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A respiração: velhos e novos ares para a Ortodontia

Ao concluir uma palestra sobre biprotrusões dentoalveolares e suas possibilidades de tratamento, fizeram-me muitos questionamentos sobre a associação entre a redução no volume das arcadas dentárias, após as extrações, e o desenvolvimento de problemas respiratórios, mais especificamente a apneia obstrutiva do sono (AOS). Confesso que naquele momento não conhecia a evidência atual sobre a correlação entre esses dois fatores, razão para me questionar se a Ortodontia, há quase um século, estaria provocando AOS ao retrair dentes anteriores. Apesar de ter procurado as respostas para aquelas perguntas, uma outra não saia da minha mente. Naquela palestra, entre as opções para o tratamento das biprotrusões dentoalveolares, a distalização em massa das arcadas dentárias por meio de apoio em ancoragem esquelética também foi apresentada. E, apesar das arcadas dentárias serem retraídas, a sua possível associação com a AOS não foi aventada na sessão de perguntas. Haveria diferenças no resultado final entre essas possibilidades de tratamento, no que se refere à posição final dos incisivos no sentido anteroposterior?

Os resultados finais dos casos de biprotrusão dentoalveolar publicados no Tópico Especial deste número da DPJO (pág. 66) pelo Dr. Henrique Villela, tratados sem extrações e com distalização das arcadas, apoiada em miniparafusos intra- ou extra-alveolares, são muito semelhantes aos de casos tratados com extrações de pré-molares. Isso me sugere que, apesar de efetivamente retrairmos os dentes anteriores com ambas as possibilidades de tratamento, carregamos até hoje vieses no que diz respeito às extrações dentárias. Seriam elas fatores causais apenas da redução do volume das arcadas dentárias, e não da distalização em massa? E até que ponto as mudanças da região dentoalveolar no sentido sagital estariam associadas a efeitos nas vias aéreas?

O fato é que essa associação parece ainda não estar clara. Existem poucos estudos avaliando as mudanças na posição anteroposterior dos incisivos e seu impacto na respiração,11 Ng JH, Song YL, Yap AUJ. Effects of bicuspid extractions and incisor retraction on upper airway of Asian adults and late adolescents: A systematic review. J Oral Rehabil. 2019 Nov;46(11):1071-87. com resultados inconclusivos, devido a amostras heterogêneas e a desfechos substitutivos - como volume das vias aéreas, em vez de índices de apneia e hipopneia (AHI) e saturação de oxigênio. Na verdade, as mudanças das bases ósseas, como aquelas obtidas a partir de avanços maxilomandibulares, parecem ter evidências mais robustas sobre o impacto positivo no tratamento da AOS do que apenas as movimentações dentárias no sentido sagital22 Camacho M, Noller MW, Del Do M, Wei JM, Gouveia CJ, Zaghi S, Boyd SB, Guilleminault C. Long-term results for maxillomandibular advancement to treat obstructive sleep apnea: A meta-analysis. Otolaryngol Head Neck Surg. 2019 Apr;160(4):580-93..

Alguns aspectos da AOS já eram descritos no século XIX como Síndrome de Pickwick, em referência ao garotinho gordo Joe do ensaio de Charles Dickens “As Aventuras do Sr. Pickwick”. Mas foi em 1981 que Sullivan e colaboradores publicaram, na The Lancet, a primeira utilização do CPAP como forma de tratar a AOS33 Sullivan CE, Berthon-Jones M, Issa FG, Eves l. Reversal of obstructive sleep apnoea by continuous positive airway pressure applied through the nares. Lancet. 31 Mar 1981, 1(8225):862-5.. Desde então, essa patologia vem sendo abordada e integrada a várias especialidades da área de saúde, por ser um problema de caráter multifatorial e necessitar, muitas vezes, de tratamento multidisciplinar. Sabe-se que, em pacientes com índices elevados de apneia e hipopneia, o tratamento padrão-ouro é a utilização do CPAP, apesar da adesão a esse tipo de tratamento ser baixa. Nesse aspecto, a Ortodontia pode auxiliar a reduzir a gravidade do AHI com aparelhos de avanço mandibular. Existem vários modelos, com diferentes características, como o aparelho DIORS apresentado neste número no artigo dos Drs. Barbosa e colaboradores (pág. 44). Sua conclusão é bastante pertinente e concorda com os resultados da revisão sistemática que estabelece que o uso de aparelhos de avanço mandibular não atingirá os resultados do CPAP, mas serve como tratamento alternativo, mesmo que com resultados inferiores no AHI dos paciente resistentes ao CPAP44 Schwartz M, Acosta L, Hung YL, Padilla M, Enciso R. Effects of CPAP and mandibular advancement device treatment in obstructive sleep apnea patients: a systematic review and meta-analysis. Sleep Breath. 2018 Sep;22(3):555-68..

Apesar da importância dada à Ortodontia nessas últimas décadas na sua relação com a AOS, seja no que se refere ao tratamento ou à prevenção do problema por meio das nossas escolhas terapêuticas, aquilo que parece muito novo esteve presente há muito tempo pelas mãos de Andrew Haas. Tive a oportunidade ímpar de assisti-lo em uma das reuniões da Angle Society, onde contava como a ideia da expansão rápida da maxila surgiu também do interesse de otorrinolaringologistas, com a intenção de mudar a anatomia interna do nariz. Inclusive, seus artigos clássicos55 Haas AJ. Palatal expansion: just the beginning of dentofacial orthopedics. Am J Orthod. 1970 Mar;57(3):219-55,66 Haas A. Rapid expansion of the maxillary dental arch and nasal cavity by opening the midpalatal suture. Angle Orthod, 1961;31:73-90. relatam o aumento de volume da cavidade nasal após a expansão rápida da maxila, resultando na melhora clínica de pacientes respiradores bucais.

Nesse número da DPJO, os Drs Bruno e colaboradores avaliaram as mudanças na morfologia do septo nasal após a expansão rápida da maxila e não observaram alterações nem no volume, nem na tortuosidade do septo nasal (pág. 51). No entanto, apesar de não atuarmos nos aspectos anatômicos do septo nasal, podemos ser os primeiros especialistas a diagnosticar as consequências da respiração bucal na criança, como arcadas superiores atrésicas, mordidas cruzadas posteriores e palatos ogivais e altos. Dessa forma, temos a enorme responsabilidade de aprofundar esse diagnóstico, seja por meio de questionários específicos para a avaliação respiratória da criança, seja pelo encaminhamento ao otorrinolaringologista.

Se ainda não sabemos se as mudanças dentárias no sentido sagital têm influência sobre a respiração, as expansões no sentido transverso possuem evidências bem claras. Uma revisão sistemática publicada por Camacho e colaboradores demonstra que a ERM melhora consistentemente o AHI e a saturação mínima de oxigênio dos pacientes em curto prazo, isto é, acompanhados por três anos77 Camacho M, Chang ET, Song SA, Abdullatif J, Zaghi S, Pirelli P, Certal V, Guilleminault C. Rapid maxillary expansion for pediatric obstructive sleep apnea: A systematic review and meta-analysis. Laryngoscope. 2017 Jul;127(7):1712-9.. A busca por novos ares na Ortodontia esteve ao nosso alcance desde os anos 60. Na verdade o que temos de novo, e devemos fortalecer ainda mais, é o olhar voltado para a respiração, principalmente no diagnóstico, pois, utilizando um procedimento rotineiro como a expansão rápida da maxila, somos capazes de corrigir um problema muito grave. Mais importante ainda é conhecer as consequências da AOS e dividir nosso diagnóstico com um grupo multidisciplinar, onde o escopo da nossa especialidade ultrapassa a oclusão e a estética, garantindo ao paciente suas funções básicas para uma vida saudável.

Boa leitura!

REFERENCES

  • 1
    Ng JH, Song YL, Yap AUJ. Effects of bicuspid extractions and incisor retraction on upper airway of Asian adults and late adolescents: A systematic review. J Oral Rehabil. 2019 Nov;46(11):1071-87.
  • 2
    Camacho M, Noller MW, Del Do M, Wei JM, Gouveia CJ, Zaghi S, Boyd SB, Guilleminault C. Long-term results for maxillomandibular advancement to treat obstructive sleep apnea: A meta-analysis. Otolaryngol Head Neck Surg. 2019 Apr;160(4):580-93.
  • 3
    Sullivan CE, Berthon-Jones M, Issa FG, Eves l. Reversal of obstructive sleep apnoea by continuous positive airway pressure applied through the nares. Lancet. 31 Mar 1981, 1(8225):862-5.
  • 4
    Schwartz M, Acosta L, Hung YL, Padilla M, Enciso R. Effects of CPAP and mandibular advancement device treatment in obstructive sleep apnea patients: a systematic review and meta-analysis. Sleep Breath. 2018 Sep;22(3):555-68.
  • 5
    Haas AJ. Palatal expansion: just the beginning of dentofacial orthopedics. Am J Orthod. 1970 Mar;57(3):219-55
  • 6
    Haas A. Rapid expansion of the maxillary dental arch and nasal cavity by opening the midpalatal suture. Angle Orthod, 1961;31:73-90.
  • 7
    Camacho M, Chang ET, Song SA, Abdullatif J, Zaghi S, Pirelli P, Certal V, Guilleminault C. Rapid maxillary expansion for pediatric obstructive sleep apnea: A systematic review and meta-analysis. Laryngoscope. 2017 Jul;127(7):1712-9.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Oct 2020
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