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Por que a tomada de decisão clínica nem sempre é eficaz?

Foi Herbert Simon, um cientista social americano, quem descreveu, em 1947, no seu livro ‘Comportamento Administrativo’, a teoria das tomadas de decisões. O objetivo principal do seu trabalho foi conhecer os mecanismos cognitivos e comportamentais que os seres humanos utilizam para fazer escolhas. Em resumo, o que Simon explica é que, para se tomar uma decisão eficaz, três passos são necessários: (a) identificar e listar todas as alternativas, (b) determinar todas as consequências resultantes de cada alternativa e (c) comparar a precisão e eficiência de cada uma dessas consequências.

O processo de converter todas as informações sobre um problema em uma decisão é chamado de julgamento, que pode ser de caráter analítico ou intuitivo. O grau de dificuldade do problema influencia o tipo de julgamento, podendo esse ser:

  • » sob certeza, quando uma única solução é possível;

  • » sob risco, quando existem poucos desfechos; e

  • » sob incerteza, quando inúmeros desfechos são possíveis11 Collett T. Evidence, judgment, and the clinical decision: an argument for evidence-based orthodontics. Am J Orthod Dentofac Orthop. 2008 Feb;133(2):190-4..

Tendemos a nos basear na intuição para fazer julgamentos de problemas complexos e, por incrível que pareça, os julgamentos em Ortodontia, na maioria das vezes, são realizados sob incerteza22 Hicks EP, Kluemper GT. Heuristics reasoning and cognitive biases: Are they hindrances to judgements and decision making in orthodontics? Am J Orthod Dentofac Orthop. 2011;139(3):297-304..

Esse processo de julgamento intuitivo foi descrito na década de 70 por dois psicólogos israelenses, Amos Tversky e Daniel Kahneman, estudiosos da Psicologia Comportamental. Eles descobriram que nosso cérebro, frente a tomadas de decisões complexas - isto é, sob incerteza -, busca economizar energia. Chamaram esses atalhos mentais de heurística, palavra de origem grega que significa “eu descubro”. Basicamente, é definida como a solução de problemas utilizando um método prático que não tem garantia de ser ótimo, perfeito ou racional. No entanto, é suficiente para atingir um resultado imediato, em curto prazo ou por aproximação.

Apesar de apregoarmos a prática baseada em evidências, que consiste no tão repetido tripé da melhor evidência, somado à experiência do profissional e às necessidades do paciente, a Ortodontia ainda possui resistência a esse procedimento. Além dos julgamentos sob incerteza, ainda sofremos com a ausência de limites claros para o que é considerado um tratamento ortodôntico finalizado. O tratamento ortodôntico pode variar desde o simples alinhamento dos dentes, com uma abordagem mais cosmética, até os objetivos ideais de função, estética, saúde tecidual e estabilidade, com uma abordagem voltada para a saúde aliada à beleza.

Nesse cenário, não é difícil compreender que alguns processos heurísticos venham a acontecer no momento da tomada de decisão clínica. A heurística da disponibilidade se baseia na lembrança da opção mais frequente que está associada à resolução de um problema. A heurística da representatividade é um viés cognitivo que considera a chance de um evento ocorrer, com base na semelhança com outras ocorrências já vistas. Ambas são extremamente utilizadas pela indústria, através do marketing. Sendo assim, nossa especialidade tem uma forte inclinação a se basear mais em técnicas e aparelhos do que no processo analítico da tomada de decisões, uma vez que os resultados finais são não apenas variáveis, mas também diferentes em termos de qualidade. E isso talvez explique, também, porque, ao longo da nossa história, vivemos ondas de técnicas e aparelhos que, com o tempo, acabaram por se circunscrever aos seus devidos nichos33 Artese F. Point of equilibrium. Dental Press J Orthod. 2018;23(2):7-8..

Apesar da Ortodontia obrigatoriamente mesclar ciência e operatória, o que demanda do profissional boa formação (inclusive a continuada) e boa habilidade manual, ela vem sendo englobada no mundo da inteligência artificial. Isso não é apenas prerrogativa nossa, pois acredito que a maior parte das profissões se sintam ameaçadas de serem substituídas por programas de computador e robôs. É possível que algumas partes sejam, de fato, realizadas de forma automatizada, exatamente aquelas em que as tomadas de decisão são feitas sob certeza e podem ser substituídas por um algoritmo operacional. No entanto, ao se aumentar o grau de complexidade, nossa presença continua necessária. E acho que, no futuro, a Ortodontia será limitada, em geral, a casos de alta complexidade, demandando que a formação do profissional seja cada vez mais profunda para tratar esses casos de forma ideal.

Portanto, foi com certa preocupação que concluí a leitura do excelente artigo publicado por Theodore Eliades no AJO-DO de julho deste ano44 Eliades T. A potentially hazardous shift in the orthodontic continuing education model: A crowd queuing up to educate us. Am J Orthod Dentofac Orthop. 2020;158(1):1-3., onde ele discute a qualidade da formação continuada que estamos recebendo. Em resumo, a democratização da informação com baixa evidência e embalada em alta tecnologia, em vieses comerciais e com apelo mercadológico, é a tendência da formação continuada da nossa especialidade. A evidência científica, parte fundamental da prática baseada em evidências, fica encolhida nesse cenário e, de certa forma, conflita com as qualidades profissionais que precisaremos ter nessa futura Ortodontia de alta complexidade. Não sou contrária às inovações, elas são necessárias e muito bem-vindas para nossa evolução, mas que não se confundam com soluções instantâneas ou com estratégias de captação de pacientes. Que façam parte da nossa tomada de decisões no processo analítico, com a preocupação maior de oferecer aos nossos pacientes não apenas um tratamento cosmético, mas toda a complexidade que um resultado ideal demanda: função, saúde, estética e estabilidade. Sem atalhos mentais.

Boa leitura!

REFERENCES

  • 1
    Collett T. Evidence, judgment, and the clinical decision: an argument for evidence-based orthodontics. Am J Orthod Dentofac Orthop. 2008 Feb;133(2):190-4.
  • 2
    Hicks EP, Kluemper GT. Heuristics reasoning and cognitive biases: Are they hindrances to judgements and decision making in orthodontics? Am J Orthod Dentofac Orthop. 2011;139(3):297-304.
  • 3
    Artese F. Point of equilibrium. Dental Press J Orthod. 2018;23(2):7-8.
  • 4
    Eliades T. A potentially hazardous shift in the orthodontic continuing education model: A crowd queuing up to educate us. Am J Orthod Dentofac Orthop. 2020;158(1):1-3.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Set 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Aug 2020
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