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A harmonização vocálica como indício de uma mudança histórica

Vowel Harmony as evidence of historical change

Resumos

Como um processo de assimilação comum às línguas humanas, a harmonização vocálica que tem por contexto a pauta pretônica, a exemplo de menina ~ minina, coruja ~ curuja, esteve presente no português europeu desde sua infância a seus tempos áureos, que se iniciam com Camões, incrementando-se junto à língua com andar dos tempos até meados do século XVIII, declinando a partir daí para desaparecer do português europeu no século XIX, continuando, todavia, no português brasileiro. Desde então ela se impõe como um divisor de águas: o português brasileiro que a preserva, de um lado, e o português europeu que a negligencia, de outro, dois dialetos da mesma língua.

variação; mudança histórica; efeitos


As a process of assimilation which is common in human languages, pretonic vowel harmony, such as happens in menina ~ minina, coruja ~ curuja, has been found in European Portuguese since its infancy, developing itself with the language over time half way through the eighteenth century, declining since then until its disappearance in European Portuguese in the nineteenth century, continuing, however, in Brazilian Portuguese. It can be seen as a watershed ever since: Brazilian Portuguese preserving the pretonic harmony on the one hand, and European Portuguese neglecting it, on the other hand; to dialects of the same language.

variation; historical change; effects


Introdução

O tema é a mudança histórica que dividiu o português em dois dialetos: o português europeu e o português brasileiro, aqui considerada sob o prisma da fonologia. Mudanças não são bruscas nem espontâneas, mas resultantes de um processo de múltiplos envolvimentos que se desenrola lentamente através dos séculos, por vezes sugerido pelo comportamento de regra variável, mas sempre de difícil captação senão quando efetuada, isto é, quando os seus resultados permitem um olhar para o passado.

É nessa linha que vamos observar a harmonização vocálica, uma regra variável, como um indício da mudança histórica que dividiu o português em dois dialetos, PE, português europeu e PB, português brasileiro, mudança que eclodiu no declinar do séc. XVIII com evidências translúcidas no início do XIX. Trata-se, pois, de um breve olhar para o passado que à moda de uma investigação histórica, necessita de periodização.

A periodização é um recurso para captar épocas em que o objeto em estudo se apresenta com certa coerência. Em se tratando de mudança que ocorre lenta e imperceptivelmente no percurso histórico de uma língua, o ponto inicial e o ponto final exatos, isto é, a delimitação não tem o rigor de uma marca temporal estrita, mas é um indicativo de uma história que se desenvolve no decorrer de certa periodização, independentemente de sobrepujar ou subexpor os limites indicados.

Não havendo consenso sobre o início da língua portuguesa, fala-se em séc. IX, fala-se em séc. XIII, consideraremos, sem compromissos com divisões estabelecidas, cinco períodos, assim denominados: a) fase inicial, b) fase medieval, c) fase clássica, d) fase crítica e) fase contemporânea, respectivamente, português inicial do séc. IX a XIII, português medieval do XIII ao XV, português clássico do XVI ao XVIII, período crítico, séc. XIX e português contemporâneo, sec. XX-XXI.

O português e o espanhol têm inicialmente uma história em comum. Quando o império romano se estendeu por diferentes regiões entre as quais a península Ibérica, o latim em contato com línguas autóctones foi tomando aqui e acolá coloridos diferentes da língua falada no Lácio, criando-se os romanços, futuras línguas neolatinas. Ao nordeste da Península Ibérica, um pequeno povoado, conhecido por Galícia ou Galiza, tinha certo prestígio cultural na idade média, pois cultivava-se teatro e poesia, ali o latim falado com as peculiaridades da região, referido por galaico-português ou simplesmente galaico ou galego foi a primeira língua romanço da península ibérica. Somente depois do declínio do império romano, ou melhor, depois das guerras ou invasões que se sucederam, três línguas latinas destacaram-se na península: o galaico-português de que o português se origina, o castelhano e o catalão. Mas, voltando à Galícia com sua língua romanço, vale observar que o galaico-português ou galego foi a língua das cantigas trovadorescas de origem provençal, sul da França, que se estenderam por toda a península na voz dos trovadores, tornando-se a língua da poesia lírica no período medieval, séc. XIII a XV. Nobres a cultivaram, entre eles Dom Dinis de Portugal e Afonso X de Leão e Castela. Classificadas como cantigas de amigo, de amor e de escárnio estão guardadas em quatro Cancioneiros, o Colloci Brancuti, o Cancioneiro da Vaticana, o Cancioneiro da Ajuda e o Cancioneiro de Santa Maria de Afonso X de Castela, figurando como um legado importante da Idade Média.

(Ragutti 1944RAGUCCI, R. 1944. Letras Castelhanas. História Literária Espanhola. Buenos Ayres: Sociedad Editora Internacional.: 20), em História das Letras Castellanas, referindo-se aos romanços e dialetos de Espanha, diz "El gallego, galaico ou galiciano, lengua de Galícia, que de los romances espanholes fue el primero a desarrollarse, de tal modo que ya em el siglo XIII lo adoptan como lengua poética los mismos trovadores de Castilla, y dió origen al português." Galícia, no séc. XVI entra em declínio em razão de forças emanadas do reino central a ponto de desaparecer para reaparecer tão somente na época do romantismo, graças ao esforço de escritores, e desde então é uma comunidade autônoma espanhola, cuja capital é Santiago de Compostela. Tem hoje duas línguas oficiais: o galego e o espanhol, mas existe um grupo de intelectuais que defendem que o galego, o português brasileiro e o português europeu são três dialetos do português.

Todavia o português começa sua história em particular no Condado Portucalense, região situada entre Minho e Douro, com parte de Galícia, e que, incluindo Coimbra, foi doada a Henrique de Borgonha pelo rei de Leão e Castela, por mérito de suas façanhas na guerra da reconquista, ou seja, na guerra contra os árabes. Com isso o centro cultural dessa região, outrora Galícia, desloca-se para Lisboa, a sede do monarca. Mas o Condado Portucalense continua ligado ao Reino de Leão e Castela. É tão somente com o filho Dom Henrique no poder, Afonso XIII, que Portugal se separa do reino dominante e desde então a língua portuguesa segue livremente seu caminho para situar-se com o tempo, inovações e conquistas marítimas, entre as línguas mais faladas do mundo. O português e o espanhol têm, portanto, inicialmente uma história em comum.

Feita esta breve introdução, detenhamo-nos no tema, uma mudança linguística espelhada por uma regra fonológica, a harmonização vocálica.

A harmonia ou harmonização vocálica consiste na substituição da vogal média /e, o/ pela vogal alta /i, u/ respectivamente, quando a média precede uma sílaba com vogal alta, a exemplo de pepino ~ pipino, coruja ~ curuja, bonito ~ bunito. Por tratar- se de regra de aplicação variável, isto é, não categórica, ambas as formas coocorrem. E por ter sido encontrada em palavras do Appendix Probi, uma coleção de duzentos e vinte e sete palavras latinas contrapostas a formas ditas incorretas, supostamente atribuída a um autor africano, entre as quais formica non furmica, festuca non fistuca, robigo non rubigo e outras, consideramo-la herança do latim vulgar.

1. A harmonia da pretônica no andar dos tempos

1.1. Fase inicial

As primeiras palavras portuguesas aparecem em documentos escritos na tradição latim-português, em que o português aparece mesclado com palavras latinas, período que se estende do séc. IX ao séc. XI. Entres os estudos dessa fase, cita-se o de Norman P. Sack (1941) "The Latinity of Dated Documents in the Portuguese Territory," que foi elaborado com o objetivo de mostrar o latim em palavras portuguesas. Em (1) registram-se os dados encontrados relativos ao tema em estudo, harmonia vocálica, doravante, HV, que, como vimos consiste na alteração da vogal média diante de uma sílaba com vogal alta, a exemplo de menina ~ minina, e alçamento da vogal média sem motivação aparente, isto é, sem a presença de uma sílaba subsequente com vogal alta, doravante ASM, a exemplo de boneca ~ buneca.

(1) HV ASM custumes < consuetudinem cumtestamus < contestamus mulinos < molina contuversia < controversiam pigureiro < pecuriarium cunlomento < cognomentum obturigare < auctoricare lugares < locales vindigar < vendicare vinder < vendere

São poucas as palavras mas têm uma significação especial, pois mostram que a alteração da vogal média pretônica está presente na língua desde os primeiros balbucios como uma herança do latim vulgar.

1.2. Fase medieval

É nesta fase, séc. XIII a XV, que o português desponta com autonomia em textos de diferentes ordens, entre os quais os de teor religioso, característica do período medieval. A maioria são documentos produzidos em mosteiro, com dedicação e letra cuidadosa, mas de difícil leitura não só pela distância que nos separa como também pela letra gótica fora de nossos hábitos. Dois foram os textos básicos para este estudo: o Orto do Esposo e o Tratado de Confisson.

O Orto do Esposo (1385) de índole religiosa é de autor desconhecido. As palavras lexicais que constituem essa obra foram organizadas em glossário por Bertil (Maler 1964MALER, Bertil. 1964[1956]. Orto do esposo. v. I. Texto crítico. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro.), que as compilou aos pares, classificando-as em dois grupos, prováveis e não prováveis, com um dos membros entre parênteses quando não encontrado. Desse glossário, extraímos as palavras que seguem, apenas três com ASM, dileytamento (deleitamento), possisson (possessom) e ticer (tecer), o mais são casos de HV:

(2) HV 1 - acuntycia (acontecia) 2 - acurrimento ~ acorrimento 3 - acustumar ~ acostumar 4 - apustura ~ apostura 5 - bevydice ~ bevedice 6 - buticaryo (boticairo) 7 - cigidade ~ ceguidade 8 - cilício ~ celício 9 - cubertura ~ cobertura 10 - cubiibiçoso ~ cobibiçoso 11 - cubrir ~ cobrir 12 - concibimento ~ concebimento 13 - consintyr ~ consentyr 14 - consintysse ~ consentysse 15 - custume ~ costume 16 - cumunalmente ~ comunalmente 17 - dilicado ~ delicado 18 - dirritido ~ derretido 19 - descubrir ~ descobrir 20 - desmiricimento desmerecimento 21 - desobidiente ~ desobediente 22 - encubrir ~ encobrir 23 - engulir ~ engolir 24 - esculphir ~ escolphir 25 - enfirmidade ~ enfermidade 26 - espicialmente ~ especialmente 27 - esplandicimento (esplandecimento) 28 - falicimento ~ falecimento 29 - furtuna ~ fortuna 30 - gimido ~ gemido 31 - grussura ~ grossura 32 - mancibia ~ mancebia 33 - midida ~ medida 34 - milhor ~ melhor(ver nota 1) 35 - mindigar ~ mendigar 36 - minino ~ menino 37 - myntir ~ mentir 38 - miricimento ~ mericimento 39 - mizquindade ~ mesquindade 40 - mizquinho ~ mesquinho 41 - myndigo (mendigo) 42 - murdedura (mordidura) 43 - murdimento (mordimento) 44 - padicimento ~ padecimento 45 - pidir ~ pedir 46 - persyguiçom ~ perseguidor 47 - percibimento ~ percebimento 48 - pitiçom ~ petiçom 49 - priguiça ~ preguiça 50 - priguiçoso ~ preguiçoso 51 - pudridom ~ podridom 52 - rimir ~ remir 53 - rispirar ~ respirar 54 - siguidor ~ seguidor 55 - siguir ~ seguir 56 - siguinte ~ seguinte 57 - sintido ~ sentido 58 - testimunhar ~ testemunhar 59 - vilhice ~ velhice 60 - vistir ~ vestir

Não nos deteremos em estatística, mas a simples contagem é expressiva, permitindo-nos afirmar que na fase em que o português atinge sua autonomia, a harmonia (HV) uma assimilação regressiva comum às línguas humanas, está fortemente presente nos dados.

Do período medieval considerou-se ainda o Tratado de Confisson, impresso em Chaves (1489), também de autor desconhecido, que, destinado a clérigos, trata de pecados e penitências. Foi consultado na edição de José V. Pina Martins (1973), o descobridor da obra, o qual faz um levantamento das palavras do texto no estilo de Maler, classificando-as em prováveis e não prováveis, do qual extraímos as que seguem, apenas quatro com ASM jugatais (jograis), pumar(pomar), timer (temer), timor (temor); o mais são HV:

(3) HV 1 - acustumado ~ acostumado 2 - avurricível ~ avorrecível 3 - bebidice ~ bebedice 4 - celistial ~ celestial 5 - cirimonias ~ cerimônias 6 - cibiça ~ cobiiça 7 - concibido (concebido) 8 - consintido (consentido) 9 - conhicimento (conhecimento) 10 - custume ~ costume 11 - convinhável ~ convenhável 12 - dilicado ~ delicado 13 - desconhicido (desconhecido) 14 - desfalicimento (desfalecimento) 15 - descuberta ~ descoberta 16 - duçura ~ doçura 17 - espicial ~ especial 18 - esturminho (estorminho) 19 - fumigasti ~ formigasses 20 - favoricível (favorecivel) 21 - infirmidade ~ enfermidade 22 - irrigular ~ irregular 23 - friguesia (freigueses) 24 - mancibia ~ mancebia 25 - mintir, mintiste ~ mintira (mentir) 26 - midida, midir (medir) 27 - milhores ~ melhores 28 - mericimento ~ merecimento 29 - mysquinho (mesquinho) 30 - priguiça (preguiça) 31 - priguiçoso (preguiçoso) 32 - pididos, pidir (pedir) 33 - promitimento ~ prometimento 34 - siguir (seguir) 35 - stabilicido (estabelecido) 36 - testimunho ~ testemunho 37 - vistidura ~ vestimenta 38 - turpidade (torpidade)

Também, neste texto, HV com sua regularidade contextual está bem documentada, enquanto ASM continua a parecer mero equívoco. Considerando-se que a escrita ainda não estava sob o controle da rigidez de normas, admitimos que os textos consultados, embora produzidos com o cuidado de bem escrever, refletem a fala da época, permitindo-nos afirmar que HV, como assimilação regressiva, faz parte do sistema do português medieval com o estatuto de regra de aplicação variável.

1.3. Fase clássica

É no andar dos séculos XVI a XVIII que a língua desponta com toda a sua potencialidade "capaz de expressar com elegância qualquer conteúdo ideológico," segundo (Cuesta e Luz 1980CUESTA, P.V.; Luz, M, A, M. da. 1980. Gramática da Língua Portuguesa. Lisboa: Lexis edições 70.: 195-196). Supõe-se que paralelamente seja essa também a fase da língua falada, condutora legítima da história de uma língua, ainda que possam existir variedades socioculturais em estágios mais tardios. Nessa fase de três séculos, dado o alto nível da produção da escrita que vai da epopeia a grandes romances que celebrizam o português, a expectativa de encontrar a variação em foco era menor do que nos períodos anteriores. No entanto, o desenvolvimento da escrita não interceptou a presença da harmonia em trabalhos clássicos. Na primeira edição de Os Lusíadas (1572), há 29 casos de HV e apenas um de ASM, cigueira por cegueira. Os dados que seguem foram extraídos do "Índice Analítico do Vocabulário de Os Lusíadas", organizado por Poggi de (Assis et al 1966ASSIS, Poggi de et al. 1966. Índice analítico do vocabulário de os Lusíadas. In: CUNHA, H. G. Dicionário da língua portuguesa; textos e vocabulários. Ministério da Educação e Cultura, Instituto nacional do Livro.).

(4) HV na primeira edição de Os Lusíadas 1 - apinino (apenino) 16 - embebidos embebidos (embebidos) 2 - Cyfícia (Cefícia) 17 - engulindo (engolindo) 3 - cubiça~ cobiça 18 - gingiva (gengiva) 4 - cubiçado ~ cobiçosos 19 - insufríbil (insofrível) 5 - cubrir, cubrio (cobrir~cubrir) 20 - insuffridas (insofridas) 6 - cubertas, cuberta (cobertas, coberta) 21 - Milindano (Melindano) 7 - custuma~ costuma 22 - minino (menino) 8 - custume~costume 23 - mintirosa ~mentirosa 9 - custumado~costumado 24 - misilhões (mexilhões) 10 - conhicimento (conhecimento) 25 - milhor (melhor) 11 - difiria, difirisse (deferir) 26 - perigo~pirigo 12 - dirivado, diriva (derivar) 27 - regurosos ~regurosos 13 - descubridor ~descubridores (descobrir) 28 - Sivilha (Sevilha) 14 - descuberto (descoberto)1 29 - surrindo (sorrindo)

Tão natural deve ter sido a harmonia na fala da época que Camões não se dera conta que a deixava transparecer na escrita.

Nesta fase, surgem as duas primeiras gramáticas da língua, a de Fernão de (Oliveira 1536) e a de João de (Barros 1540BARROS, João de. 1540. Grammatica da lingua portuguesa. Lisboa: Typographum.), essa com teor didático, dedicada às escolas, aquela com o estilo de descrição de língua com reflexões do autor sobre o que observa no português de seu tempo.

"Não pareça a alguém que nós confundimos i pequeno com> e pequeno, nem o pequeno com upequeno, porque elas não são diversas vozes e tão-pouco não tem necessidade de diversas letras. Mas é dessa maneira que antre e que é letra delgada, aguda e viva, e antre ε grande soa na nossa língua h a outra voz mais escura e não mais que h a; e a este chamamos e pequeno, o qual em h as partes soa mais e e em outras menos, como fazem as outras vogais. E onde soa mais, podemos dizer que é mais vizinho do e grande; onde também menos soa será isso mesmo mais vezinho do e pequeno.

Eis que Fernão de Oliveira sinaliza a variável vogal escura, cuja presença vai se avolumando aos poucos, à qual retornaremos, pois ao lado de HV, é um dos condutores do processo de mudança que vai desvendar-se claramente no séc. XIX. A partir daqui, contamos com dois indicadores da mudança: a vogal escura assinalada por Fernão de Oliveira e HV que estamos contemplando. Essa depois de chegar ao ápice de seu domínio, desaparecerá, enquanto aquela passará de índice à característica do sistema.

Do séc. XVII, visitamos "Thesouro da língoa portuguesa (1647) e "Regras Gerais (1666) de Bento Pereyra que no estilo de "não diga isso mas aquilo, "a exemplo de "não tuturia mas tutoria", faz recomendações com vistas ao aprimoramento da língua escrita, apresentando uma longa relação de palavras, entre as quais as que seguem, readaptadas para HV e ASM:

(5) HV ASM 1 - cigude ~ cegude 1 - cilleyro ~ celleyro 2 - cubrir ~ cobrir 2 - cumiçou ~ começou 3 - cubiça ~ cobiça 3 - fugareyro ~ fogareyro 4 - curucheo ~ corucheo 4 - gimer ~ gemer 5 - curuja ~ coruja 5 - piqueno ~ pequeno 6 - custume ~ costume 6 - picado ~ pecado 7 - divido ~ devido 7 - pireyra ~ pereyra 8 - fucinho ~ focinho 8 - pirfeito ~ perfeito 9 - gimido ~ gemido 9 - puderão ~ poderão 10 - milhor ~ melhor 10 - pumar ~ pomar 11 - milhoria ~ melhoria 11 - pumareyro ~ pomareyro 12 - minino ~ menino 12 - rindeiro ~ rendeiro 13 - pidir ~ pedir 13 - rigurosas ~ rigorosas 14 - pidinte ~ pedinte 14 - tisouro ~ tesouro 15 - pitiçam ~ petiçam 15 - vinder ~ vender 16 - priguiça ~ preguiça 17 - priguiçoso ~ preguiçoso 18 - Purtugal ~ Portugal 19 - sintinela ~ sentinela 20 - testimunho ~ testemunho 21 - tuturia ~ tutoria 22 - vindido ~ vendido 23 - vistido ~ vestido 24 - vistir ~ vestir 25 - vistidura ~ vestidura

Embora HV continue na prevalência, em conformidade com o uso normal que vinha mostrando, vale notar o acréscimo da ocorrência de ASM que agora começa a apresentar-se com alguma coerência, como a preferência à vizinhança com consoante velar ou labial, embora ainda com muitas extrapolações. Todavia esse aumento é o primeiro alerta da mudança que vem se delineando lentamente e que está a ponto de eclodir. HV e ASM, por terem o mesmo efeito, a substituição das vogais médias por altas, ao tenderem a andar pari passu do século XVII a meados do XVIII concorrem, ao lado de outros processos envolvidos, para a consecução do desfecho final, que é o desaparecimento das médias átonas.

Do séc. XVIII, tomou-se por referência Madureira Feijó, consultado na edição original de "Orthografia ou Arte de Escrever e Pronunciar com acerto a Língua Portuguesa", um volumoso compêndio de palavras ditas erradas contrapostas a palavras ditas certas, também no estilo de Appendix Probi, "diga isso mas não aquilo," de onde foram extraídos e reclassificados como HV e ASM os casos que seguem:

(6) HV ASM 1 - abitumar ~ abetumar 1 - algudão ~ algodão 2 - acridito ~ acredito 2 - almufada ~ almofada 3 - acugular ~ acogular 3 - almucreve ~ almocreve 4 - acustumo ~ acostumo 4 - alvijar ~ alvejar 5 - aconticido ~ acontecido 5 - arijar ~ arejar 6 - acuntecimento ~ acontecimento 6 - arripender ~ arrepender 7 - advirsidade ~ adversidade 7 - apedrijar ~ apedrejar 8 - affucinhar ~ affocinhar 8 - atriver-se ~ atrever-se 9 - agunia ~ agonia 9 - bandijar ~ bandejar 10 - alicrim ~ alecrim 10 - biber ~ beber 11 - amixial ~ amexial 11 - binzer ~ benzer 12 - amufinar ~amofinar 12 - buceto ~ boceto 13 - amutinar ~ amotinar 13 - buquejar ~ boquejar 14 - apilidar ~apellidar 14 - bustela ~ bostela 15 - appitite ~ apetite 15 - currer ~ correr 16 - Aristino ~ Arestino 16 - currente ~ corrente 17 - arripiar ~ arrepiar 17 - corrumper ~ corromper 18 - assigurar ~ assegurar 18 - custela ~ costela 19 - atrivido ~ atrevido 19 - cabilleiro ~ cabelleiro 20 - bebidice ~ bebedice 20 - castilhano ~ castelhano 21 - belliguim ~ belleguim 21 - climente ~ clemente 22 - benificencia ~ beneficência 22 - culete ~ colete 23 - benificiado ~ beneficiado 23 - cumedor ~ comedor 24 - benifício ~ benefício 24 - cumpitente ~ competente 25 - burrifar ~ borrifar 25 - conciber ~ conceber 26 - burseguim ~ borzeguim 26 - concurrer ~ concorrer 27 - buvino ~ bovino 27 - convincer ~ convencer 28 - burbulhar ~ borbulhar 28 - curação ~ coração 29 - cubrir ~ cobrir 29 - cutuvelo ~ cotovelo 30 - compilir ~ compelir 30 - difender ~ defender 31 - compitir ~ competir 31 - derriter ~ derreter 32 - concibido ~ concebido 32 - discurrer ~ descorrer 34 - consiguir ~ conseguir 34 - escurregar ~ escorregar 35 - consintido ~ consentido 35 - escurrer ~ escorrer 36 - convirtido ~ convertido 36 - fichar ~ fechar 37 - custume ~ costume 37 - fugaça ~ fogaça 38 - dicifrar ~ decifrar 38 - gracijar ~ gracejar 39 - dicidir ~ decidir 39 - gimer ~ gemer 40 - denigrido ~ denegrido 40 - lagrimijar ~ lagrimejar 41 - depinicar ~ depenicar 41 - lamintação ~ lamentação 42 - descubrir ~ descobrir 42 - mirenda ~ merenda 43 - descutinar ~ descortinar 43 - negrijar ~ negrejar 44 - despidida ~ despedida 44 - ordinação ~ ordenação 45 - dissimilhança ~ dessemilhança 45 - piccado ~ pecado 46 - digirir ~ digerir 46 - piccador ~ pecador 47 - duçura ~ doçura 47 - pedirneira ~ pederneira 48 - esfulinhar ~ esfolinhar 48 - pinhor ~ penhor 49 - extirminar ~ exterminar 49 - pireira ~ pereira 50 - firir ~ ferir 50 - prinder ~ prender 51 - gimido ~ gemido 51 - tinente ~ tenente 52 - gintiliza ~ gentileza 53 - gingibre ~ gengibre 54 - gingiva ~ gengiva 55 - ginitivo ~ genitivo 56 - lintilhas ~ lentilhas 57 - liviandade ~ leviandade 58 - liviano ~ leviano 59 - livimento ~ levimento 60 - midida ~ medida 61 - milindre ~ melindre 62 - miridiano ~ merediano 63 - mixericar, mixiricar ~ mexericar 64 - misiricórdia ~ misericórdia 65 - muribundo ~ moribundo 66 - mintira ~ mentira 67 - nicissidade ~ necessidade 68 - nigrigência ~ negligência 69 - offericimento ~ offerecimento 70 - pelingrino ~peregrino 71 - pelingrinar peregrinar 72 - pelingrino, pilingrinar ~ peregrino 73 - refirir ~ referir 74 - repintino~repentino 75 - repitição ~ repetição 76 - revistir ~ revestir 77 - siguir ~ seguir 78 - sigundar ~ segundar 79 - sirvir ~ servir 80 - siringa ~ seringa 81 - sintir ~ sentir 82 - sintido ~ sentido 83 - sintinela ~ sentinela 84 - sipulto ~ sepulto 85 - temiridade ~ temeridade 86 - tirnura ~ ternura 87 - tussir ~ tossir 88 - vistir ~ vestir 89 - vistimenta ~ vestimenta (nota 1) 90 - vistígio ~ vestígio

Embora prepondere HV, ( 90 versus 51), é de notar-se o acréscimo de ASM em relação aos períodos precedentes, como se estivesse tentando entrar no ritmo de HV. As médias persistem nas alternâncias, mas correm grande risco. É a mudança em progresso na época da prosa portuguesa de grande elegância, segundo (Cuesta e Luz 1980CUESTA, P.V.; Luz, M, A, M. da. 1980. Gramática da Língua Portuguesa. Lisboa: Lexis edições 70.). A mudança está às portas. É o que se depreende dos documentos consultados, admitindo-se que a escrita antiga reflita fenômenos da fala.

"Em Portugal, não há, nem houve nunca ortografia oficial, uniforme. Só ortografias variadas, mais ou menos sensatamente regradas pelo costume e exemplo de bons autores, mais ou menos inçadas de erros, contradições, dislates, caprichos e idiossincrasias. Esse estado anormal foi tomando proporções de calamidade nos último decênio do século passado..." (Vasconcelos, Carolina Michaelis 1912VASCONCELLOS, C. de M. 2012. Lições de Filologia Portuguesa. 2 ed. Lisboa: Revista de Portugal, série A. Língua Portuguesa., p. 97).

O que foi calamidade para a língua escrita foi um benefício para a história da língua, pois esses escritos guardam memória da fala. E foi assim que um olhar para o passado permitiu acompanhar a presença da harmonia vocálica no português antigo até meados do séc. XVIII e constatar o seu papel na mudança que aflorou no séc. XIX.

1.4. Período crítico

Assim denominamos o séc. XIX, pois nele se tornaram explícitos os efeitos da mudança, para a qual concorreram essencialmente três processos: a perda da distintividade das médias, uma em relação à outra, assinalada por (Nunes 1945); o papel de HV e de sua congênere, que fragilizaram a presença das médias no sistema, e a centralização, uma força inovadora que vinha simultaneamente fazendo o seu papel no âmbito das vogais [-post], conduzindo-as em direção ao centro do aparato fonador, o que lhes deu um som abafado ou escuro, cuja presença fora notada primeiramente por Fernão de Oliveira:"dantre e pequeno e e grande soa na nossa língua h a outra voz mais escura e não mais que h a."

Diz Nunes:

"As vogais átonas compartilham da sorte das sílabas do mesmo nome; como estas, alteram-se e por vezes até desaparecem, mas quando persistem tomam um som fraco e por vezes tão sumido que mal se faz sentir. Desta circunstância resulta [...] que tanto o é como o ó se confundem com ê e ô, não se fazendo distinção entre essas vogais, senão quando a palavra é proferida com ênfase..." (Nunes, J.J. 1945 [1930], p. 53).

Depreende-se disso e das considerações apresentadas em páginas precedentes que a ambiguidade das médias átonas, decorrentes da perda da função distintiva de uma em relação à outra, tendeu desde cedo a ser resolvida, no português europeu pela centralização das vogais classificadas como [-post] e pela substituição das médias [+post] pela alta correspondente, o que foi motivado pelo papel de HV e sua congênere, que familiarizam a troca das médias pelas altas, sobretudo nos séculos XVII e XVIII, quando a sua ação conjunta se faz notar. No séc. XIX os efeitos dos três processos tornam-se translúcidos, desaparecendo as médias átonas do sistema fonológico do PE. Persistem apenas em exceções.

Vale observar que silencia no séc. XIX a voz dos ortógrafos no que diz respeito à alteração das médias pretônicas. Na obra de (Candido Figueiredo 1903), intitulada "O que se não deve dizer" que consta, sobretudo, de comentários gramaticais sobre frases, tambémequívocos em palavras foram considerados, mas a troca de vogais por harmonia que proliferara no séc. XVIII não é citada. Gramáticas sincrônicas não citam a harmonia a não ser como característica do português brasileiro. Soares (Barbosa 1822BARBOSA, J.S. 1822[1803]. Gramática Filosófica da Língua Portugueza. Lisboa: Tipographia da Academia Real de Ciencias.) assim o faz: "os brasileiros mudam o e pequeno, breve em i, dizendo filiz, binigno, mi dêo, tidêo si firio , lhi dêo." Somente em termos de diacronia é mencionada sem ênfase entre outras assimilações:

"Deu-se assimil6ação entre outros no seguintes vocábulos:mentir e mintir, petire, pidir, vestire, vistir, necare, anagar (a par de anegar), ferire, firir, litania, ladainha, bilancia, balança, avitarda, batarda, evangelio, avangelho, novac(u)la, navalha, tenace, tanas (pop.), consetudine, ustunme,possidere, poussuir, etc." (Nunes, J.J.1951[1930], p.58).

Mas o que chama atenção são as palavras contundentes do filólogo (Leite de Vasconcelos, 1959VELOSO, J. 2010. Central, epenthetic, unmarked vowels and schuas: a brief outline of some essencial differences. Revista de estudos linguísticos da Universidade do Porto, v. 5. [1903]) sobre a ausência de certas vogais átonas no português de Lisboa. Para Vasconcellos, as vogais átonas são apenas três: [ , , u].

"E sabido que nas sílabas átonas repugnam à nossa língua as vogais orais (ou abertas ou fechadas) à, è, ê, ò ,ô, que por isso se pronunciam a fechado [ ] e surdo [ ], u; de faca fez-se f[ ]cada e não facada; de abérto fez-se ab[ ]rtura e não abertura; de rêde fez-se enr dar e não enredar; de pórta fez-se purteiro (escreve-se porteiro), e não pôrteiro; de poço fez-se pucinho(escreve-se pocinho)e não pôcinho. As exceções a esta regra geral estão sujeitas a varias condições, que não posso aqui estudar desenvolvidamente. (Vasconcelos, J. Leite, 1959 [1903]VASCONCELLOS, J. Leite. 1959. Lições de Filologia Portuguesa. 4. Ed. Rio de Janeiro: Livros de Portugal., p. 136,)"

A partir do séc. XIX, o português brasileiro com a harmonização vocálica e o português europeu sem ela, são dois dialetos da mesma língua. Diferenças que se estendem da fonologia à sintaxe não mudam o sistema básico. Neste ponto, deixemos a história para entrar na sincrônica, isto é, na gramática de nossos dias.

2. O Português contemporâneo

No séc. XX, quando os estudos sobre a língua tomam a feição da linguística iniciada por Saussure, vários estudos sobre harmonia vocálica no PB foram realizados. O primeiro a mencioná-la foi (Serafim Silva Neto 1970SILVA NETO, S. Serafim. 1970. História da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Livros de Portugal. Coleção de Filologia Portuguesa., p. 61), sucedendo-se os estudos de (Houaiss 1959HOUAISS, A. 1959. Tentativa de descrição do português culto na área dita carioca. Rio de Janeiro: Dep. da Imprensa Nacional.), Mattoso (Camara 1970CAMARA, Jr. J. M. 1970. Estrutura da língua portuguesa. 2. ed. Petrópolis: Vozes.), (Bisol 1981BISOL, L. 1981. Harmonização vocálica: uma regra variável. Rio de Janeiro, UFRJ. Tese de doutorado.), (Callou e Leite 1986CALLOU, D.; Leite, Y. 1986. As vogais pretônicas no falar carioca. Estudos Linguísticos, Salvador, UFBA.), (Maia 1986MAIA, V. L. M. 1986. As pretônicas médias na fala de Natal. Estudos Linguísticos e Literários, Salvador, n. 5, p. 209-225.), (Barbosa da Silva 1989BARBOSA DA SILVA, M. 1989. As pretônicas no falar baiano. Rio de Janeiro, UFRJ. Tese de doutorado.), (Bortoni e Malvar 1992BORTONI, S.; Malvar, C. 1992. A variação das vogais pretônicas em Brasília: um fenômeno neogramático ou de difusão lexical. Belo Horizonte, Estudos Linguísticos. p. 9-29.), (Schwindt 1995SCHWINDT, L.C. 1995. A harmonização vocálica em dialetos do sul do país: uma análise variacionista. Porto Alegre: PUCRS. Dissertação de Mestrado.) (Viegas 2001VIEGAS, M. C. 2001. O alçamento das médias pretônicas e os itens lexicais. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais. Tese de doutorado.), (Casagrande 2004CASAGRANDE, G. B. 2004. Harmonização vocálica: análise variacionista em tempo real. Porto Alegre, PUCRS. Dissertação de mestrado.), entre outros.

Exemplifiquemo-la com dados atuais ao lado da elevação sem motivação aparente:

Não se trata de exemplos de escrita, mas de fala gravada que constituem a base da maioria dos estudos sobre variação em tempos atuais. O primeiro ponto a ser notado é que a harmonia faz parte natural do sistema do PB, com estatuto de regra de uso moderado, enquanto ASM, que vem tomando a feição de regra menor, tende a privilegiar grupos de palavras, sobretudo verbos a exemplo de comer ~ cumer, cumesse e poder ~ puder, pudemos, pudesse. Em dados do sul se faz mais rara, sobretudo, em nomes, mas acontece: piquena ~ pequena e demais exemplos citados em (7). Como não se dispõe de estudos em separado de ASM senão os do sul do País, qualquer tentativa de generalização é temerária.

(7) HV ASM aligria ~ alegria buneca ~ boneca bibida ~ bebida culégio ~ colégio bunito ~ bonito guverno ~ governo curuja ~ coruja cumer ~ comer curtina ~ cortina cumpadre ~ compadre filiz ~ feliz cumadre ~ comadre gurdura ~ gordura cunhecer ~ conhecer prucissão ~ procissão custela ~ costela mintira ~ mentira muleque ~ moleque perigrino > pirigrino, peregrino piqueno ~ pequeno

Posta em temos gerais a situação da harmonia e sua congênere no PB, passemos ao sistema fonológico do português contemporâneo, a fim de contemplar os efeitos da mudança e a decorrente distinção dos dois dialetos contemporâneos, PEC e PBC. O português é um sistema de sete vogais que se manifestam plenamente na posição tônica: /a, ε, , e, o, i, u/.

A divisão em dois dialetos pelas razões expostas tem a ver com a sílaba átona, pretônica. Ambos os dialetos têm três vogais na sílaba final, mas na pretônica, PBC tem cinco vogais e PEC, três. Por conseguinte a matriz em (8) sofre a redução representada em (9a)no PBC e a redução representada em (9b) em PEC.

(8)
Sistema básico do português

(9)
Português brasileiro e português europeu contemporâneos

Observemos o quadro acima, com vistas à neutralização assim definida: a neutralização consiste na perda do traço que distingue dois fonemas, com a consequente perda de um deles a ser substituído pelo que permanece ou de ambos a serem substituídos por um som intermediário ou um terceiro som nem idêntico nem semelhante a um dos elementos do par opositivo (Troubetzkoy 1967, p. 82-85).

Em PBC (9a), considerando-se dados do sul/sudeste, o sistema de sete vogais acentuadas /i, u, e, o, ε, , a/ fica reduzido a cinco vogais átonas por efeito da neutralização das médias / ε, / x /e, o/ em que a oposição neutralizada é substituída por um som idêntico a um de seus membros, no caso, a média fechada /e, o/, com claras evidências na pretônica, a exemplo de bεlo > beleza, s l > solaço. A redução de sete vogais a cinco na pretonica é o centro de nossa atenção; a redução a três na átona final é um pressuposto dado. Fazendo-se a relação entre a pauta acentual e a não acentual, essa é a visão geral do sistema fonológico do PBC desde (Camara Jr. 1970CAMARA, Jr. J. M. 1970. Estrutura da língua portuguesa. 2. ed. Petrópolis: Vozes.). Em PEC (9b), não há simetria entre a redução das vogais da pauta [+post] e da pauta [-post], mas ambas são plenamente explicáveis por neutralização na linha de Trubetzkoy (1967). As vogais médias do tipo [-post], ao passarem da posição acentual para a não acentual, perdem a distinção que separa uma da outra, como entidades fonológicas, isto é, são neutralizadas, passando a ser substituídas por um terceiro som, uma vogal centralizada, [ ] ou [l], variação que dispensa explicações, pois "Central vowels can be characterized as highly variable, unstable, ill-defined vocoids" (Veloso 2010VELOSO, J. 2010. Central, epenthetic, unmarked vowels and schuas: a brief outline of some essencial differences. Revista de estudos linguísticos da Universidade do Porto, v. 5.:199). Representam-no por [ ], a exemplo de mεl > m ladu, selo > s ladu, (Cuesta e Luz 1980CUESTA, P.V.; Luz, M, A, M. da. 1980. Gramática da Língua Portuguesa. Lisboa: Lexis edições 70.), c Mira (Mateus 1982MATEUS, M. H. 1982. Aspectos da fonologia portuguesa. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica.), (Delgado Martins 1983DELGADO MARTINS, M.R. 1983. Sept Etudes sur la perception. Accent et Intonation. 2. ed. Lisboa: Laboratório de Fonética, Universidade de Letras de Lisboa.), entre outros; trabalhos mais recentres representam-no por [l], mεl>mlladu, selo> slladu como em (Mateus e d´Andrade 2000MATEUS, M. H. e d' Andrade, E. 2000. The Phonology of Portugese. New York: Oxford University Press.), (Vigário 2003VIGÁRIO, M. 2003. The Prosodic Word in European Portuguese. New York: Mouton de Gruyter.) e (Veloso 2010VELOSO, J. 2010. Central, epenthetic, unmarked vowels and schuas: a brief outline of some essencial differences. Revista de estudos linguísticos da Universidade do Porto, v. 5.). Em vogais do tipo [+post], as médias / , o/ são neutralizadas em favor da vogal /u/, o terceiro segmento, a exemplo de m da > mudelo, poço > puceiro. Por conseguinte, a ambiguidade entre as médias referida por Nunes (1951) foi solucionada pela neutralização em favor de um terceiro som, alimentada, em se tratando da vogal [-post], da centralização.

Em suma, enquanto no PBC, a neutralização favorece um dos termos da oposição, em ambos os paradigmas [+post] e [-post], no PEC, favorece um terceiro som, as médias classificadas como [-post] neutralizam em favor de um segmento centralizado , enquanto as médias com o traço [+post] neutralizam diretamente em favor da vogal alta. Tanto a neutralização em PEB quanto em PEC são casos previstos na proposta de neutralização de Trubetzkoy.

Para finalizar, apresentamos exemplos de PEC e PBC, extraídos os primeiros de (Mateus e d'Andrade 2000MATEUS, M. H. e d' Andrade, E. 2000. The Phonology of Portugese. New York: Oxford University Press.).

Admitimos, porém, que a vogal [ ] registrada em (Cuesta e Luz 1980CUESTA, P.V.; Luz, M, A, M. da. 1980. Gramática da Língua Portuguesa. Lisboa: Lexis edições 70.), Mira (Mateus 1982MATEUS, M. H. 1982. Aspectos da fonologia portuguesa. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica.), (Delgado Martins 1983DELGADO MARTINS, M.R. 1983. Sept Etudes sur la perception. Accent et Intonation. 2. ed. Lisboa: Laboratório de Fonética, Universidade de Letras de Lisboa.) entre outros, ainda esteja presente na fala, por conseguinte, variantes do tipo slar ~ s1lar, p gar ~ p1gar são esperadas.

Enfim, PBC preserva o sistema átono de cinco vogais pretônicas, enquanto PEC perde as médias átonas. Desde então, de um lado PBC com harmonia, de outro PEC sem ela, pois as vogais médias, seu alvo, desapareceram do sistema. Eis o efeito da mudança em foco, no sistema fonológico, da qual HV é o divisor de águas.

Conclusão

O português brasileiro faz a sua história a partir do séc. XVI, herdando o sistema átono de cinco vogais com a harmonização vocálica na pretônica, enquanto o português europeu, dando abrigo à centralização das vogais átonas [-post], segue outra deriva, em virtude dos efeitos de três processos: centralização, harmonização e neutralização. Todavia PEC e PBC são dialetos de uma língua só.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015

Histórico

  • Recebido
    Abr 2013
  • Aceito
    Jul 2014
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