tratamentos que se referiam ao mundo doméstico, à amizade e ao parentesco, os missivistas sentiam-se dispensados de recorrer a outro tratamento. Não havia nesses casos nenhuma percepção de que a concessão de emprego público envolvesse qualquer dimensão que extrapolasse o mundo das relações pessoais. Esta conclusão é reforçada pelo fato de que o tratamento de "rua" é usado isoladamente em apenas 13,5% dos casos. Isto é, este tratamento (conselheiro, cidadão, general, chefe) não era considerado suficiente para efeito de convencimento. Ele tinha que vir combinado com elementos pessoais ou com a formalidade convencional, ou com ambos. O tratamento formal, por sua vez, embora o mais usado, também era, na maioria dos casos, acoplado a outro. Cumpria-se a formalidade, uma exigência social, mas acrescentava-se a substância do ingrediente pessoal ou político.

Mostrada a importância das combinações, a pergunta seguinte tem a ver com o tipo de combinação utilizado. A resposta está na Tabela 8.

O tratamento doméstico (casa), quando vem só (41,9% dos casos), pode ser simples como em "amigo Rui", "meu caro Rui" (Dantas), ou duplicado, como em "primo e amigo", "compadre e amigo" (Deodoro). Pode ser combinado com o formal. Exemplos: "amigo Dr. Rui", "amigo e senhor Rui Barbosa", "amigo Sr. Dr. Rui Barbosa". Ou este outro em que o amigo fica soterrado pela abundância da formalidade: "Exmo. amigo Sr. Dr. Rui Barbosa". Mas combina-se também com o tratamento público (rua), como em: "amigo e colega", em geral usado por colegas de ministério, "eminente chefe e distinto amigo", usado por correligionários, "amigo conselheiro", "bom cidadão e amigo" etc. A tabela não indica, mas freqüentemente há combinação de três tratamentos: "Ilmo. amigo conselheiro", ou, melhor ainda, o imbatível "Ilmo. e Exmo. amigo Sr. conselheiro Dr. Rui Barbosa". Este último pode ser dividido em três tratamentos conjugados. Primeiro vem o amigo, cercado de formalidade, depois o título imperial, também acompanhado da formalidade do Sr. e, finalmente, o nome qualificado pelo Dr. Uma combinação destas derrota qualquer tentativa de distinguir qual o elemento predominante, se a amizade, se o respeito formal, se a identificação política.

O tratamento "rua" combina-se sobretudo com o formal. São muitas as variantes: "Sr. conselheiro", "Exmo. Sr. ministro", "Exmo. Sr. general Dr.", "colega Dr.", "Ilmo. Exmo. Sr. conselheiro Dr.", "Exmo. cidadão Dr.". Juntam-se coisas conflitantes, como o "general Dr." e o "cidadão Dr.". Sabe-se que o Governo Provisório concedeu, em maio de 1890, a todos os ministros civis honras de general-de-brigada. Rui ficou vexadíssimo com a duvidosa homenagem; só a aceitou a instâncias de amigos republicanos. As honras foram cassadas por Floriano em 1893 e devolvidas por Prudente de Morais em 1898. Gostando ele ou não, o título de general passou a ser usado pelos caçadores de emprego. A poucos, no entanto, ocorreria chamá-lo simplesmente de general Rui Barbosa, sob pena de incorrer em ridículo. Apenas um missivista o fez. Apesar da onda militarizante provocada pela participação do exército na proclamação da República, a carreira militar não dava prestígio social. O "general" tinha que se combinar com outros tratamentos.

A combinação "Dr. general" é preciosa. Exprime a um tempo uma oposição e uma aspiração. Os jovens militares que ajudaram a proclamar a República tinham profundo desprezo pela elite civil, cuja personificação máxima era o bacharel em direito, isto é, o doutor, o "casaca" no jargão militar. Eles se apresentavam como uma contra-elite, cujo poder alegavam basear-se no mérito e no patriotismo, ao passo que o poder dos doutores se sustentava no beletrismo, no privilégio, no favor, na politicagem, no egoísmo. Daí a oposição. Mas a crítica ao bacharelismo teve efeito bumerangue. O ensino militar adquiriu características filosóficas e bacharelescas e passou a produzir, no dizer de um general, "burocratas, literatos, publicistas e filósofos, engenheiros e arquitetos notáveis, políticos sôfregos e espertíssimos, eruditos professores de matemáticas, ciências físicas e naturais"15 15 . A opinião é do general Tito Escobar. Sobre o treinamento dos oficiais, com a referência da citação do general Escobar, ver José Murilo de Carvalho (1977). . O desejo de adquirir prestígio social levou para dentro dos quartéis o tratamento bacharelesco. Dizia-se "Dr. general", "Dr. tenente", ou simplesmente "Seu doutor", conforme atesta o coronel Paula Cidade (Carvalho, 1977). Aí a aspiração. Ao conceder a Rui, o supra-sumo do bacharel, as honras de general, os militares buscavam nobilitar a si mesmos. Daí talvez terem sido sobretudo os jovens oficiais, como João Severiano e Hermes R. da Fonseca, os que usaram o tratamento de "general" ou "Dr. general". Floriano usou-o apenas uma vez. Benjamin Constant não o usou.

Revelador também era o "cidadão Dr.". O cidadão aparece aí por inspiração do igualitarismo jacobino absorvido pelos republicanos mais radicais, como Silva Jardim, e pelos positivistas16 16 . Sobre essa influência, ver Carvalho (1990, cap. 1). . O tratamento de cidadão foi introduzido na França revolucionária para eliminar os títulos hierarquizantes do antigo regime. Permitia-se, no máximo, uma qualificação funcional, como "cidadão ministro". As cartas indicam, no entanto, que entre nós o igualitarismo jacobino não prosperou. São raríssimos os missivistas que se satisfaziam com o "cidadão" ou "cidadão ministro". Júlio Ribeiro usou uma só vez este tratamento. Na maioria de suas cartas usava tratamento formal. Silva Jardim, o representante por excelência do radicalismo republicano, que queria a República proclamada revolucionariamente e se definia como um fanático, também o usou apenas em uma carta. Nas outras, apesar do desenho do barrete frígio no papel, recorreu ao formal "Ilmo. Sr. Dr." ou "S. Exa. o Dr. Rui Barbosa". Lauro Sodré e Ennes de Sousa, o meritocrata, não escapavam do "cidadão Dr.". Barata Ribeiro e Sampaio Ferraz, outros republicanos insuspeitos, nem mesmo recorriam ao "cidadão". O igualitarismo jacobino chocava-se frontalmente com nossos valores hierárquicos, arraigados mesmo entre os que se consideravam politicamente revolucionários.

Exame mais atento do tratamento a que chamei "rua" traz outras revelações sobre o funcionamento das cabeças dos pedidores de emprego (veja-se a Tabela 9).

Os dados aqui revelam certa coerência, pelo menos no que diz respeito à identificação com a forma de governo. A identificação era um problema para os missivistas. Muitos deviam viver o drama do confeiteiro de Isaú e Jacó que não conseguia decidir se colocava na tabuleta do estabelecimento "Confeitaria do Império" ou "Confeitaria da República". Rui vivera toda a sua vida política sob o Império e nele ganhara o título, a que nunca renunciou, de conselheiro. Aderira à República à última hora. Como tratá-lo, então? Como gostaria ele de ser tratado?, perguntar-se-ia o missivista. Sintomaticamente, o tratamento de conselheiro predominou nas opções dos que escreveram a Rui, seguido de longe pelos de cidadão, de general e de outros. A força do antigo regime ainda se fazia sentir. A coerência está no fato de que apenas 3,1% dos que usaram o título de conselheiro o misturaram com o tratamento republicano de cidadão. Os contraditórios "cidadão conselheiro", ou "Exmo. cidadão conselheiro Dr." aparecem em poucas cartas.

Há também coerência no uso de "cidadão". Apenas 5,1% o misturam com "conselheiro" e 2,5% o juntam a "general". Deodoro, quando de bom humor, tratava Rui por compadre e amigo. Em outras circunstâncias, mudava para tratamento formal ou para um "cidadão general". Menos coerente é o uso de "general", que se combina às vezes com o título monarquista de conselheiro ou com o republicano civil de cidadão. Vê-se que a dificuldade de lidar com o título não era apenas de Rui, mas também de seus correspondentes.

Um último exemplo do uso combinado de tratamento aparece no caso de "amigo". Este tratamento aparece 232 vezes, mas isoladamente só em 23 cartas. As combinações são as mais variadas, mas predominam as que o juntam ao tratamento formal, como "amigo Dr.", "amigo Sr. Dr.". Esta é uma combinação que, como a de "cidadão Dr.", encerra uma incongruência. Por que usar a formalidade do Dr. ou Sr. Dr. para alguém que se considera amigo, portanto, íntimo? Estamos diante do fenômeno da sociedade hierarquizada para o qual Gilberto Freyre (1990, caps. III e IV) e Roberto DaMatta (1978, cap. IV) já chamaram a atenção17 17 . A presença da desigualdade na definição de amigo foi também notada por Graham (1997:304). . O primeiro, apontando nossas raízes patriarcais, lembra que mesmo dentro das casas a hierarquia se fazia presente. A mulher referia-se ao "senhor meu marido", o filho ao "senhor meu pai". Só os muito próximos de Rui, como Dantas, podiam permitir-se o íntimo e igualitário "amigo", sem mais.

A complexidade ia mais longe. Em grande número de casos, o "amigo" combinava-se não apenas com o tratamento formal, mas também com uma das qualificações a que chamamos de "rua". Há muitas variações: "amigo e colega Dr. Rui", em geral usado pelos companheiros de ministério, "amigo, colega e mestre Dr. Rui Barbosa", "Ilmo. e Exmo. amigo Sr. conselheiro Dr.", ou ainda esta pérola: "distinto amigo Sr. general Dr. Rui Barbosa", usado por João Severiano da Fonseca Hermes. Misturavam-se a "casa", a hierarquia e a "rua", como outras tantas medalhas pregadas na pessoa para torná-la mais distinta e movê-la ao gesto de generosidade à custa dos cofres públicos.

"Colega, patrício e amigo obrigadíssimo e criado"

As cartas ainda nos fornecem as despedidas que também ajudam a revelar traços da psicologia e da cultura política da época. As despedidas são mais complexas de analisar do que os tratamentos, tal a variedade de fórmulas empregadas. Os 409 missivistas encontravam maneiras muito mais diversificadas de se autodefinirem do que de definir Rui. Outra razão da maior complexidade da despedida é o uso abundante de adjetivos, ausente do tratamento. Além de amigo, primo, compadre, colega, patrício, admirador, súdito, servidor, criado, colega, cidadão, temos os obrigado, sincero, leal, devotado, dedicado, obediente, atencioso, humilde, submisso, inútil etc. Combinados entre si e com os substantivos, os adjetivos aumentam enormemente as combinações. Um tratamento estatístico que desse conta de todas essas combinações exigiria técnicas cujos custos excederiam os possíveis benefícios.

Adotei para os substantivos classificação semelhante à dos tratamentos. Eles se referem ao mundo doméstico e afetivo, à "casa" (amigo, primo, parente, compadre, criado, servo, afilhado), ou ao mundo da "rua", profissional ou político (subordinado, súdito, discípulo, condiscípulo, colega, camarada, conterrâneo, patrício, cidadão, correligionário). Incluí nesta última categoria a saudação "saúde e fraternidade", introduzida pelos positivistas (ver Tabela 10).

Isoladamente, os substantivos referentes ao mundo doméstico e dos afetos representam quase 40% do total. São os "amigo do coração", "primo e amigo", "amigo e criado", "amigo e parente afetuoso", "amigo afetuoso e servo obrigado", "teu ex corde" etc. Se somados ao uso combinado, chegam a quase 90% do total. O mundo profissional e político isoladamente mal chega aos 10% e só tem presença significativa quando em aliança com a domesticidade e o afeto. Sozinho, ele só aparece em algumas despedidas como "patrício obrigado e admirador", "súdito muito venerador", "colega e patrício grato", e o "saúde e fraternidade". As combinações entre as duas categorias de substantivos são variadas, predominando os "colega e amigo", "patrício e amigo", "correligionário e amigo", "amigo e admirador" etc.

"Amigo" é de longe a autodefinição que mais aparece. Para ser preciso, ela está presente em 540 cartas, mais do que o dobro das 232 menções encontradas no tratamento. É a qualificação julgada mais adequada para efeito de se conseguir o favor. Os missivistas se sentiam muito mais à vontade em se definirem como amigos de Rui do que em tratar Rui como amigo. Como amizade é relação de mão dupla, os que não se sentiam à vontade em tratar Rui como amigo buscavam constrangê-lo a uma relação de amizade, autodefinindo-se como seus amigos. A força das relações de afeto revela-se ainda no fato de que a qualificação de amigo sustenta-se sozinha em 31% dos casos em que aparece. Nos 69% restantes, amigo vem combinado com outras qualificações, salientando-se o parentesco (24%).

Também nas despedidas se misturam hierarquia e igualdade. Abundam expressões como "conterrâneo venerador", "patrício respeitador", "colega e criado". Esta última uma combinação típica de casa e rua, em que a hierarquia da casa qualifica a igualdade da rua. A despedida igualitária verifica-se, sobretudo, nas qualificações não políticas como "colega", "patrício", "conterrâneo", "condiscípulo". Pequena minoria revela igualitarismo político, traduzido por expressões como "cidadão", "concidadão", "correligionário", ou "saúde e fraternidade". Mais uma vez se confirma que a igualdade era alheia à nossa cultura.

Os adjetivos podem ser divididos em três grandes blocos. O primeiro traduz afeto e atributos morais em geral: afetuoso, do coração, velho, leal, constante, sincero, fiel etc. O segundo revela gratidão: obrigado, grato, agradecido, reconhecido. O terceiro traduz submissão e humildade: obediente, reverente, pobre, respeitador, humilde, submisso, atencioso. Predomina, como era de esperar, a expressão de gratidão (46,4% dos adjetivos). Era o agradecimento antecipado a um eventual atendimento do pedido. O afeto vem a seguir e depois a hierarquia. Como anteriormente, misturam-se adjetivos hierárquicos e domésticos com substantivos igualitários e de "rua", e vice-versa.

RUI E O CLIENTELISMO: "ESSE ANIMAL MULTIMÂMICO"

Como reagiu Rui Barbosa a essa enxurrada de pedidos?

Há manifestações suas condenando a prática do patronato. Elas começam já no Império. Em artigo de ataque ao ministério conservador, publicado no Diário da Bahia, de 24/2/1874, diz: "Essa política do filhotismo e do patronato, tão em voga na situação atual, essa política de filhos, sobrinhos, genros e afilhados [...] ninguém a detesta mais do que nós". Na seqüência do argumento, chama de lepra a política que ataca e diz só reconhecer o direito legítimo e individual (Barbosa, 1991, vol. II, t. II:145). No Relatório do Ministro da Fazenda (Barbosa, 1949), já na República, quando tinha virado vidraça, queixa-se de que o sistema vigente consiste em "encher as repartições de pessoal nem sempre idôneo, mas sempre excessivo e, conseqüentemente, mal remunerado" (idem, tomo III:271). Pelo lado positivo, diz ter autorizado o funcionamento do Banco dos Funcionários Públicos, de ter criado o Montepio dos Empregados do Ministério da Fazenda, de ter reformulado a legislação sobre concursos e de ter introduzido um plano de reforma do Ministério para reduzir pessoal, aumentar salários e acelerar o serviço.

Suas críticas atingiram maior intensidade nos discursos e conferências feitos durante as quatro frustradas campanhas presidenciais. Em conferência escrita em 1913, intitulada "As ruínas da Constituição", não proferida mas publicada na imprensa em 1914, descreve como se entra no Brasil para os cargos do Estado: "Entra-se pela valia, de que falava o grande pregador [Vieira], isto é, pelos empenhos, pelas intercessões, pelos compadrios. Uns são os parentes. Outros, os amigos. Outros, os sócios. Outros, os apadrinhadores. Outros os mercantes. Todos pelo negócio" (Barbosa, 1991, vol. XL – 1913, t. VI, pp. 100-101). Seu mais conhecido ataque ao clientelismo, e mais típico de sua técnica retórica de repetição, foi feito na conferência não pronunciada "A imprensa e o dever da verdade", publicada em 1920:

"Eram os empregos inúteis e ociosos, as sinecuras de todas as espécies, os farnientes de todas as marcas, as folhas de encostados, os gabinetes dos ministros, as invenções de consulados, as ajudas de custo, as comissões de passeio com vencimentos em ouro no estrangeiro, as concessões, contratos, empreitadas, tarefas, licenças, acumulações, isenções e mercês de toda a ordem [...]. Numa palavra, eram as mil tetas, os ubres, maiores ou menores, ressumantes de grosso leite em eterna apojadura, desse animal multimâmico, a que ora se chama nação, ora administração, ora fazenda, orçamento, ou erário, e de cujos peitos se dependuram, aos milhares, as crias vorazes na mamadura, mamões e mamadores para cuja gana insaciável não há desmame" (Barbosa, 1920).

Como ministro, há indicações de que preferia as nomeações por concurso ou, no mínimo, justificadas pelo interesse do serviço público. O Ministério da Fazenda, desde o Império, fora vanguardista na introdução do concurso para preenchimento de cargos. No Relatório de 1891, Rui refere-se à legislação imperial a esse respeito e ao seu esforço no sentido de aprimorá-la. Cartas e ofícios a ele dirigidos pelo oficial de gabinete, Antônio de Sousa Botafogo, sugerem a má vontade do ministro em violar as regras de promoção e contratação (Rio, 13/5/1890). Em carta sem data, Botafogo pergunta se deve fazer nomeações sem concurso apesar de ordem em contrário de Rui. Se o ministro as fizesse, argumenta, abriria precedentes que seriam logo detectados por outros candidatos (carta de Botafogo, Rio, 31/6/1890). Em um caso, Deodoro tomou a iniciativa de passar por cima de Rui e assumir a responsabilidade da nomeação de Antônio R. de Albuquerque Maranhão para a alfândega de Pernambuco (carta de Deodoro, 4/3/1890). Algo parecido se deu em relação a nomeações irregulares feitas em Alagoas pelo irmão de Deodoro, Pedro Paulino, e aceitas por Rui sob pressão de Deodoro (Deodoro a Rui, 21/10/1890 e Rui a Deodoro, 31/10/1890). Em outro episódio referente a Alagoas, Rui nomeou indicado de Floriano, Pedro Paulino queixou-se a Deodoro, que censurou Rui, que pediu demissão, que não foi aceita (Arquivo da Casa de Rui Barbosa, 1994:128-129).

Em um caso, aparece com clareza o conflito entre Rui e o ministro do Interior, Aristides Lobo. Este lhe escreve pedindo que conserve o emprego do comandante do navio Orion, já que "ele será demitido para se dar o lugar a outro" (Rio, 12/12/1889). A resposta de Rui, datada de 19/12/1889, é ríspida: "Se estivesse resolvida a demissão dum funcionário, seria por motivo de ordem pública, aos quais obedece sempre o ministro da Fazenda, e não ‘para dar seu lugar a outro’. Uma tal linguagem entre colegas impossibilita as relações ministeriais". Rui termina pedindo a Aristides Lobo que reflita sobre a gravidade do assunto. A resposta deixa clara a discordância de Rui em relação aos colegas de ministério e, seguramente, à grande maioria dos políticos da época no que se refere à distribuição de benesses do poder à margem dos critérios de mérito e à margem da legislação. Deveria sentir secreta admiração pelo implacável Ennes de Sousa e constrangimento por se ver forçado a transigir.

Transigiu, e amplamente. O Diário Oficial registra que durante os 432 dias como ministro Rui fez 1.251 nomeações, concedeu 168 aposentadorias e 168 licenças. Houve 3,7 atos por dia, mais do que os 2,7 pedidos. Deduzindo-se as aposentadorias e exonerações, em número de 90, tem-se a nomeação de 1.161 novos funcionários federais. O novo governo, aliás, foi pródigo em gastos em seus dois primeiros anos de existência. As despesas orçamentárias de 1890, por exemplo, representaram um aumento de 50% em relação às de 1888. Os gastos realizados em 1890 superaram em 45% os que foram propostos ainda no Império. O aumento do número de funcionários pode ainda ser estimado utilizando-se os orçamentos propostos. O orçamento de 1890 para o Ministério da Fazenda, feito no Império com base nos dados de 1889, registra 4.374 empregados no Ministério. Na previsão para 1891, com base nos dados de 1890, o número sobe para 5.675, um aumento de 30% em um ano. O acréscimo de 1.328 funcionários está próximo do número de nomeações registradas no Diário Oficial e é muito grande para um ministro que discursava contra o número excessivo de funcionários18 18 . Ver o Diário Official da República dos Estados Unidos do Brazil, números referentes ao período. Até 24 de novembro de 1889, a publicação chamou-se Diário Official da República Federativa Brazileira. . No caso das aposentadorias de empregados do Ministério da Fazenda, houve aumento de 729%. O aumento no número de pensionistas pagos pelo Ministério foi de 397%19 19 . Ver Balanço da Receita e Despeza do Império no Exercício de 1888 e Balanço da Receita e Despeza da República no Exercício de 1890. Ver, ainda, Orçamento da Receita e Despeza do Império para o Exercício de 1890 (1889) e Ministério da Fazenda (s/d). Os orçamentos não incluem o número de serventes e de alguns outros funcionários, mas os critérios de exclusão são os mesmos para o Império e a República. . Houve um festival de distribuição de nomeações, pensões e aposentadorias. A bandeira da República era de fato muito grande.

Parte das nomeações e dos benefícios certamente se referia aos pedidos, como o indicam cartas de agradecimento de beneficiados ou padrinhos. Júlio Ribeiro foi nomeado fiscal de loterias na capital; Dantas Filho ganhou cargo no Tesouro; Paranapiacaba conseguiu sua aposentadoria; Carlos Bandeira atesta que a vizinha, baronesa da Passagem, teve um filho nomeado por intercessão de Rui (Bandeira, 1960:32). Correspondência de outras pessoas revela que não só atendia pedidos como caía, ele próprio, na tentação de exercitar a arte do empenho. Em dois casos, pelo menos, intercede junto ao ministro da Agricultura, Francisco Glicério, em favor de protegidos20 20 . Ver cartas de 21/7/1890 e 21/10/1890, apud Abrahão (1996:158, 164). . Cartas de Rui a Afonso Pena e Venceslau Brás também incluem empenhos em favor de protegidos, alguns seus parentes como o primo Antônio Jacobina e o genro Batista Pereira (ver Fundação Casa de Rui Barbosa, 1983:34 e 55-56).

Magalhães Júnior (1979) menciona casos de empenho de Rui a favor de parentes, sobretudo do cunhado Bandeira, de um filho deste, do genro Batista Pereira e do concunhado Dobbert. Apesar de acusado de má vontade em relação a Rui, boa parte da informação usada por Magalhães Júnior vem do depoimento do próprio Bandeira (1960) que, obviamente, não participava dos escrúpulos do cunhado e descreve com naturalidade os empenhos. Ele próprio interveio junto a Pinheiro Machado para conseguir o cargo de advogado da Light para Rui. Um excelente emprego, embora não à custa do Tesouro, que dava dois contos por mês, além de freqüentes bônus do generoso Mackenzie, que podiam chegar a 50 contos (idem:88-91)21 21 . Este caso não indica clientelismo político, uma vez que não se refere a bens públicos. Mas revela outra faceta importante do fenômeno: o uso da influência política para conseguir benesses no mercado, uma interseção do clientelismo privado com o político. .

Essas escorregadelas, que Barbosa Lima Sobrinho e Medeiros e Albuquerque atribuíam a pressões familiares (Magalhães Júnior, 1979:427), não podem colocar Rui no mesmo nível da maioria de seus contemporâneos no que diz respeito ao clientelismo. Seu desconforto com a prática talvez explique em parte o fracasso das quatro tentativas de chegar à Presidência. Era um estranho no ninho da pequena política, assim como era um "marginal", no sentido que Oliveira Vianna deu ao conceito, isto é, alguém que vivia na fronteira de culturas diversas, embebido de idéias que contrariavam as práticas nacionais (Vianna, 1955, vol. 2, caps. I e II). Era o símbolo perfeito do doutor brasileiro estigmatizado por Eça de Queiroz em 1888, cujo exemplo típico seria o ministro que na hora de decidir procurava saber o que fizera, em casos semelhantes, Guizot na França e Pitt na Inglaterra22 22 . Carta a Eduardo Prado, reproduzida em Leitura, 6/9/1887, p. 12. . Sintomaticamente, no Relatório sobre sua ação no Ministério, Rui cita uns cem autores, dos quais apenas um brasileiro, Tavares Bastos. Mas não era um daqueles doutores que seu antigo secretário, Tobias Monteiro, acusava de estarem preocupados acima de tudo em garantir para si próprios as benesses do Estado (Monteiro, 1916).

CONCLUSÃO: A RAZÃO CLIENTELISTA

A análise dos pedidos feitos a Rui Barbosa deixa claros alguns pontos. Um deles é que houve perfeita continuidade entre o antigo e o novo regime no que se refere à abrangência da prática clientelista. A retórica republicana sobre igualdade e mérito era em grande parte isso: retórica. A correspondência revela ainda a convicção de quase todos, patronos e clientes, de que havia obrigação moral de ajudar parentes e amigos e de que era legítimo gastar o dinheiro público para promover essa ajuda. A obrigação transferia-se para o governo: a bandeira da República é muito grande, como disse um dos pedintes. A separação entre o público e o privado apenas começava a esboçar-se.

A correspondência mostra sobretudo o profundo enraizamento social do clientelismo político, que pode ser visto como troca entre partes desiguais envolvendo bens públicos. A troca desigual no campo político era uma extensão de trocas desiguais no campo social. O clientelismo político enraizava-se em uma sociedade hierárquica composta de protetores e protegidos. O patronato hierárquico social era transferido para o campo político, o governante tornava-se o patrão, o protetor, o pai. Pedia-se que Rui fosse patrono e protetor. Os clientes definiam-se como inferiores ¾ criados, servos, súditos, veneradores, respeitadores ¾ e como leais, dedicados, fiéis, obrigados. Mesmo quando se diziam amigos e colegas, a qualificação quase invariavelmente vinha acompanhada de um complemento hierárquico e da promessa de lealdade. A inferioridade justificava o direito à proteção, a lealdade era a promessa de retribuição da proteção esperada. Os valores republicanos de igualdade e democracia não podiam germinar em tal contexto. O novo cidadão continuava sendo doutor e general, ou criado e súdito, dependendo de sua posição social.

É possível, no entanto, que quando a obrigação de proteção se transferia do patrono para o governo, o Estado, a República, estivesse em operação um componente que extrapolava o clientelismo. Refiro-me a um traço da cultura política que tem a ver com a visão do papel do Estado como incorporador e protetor. Ele foi detectado recentemente por Elisa Reis em cartas enviadas ao ministro da Desburocratização, Hélio Beltrão. Em seu estudo Reis (1990) mostra que, tanto da parte dos missivistas como do ministro, estava presente a concepção da autoridade, e por extensão do Estado, benevolente e paternalista, cuja obrigação é proteger os pobres23 23 . Em seu estudo, a autora baseia-se em amostra de 300 cartas selecionadas aleatoriamente de um total de 27.367 enviadas ao ministro Beltrão entre 1980 e 1982. . Na época de Rui, os positivistas ortodoxos tinham posição parecida a essa, apesar de abominarem o clientelismo, o que mostra a independência entre os dois fenômenos. Na visão dos ortodoxos, as relações entre o cidadão e o Estado eram governadas por um pacto de obrigações mútuas, no qual não entrava a idéia de direitos nem de igualdade.

O desconforto de Rui e as críticas gerais ao clientelismo deixam, no entanto, claro que havia tensão no sistema. Coexistia com a prática clientelista a convicção de que ela era um cancro, uma peste. Não me parece aceitável atribuir à pura hipocrisia, ou à pura retórica, as freqüentes e veementes condenações do empenho, feitas por Rui e outros políticos desde a segunda metade do século XIX. Havia uma mudança em curso. Começava a surgir a idéia da necessidade de burocratizar e racionalizar o serviço público, libertando-o da prisão patrimonial.

O Rui estadista, leitor voraz de teóricos estrangeiros, crente do liberalismo, do Estado de direito, da igualdade perante a lei, o Rui, enfim, da grande política, tinha que enfrentar a pequena política dos empenhos, do filhotismo, do patronato. Queria ser um estadista segundo o modelo idealizado de um político inglês. Mas era chamado ao terra a terra do "primo e amigo". Viveu o dilema embutido na mudança: ou cedia às práticas clientelísticas, renunciando aos princípios, e aumentava a probabilidade de chegar à Presidência; ou mantinha os princípios e amargava a derrota. O político de êxito na época era o que conseguia usar a razão clientelista como instrumento para exercer a razão de Estado. Rui não foi um político de êxito, no sentido de não ter alcançado a tão desejada Presidência da República, o que talvez fale em seu favor.

(Recebido para publicação em dezembro de 1999)

NOTAS:

SECRETÁRIO Brazileiro (O), (contendo 306 modelos de cartas sobre todos os assuntos e um formulário de requerimentos e memoriais). (s/d), Rio de Janeiro, Garnier.

ABSTRACT

Rui Barbosa and the Patron-Client Relation

In a discussion of the patron-client relation within Brazilian politics, the article takes as an example political favors asked of Rui Barbosa when he was the provisional government’s Minister of the Treasury. It endeavors to demonstrate how the prevalence of patron-client values and practices carried over from the monarchy to the Republic. The argument is posed that patronage, from which the patron-client relation derives, was deeply embedded in Brazilian society and from there moved into politics. As a consequence, egalitarian values and the notion of res publica, which in thesis should have been an integral part of the new regime’s practices, did not find propitious ground upon which to develop. Citizens became "doutor cidadão", while politicians became "cousin and friend".

Keywords: patron-client relation; Brazilian politics; patronage; Rui Barbosa

RÉSUMÉ

Rui Barbosa et la Raison Clientéliste

Dans cet article on part des demandes de faveurs adressées à Rui Barbosa, à l’époque Ministre des Finances du gouvernement provisoire, pour examiner le sujet du clientélisme dans la politique brésilienne. On essaie de montrer la continuité entre la monarchie et la république en ce qui concerne la domination des valeurs et pratiques clientélistes. On y soutient que le système de favoritisme, d’où provient le clientélisme, était profondément enraciné dans la société qui, à son tour, le transposait à la politique. Par conséquent, les valeurs égalitaires et la notion de chose publique, qui en principe devaient constituer la ligne d’action du nouveau régime, ne trouvaient pas de terrain propice à leur développement. Le citoyen devenait "Monsieur le citoyen", le politicien "cousin et ami".

Mots-clé: clientélisme; politique brésilienne; système de favoritisme; Rui Barbosa

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  • *
    Este trabalho não poderia ter sido escrito sem o auxílio de Patrícia de Souza Lima que fez boa parte do levantamento de dados e elaborou os quadros estatísticos. Agradeço ainda a cooperação de Rejane de Almeida Magalhães, chefe do Setor Ruiano da Fundação Casa de Rui Barbosa, e de suas colegas Solange Campello Taraciuc e Beatriz Guerra Martins. José Almino Alencar, diretor de Pesquisa da Fundação, proporcionou as condições materiais para a execução da pesquisa. Agradeço também os comentários dos pesquisadores do Setor de História e a argüição do diretor da Casa, feitos a uma primeira versão deste trabalho.
  • 1
    . A frase está em discurso feito na Câmara dos Deputados em 1/9/1874 (ver Anais da Câmara dos Deputados, 1874, vol. 5, apêndice).
  • 2
    . Uma exceção pode ser encontrada na apresentação escrita por Francisco Iglésias para o volume da correspondência com os Fonseca, onde se dá a devida importância aos pedidos de emprego, embora sem analisá-los (ver Arquivo da Casa de Rui Barbosa, 1994:7-19).
  • 3
    . A exceção aqui é, naturalmente, R. Magalhães Júnior em seu Rui, o Homem e o Mito. Mas Magalhães Júnior estava mais interessado em desmoralizar Rui Barbosa do que em estudar o clientelismo.
  • 4
    . Ao que me consta, o primeiro trabalho acadêmico feito no Brasil dedicado à análise de pedidos a políticos é o de Elisa Pereira Reis, "Opressão Burocrática: O Ponto de Vista do Cidadão" (1990), em que examina cartas dirigidas ao ministro Hélio Beltrão. Posteriormente, Richard Graham (1997) analisou pedidos dirigidos a quatro políticos imperiais no livro Clientelismo e Política no Brasil do Século XIX. Mais recentemente, Luciana Quillet Heymann (1997) trabalhou com a correspondência de Filinto Müller em sua dissertação de mestrado As Obrigações do Poder: Relações Pessoais e Vida Pública na Correspondência de Filinto Müller.
  • 5
    . Compare-se este número com os 577 pedidos feitos a quatro políticos imperiais que ocuparam vários postos ministeriais e mesmo a presidência do Conselho de Ministros (Graham, 1997:279). Compare-se também com os 14.448 pedidos feitos a Filinto Müller nos nove anos em que ocupou a chefatura de polícia do Distrito Federal (Heymann, 1997:4). Os dados de Heymann são mais comparáveis aos meus, uma vez que se referem a uma só pessoa e ao exercício de um só cargo. Essa autora trabalhou com uma amostra de 4.224 cartas.
  • 6
    . A correspondência completa de Rui com os Fonsecas está em Arquivo da Casa de Rui Barbosa (1994). Certamente, muitos pedidos não ficaram registrados por escrito, ou não foram preservados.
  • 7
    . A correspondência completa do conselheiro Dantas e de Rodolfo Epifânio com Rui Barbosa pode ser encontrada em Arquivo da Casa de Rui Barbosa (1962; 1973).
  • 8
    . A importância da província de origem ou da atuação política aparece também no estudo de Graham (1997:294-300) e de Heymann (1997:108-111). O peso político das famílias era fator importante nesse provincianismo.
  • 9
    . Para os pedidos de paulistas dirigidos a Glicério, ver Abrahão (1996). Campos Sales entendia-se com Glicério sobre nomeações em São Paulo e Rio Grande do Sul, como mostra carta sua de 22/10/1890 (idem:165).
  • 10
    . A carta está reproduzida em Arquivo da Casa de Rui Barbosa (1994:129).
  • 11
    . A porcentagem é muito próxima dos 80% encontrados por Heymann (1997), e não muito distante dos 88% da amostra de Graham (1997:279).
  • 12
    . Trato amizade e parentesco em um só bloco mas, obviamente, predomina a amizade. Poucos parentes de Rui recorreram a cartas para pedir favores. Não há muita discrepância em relação aos dados de Graham. Segundo este autor, 16% dos missivistas alegavam razões de amizade ou parentesco, 25,6% alegavam mérito, 12% necessidade (1997:331-332). Heymann não fornece números, mas afirma que "As relações de amizade [...] aparecem como o elemento mais recorrente na legitimação de um pedido" (1997:116).
  • 13
    . Marcos Veneu observou que a palavra amigo pode ser usada também para se referir a amigos políticos. De fato, é o que acontece aqui. Mas na correspondência fica clara a distinção entre amizade pessoal e amizade política. De qualquer modo, merece atenção o fato de se transpor uma expressão própria do mundo privado para o mundo público.
  • 14
    . Para o Brasil, a única exceção talvez seja Fernando Uricoechea que em O Minotauro Imperial (1978, cap. VIII) usa fórmulas de despedida na correspondência de oficiais da Guarda Nacional como indicação da passagem do patrimonialismo para a burocracia. Para exemplo de um manual, ver O Secretário Brazileiro, Contendo 306 Modelos de Cartas sobre Todos os Assuntos e um Formulário de Requerimentos e Memoriaes (s/d). O livro inclui cartas de pedidos de favores. Agradeço a Isabel Lustosa a indicação deste livro.
  • 15
    . A opinião é do general Tito Escobar. Sobre o treinamento dos oficiais, com a referência da citação do general Escobar, ver José Murilo de Carvalho (1977).
  • 16
    . Sobre essa influência, ver Carvalho (1990, cap. 1).
  • 17
    . A presença da desigualdade na definição de amigo foi também notada por Graham (1997:304).
  • 18
    . Ver o Diário Official da República dos Estados Unidos do Brazil, números referentes ao período. Até 24 de novembro de 1889, a publicação chamou-se Diário Official da República Federativa Brazileira.
  • 19
    . Ver Balanço da Receita e Despeza do Império no Exercício de 1888 e Balanço da Receita e Despeza da República no Exercício de 1890. Ver, ainda, Orçamento da Receita e Despeza do Império para o Exercício de 1890 (1889) e Ministério da Fazenda (s/d). Os orçamentos não incluem o número de serventes e de alguns outros funcionários, mas os critérios de exclusão são os mesmos para o Império e a República.
  • 20
    . Ver cartas de 21/7/1890 e 21/10/1890, apud Abrahão (1996:158, 164).
  • 21
    . Este caso não indica clientelismo político, uma vez que não se refere a bens públicos. Mas revela outra faceta importante do fenômeno: o uso da influência política para conseguir benesses no mercado, uma interseção do clientelismo privado com o político.
  • 22
    . Carta a Eduardo Prado, reproduzida em Leitura, 6/9/1887, p. 12.
  • 23
    . Em seu estudo, a autora baseia-se em amostra de 300 cartas selecionadas aleatoriamente de um total de 27.367 enviadas ao ministro Beltrão entre 1980 e 1982.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Ago 2000
    • Data do Fascículo
      2000

    Histórico

    • Recebido
      Dez 1999
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