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Michoacán e Rio de Janeiro: Governança criminal, controle social e obtenção de lucro e poder político pelas autodefesas armadas e pelas milícias

RESUMO

O artigo compara duas experiências de surgimento e consolidação de atores armados não estatais no Rio de Janeiro, no Brasil, e Michoacán, no México, constatando a emergência dos grupos, seu funcionamento, sua relação com o Estado e seu envolvimento em novas formas de governabilidade no controle territorial, na regulamentação populacional e na obtenção de lucros. Esses fenômenos fariam parte de uma transformação mais ampla, referente a mutações políticas que descentralizam o Estado e geram formas subjetivas específicas que modificam a relação entre o indivíduo, o social, o Estado e o mercado.

Palavras-chave:
milícia; autodefesa; crime; Estado; violência

ABSTRACT

The article compares two important experiences of the emergence and consolidation of armed non-state actors in Rio de Janeiro, Brazil, and Michoacán, Mexico, noting the rise of the groups, their functioning, relationship with the state and involvement in new forms of governance in territorial control, population regulation and profit-making. These phenomena are part of a broader transformation related to political mutations that decentralize the state and generate specific subjective forms that modify the relationships between the individual, the social, the state, and the market.

Keywords:
militia; self-defense; crime; state; violence

Introdução

Nos últimos anos, em vários países em escala global, estudos documentaram o surgimento de novas formas de controle social em que grupos civis desempenham um papel de liderança na produção da ordem social com certo grau de legitimidade além da esfera estatal, em fenômenos como o crime organizado, gangues, grupos vigilantes, paramilitarismo, milícias e grupos de autodefesa. Esse tipo de governabilidade gerada por atores não estatais tem sido caracterizada pelo termo governança, proveniente da análise da nova gestão pública baseada em modelos de negócios corporativos. O conceito busca compreender um complexo de instituições e atores que derivam do governo mas vão além dele, dizendo respeito a mudanças de padrões entre os setores público e privado (STOKER, 1998STOKER, Gerry. “Governance as Theory: Five Propositions”. International Social Science Journal, vol. 50, n. 155, pp. 17-28, 1998.).

O termo governança criminal tem sido usado para se referir ao envolvimento de atores não estatais na capacidade coercitiva para exercer autoridade e impor regras e normas de conduta em determinado ambiente, seja na gestão criminal seja na gestão de sua própria segurança, em um contexto caracterizado pela redefinição dos papéis do Estado na geração de distribuições e delegações que patrocinam o envolvimento de outros atores sociais e políticos em uma série de esferas supranacionais e subnacionais (ARIAS, 2017ARIAS, Enrique D. Criminal Enterprise and Governance in Latin America. Cambridge: Cambridge University Press, 2017.; LESSING, 2020LESSING, Benjamin. “Conceptualizing Criminal Governance”. Perspectives on Politics, vol. 19, n. 3, pp. 854-873, 2020.; SAMPÓ, 2021SAMPÓ, Carolina. “Una aproximación teórica, el concepto de Gobernanza Criminal en América Latina”. In: ALDA MEJÍAS, Sonia (org). Los actores implicados en la gobernanza criminal en América Latina. Madrid: Real Instituto Elcano; Fundación Friedrich Naumann, 2021, pp. 9-18.).

O estabelecimento da ordem social que esses grupos representam pode, muitas vezes, questionar as noções de legalidade e legitimidade como esferas ligadas à forma moderna do Estado. Talvez o surgimento dessas formas de governança alternativas nos indique uma ruptura entre legalidade e legitimidade, acentuando as características da legitimidade. Essa apreciação faz mais sentido quando observamos a formação do Estado, que nos permite compreender que em diferentes momentos sua construção tem oscilado entre formas legítimas, mas não legais (KNIGHT, 2012KNIGHT, Alan. “Narco-violence and the State in Modern Mexico”. In: PANSTERS, Will G. Violence, Coercion, and State-making in Twentieth Century Mexico. The Other Half of the Centaur. Stanford: Stanford University Press, 2012, pp. 94-107.). Essa questão é relevante se também atende aos processos de formação do Estado, em que o vínculo histórico entre legitimidade e legalidade faz parte de contextos variáveis sob certas condições. Se observarmos os estudos de Tilly (1985TILLY, Charles. “War Making and State Making as Organized Crime”. In: EVANS, Peter B.; RUESCHEMEYER, Dietrich; SKOCPOL, Theda. Bringing the State Back. Cambridge: Cambridge University Press, 1985, p.169-187.) e Lane (1963LANE, Frederick C. Profits from Power: Readings in Protection Rent and Violence-Controlling Enterprises. Albany: State University of New York Press, 1963.) e os estudos sobre a governamentalidade (FOUCAULT, 2009FOUCAULT, Michel. Security, Territory, Population. Londres: Palgrave Mcmillan. 2009.), é possível sugerir que essas práticas podem ser entendidas, em alguns casos, como parte substancial da formação do Estado (PANSTERS, 2012PANSTERS, G. Will. Violence, Coercion, and State-making in Twentieth Century Mexico. The Other Half of the Centaur. Stanford: Standford University Press, 2012.).

Atualmente, as ordens impostas por esses atores não estatais são muitas vezes híbridas e conjunturais. Ademais, não se deve perder de vista o fato de que eles respondem a formas de organização da produção e geração de lucros, em circuitos misturados pela economia legal e ilegal. Um importante volume desses lucros é gerado pela circulação de mercadorias ilegais, exigindo a hibridação das esferas legal e ilegal para que tal acúmulo de capital seja possível.

Desde 2013, no estado mexicano de Michoacán, vem ocorrendo a expansão vertiginosa de grupos de autodefesas armadas contra a violência praticada pelo crime organizado, que, ao diversificar suas atividades econômicas para além do tráfico de drogas, estabeleceu formas de extorsão por meio de assassinatos e violência sexual. No estado do Rio de Janeiro, no Brasil, com destaque para a Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), milícias formadas por agentes públicos de segurança, em associação com civis, iniciam sua expansão a partir do início dos anos 2000, usando como justificativa a luta contra a violência das facções do tráfico de drogas.

A comparação de ambos os casos será centrada nas dimensões do controle social e na obtenção de ganhos econômicos e políticos dos respectivos grupos, detalhando-se os aspectos do controle armado de territórios, da interferência política e da montagem de negócios. A relevância da comparação está na possibilidade de se analisar elementos da história econômica, política e social que contribuíram, em cada contexto, para a formulação de respostas diferenciadas: autodefesas e milícias, caracterizadas por pontos de aproximação que permitem uma elaboração teórico-analítica capaz de aprofundar e ampliar os estudos sobre o tema.

No caso mexicano, o processo está associado ao confronto das políticas públicas de segurança com o narcotráfico e à quebra do equilíbrio histórico entre as atividades ilegais e as relações sociais nas comunidades. O caso brasileiro, por sua vez, revela o aprofundamento de uma estrutura de controle social originada na ditadura empresarial-militar de 1964, bem como as modificações decorrentes da formação das facções a partir do final dos anos 1970 e sua expansão no domínio de favelas e periferias.

Se ambos os casos têm em comum a formação de uma zona cinzenta, caracterizada pela indistinção entre Estado e criminalidade, em Michoacán foi criada uma arena de disputa entre diferentes atores em busca de uma recomposição político regional, em que múltiplos sujeitos disputam conexões com o uso legítimo da violência e regulação social. Já no Rio de Janeiro aprofundou-se um modelo de monopólio do uso da violência por agentes do Estado que, a partir de sua posição institucional privilegiada, obtêm informações favoráveis para sua proteção e para a expansão de seus negócios e ganhos políticos. Assim, o caso mexicano revela um arranjo de negociações entre diferentes grupos armados, tendo o Estado como importante agente e regulador; no caso brasileiro, por sua vez, temos a supremacia crescente daqueles que operam por dentro do sistema de segurança pública o uso da violência armada na eliminação de adversários e na busca de ambientes seguros.

A governança criminal a ser comparada neste artigo reflete a forma como as organizações criminosas em composição com agentes estatais - seja por conluio, omissão ou permissividade - geram ordens territoriais e de regulamentação social nos ambientes em que operam, criando procedimentos e táticas que produzem benefícios econômicos e controle social e político, aproveitando as zonas ambíguas entre legalidade e ilegalidade, entre formalidade e informalidade institucional. Para esse fim, nessas zonas cinzentas o Estado não desaparece nem abdica de sua responsabilidade, mas admite novos atores que contribuem para a regulamentação social, articulando microssistemas de poder relativamente autônomos. Nesse sentido, o estudo comparativo entre o Rio de Janeiro e Michoacán permite avançar na compreensão das novas formas do Estado e da participação cidadã presente na construção do público, em que a violência desempenha um papel central na acumulação de capital e na regulação social.

Michoacán: narcotráfico e ordem ilegal-legítima

O estabelecimento da governança criminal em Michoacán e seu confronto com os grupos de autodefesa no início de 2013 vêm de transformações na operação dos grupos de narcotráfico na região. O cultivo de drogas no México remonta ao século XIX, quando foi introduzido com a imigração da população chinesa para a região de Sinaloa, no noroeste do México, levando o cultivo de papoula para fins medicinais e recreativos (GRILLO, 2011GRILLO, Ioan. El Narco: Inside Mexico’s Criminal Insurgence. Nova York: Bloomsbury Press, 2011.). No entanto, aqueles que promoveram a produção e exportação de ópio e mais tarde de maconha, no início do século XX, foram empresários sinaloenses de famílias notáveis ​​com laços com a política local (ENCISO, 2015ENCISO, Froylán. Nuestra história narcótica: Pasajes para (re)legalizar las drogas en México. México: Debate, 2015.). O cultivo de papoula e maconha começou como um meio de sustento familiar em comunidades camponesas pobres das terras altas de Sinaloa, com trabalhadores contratados por empresários agrícolas. Ao longo de quatro décadas, entre os anos 1940 e 1980, o cultivo de substâncias ilícitas mudou, resultando no desenvolvimento de empresas familiares que controlavam grandes regiões de Sinaloa, organizadas por parentesco, vizinhança e relações comerciais, o que gradualmente tornou possível institucionalizar o tráfico de droga na região (FERNÁNDEZ, 2018FERNÁNDEZ VELÁZQUEZ, Juan A. El narcotráfico en Los Altos de Sinaloa (1940-1970). Cidade do México: Universidad Veracruzana, 2018.).

A expansão desse negócio ocorreu mais tarde em outros estados do oeste mexicano, como Guerrero e Michoacán, assim como em outras rotas de comercialização com os EUA. Nos anos 1980, organizações colombianas controlavam a rota da cocaína transcaribenha para os EUA via Flórida, mas a política proibicionista do governo de Ronald Reagan (1981-1989) forçou o desvio da rota para o Pacífico. Isso deu às organizações mexicanas da região um novo papel no comércio de cocaína para os EUA e levou tais organizações a entrar no comércio de cocaína estabelecendo vínculos com as organizações colombianas (VALDÉS, 2013). Durante esses anos, o porto Lázaro Cárdenas em Michoacán passou a desempenhar um papel estratégico na geopolítica das drogas, pois estava sob o controle da organização de Sinaloa. O encarceramento dos seus principais líderes, nos anos 1990, dividiu a organização em grupos menores e outros grupos e lideranças surgiram para distribuir o acesso às drogas no Golfo do México e disputar o controle das drogas sintéticas.

O cultivo de drogas em Michoacán remonta aos anos 1940, quando plantadores do sul de Sinaloa mudaram-se para a costa do Pacífico. Na década de 1950, o cultivo de maconha e papoula estava difundido e a papoula começou a ser usada como moeda nas transações comerciais (GUERRA, 2017GUERRA, Edgar. “La violencia en Tierra Caliente, Michoacán, c.1940-1980”. Estudios de Historia Moderna y Contemporánea de México, vol. 1, n. 53, pp. 1-17. 2017.). Nos anos 1970 e 1980, a crise económica contribuiu para uma queda no preço dos cítricos, ligada à eliminação dos incentivos estatais para a produção agrícola. Como consequência, as perdas foram recuperadas através do cultivo da maconha. Como em outras áreas, os negócios ilegais aproveitaram a infraestrutura agrícola criada nos anos 1940 e 1960 para o desenvolvimento regional (Ibid.). Ao longo de várias décadas, o narcotráfico construiu sobreposições na economia regional entre atividades legais e ilegais, constituindo amplos circuitos de valor nas regiões onde atuou, enraizado em uma longa história de identidades regionais (MALKIN, 2001MALKIN, Victoria. “Narcotráfico, migración y modernidade”. In: ZÁRATE HERNÁNDEZ, José Eduardo (org). La Tierra Caliente de Michoacán. Cidade do México: El Colegio de Michoacán; Gobierno del Estado de Michoacán, 2001, pp. 549-584.). Criou-se um tipo de relação política que permitiu o estabelecimento de controle e regulação do narcotráfico, articulando uma ordem ilegal baseada no equilíbrio recíproco entre atividades ilegais e comunidades, dado pelo derramamento de benefícios na base social e em camaradagem com as autoridades do Estado para tolerar os negócios ilegais e o controle local. Esse equilíbrio recíproco criou um tipo de ordem ilegal legítima na qual o narcotráfico se enraizou, gerando uma zona de indistinção histórica entre crime e Estado (FUENTES DÍAZ, 2019FUENTES DÍAZ, Antonio. “A zona cinza: ordem criminosa e autodefesa armada no México”. Tempo Social, São Paulo, vol. 1, n. 31, pp. 277-299, 2019.) e estabelecendo as bases para esse tipo de governança criminosa.

Ordem predatória e governança criminal

Durante as florescentes décadas do tráfico de drogas no México, de 1940 até 1980, a atividade criminosa era regulamentada pela Direção Federal de Segurança (DFS), um órgão de inteligência e segurança do Estado mexicano. Esse modelo de gestão envolvia a subordinação das organizações do narcotráfico à DFS por meio de consentimentos e participações nos lucros, sob o compromisso de um comportamento criminoso civilizado que afetava o mínimo possível as comunidades (VALDÉS, 2013). As mudanças macroestruturais ocorridas no país entre o fim dos anos 1980 e o início dos 1990, desde a implementação do modelo de desenvolvimento baseado em políticas de liberalização econômica, com a entrada no Acordo Geral sobre Tarifas Alfandegárias e Comércio (GATT), em 1986, e o Tratado de Livre Comércio da América do Norte (TLCAN), em 1994, além do desaparecimento da DFS, puseram fim a esse modelo de regulamentação (FLORES, 2009).

A partir de 2005, as políticas de combate às organizações criminosas no México e nos EUA, com o Acordo de Segurança e Prosperidade e a implementação da Iniciativa Mérida, em 2007, geraram a fragmentação das grandes organizações do narcotráfico, rumo à competição entre sub-organizações por mercados ilegais e a estratégias de diversificação de atividades criminosas lucrativas, que encontraram nos recursos naturais - ferro, madeira, ouro, prata e safras agrícolas de exportação - a oportunidade para aumentar os lucros por meio de um sistema de arrecadação.

Essas mudanças foram importantes porque nos permitem entender a passagem do narcotráfico de um perfil tradicional para outro com características corporativas e globais, marcado por ampla diversificação de atividades criminosas lucrativas e grande capacidade de uso da violência.

Foi nesse momento que a operação dos grupos de narcotraficantes assumiu novas características, como a orientação para as drogas sintéticas (metanfetamina, fentanilo, heroína), e diversificou suas atividades criminosas por meio da extorsão e da paramilitarização. Algumas pesquisas utilizam essa caracterização para analisar grupos criminosos cuja motivação não seria mais política-ideológica, como aquela vinculada às atividades contra-insurgentes - como no caso da Colômbia -, e sim econômica, já que continuam utilizando o conhecimento militar (CORREA, 2015CORREA, Guadalupe et al. “Losing the Monopoly of Violence: The State, a Drug War and the Paramilitarization of Organized Crime in México (2007-2010)”. State Crime Journal, vol. 4, n. 1, pp. 77-95, 2015.). O crime organizado paramilitar é um tipo de rede capaz de integrar lucros ilícitos na economia formal utilizando violência profissionalizada, por meio do conhecimento estratégico e táctico de ordem militar no desenvolvimento das atividades criminosas e no estabelecimento da hegemonia territorial (FLORES, 2018). Essas mudanças quebraram o histórico equilíbrio que havia, em âmbito local, entre a ilegalidade, as comunidades e o Estado, tornando ilegítima a ordem criminosa. Isso levou à formação, em 2013, de grupos armados de autodefesa em Michoacán, bem como à disputa por uma nova ordem (FUENTES DÍAZ, 2019FUENTES DÍAZ, Antonio. “A zona cinza: ordem criminosa e autodefesa armada no México”. Tempo Social, São Paulo, vol. 1, n. 31, pp. 277-299, 2019.).

Após a fragmentação da organização de Sinaloa, vários grupos foram assumindo o comercio de sustâncias ilegais em Michoacán. Dos anos de 1980 até hoje, uma série de organizações criminosas tomaram posse do negócio de substâncias ilegais na região. Primeiramente houve o predomínio do Cartel do Milênio, que organizou o tráfico de cocaína procedente da Colômbia para os EUA. No início dos anos 2000, surgiram novas organizações, como Os Zetas [Los Zetas], A Família Michoacana [La Familia Michoacana] e Os Cavaleiros Templários [Los Caballeros Templarios] (VALDÉS, 2013; GRILLO, 2011GRILLO, Ioan. El Narco: Inside Mexico’s Criminal Insurgence. Nova York: Bloomsbury Press, 2011.). Entre as mais importantes se destaca a Os Zetas, constituída por ex-integrantes das forças especiais do Exército mexicano e do grupo de elite kaibil do Exército da Guatemala. Essa organização ficou conhecida por utilizar técnicas de combate de contrainsurgência nas disputas pelos mercados ilegais, como desmembramento dos integrantes de grupos rivais e decapitações, transformando as organizações criminosas em paramilitares.

Nas disputas sobre mercados de substâncias ilegais, houve confrontos e recomposições políticas entre as diferentes facções. Em 2006, Os Zetas foram perseguidos e expulsos de Michoacán pelo A Família Michoacana. O destaque do nome é que, em seu confronto com Os Zetas e para obter legitimidade nas comunidades onde atuavam, os membros da Familia acentuaram o fato de serem originários dos povos de Michoacán, enfatizando o vínculo com seus conterrâneos, em relação a seus oponentes. Em 2011, outro grupo surgiu como dissidente da Família Michoacana: Os Cavaleiros Templários, que passou a operar por meio da diversificação de atividades criminosas lucrativas com altas margens de lucro, como o contrabando de minerais e madeira. Havia outros grupos com projeções menores ou que em algum momento foram incorporados a essas organizações. O fator comum a todos eles é que estabeleceram uma ordem criminal pelo terror, aproveitando a disputa pela legitimidade do monopólio da violência e da mão de obra excedente da população rural residual, que aderiu - às vezes forçosamente - às organizações criminosas.

As atividades dessas organizações têm se caracterizado pela cobrança de taxas para proporcionar segurança, uma prática que tem sido implementada em vários contextos, como no caso das milícias armadas do Rio de Janeiro e de São Paulo (GLEDHILL, 2016GLEDHILL, John. La nueva guerra contra los pobres: La producción de la inseguridad en Latinoamérica. Barcelona: Bellaterra, 2016.; ALVES, 2020ALVES, José Cláudio Souza. Dos barões ao extermínio: Uma história da violência na Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Consequência, 2020.), dos intermediários violentos na Rússia (VOLKOV, 2002VOLKOV, Vadim. Violent Entrepreneurs: The Use of Force in the Making of Russian Capitalism. Nova York: Cornell University Press, 2002.) e de gangues criminosas colombianas (MEDINA, 2015), e que, de acordo com Tilly (1985TILLY, Charles. “War Making and State Making as Organized Crime”. In: EVANS, Peter B.; RUESCHEMEYER, Dietrich; SKOCPOL, Theda. Bringing the State Back. Cambridge: Cambridge University Press, 1985, p.169-187.), tem sido fundamental na formação do Estado.

A coleta de cotas para segurança foi uma prática extorsiva utilizada por todos os grupos criminosos, cada um dando-lhe uma projeção diferente e extensa. Foi introduzida pelos Zetas e ampliada pelas organizações que os precederam. A Família Michoacana estabeleceu um sistema de proteção para as comunidades contra os abusos e assassinatos por parte dos Zetas. Para que esse sistema fosse sustentado, os habitantes das comunidades tinham que pagar por segurança. Uma vez que os Templarios assumiram o controle da região, mantiveram o pagamento, argumentando que seria necessário conter os abusos da Família Michoacana.

No entanto, a organização criminosa que levou a cobrança por extorsão a um nível sofisticado foi Os Cavaleiros Templários, que articulou um regime de extorsão que cobrava impostos sobre toda a atividade produtiva local. O regime de extorsão cobrava impostos sobre produtos agrícolas de exportação (cítricos, frutos de baga e abacate), sobre pequenos produtores e trabalhadores rurais sazonais e sobre o comércio formal e informal. Fizeram, igualmente, cobranças exorbitantes sobre a folha de pagamento dos funcionários públicos. Esse regime também incentivou, como parte de sua diversificação, o controle da comercialização de produtos agrícolas, o controle das minas de minério de ferro, o tráfico de pessoas e a extração ilegal de gasolina. Erigiu, assim, uma ordem criminal predatória que ora coexistia, ora complementava, ora ainda contestava a soberania do Estado, estabelecendo uma área cinzenta baseada na renda extorsiva (FUENTES DÍAZ, 2018aFUENTES DÍAZ, Antonio. “Community defense and criminal order in Michoacán: contention in the grey area”. Latin American Perspectives, vol.45, n. 6, 2018a, pp. 127-139., 2019; LE COUR, 2019). Essa ordem criminal desempenhava funções regulatórias em algumas regiões, comparável ao que Mbembe (1999MBEMBE, Achille. “Du gouverment privé indirect”. Politique africaine, vol. 1, n.73, pp. 103-121, 1999.) tem caracterizado em termos de um “governo privado indireto”, com parafiscalização das atividades comerciais, ações de controle social, ocupação e influência nas estruturas municipais, bem como o direito à vida e à morte - uma governança criminosa. Um fato fundamental foi que, na consolidação de sua hegemonia, os Templários utilizaram a violência sexual contra as mulheres (filhas, esposas) de grupos rivais. Isso foi apontado por algumas pesquisas (FUENTES DÍAZ, 2018a; LE COUR 2019) e documentado por uma das responsáveis da Comissão para a Segurança e o Desenvolvimento Integral de Michoacán1 1 A Comissão para a Segurança e o Desenvolvimento Integral de Michoacán foi um órgão administrativo do governo federal do México criado em janeiro de 2014 para a restauração da segurança no estado de Michoacán, principalmente por meio da legalização dos grupos de autodefesa. , Imilse Arrue: “Além das cotas, os Templarios chegaram ao ponto de não respeitar nenhuma mulher, fosse casada ou solteira... Aqui engravidaram 20 meninas, muitas mais foram estupradas” (ARRUE, 2017ARRUE, Hernández, Maria Imilse. Vamos Topando: Autodefensas Michoacán. Bloomington: Palibrio, 2017., p. 52). Nesse sentido, investigações importantes sobre a criminalidade organizada têm revelado a profunda ligação entre violência sexual, masculinidade hegemônica em crise, a lógica patriarcal do crime organizado e a preservação, pela força, de uma ordem sexual associada à família rural tradicional ligada a uma masculinidade hegemónica nessas regiões (ÁLVAREZ RODRÍGUEZ, 2020, 2021; HERNÁNDEZ CASTILLO, 2017HERNÁNDEZ CASTILLO, Aída R. “Geografías racializadas y la Guerra contra el Narco: Violencia de género, militarización y criminalización de los pueblos indígenas de México”. In: BASTOS, Santiago; SIERRA, María Teresa. Pueblos indígenas y Estado. Cidade do México: Ciesas, 2017, pp. 244-269.).

Governança, economia criminosa e zona cinzenta

A cobrança de extorsão, ou direito de piso, permitia que grupos criminosos, sob pena de morte ou lesão física, arrecadassem recursos ao mesmo tempo que assumiam o controle do território, o que garantia a cota de forma mais eficaz do que a arrecadação estadual, estabelecendo em diversas regiões uma economia política da extorsão. A coleta de proteção implica o estabelecimento de um controle territorial e de uma ordem política que requer rendas econômicas para sua manutenção. Isso leva a estabelecer a legitimidade dessa ordem criminosa por meio da renda proveniente da extorsão como taxa de segurança. Para sustentar essa ordem e o controle territorial, foi inevitável que as organizações se valessem de coletores armados, garantindo que não houvesse antagonistas e contestadores da ordem. A coleta da extorsão é assim cristalizada em um trabalho em tempo integral que sustenta e revigora a paramilitarização.

A extorsão permite a apropriação dos lucros sem que o extrativista - nesse caso, grupos criminosos - tenha investido no ciclo produtivo, razão pela qual a extorsão assume a forma de renda extrativista. A renda tornou-se um componente importante na acumulação de capital, tanto no processo de desapropriação como na exploração do trabalho, tornando-se um componente central da acumulação de capital proveniente de atividades criminosas.

A perda de reciprocidade entre ilegalismos, comunidades e Estado, que essa ordem criminal causou por meio de extorsões, assassinatos e violência sexual, está na origem do surgimento, em algumas regiões de Michoacán, dos grupos de cidadãos armados que enfrentaram essa ordem criminosa predatória instituída pelos Cavaleiros Templários em suas localidades. Em 2013, cerca de 20 mil civis impuseram armas em 45 municípios do estado. Uma mistura de organizações e atores armados por regiões e municípios, com diferentes horizontes políticos, origens étnicas e conexões políticas com o Estado e agentes econômicos, deu origem a uma heterogeneidade de grupos de autodefesa. A organização defensiva armada assumiu principalmente duas formas, dependendo do contexto, das características sociais das comunidades e de seu grau de institucionalização: a polícia comunitária e os grupos de autodefesa.

As rondas ou polícias comunitárias são órgãos armados legalmente reconhecidos pelo art. 2o da Constituição mexicana, referente ao direito à livre autodeterminação dos povos indígenas, bem como pela Convenção no 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O referido corpo armado está sujeito ao mandato das autoridades comunitárias indígenas. Já os grupos de autodefesa são organizações armadas, articuladas de forma geral sob a liderança de figuras carismáticas, com base na defesa do patrimônio e da integridade pessoal, sem uma identidade étnica que os associe e sem estarem sujeitos à autoridade civil ou comunitária.

Todos os grupos de defesa armada formaram uma pluralidade de autoridades reguladoras caracterizadas por desafiar ou complementar o Estado em sua legitimidade no uso da violência, por meio do estabelecimento de ordens comunitárias de regulamentação de segurança, que em alguns casos visaram ao estabelecimento de sistemas normativos de justiça alternativa e a ter suas próprias estruturas de governo - como em alguns casos de polícia comunitária -, instituídas principalmente como resultado da omissão de instituições estatais.

A informação apresentada foi reunida durante várias viagens de trabalho de campo realizadas entre 2013 e 2020, em que, além de observação participante, foram realizadas entrevistas com líderes dos grupos de autodefesa e líderes locais, como professores, médicos, representantes de partidos políticos, autoridades municipais, organizações religiosas e residentes envolvidos em organizações de defesa comunitária. A pesquisa foi feita com os grupos de autodefesa que surgiram nos povoados de Tepalcatepec, La Ruana, Buenavista e Los Reyes, localizados na zona de Tierra Caliente, e na comunidade indígena de San Francisco Cherán, planalto P’urépecha.

O trabalho de campo confirmou que essas organizações defensivas se articularam contra a ordem predatória gerada não somente pelos grupos do narcotráfico, mas também pelo envolvimento de agentes do Estado com a criminalidade. Essa indistinção gerou um ambiente social caracterizado por práticas ambíguas entre o legal e o ilegal, o formal e o informal, a política institucional e a não institucional - ambiente eficaz e funcional para a extração de renda e governança local exercida por atores criminosos e estatais. Isso pode ser conceituado como uma zona cinzenta2 2 A noção de zona cinzenta é aqui utilizada da maneira de Auyero (2007), que por sua vez a usa com base em sua leitura de Primo Levy, para se referir a uma zona do espaço social em que se dissolvem os limites normativos. De acordo com Auyero, seguindo Levy, a experiência do campo de concentração é a de uma zona de ambiguidade que desafia a divisão bipartidária entre amigo e inimigo, exterior e interior, lícito e ilícito. Para Agamben (2013), o campo de concentração se movia em uma zona de indistinção entre exceção e regra, formando una localização sem ordenamento que tornava inócua a proteção jurídica da vida. Por essa razão, a noção de zona cinzenta é uma ferramenta conceitual útil para se pensar as zonas do espaço social que misturam práticas de maneira indistinta — no caso deste estudo, normativo e ilegal, público e privado —, gerando vínculos sociais ilegais e sendo eficaz em termos de governança criminal. em que se misturam atores estatais e criminosos, formais e informais, além de globais e locais (FUENTES DÍAZ, 2019FUENTES DÍAZ, Antonio. “A zona cinza: ordem criminosa e autodefesa armada no México”. Tempo Social, São Paulo, vol. 1, n. 31, pp. 277-299, 2019.).

Como diferentes investigações documentaram (CARREÑO, 2013; EL ECONOMISTA, 19/12/2015, LE COUR, 2016; LEMUS, 2015LEMUS, Jesús J. Tierra sin Dios: Crónica del desgobierno y la guerra en Michoacán. Cidade do México: Grijalbo, 2015), na formação dos grupos de autodefesa vários ex-Templarios e membros de outros grupos criminosos foram incorporados. Como destacou Arrue (2017ARRUE, Hernández, Maria Imilse. Vamos Topando: Autodefensas Michoacán. Bloomington: Palibrio, 2017.), da Comissão para a Segurança e o Desenvolvimento Integral de Michoacán, nos grupos de autodefesa houve ex-Templarios “arrependidos”3 3 Na formação dos grupos de autodefesa e posteriormente em sua legalização na Força Rural, houve pessoas que fizeram parte de algum grupo criminoso no passado e que decidiram sair dele. Isso deu origem a uma nova ordem moral que os classificou como “arrependidos” e/ou “perdoados”, além de “limpos”, “sujos” ou “rolados” (ÁLVAREZ RODRÍGUEZ, 2021; LE COUR, 2016). :

[de fato, Luís Antonio Torres] O Americano [líder dos grupos de autodefesa do município de Buenavista] foi o primeiro das autodefesas que perdoou antigos Templários, perdoou e incorporou a Los Viagras e La Chanda [grupos criminosos que atuavam naquela região] (Ibid., pp. 63-64).

A questão é complexa porque o surgimento dos grupos de autodefesa ocorreu em meio a uma disputa entre grupos criminosos rivais pelo controle territorial. Vale ressaltar que alguns grupos de autodefesa foram armados e financiados por grupos contrários aos Cavaleiros Templários. Se autodenominar “autodefesa” serviu para justificar o enfrentamento da ordem predatória, mas contribuiu para que esses grupos se tornassem os futuros beneficiados pelo tráfico de drogas e por outras atividades criminosas, uma vez que os Templários fossem depostos4 4 Vale ressaltar que nem todos os grupos de autodefesa se tornaram os novos predadores que alegavam combater, como já mencionado. Sua diversidade fez com que algumas experiências, principalmente no caso das rondas comunitárias e mesmo de outros grupos, tenham conseguido estabelecer esquemas de segurança consolidados, legítimos e reconhecidos legalmente. No entanto, no caso dos grupos de autodefesa nos municípios de Los Reyes, Tepalcatepec e Buenavista, eles se voltaram para formas predatórias. Em algum momento esses grupos foram chamados coloquialmente de falsas autodefesas. . Nesse sentido, houve continuidade, em vários casos, no funcionamento da ordem predatória, agora exercida por esses “novos” atores, principalmente por meio da extorsão e da fabricação e comercialização de metanfetamina.

No início de 2014, o governo federal impulsionou a legalização dos grupos de autodefesa, por meio da criação da Polícia Força Rural, subordinada à Secretaria de Segurança Pública do Estado de Michoacán (RAMOS e MUÉDANO, 28/01/2014RAMOS, Jorge; MUÉDANO, Marcos. “Pactan legalizar las autodefensas: Los grupos de autodefensas firmaron ayer con el gobierno federal un acuerdo para iniciar su 'institucionalización', dejar la ilegalidad e integrarse como Cuerpos de Defensa Rurales, que tendrán carácter temporal”. El Universal, 28 de enero de 2014. Disponível em: https://archivo.eluniversal.com.mx/nacion-mexico/2014/pactan-legalizar-las-autodefensas-982975.html
https://archivo.eluniversal.com.mx/nacio...
; CAWLEY, 2014CAWLEY, Marguerite. “Legalización de autodefensas en México aumenta preocupaciones sobre paramilitarismo”. InSight Crime, Noticias, 28 jan. 2014. Disponível em: https://es.insightcrime.org/noticias/noticias-del-dia/legalizacion-de-autodefensas-en-mexico-aumenta-preocupaciones-sobre-paramilitares/
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; PADILLA, 2014). Como se pode supor, a esse órgão também foram incorporados antigos integrantes dos Cavaleiros Templários, bem como de outros grupos criminosos, que já haviam se incorporado aos grupos de autodefesa. Isso lhes proporcionou os meios legais para continuar suas atividades criminosas, agora como Polícia Força Rural (CARREÑO, 2013; EL ECONOMISTA, 29/12/2015; LE COUR, 2019).

Além da legítima organização cidadã que enfrentava a ordem predatória, a resposta do Estado por meio dessa legalização acabou por incorporar as facções criminosas, em uma tentativa de consolidar novamente o monopólio da coerção. Um exemplo disso foi a criação do grupo de elite G-250, para capturar os principais líderes dos Cavaleiros Templários. Esse grupo foi formado por militares e policiais federais, bem como por membros dos grupos de autodefesa que haviam pertencido às organizações rivais dos Templários - “arrependidos” do grupo agora perseguido. Vários de seus membros também fizeram parte da Força Rural, como José Antonio Torres, El Americano. Esse grupo foi dissolvido após alguns meses e a maioria de seus membros passou a fazer parte de novos grupos criminosos.

É possível entender essa operação a partir de uma declaração feita em 2014 por um agente do governo comissionado pelo então presidente da República Enrique Peña Nieto (2012-2018). Ele disse aos novos integrantes da Força Rural, ex-membros de grupos de autodefesa e alguns deles ex-criminosos: “Agora o Estado são vocês” (FUENTES DÍAZ, 2018bFUENTES DÍAZ, Antonio. “‘El Estado son ustedes’: Zona gris y defensa comunitaria en Michoacán”. In: FUENTES DÍAZ, Antonio; FINI, Daniele. Defender al pueblo: Autodefensas y policías comunitarias en México. Cidade do México: Buap; Ediciones del Lirio, 2018b.). Isso permite observar que a tentativa de adesão ao Estado se configura por uma zona cinzenta: atores armados ilegais e criminosos integrados ao grupo de elite G-250, e alguns deles à Força Rural. Ou seja, integrados ao Estado. No entanto, essa relação foi temporária e frágil. A Força Rural foi extinta em 2016 e alguns de seus integrantes passaram a fazer parte da Polícia Estadual de Michoacán (Polícia Única Michoacán). Alguns grupos de autodefesa não aderiram e permaneceram relativamente independentes, retornando ao longo dos anos às atividades criminosas.

A tentativa de incorporação foi mais uma ação política, porém é difícil para o Estado mexicano conter esses impulsos de pluralização da regulação e legitimidade em outros órgãos reguladores fora do Estado. Hoje, em Michoacán, há um confronto armado permanente entre aqueles que disputam os territórios, do qual participam antigos grupos de autodefesa, agora vinculados aos grupos que buscam a hegemonia pelo controle das drogas sintéticas.

Baixada Fluminense e Rio de Janeiro: colonização, segregação, golpe militar e facções do tráfico de drogas

A partir do trabalho de campo no estado do Rio de Janeiro e na Baixada Fluminense, iniciado em 1993, há 29 anos, foi possível obter as informações aqui apresentadas. Elas foram elaboradas a partir de debates públicos em cursos, eventos, reuniões e encontros com grupos e indivíduos em escolas, igrejas, sindicatos, associações de moradores, partidos políticos, ONGs, coletivos e grupos de pessoas de diversos movimentos sociais da RMRJ. A temática central dessas interações era a violência urbana e os grupos de extermínio descritos em Dos barões ao extermínio: Uma história da violência na Baixada Fluminense, livro publicado por um de nós, José Cláudio Souza Alves. O livro foi resultado da tese de doutorado em sociologia, defendida na Universidade de São Paulo (USP) em 1998.

Alves residiu de 1966 a 2011 no bairro Vigário Geral, na periferia do Rio de Janeiro, palco da chacina cometida pelo Cavalos Corredores, grupo de extermínio formado por policiais militares, que vitimou 21 pessoas em 1993. Desde 2011, mora na Baixada Fluminense. Essas experiências acrescentaram dimensões importantes à pesquisa, como o convívio com pessoas diretamente atingidas pela violência e a exposição aos riscos relativos à denúncia das graves violações à integridade física e à vida daqueles que cotidianamente sofrem a ação dos grupos armados nas periferias, bairros e favelas. Ao longo desse tempo, uma rede de informações e informantes foi construída a partir de centenas de relatos, muitos não oficiais, dado o risco para os informantes de serem atingidos pelos agentes de segurança que deveriam registrar as ocorrências e protegê-los, mas que se encontravam e ainda se encontram comprometidos pelo envolvimento direto com a atuação dos grupos armados criminosos. Logo, os dados que seguem têm uma dimensão longitudinal, histórica, espacial e existencial associada a quase 30 anos de estudos, militância, solidariedade e vivência em meio à população atingida pelos fatos aqui narrados.

A Baixada Fluminense compreende 13 municípios a oeste da cidade do Rio de Janeiro, com a qual forma parte da RMRJ, somando uma população de aproximadamente 4 milhões que ocupam um território de 4.379,845 km2. O legado do processo colonial, a partir da escravização de negros, em uma das maiores concentrações de pessoas escravizadas da América Latina, criou uma desigualdade socioespacial que condensou a segregação e estigmatização das populações que passaram a ocupar favelas e periferias nessa megalópole (SOUZA, 2014SOUZA, Marlucia Santos. Escavando o passado da cidade: História política da cidade de Duque de Caxias. Duque de Caxias: APPH-Clio, 2014.; ALVES, 2020ALVES, José Cláudio Souza. Dos barões ao extermínio: Uma história da violência na Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Consequência, 2020.). Os ciclos econômicos da cana-de-açúcar, do ouro e do café, voltados para a exportação, atravessaram a região reforçando o domínio de senhores de engenho, grandes proprietários e comerciantes. O porto do Rio de Janeiro potencializou a transformação da cidade em capital do país, até sua transferência para Brasília em 1960. Desde então, a decadência agrícola e a inexistência de projetos industriais, com exceção dos setores petroquímico e siderúrgico, poluentes e com baixa empregabilidade, somaram-se a uma precária expansão do setor de serviços, desvinculado da produção industrial, e ao incipiente crescimento do comércio.

No início dos anos 1960, ocorreu a uma intensa mobilização popular em busca da reforma agrária e urbana conduzida por sindicatos, partidos e movimentos sociais reunidos em amplo espectro que contava com liberais, trabalhistas e comunistas. O golpe empresarial-militar de 1964 pôs fim a essas movimentações, mergulhando o país em um cenário autoritário marcado por cassações políticas, intervenções nos sindicatos, prisões, torturas e mortes de opositores. Desigualdade e segregação ensejaram um mundo do crime em expansão, com destaque para o crescimento dos roubos a bancos, tratados pelos ditadores como estando em conflito com a Lei de Segurança Nacional.

Torturados e assassinados no sistema penitenciário, pobres, em sua maioria negros e favelados, vistos como inimigos do Estado, se organizaram e criaram, em 1978, a primeira grande facção do crime organizado no país, o Comando Vermelho (CV). A partir disso, a governança criminal ganhou dimensões mais amplas, dentro dos presídios e nas esquinas e ruas da cidade, a partir da transformação do tráfico de drogas na principal atividade ilegal do país, quando a cidade do Rio de Janeiro se tornou um grande corredor para as drogas produzidas na América Latina em direção à Europa, África e Ásia, além, é claro, de se tornar um importante centro de consumo dessas substâncias, com destaque para a maconha e a cocaína.

Dos grupos de extermínio às milícias

Antes do surgimento das grandes facções do tráfico de drogas, a ditadura implantou os grupos de extermínio, que aprofundaram as ilegalidades ao passarem a consolidar, na sociedade brasileira, a formação de uma governança criminal. Esses grupos emergiram tendo em seu funcionamento agentes públicos de segurança que cometiam assassinatos, empresários e comerciantes que ofereciam financiamento e membros do regime militar que davam suporte político e jurídico. A atuação de policiais para a proteção de negócios criminais teve também no jogo do bicho, uma loteria que associa números a amimais, outro aspecto importante no histórico da governança criminal da RMRJ. Os militares tiveram participação direta como bicheiros, chefiando e organizando as bancas e seus negócios milionários; eles atuaram na divisão territorial do jogo e de seus donos e usaram as banquinhas de jogo, onde as apostas são feitas, espalhadas pelas esquinas das cidades, como pontos de observação e coleta de informação sobre as movimentações nas ruas, fundamental para o combate aos opositores do regime (OTAVIO e JUPIARA, 2015OTAVIO, Chico; JUPIARA, Aloy. Nos porões da contravenção. Rio de Janeiro: Record, 2015.).

Nos anos 1980, com o fim da ditadura e a redemocratização, civis passaram a ser arregimentados em um processo de terceirização dos grupos de extermínio, que contou, sempre, com a proteção do aparato policial. Na década seguinte, matadores passaram a se eleger como vereadores, deputados estaduais e prefeitos na Baixada Fluminense, a partir de uma estrutura de poder baseada no extermínio de populações pobres, em sua maioria negras e segregadas espacialmente. Os protótipos de milícias começaram a surgir em meados dessa década, a partir de ocupações urbanas em bairros como São Bento e Pilar, no município de Duque de Caxias, e nos bairros cariocas Campo Grande e Rio das Pedras. Nos anos 2000, o modelo de milícia5 5 Não há uma homogeneidade quanto às dimensões teórico-analíticas, espaciais e prático-operacionais das milícias. Elas comportam experiências em diferentes regiões da RMRJ, praticadas por vários grupos armados, com distintas formas de atuação cuja composição gira em torno de agentes públicos de segurança na sua organização e da participação de civis. Há também um histórico da construção do conceito, com predominância da área jornalística, que se diferencia do seu uso mais comum na literatura sobre grupos armados. Ou seja, no caso das milícias do Rio de Janeiro não há a intenção de deslocar o grupo político dominante do poder para assumir o controle do Estado, mas sim a manutenção, independentemente do grupo político no poder, das interações por dentro do Estado para garantir controle territorial, ganhos econômicos e poder político eleitoral. A obra de Brama (2019) analisa com propriedade essa heterogeneidade. A perspectiva aqui adotada segue na linha de Alves (2020), ou seja, compreendendo as milícias como evolução dos grupos de extermínio que tiveram como base as práticas historicamente constituídas na Baixada Fluminense e aprimoradas a partir do capital criminal adquirido na relação entre aparato policial e facções do tráfico de drogas na cidade do Rio de Janeiro. chegaria ao que conhecemos hoje: milícias organizadas por agentes públicos de segurança, por dentro do Estado, e atuando em parceria com facções do tráfico de drogas para maximizar ganhos e enfrentar grupos armados rivais.

Por conta da sua origem, e atingido duramente pelas ações de repressão e tortura da ditadura militar, o CV, hoje o grupo armado do tráfico no varejo de drogas com maior expressão de controle territorial, tende a ter nos agentes policiais, representantes do Estado, seus principais inimigos; a facção favorece confrontos, assassinatos e a não realização de acordos de pagamentos de propina e divisão territorial. Já o Terceiro Comando Puro (TCP), facção em permanente disputa com o CV pelo controle do tráfico de drogas, tem sua identidade mais afeita às negociações com o aparelho policial, que, estando presente de forma significativa na composição das milícias, explica em grande parte as estratégias de aliança entre TCP e milícias, tanto nos confrontos com o CV pela disputa de territórios como no aluguel de pontos de vendas de droga que o TCP paga aos milicianos. Já os Amigos dos Amigos (ADA) corresponde a um grupo armado bastante reduzido, com presença pontual no cenário de disputas.

Desse modo, apesar da justificativa miliciana para proteger as comunidades contra o tráfico de drogas, sempre houve relação dela com o tráfico, notadamente com o TCP. Nesse cenário, as milícias passaram a monopolizar o mercado de vendas de terrenos, imóveis, água, luz, gás, TV a cabo e internet clandestinas, transporte ilegal de pessoas, roubo de petróleo e refino clandestino para venda de gasolina ilegal, venda de vagas no sistema público de saúde para consultas e exames, controle de empresas terceirizadas que prestam serviço para prefeituras e governo estadual nas mais diversas áreas (por meio da manipulação das contratações, de acesso a empregos e da prestações de serviços) e cobrança de taxas de segurança de moradores e comerciantes, em uma expansão crescente das práticas extorsivas e das áreas sobre as quais incidem.

Milícias: sequestro, CPI e expansão

Após dois eventos em 2008 - o caso do sequestro e tortura dos jornalistas do jornal O Dia na favela do Batan, na Zona Oeste do Rio, e a criação, pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) destinada a investigar a ação de milícias no âmbito do Rio de Janeiro, a chamada CPI das Milícias -, as milícias passaram a ser vistas de forma mais crítica pela mídia, que até então aceitava mais facilmente a versão de que elas seriam “autodefesas comunitárias” organizadas contra as ações das facções do tráfico de drogas. Essa comparação com um fenômeno que se desenvolvia no México tinha como objetivo torná-las legítimas e aceitas.

Seguiu-se, então, uma fase em que a organização miliciana se tornou menos ostensiva e mais oculta (CANO e DUARTE, 2012CANO, Ignacio; DUARTE, Thais (orgs). “No sapatinho”: A evolução das milícias do Rio de Janeiro (2008-2011). Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Boll, 2012.). Contudo, apesar disso, no início de 2018 contabilizava-se que as milícias estavam presentes em 37 bairros e 165 favelas de 11 municípios da RMRJ, ocupando uma área de 348 km2, ou seja, 1/4 do tamanho da capital, onde viviam mais de 2 milhões de habitantes. Esses dados foram obtidos pelo cruzamento de informações do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, da Polícia Civil, da Secretaria de Estado de Segurança e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (GRANDIN et al., 2018GRANDIN, Felipe; COELHO, Henrique; MARTINS, Marco Antônio; SATRIANO, Nicolás. “Franquia do crime: 2 milhões de pessoas no RJ estão em áreas sob influência de milícias: Quadrilhas estão em 37 bairros e 165 favelas da Região Metropolitana; diferentemente da década passada, quando estavam limitadas a 161 comunidades. Área de atuação dos milicianos equivale a 1/4 da cidade do Rio”. G1, Rio de Janeiro, 14 mar. 2018. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/franquia-do-crime-2-milhoes-de-pessoas-no-rj-estao-em-areas-sob-influencia-de-milicias.ghtml
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/n...
). Em uma atualização desses dados, em 2019, as dimensões da milícia já alcançavam 14 cidades do Rio de Janeiro e 26 bairros da capital, afetando cerca de 2,2 milhões de habitantes (WERNECK, 2019WERNECK, Antônio. “Milícias chegam a 26 bairros do Rio e a outras 14 cidades do estado: Somente no município do Rio, estão sob o jugo de milicianos, direta ou indiretamente, cerca de 2,2 milhões de pessoas”. O Globo, Rio, 31 mar. 2019. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/milicias-chegam-26-bairros-do-rio-a-outras-14-cidades-do-estado-23563315
https://oglobo.globo.com/rio/milicias-ch...
). Para o mesmo ano, o mapa dos grupos armados no Rio de Janeiro6 6 Mapa elaborado por Geni/UFF, Fogo Cruzado-RJ; NEV/USP; Pistas News e Disque Denúncia, disponível (on-line) em: http://geni.uff.br/2021/03/26/apresentacao-ao-mapa-dos-grupos-armados-do-rio-de-janeiro/ apontou que as milícias controlavam 25,5% dos bairros do Rio de Janeiro, totalizando 57,5% da superfície territorial da cidade, onde morava 33,1% da população.

A expansão miliciana foi favorecida pela vitória do projeto bolsonarista nas eleições presidenciais de 2018, cuja plataforma de campanha projetou a bandeira do “bandido bom é bandido morto”, colocada como eixo de unificação não só da extrema direita como também da aglutinação de partidos da direita e do centro. A eleição de Wilson Witzel (PSC), na esteira bolsonarista, para governador do Rio de Janeiro e o atual governo do seu vice, Cláudio Castro (PL), após a cassação de Witzel por corrupção, intensificaram o crescimento miliciano a partir de uma política de segurança calcada no extermínio praticado por operações policiais em nome do combate ao tráfico e da inexistência de controle da expansão miliciana. As milícias, por sua vez, fortalecem sua aliança com o TCP, tanto nas disputas armadas contra o CV, visando à conquista de territórios, como na parceria na venda de drogas, por meio do aluguel dos pontos de venda de drogas para a facção.

Uma sequência mais recente de eventos precipitou essa dinâmica. Ela se inicia em outubro de 2020. Naquele momento, a um mês das eleições municipais, uma operação conjunta da Polícia Civil e da Polícia Rodoviária Federal assassinou 17 pessoas, sob a justificativa de que seriam “narcomilicianos”. Esse termo passava a dar a tônica da atuação policial. Com ele, desvinculou-se a atuação miliciana da ligação com os agentes de segurança pública, do Estado, atribuindo-a às práticas de traficantes. A consequência dessa mudança conceitual seria a liberação das forças policiais para matar tais indivíduos, já que não passavam de bandidos. O marketing da ação policial antimilícia, ocultando o engajamento crescente dos policiais no empreendimento miliciano, somou-se à lógica do “bandido bom é bandido morto”, tão cara à extrema direita, naquele momento, em plena campanha eleitoral.

O segundo evento foi a implantação de um destacamento do 39o Batalhão da Polícia Militar no Complexo do Roseiral, complexo de bairros e sub-localidades na cidade de Belford Roxo, na Baixada Fluminense, em janeiro de 2021, a partir das articulações entre o prefeito reeleito, Wagner dos Santos Carneiro (União) e o governador Cláudio Castro. As mais de 20 mortes causadas por operações policiais nessa área, entre elas de membros do CV, se incluem na geopolítica de expansão das milícias que há décadas dominam os bairros de São Bento e Pilar, na cidade vizinha Duque de Caxias, seguindo o eixo da Avenida Leonel Brizola.

O terceiro eventos foi uma ação da Polícia Civil que assassinou 27 pessoas em uma única operação na favela do Jacarezinho, Rio de Janeiro, em 6 de maio de 2021. Tal desproporcionalidade de mortes, quando comparadas ao histórico das operações policiais na capital, relaciona-se tanto ao confronto com o Supremo Tribunal Federal (STF), que referendou a ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) de no 635, restringindo operações policiais nas favelas em decorrência dos efeitos da pandemia de Covid-19, quanto à disputa geopolítica miliciana que vem isolando o Jacarezinho a partir dos conflitos com o CV em três favelas próximas: Arará, Mandela 2 e Bandeira 2, as duas últimas, do Complexo de Manguinhos.

O assassinato de Wellington da Silva Braga, o Ecko, em 12 de junho de 2021, deu prosseguimento ao projeto em curso7 7 A partir de uma operação policial, após ser capturado vivo e estando sob a cautela dos agentes policiais, de forma inexplicável, Ecko terminaria sendo morto, seguindo um roteiro muito frequente de explicações fornecidas pela polícia, ou seja, de que teria reagido à prisão e terminou sendo morto — o detalhe é que ele já estava preso. . A aliança entre milícia e TCP, tendo o aparato policial como fiador, perpetua-se, a despeito dos assassinatos de “narcomilicianos” ligados ao TCP, presentes na Liga da Justiça ou ex-“bonde do Ecko”, em uma espécie de “preço a ser pago” pela manutenção dos negócios e pelo marketing anti-milícia da estrutura policial, que tenta ocultar a expansão miliciana. Há, igualmente, uma intensificação do controle territorial, econômico e político eleitoral feito pela milícia em cima das áreas do CV.

Essa correlação de acontecimentos deixa nítida a estratégia política voltada para as eleições de 2022, nas quais os candidatos ao governo do estado, às Câmaras estadual e federal, ao Senado e à Presidência da República, com projetos de extrema direita, visam aprofundar seus ganhos. O cenário de ampliação do fosso social e do crescimento do mundo do crime, como alternativa real diante da crise multidimensional que se estabelece no pós-pandemia, projeta a área de segurança pública como grande palco de operações psicológicas, sociais, midiáticas e assassinas cujo objetivo é consolidar uma hegemonia da extrema direita bolsonarista e seus aliados. A morte do Ecko, seguindo a lógica do extermínio como solução, tem ainda uma outra dimensão que não se pode desprezar. Ela abre um cenário de disputas, internas e externas à milícia, no que se refere à condução do legado miliciano na Zona Oeste do Rio de Janeiro e na Baixada Fluminense, que juntas congregam quase 50% do eleitorado do estado. Essa onda de instabilidade e medo reforça o pano de fundo para a manutenção do extermínio como prática da segurança pública, retroalimentando mais operações e chacinas como cortina de fumaça que oculta a expansão miliciana e seu projeto de controle de amplo espectro, principalmente político-eleitoral.

Análise comparativa entre forças de autodefesa e milícias

Em Michoacán, no México, as autodefesas emergiram nos anos 1990 e se espraiaram entre 2006 e 2013, em decorrência da quebra do equilíbrio das relações de reciprocidade, promovida pelo narcotráfico, entre as atividades ilegais e a vida nas comunidades. As milícias, no Rio de Janeiro, Brasil, têm uma formação histórica advinda dos anos 1960, a partir dos grupos de extermínio criados pela ditadura empresarial-militar de 1964 e que nos anos 1990 se consolidaram a partir do monopólio de mercados de bens e serviços ilegais e do controle armado de territórios, em disputa incessante com as facções do tráfico de drogas, projetando-se como o grupo criminoso de maior expansão desde os anos 2000 até hoje.

Enquanto as autodefesas representam uma flexibilização do monopólio legal da violência pelo Estado, a fim de negociar a presença de outros atores armados, incorporando grupos civis em uma estratégia política de acordos e ampliação de participantes, as milícias expressam uma estratégia de centralização e monopólio por parte dos agentes públicos presentes no Estado, embora comporte parcerias no controle das atividades ilegais, em uma expansão que dá centralidade ao Estado, a seu monopólio da violência e à sua vinculação à forma ilegal e criminosa de mercados (econômico, político, social e cultural). Em ambos - seja pela flexibilização/negociação seja pela monopolização/centralização -, a governança criminal tem no Estado o eixo central de estratégia, tornando mais complexas as análises sobre o fenômeno. Compará-las nos permite perceber detalhes importantes.

A indistinção entre Estado e criminalidade que constitui uma zona cinzenta, nebulosa e indefinida cumpre em ambos os casos uma dimensão central. Movimentações nas estratégias de cada modelo, autodefesas ou milícias, podem variar como parte do processo histórico de cada uma delas. A descentralização das autodefesas traz uma centralização e um monopólio do Estado que incorpora seus membros à estrutura de segurança estatal; já a centralização e o monopólio das milícias carregam, desde sua origem, acordos com as facções do tráfico de drogas, ensejando a descentralização. Cada conjuntura, portanto, traz consigo os elementos de sua evolução e desenlace, em cenários fluídos que exigem permanentes atualizações.

O tráfico de drogas em Michoacán tem uma trajetória que parte da produção em pequena escala, no século XIX, passa pela formação de núcleos familiares em expansão e pelo controle das rotas para os EUA, de 1940 a 1980, e chega à associação com a produção de cocaína colombiana, à diversificação pela ampliação do mercado de metanfetaminas e à inclusão de novos mercados criminais. O Rio de Janeiro, por sua vez, conheceu uma crescente organização da comercialização e distribuição das drogas por parte das facções, que passaram a se organizar no final dos anos 1970, ainda em plena ditadura empresarial-militar. Como região não produtora de drogas e com uma economia decadente em função da perda do status de capital do país, suas populações urbanas periféricas e faveladas foram incorporadas a uma economia de drogas em expansão por dentro de uma estrutura econômica calcada no setor comercial e de prestação de serviços que, mesmo incapaz de expandir e abarcar a grande maioria da população, permite um acúmulo de capitais e de massa salarial suficientes para a manutenção de um mercado de ilegalismos em que a droga tem papel central. O acirramento da disputa pelo mercado de drogas entre as facções, nos anos 1990, constituiu um ambiente para a expansão das milícias por dentro da estrutura do Estado, como projeto de apropriação de parte desse mercado criminal, em uma disputa visceral em que ocupar postos no aparelho estatal, com destaque para o aparato policial, surgiu como diferencial decisivo no confronto com as demais frações do crime organizado.

A adoção, por parte do Estado, do modelo neoliberal, com processos de desregulamentação das atividades econômicas, perdas de direitos dos trabalhadores, precarização das relações de trabalho e aumento do desemprego, levou, no caso mexicano, à crescente diversificação das atividades criminosas, mediante extorsão, sequestro, controle das minas de ferro, comercialização de cultivos e extração ilegal de madeira nos bosques de propriedade comunitária. Daí, emergiram corporações do crime organizado que, ao romperem com o modelo anterior de regulação das relações entre vida comunitária, ilegalidade e ação do Estado, acarretaram o surgimento dos grupos armados de autodefesa, que, a partir de sua incorporação na estrutura estatal, seguem seu próprio caminho na direção da ilegalidade e do crime. Já no caso brasileiro, o projeto neoliberal que desprotege a população mais pobre ampliou a base do empreendedorismo criminal miliciano, que, sob a justificativa de proteger a população contra os crimes praticados pelas facções do tráfico de drogas, passa a monopolizar nas periferias urbanas e favelas bens e serviços, em uma lista crescente de itens associados às demandas não atendidas pelo Estado.

A atuação política do Estado foi decisiva em ambos os projetos. No caso fluminense, a dimensão totalitária do controle armado de mercados e territórios produz o monopólio miliciano, protegido e potencializado pela ação de atores do Poder Legislativo (vereadores, deputados estaduais e federais), do Poder Executivo (prefeitos e governador) e do Poder Judiciário. Contudo, esse monopólio miliciano comporta parcerias com facções, como o TCP, principalmente no aluguel de pontos de venda de drogas e nas alianças em confrontos armados pela tomada de territórios da facção CV. No exemplo michoacano, temos a incorporação de atores não estatais armados advindos das autodefesas, franqueando o acesso ao uso da violência em uma negociação política que leva à ampliação da presença armada de grupos civis como estratégia de cooptação política de novos atores no mercado de bens de segurança, superaquecido pela intensificação da violência decorrente das mudanças que a reconfiguração do mercado de drogas trouxe para a região.

O Quadro 1 compara as atuações das autodefesas e das milícias, permitindo uma melhor visualização do modo como operam a ordem da governança criminal em cada caso.

Quadro 1:
Dimensões da governança criminal em Michoacán e no Rio de Janeiro

Conclusões

De acordo com o exposto aqui, as autodefesas mexicanas e as milícias brasileiras exercem o controle de territórios e de populações, mostrando que o Estado não tem poder soberano exclusivo. Em vez disso, esse poder é disputado, negociado ou complementado por uma pluralidade de atores que exercem o controle e a regulação social e conduzem as disposições práticas em seus territórios, inclusive o direito à vida e a condenação à morte. Nota-se que o Estado não está ausente. Pelo contrário, participa em diferentes momentos e intensidades nos territórios e nos regulamentos que os gerenciam, enquanto configura a legitimidade do uso da coerção, situando-a não exclusivamente no Estado.

Esse exercício de governo é importante tanto para manter o fluxo constante de rendas ilegais e controles regulatórios legais, quanto para o controle político e a venda cativa de serviços. O controle de territórios e populações está vinculado à extração de renda e ao controle da circulação de mercadorias (legais e ilegais). Nesse sentido, ele existe em função do acúmulo de capital nas regiões de extração dos lucros.

Em geral, dois marcadores de governança criminal podem ser mencionados em ambos os casos. O primeiro deles seria, em algumas regiões, o surgimento de soberanias fragmentadas (DAVIS, 2010DAVIS, Diane. “Irregular Armed Forces, Shifting Patterns of Commitment, and Fragmented Sovereignty in the Developing World”. Theory and Society, vol. 39, n. 3,4, pp. 397-413. 2010.), relativamente autônomas, que o Estado tolera diante da impossibilidade de subsumi-las ou as encoraja como parte dos modelos de governabilidade local e participação cidadã. Vistos dessa forma, esses grupos fariam parte da morfologia do Estado, e não de sua oposição. O segundo marcador seria a indistinção entre legalidade e ilegalidade em que operam essas soberanias fragmentadas. Portanto, no nível local os atores criminosos estão vinculados aos atores estatais na geração do controle - o que tem sido refletido em termos de “estado de exceção” (AGAMBEN, 2013AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: El poder soberano y la nuda vida. Madrid: Pre-Textos, 2013.), “margens do Estado” (DAS e POOLE, 2004DAS, Veena; POOLE, Deborah. Anthropology in the Margins of the State. Santa Fe: Sar Press, 2004.), “áreas cinzentas” (AUYERO, 2014; FUENTES DÍAZ, 2018aFUENTES DÍAZ, Antonio. “Community defense and criminal order in Michoacán: contention in the grey area”. Latin American Perspectives, vol.45, n. 6, 2018a, pp. 127-139.) ou “simbiosis” (LESSING, 2020LESSING, Benjamin. “Conceptualizing Criminal Governance”. Perspectives on Politics, vol. 19, n. 3, pp. 854-873, 2020.) impulsionados ao mesmo tempo pela lógica de extração.

Assinalamos que o modelo de controle territorial e populacional se estabelece em função da obtenção de lucros, aparecendo nos casos estudados como sistemas de proteção (venda de segurança) ou de venda de serviços. A organização do controle que permite essa extração de benefícios não implica apenas um duopólio da violência (Ibid.), mas tende a uma pluralização das autoridades reguladoras (ROITMAN, 2004ROITMAN, Janet. “Productivity in the margins: the reconstitution of state power in the Chad Basin”. In: DAS, Veena; POOLE, Deborah. Anthropology in the margins of the State. Santa Fé: Sar Press, 2004, pp. 191-224.). A extorsão, a parafiscalização e o pagamento obrigatório por serviços prestados requerem um uso organizado e estratégico da força. A capacidade protetora implica o uso da força para controlar outras forças concorrentes ou potenciais em determinado domínio, levando a um espírito empreendedor violento orientado pelos ganhos de quem exerce a força (VOLKOV, 2002VOLKOV, Vadim. Violent Entrepreneurs: The Use of Force in the Making of Russian Capitalism. Nova York: Cornell University Press, 2002.). Esse empreendedorismo violento cria uma relação que implica controle de risco e estabelecimento de vantagens competitivas por empreendedores violentos. Ambas as formas têm um elemento-chave: a capacidade de determinar ou limitar o curso de ação de outros participantes do mercado econômico, seja por meio de coerção física direta ou afetando suas expectativas.

Do ponto de vista aqui desenvolvido, esses fenômenos fariam parte de uma transformação mais ampla, referente às mutações políticas que descentralizam o Estado e geram formas subjetivas específicas que modificam a relação entre o indivíduo, o social, o Estado e o mercado. A governança criminal comportaria diferentes regimes criminais, em arranjos que articulam distintos grupos criminais. Desse modo, um regime criminal específico - por exemplo, o que caracteriza o trato entre Estado e autodefesas ou milícias - coexiste com regimes criminais diferenciados - por exemplo, como aquele que caracteriza as relações entre Estado e cartéis de drogas ou facções do tráfico de drogas.

Regimes criminais denotam políticas de relacionamentos mais amplos a partir de movimentos em um palco de operações mais vasto, com diferentes escalas espaciais, econômicas e políticas de complexidade e profundidade ainda pouco estudadas e analisadas, em função da interpenetração de diferentes esferas, da ausência de informações, do risco à segurança dos pesquisadores e da complexidade analítica exigida pela multidisciplinaridade envolvida. Um movimento político e econômico vetorizado por políticas de segurança na direção de um grupo criminal promove rearranjos do tabuleiro das ações dos demais grupos criminais, que implica não a eliminação de um grupo, mas novos padrões geopolíticos visando à maximização de ganhos em um curso de acontecimentos que se desenrolam sem previsibilidade ou rastreabilidade nítidas ou previamente definidas. No decorrer mesmo dos acontecimentos e ações, detalhes podem levar a novas negociações e mudanças, dependendo de dimensões mais complexas.

A expansão miliciana no Rio de Janeiro e sua combinação com o regime criminal próprio das relações entre o Estado e a facção do tráfico de drogas TCP só alcançaram o grau de intensidade e complexidade que comporta a execução das lideranças da milícia e da facção graças a uma conjuntura potencializada pelo avanço da extrema direita, expressada na vitória bolsonarista e em suas movimentações para as eleições de 2022, visando à continuidade do projeto político, econômico, social e cultural de amplo espectro que conta com suporte dos militares, regulação da juristocracia, defesa midiática e hackeamento das redes sociais desregulamentadas e fornecedoras de ambientes informacionais abusivos e manipulados. A incorporação dos membros das autodefesas à estrutura estatal de segurança pública impulsiona por dentro do Estado mexicano o regime criminal originado e conduzido por essas organizações, fortalecendo-as para negociações futuras e arranjos econômicos e políticos que não descartam as relações com os cartéis, mas, pelo contrário, tem neles o contraponto necessário para a sua perpetuação.

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Fontes da imprensa

  • 1
    A Comissão para a Segurança e o Desenvolvimento Integral de Michoacán foi um órgão administrativo do governo federal do México criado em janeiro de 2014 para a restauração da segurança no estado de Michoacán, principalmente por meio da legalização dos grupos de autodefesa.
  • 2
    A noção de zona cinzenta é aqui utilizada da maneira de Auyero (2007), que por sua vez a usa com base em sua leitura de Primo Levy, para se referir a uma zona do espaço social em que se dissolvem os limites normativos. De acordo com Auyero, seguindo Levy, a experiência do campo de concentração é a de uma zona de ambiguidade que desafia a divisão bipartidária entre amigo e inimigo, exterior e interior, lícito e ilícito. Para Agamben (2013), o campo de concentração se movia em uma zona de indistinção entre exceção e regra, formando una localização sem ordenamento que tornava inócua a proteção jurídica da vida. Por essa razão, a noção de zona cinzenta é uma ferramenta conceitual útil para se pensar as zonas do espaço social que misturam práticas de maneira indistinta — no caso deste estudo, normativo e ilegal, público e privado —, gerando vínculos sociais ilegais e sendo eficaz em termos de governança criminal.
  • 3
    Na formação dos grupos de autodefesa e posteriormente em sua legalização na Força Rural, houve pessoas que fizeram parte de algum grupo criminoso no passado e que decidiram sair dele. Isso deu origem a uma nova ordem moral que os classificou como “arrependidos” e/ou “perdoados”, além de “limpos”, “sujos” ou “rolados” (ÁLVAREZ RODRÍGUEZ, 2021; LE COUR, 2016).
  • 4
    Vale ressaltar que nem todos os grupos de autodefesa se tornaram os novos predadores que alegavam combater, como já mencionado. Sua diversidade fez com que algumas experiências, principalmente no caso das rondas comunitárias e mesmo de outros grupos, tenham conseguido estabelecer esquemas de segurança consolidados, legítimos e reconhecidos legalmente. No entanto, no caso dos grupos de autodefesa nos municípios de Los Reyes, Tepalcatepec e Buenavista, eles se voltaram para formas predatórias. Em algum momento esses grupos foram chamados coloquialmente de falsas autodefesas.
  • 5
    Não há uma homogeneidade quanto às dimensões teórico-analíticas, espaciais e prático-operacionais das milícias. Elas comportam experiências em diferentes regiões da RMRJ, praticadas por vários grupos armados, com distintas formas de atuação cuja composição gira em torno de agentes públicos de segurança na sua organização e da participação de civis. Há também um histórico da construção do conceito, com predominância da área jornalística, que se diferencia do seu uso mais comum na literatura sobre grupos armados. Ou seja, no caso das milícias do Rio de Janeiro não há a intenção de deslocar o grupo político dominante do poder para assumir o controle do Estado, mas sim a manutenção, independentemente do grupo político no poder, das interações por dentro do Estado para garantir controle territorial, ganhos econômicos e poder político eleitoral. A obra de Brama (2019) analisa com propriedade essa heterogeneidade. A perspectiva aqui adotada segue na linha de Alves (2020), ou seja, compreendendo as milícias como evolução dos grupos de extermínio que tiveram como base as práticas historicamente constituídas na Baixada Fluminense e aprimoradas a partir do capital criminal adquirido na relação entre aparato policial e facções do tráfico de drogas na cidade do Rio de Janeiro.
  • 6
    Mapa elaborado por Geni/UFF, Fogo Cruzado-RJ; NEV/USP; Pistas News e Disque Denúncia, disponível (on-line) em: http://geni.uff.br/2021/03/26/apresentacao-ao-mapa-dos-grupos-armados-do-rio-de-janeiro/
  • 7
    A partir de uma operação policial, após ser capturado vivo e estando sob a cautela dos agentes policiais, de forma inexplicável, Ecko terminaria sendo morto, seguindo um roteiro muito frequente de explicações fornecidas pela polícia, ou seja, de que teria reagido à prisão e terminou sendo morto — o detalhe é que ele já estava preso.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    19 Set 2021
  • Aceito
    14 Mar 2022
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