Acessibilidade / Reportar erro

Tradução de humor: transcriando piadas

NOTAS SOBRE LIVROS BOOKNOTES

Sírio Possenti

Universidade Estadual de Campinas

ROSAS, Marta. 2002. Tradução de humor: transcriando piadas. Rio de Janeiro: Editora Lucerna. 128 p.

TRADUÇÃO (D)E PIADAS

Tratando da comicidade das palavras, Bergson distingue (O riso, Rio, Zahar) "o cômico que a linguagem exprime e o que ela cria". E acrescenta, como quem não quer nada: "O primeiro poderia a rigor traduzir-se de uma língua para outra... Mas o segundo é em geral intraduzível" (p. 57). Isso parecerá um tanto simplório hoje, que tudo depende da teoria de tradução adotada. Pode-se ver como e por que no livro de Marta Rosas, Tradução de humor; transcriando piadas.

O livro se divide em duas partes: tradução de humor na teoria (que inclui apresentações mais ou menos sumárias de teorias do humor e de tradução) e tradução do humor na prática (com quatro capítulos: vertentes na construção do humor; coincidências lingüísticas; a tradução funcional do humor e na periferia da tradução de humor).

A autora declara explicitamente sua adesão a teorias cujo princípio é que a finalidade da tradução é dominante (e não a fidelidade a um original, por exemplo). A garantia vem de Reiss e Werner, autores de uma Skopostheorie da tradução. Os princípios fundamentais são: o que se faz é secundário em relação ao objetivo da ação e sua consecução; é mais importante que um translatum (uma translação) alcance um dado objetivo do que o fato de realizar-se de um determinado modo; uma ação é determinada por sua finalidade; pode-se definir o escopo como uma variável dependente dos receptores. Como se vê, as teses são fortemente pragmáticas (não sei se no bom sentido, se é que há um...).

É na segunda parte do livro, quando Rosas traduz piadas e comenta alguns efeitos de sua tradução que o livro se torna francamente interessante. O capítulo 4 é dedicado a casos em que a fronteira entre fatores culturais e lingüísticos não é clara. Rosas fornece vários exemplos, entre os quais Winter is nature´s way of saying 'Up yours', que poderia ser traduzida por O inverno é o modo que a natureza encontra de dizer 'no seu', mas que seria menos eufêmica substituindo 'no seu' por 'vá tomar no...' e What did the Polish mother say to her pregnant, unwed daughter? "Look on the bright side, maybe it´s not yours' cuja tradução mais ou menos literal seria O que é que a polonesa disse para sua filha solteira e grávida? "Veja as coisas pelo lado bom; talvez o bebê não seja seu". Esta tradução exigiria uma nota para explicar que o polonês é a personagem de piadas americanas com papel análogo ao do português em piadas brasileiras (eventualmente, seria mais funcional na cultura brasileira simplesmente substituir polonesa por portuguesa).

Às vezes, Rosas apresenta duas traduções da mesma piada. Para "–How does a spoiled rich girl change a light bulb? – She says, "Dady, I want a new apartment", propõe "-Como uma menina rica e mimada troca uma lâmpada? –Ela diz: "Papai, quero um apartamento novo", o que dá uma boa piada, mas considera mais "recomendável", por ser mais econômica e por manter mesmo assim o sentido literal, "-Como é que uma patricinha troca uma lâmpada? –Pedindo a papai um apartamento novo".

O capítulo 5 é dedicado a casos de "coincidências lingüísticas". Talvez por isso seja o mais breve (não havendo problemas, tudo parece menos interessante). Um exemplo é Sex between a man and a woman can be wonderful – provided you get between the right man and the right woman, traduzida por Sexo entre um homem e uma mulher pode ser maravilhoso – contanto que você fique entre o homem certo e a mulher certa, caso em que between e entre produzem claramente efeito semelhante.

No capítulo 6 estão os casos e os comentários nucleares do livro. 13 exemplos são traduzidos, em geral de várias maneiras, e os efeitos de cada solução são rapidamente analisados. Exemplos: Did you hear about the guy that lost his left arm and leg in a car trash? He´s right now, texto para o qual Rosas propõe cinco soluções: a mais "literal" perde o efeito de humor: Soube do cara que perdeu o braço e a perna esquerdos num acidente de carro? Agora ele está bem / fora de perigo. Uma das traduções que mantém esse efeito é Soube do cara que perdeu o braço e a perna esquerdos num acidente de carro? Ele agora tá direitinho (outra: ele agora só anda às direitas).

Outro exemplo, breve e excelente é I wouldn´t be caught dead with a necrophiliac. A tradução Eu não seria pego morto com um necrófilo não produz nenhum efeito de humor, mas ele ocorre, por exemplo, em Com um necrófilo? Nem morta! – bom exemplo de transcriação. Em One margarita, Two margaritas, Three margaritas, Floor a tradução literal (Uma margarita, Duas margaritas, Três margaritas, Chão) é completamente insossa, mas sua tradução "funcional" é excelente: Uma caipirinha, Duas caipirinhas, Três caipirinhas, De quatro.

Um excelente exemplo é Mr. Speaker, this is a phony exemple with a capital F, para o qual Rosas apresenta várias hipóteses, todas muito interessantes: Sr Presidente, este projeto é uma embuste com I maiúsculo (uma impostura com E, uma charlatanice com X etc.).

O mais interessante dos exemplos que Rosas explora (no capítulo 6) e para o qual aventa várias soluções é Which do you prefer: roses on your piano or tulips on your organ? (que, em inglês, funciona basicamente explorando a homofonia de tulips (tulipas) e two lips (dois lábios) e a polissemia de organ (que se mantém em português), com óbvias alusões sexuais. Rosas assume que deve encontrar não uma solução literal (tulipas no órgão não seria uma solução funcional, pois não produziria efeitos de humor), mas uma que substitua tulips de preferência pelo nome de uma flor e que produza conotações sexuais semelhantes à piada original. A meu ver, são propostas interessantes O que você prefere: bananas no seu piano ou dedos-de-dama no seu órgão? ... onze-horas no seu piano ou boas-noites no seu órgão? ... beijos-de-frade no seu piano ou beijos-de-moça no seu órgão? ... uma angélica no seu piano ou uma maria-sem-vergonha no seu órgão?

O exemplo é excelente, a meu ver, porque sua análise permite discutir o que se ganha e o que se perde com determinada teoria da tradução. Quando se obtém uma boa solução do ponto de vista das alusões da piada, pode-se ver que ela não decorre da homofonia de duas expressões, mas da polissemia – digamos assim - do nome das flores, que podem conotar sexo, especialmente se associadas à palavra órgão. A meu ver, trata-se de boas soluções, certamente criativas. A pergunta é: qual o limite que a teoria pode impor, que não pode ser ultrapassado, para distinguir uma tradução criativa da substituição de uma piada por outra, que tem o mesmo efeito porque é engraçada e incide sobre o mesmo tema? Em outras palavras: se é verdade que traduzir não é transportar um sentido intocado de uma língua para outra, qual é o critério que garante que outra versão ainda é tradução?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Mar 2004
  • Data do Fascículo
    2003
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP PUC-SP - LAEL, Rua Monte Alegre 984, 4B-02, São Paulo, SP 05014-001, Brasil, Tel.: +55 11 3670-8374 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: delta@pucsp.br