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O lugar da Oceanografia

EXATAS E NATURAIS

O lugar da Oceanografia

Afrânio Rubens de Mesquita

Os registros históricos de conhecimentos sobre os oceanos, feitos na antigüidade, se relacionaram com as qualidades visíveis dos oceanos, isto é, forma, salinidade, temperatura, correntes, ondas, mares, organismos vivos, sedimentos, entre outros, que são parâmetros naturalmente nominados, entre os tópicos estudados modernamente, como linhas de pesquisa. As causas utilizadas para explicar os fenômenos descritos seguiam os modelos aceitos da época. Quanto à forma, o oceano era plano e terminava abruptamente em algum lugar e a variação semidiurna do nível do mar (mares) era devida à respiração de um grande monstro a habitar as profundezas marinhas. A variação térmica, as ondas, os sedimentos tinham o sol, os ventos, os sedimentos transportados da terra ao mar como os responsáveis... os valores salinos e as correntes eram mais difíceis de entender, enquanto os peixes, muito bem utilizados na alimentação e no comércio, eram explicados como postos a serviço da sobrevivência humana.

A partir do Renascimento a forma dos oceanos foi conhecida (continentes e pólos), a lei da gravitação universal permitiu a explicação do fenômeno das marés, as correntes e ondas foram explicadas a partir das equações da dinâmica, a salinidade foi explicada da mesma forma que os sedimentos marinhos e a teoria da evolução dos organismos vivos, desenvolvida a partir dos resultados da viagem de circunavegação da Terra, do navio de pesquisas Challenger, em 1872/76, deu nova interpretação a existência dos peixes, mamíferos e outros habitantes dos oceanos.

Depois da viagem do Challenger, a descrição dos fenômenos físicos oceânicos consagrou o nome Geografia Física Marinha para a disciplina que estuda a distribuição geográfica das características físicas dos oceanos e a extensão dessa descrição às demais disciplinas básicas oceânicas, que também se estabeleciam, deu origem ao nome que se firma até hoje no cenário das ciências dos oceanos: a Oceanografia.

Na virada do século 20, os campos magnético, elétrico e gravitacional haviam sido descritos, o elétron, e outras partículas constituintes da matéria, descobertas, juntamente com a verificação da constância da velocidade da luz, em qualquer sistema de referência do nosso Universo. O elétron, o átomo, a molécula, a célula, o sistema genético foram rapidamente incorporados à linguagem da ciência que se desenvolvia, na descrição dos processos oceânicos, nos quais pontificava o fenômeno da turbulência, e a forma desordenada com que agem os fluidos na condução da energia.

Incorporando também desenvolvimentos tecnológicos, resultantes do conhecimento científico alcançado, foram construídos os batiscafos para a observação do oceano profundo, em decorrência das duas grandes guerras mundiais, que ocorreram no século XX em 1914/18 e 1939/45 e, dessa forma, a terceira dimensão dos oceanos pode também ser objeto do método científico, através da observação direta.

Neste cenário foi criado, em 31 de dezembro de 1946, pelo Decreto-Lei n° 16.68S do governo do estado de São Paulo O Instituto Paulista de Oceanografia, subordinado à Divisão de Peixes e Animais Silvestres do Departamento de Produção Animal e, logo a seguir, com o Decreto-Lei n° 16.919 de 13 de março de 1947, subordinado à Diretoria Geral do Departamento de Produção Animal da Secretaria de Agricultura, com as atribuições de ''estudar os fatores físicos, químicos e biológicos que influem na produtividade do mar, visando principalmente ao seu aspecto econômico''.

Com o objetivo de ter maior autonomia no cumprimento de suas funções de pesquisas, o Instituto foi incorporado cinco anos depois, em 4 de dezembro de 1951, à Universidade de São Paulo pela Lei nº 1310, passando a integrá-la como Unidade de Pesquisa e sob a denominação de Instituto Oceanográfico. Em 1960, através da Lei n° 5470, o Instituto Oceanógrafico conseguiu estrutura organizacional e atribuições que lhe conferiram também a possibilidade de realizar cursos, visando à formação de oceanógrafos e técnicos.

Em 1975, o Instituto Oceanográfico sofre a transformação que lhe conferiu o status de Unidade de Ensino da Universidade de São Paulo, por ato do Conselho Universitário, posição que ocupa até o momento.

Estrutura atual

As atividades didáticas regulares do Instituto Oceanográfico são desenvolvidas em quatro níveis:

  • Graduação — O Departamento de Oceanografia Física ministra o curso de habilitação nessa área aos alunos do bacharelado em Física do Instituto de Física da Universidade de São Paulo.

  • Pós-Graduação em Oceanografia Biológica, que conduz aos graus acadêmicos de mestre e doutor em Oceanografia Biológica e conta com cerca de 90 alunos, grande parte dos quais provenientes de diversos estados brasileiros e do exterior.

  • Pós-Graduação em Oceanografia Física, que conduz aos graus acadêmicos de mestre e doutor em Oceanografia Física, contando atualmente com cerca de 40 alunos, muitos dos quais também provenientes de diversos estados brasileiros.

  • Pós-Graduação em Oceanografia Física, área de concentração Oceanografia Química e Geológica, que conta com 15 alunos, conduzindo ao título de mestre.

Para o desenvolvimento de suas atividades, o Instituto se estrutura em dois Departamentos: Departamento de Oceanografia Biológica e Departamento de Oceanografia Física.

Paralelamente aos dois Departamentos, mantém uma Divisão de Documentação e Informação Científica (Didc), e a Biblioteca da Instituição, responsável pelo acervo, com mais de 9750 volumes e 719 revistas periódicas correntes. Na Divisão, são editadas regularmente as publicações da Unidade: O Boletim do Instituto Oceanográfico (com seu primeiro volume publicado em 1950, atualmente circulando o número 1/2 do volume 41, correspondente a 1993); a Publicação Especial; o Boletim Climatológico; o Relatório Interno; e o Relatório de Cruzeiros.

Como meio para a divulgação das atividades científicas dos docentes da casa e da comunidade científica em geral, são distribuídas a 684 instituições congêneres, nacionais e do exterior, recebendo, em permuta, material que contribui para que o acervo de sua biblioteca seja considerado, na sua especialidade, o mais completo do Brasil.

Faz parte também da estrutura do Instituto uma flotilha que incorpora o Noc professor W Besnard (49,35 m de comprimento e 700 t) com acomodações para 15 pesquisadores, autonomia de 20 dias, equipado com sistema de posicionamento por satélite (GPS), sonar para a localização de cardumes, CTD, correntômetros e demais instrumentos específicos para o trabalho nas diferentes áreas da Oceanografia.

As embarcações Albacora e Velliger II, ambas com 14 m de comprimento dão apoio às pesquisas costeiras realizadas pelos docentes nas bases de pesquisas, situadas nas cidades de Cananéia (Litoral Sul) e Ubatuba (Litoral Norte).

As Bases Norte (Ubatuba - com 11.000 m2 de area) e Sul (Cananéia — com 8.500 m2) dispõem de ancoradouros, laboratórios, equipamento de rádio comunicação, oficinas, acomodações para pesquisadores e as instalações das estações meteorológicas e maregráficas, cujas séries de observações de 40 anos se encontram entre as mais longas existentes no país.

Programas internacionais de pesquisa

No que se refere à participação em programas de pesquisas em nível internacional, o IOUSP, enquanto Unidade de Pesquisas, esteve envolvido, entre outros, com as pesquisas do Ano Geofísico Internacional, em 1950, que estimulou a criação das estações meteorológicas das bases de pesquisas de Cananéia e Ubatuba.

Nas atividades científicas das operações da Equalant I a IV, nos anos de 1962 a 1964, a participação foi intensa na área equatorial atlântica, de onde foram obtidos os primeiros resultados sobre as correntes e a biologia da área.

Nos anos de 1974 e 1979, foram realizados os experimentos internacionais de maior monta, na área equatorial atlântica, reunindo dezenas de navios de pesquisas, juntamente com estações meteorológicas terrestres, e observações de satélites durante o Gate (Garp Atlantic Tropical Experiment) e durante o Fgge (First Garp Global Experiment) respectivamente. A participação do Instituto se deu através dos navios Noc Almirante Saldanha e Nhi Sirius da Diretoria de Hidrografia e Navegação, no Gate e, através do Noc professor W Besnard da USP, no Fgge, nessa ocasião, já como Unidade de Ensino da Universidade de São Paulo.

Também como Unidade de Ensino da USP deram-se as participações do Instituto no Toga (Tropical Ocean Global Atmosphere), a partir de 1983 e no Woce (World Ocean Circulation Experiment), a partir de 1986. Os programas desenvolvidos na Antártica de 1986 a 1990 encontram-se entre os mais recentes trabalhos oceanógraficos realizados no Instituto através do Noc professor W Besnard.

Na atualidade, são feitos os preparativos para o engajamento da Instituição aos programas de pesquisas globais da Icsu (International Counsil of Scientific Unions ), definidos pelo International Geosphere Biosphere Programme (Igbp) — Global Changes.

Programas nacionais de pesquisa

Entre os programas de pesquisa de âmbito nacional pode-se mencionar o Gedip I e II — Grupo Executivo para o Desenvolvimento da Indústria Pesqueira, realizado de 1968 a 1972, na região sul da costa brasileira, sob o patrocínio do governo do estado do Rio Grande do Sul; o Faunec — Fauna Nectônica da Plataforma Continental Brasileira, realizado em 1975; e o Projeto Integrado IOUSP para Uso e Exploração Racional do Ambiente Marinho, com patrocínio da Finep, de 1976 a 1983, os dois últimos dedicados à região costeira sudeste do estado de São Paulo; o Projeto Integrado Utilização Racional do Ecossistema Costeiro da Região Tropical Brasileira, estado de São Paulo, de 1985 a 1990; e, atualmente, o projeto Pavasas — Pontos Anfidrômicos e Variações Sasonais do Atlântico Sul, com apoio do CNPq; o projeto Opiss — Oceanografia da Plataforma Interna de São Sebastião, juntamente com o projeto Coroas — Circulação da Região Oceânica da Região Oeste do Atlântico Sul, ambos apoiados pela Fapesp. Os citados, formam os grandes projetos de pesquisas já terminados ou atualmente em andamento na Instituição.

Serviços de extensão

São ministrados atualmente os cursos de atualização Fundamentos de Oceanografia, destinado aos professores de primeiro e segundo graus e o curso de difusão cultural Noções sobre Oceanografia, destinado àqueles que tenham concluído o primeiro grau ou equivalente, no segundo semestre dos anos correntes.

O Instituto mantém também o Museu Oceanográfico, que contém registros históricos sobre as diferentes áreas da Oceanografia, com a finalidade de dar suporte às atividades de primeiro e segundo graus da rede de ensino, bem como à pesquisa e à extensão. Para tanto, o Museu mantém, entre outros, um serviço de empréstimo de material biológico, a alunos e professores.

Pós-graduação e pesquisas

A pós-graduação do IOUSP é um setor que merece registro, sobretudo em razão de sua expressiva atuação na formação de mestres e doutores no cenário da Oceanografia nacional.

O programa de mestrado foi criado em 1963 através da Portaria 15, de 12 de fevereiro, nas áreas de Oceanografia Física e Oceanografia Biológica. A partir de 1972, com a reestruturação dos cursos decorrentes dos novos Estatutos da USP, foi instalado o programa de doutorado em Oceanografia Biológica, em 1978, e em Oceanografia Física, em 1983.

Em 1987 foi iniciado o programa de mestrado da área de concentração em Oceanografia Química e Geológica. Entre 1963 e 1993, os dois programas formaram cerca de 150 mestres e 70 doutores, no conjunto das três áreas de concentração correspondentes aos dois Departamentos do Instituto.

Os programas de pós-graduação, através dos seus docentes orientadores, são desenvolvidos ao longo das seguintes linhas de pesquisa:

  • Oceanografia Biológica — ecossistema tropical costeiro; ecossistemas antárticos; plancton e produtividade estuarina e marinha; diversificação, ciclo de vida e ocorrência de peixes estuarinos e marinhos; avaliação de estoques de organismos marinhos; ecologia e sistemática de organismos bentônicos; bioecologia de manguesais; poluição de áreas estuarinas e marinhas; aquicultura de crustáceos.

  • Oceanografia Física — oceanografia dinâmica: interação ar-mar; mares: análise espectral dos processos físicos oceânicos; hidrodinâmica da plataforma continental; modelagem numérica: mares; oceanografia sinótica e dinâmica; hidrodinâmica de estuários; sensoriamente remoto; análise estatística de séries temporais oceânicas; oceanografia Antártica, circulação de larga escala.

  • Oceanografia Física: área de concentração Oceanografia Química e Geológica — petrografia sedimentar e mineralogia de pesados; foraminíferos recentes, distribuição e relações ambientais; determinação de traços inorgânicos, polarografia de pulso; sedimentação, flutuações do nível do mar; sedimentação marinha; sensoriamente remoto: gerenciamento costeiro; compostos orgânicos, traços em soluções aquosas; diagnósticos e balanços de massa químicos ambientais; sedimentação costeira, processos e análise ambiental.

Multidisciplinaridade e Oceanografia

A Oceanografia é entendida, neste final do século XX, como o estudo científico da parte do planeta Terra coberta de água. Tal estudo implica descrição, entendimento, e previsão dos processos de natureza física, química, geológica e biológica e de suas interações, que ocorrem nos oceanos.

Neste século foram conhecidas as antipartículas, a equivalência massa/energia, a energia atômica, a particulação da energia e todas as partículas subatômicas constituintes da matéria, entre muitos outros eventos. A deriva dos continentes foi estabelecida firmemente, e os últimos 175 milhões de anos de história planetária reconhecidos como registrados nos sedimentos existentes no fundo dos oceanos.

Os ciclos bio-geo-químicos foram também reconhecidos e as mudanças climáticas de escala de milhares de anos, constatadas nos sedimentos marinhos e identificadas como devidas a modificações orbitais terrestres.

Foi iniciada a era espacial, o Homem foi a Lua, estimulando uma visão holística do planeta Terra e de todos os programas globais de observação dos oceanos.

A multidisciplinaridade da Oceanografia pode ser estudada segundo as inúmeras escalas do espaço-tempo em que ocorrem, na quase solução (química) aquosa,(não fora o material particulado e a vida marinha, que vai do fentoplancton até os grandes mamíferos) os processos oceânicos.

Os processos oceânicos, em princípio, podem ser estudados multidisciplinarmente, com valores arbitrariamente estimados nas escalas das partículas elementares (dez a menos catorze do cm e do seg); na escala dos átomos (dez a menos onze do cm e a menos dez do seg); das moléculas (dez a menos dez do cm e a menos cinco do seg); das células e dos tecidos (dez a menos cinco do cm e do seg); da escala do Homem (do segundo até cinqüenta anos e até dez a quinta do km); e escala planetária (anos e anos luz).

As escalas ocorrem simultaneamente, no espaço-tempo, sendo a escolha de uma ou mais delas, para escala de trabalho, uma limitação das atividades das institutições oceanógraficas existentes.

A maioria dessas instituições, inclusive o Instituto Oceanográfico da USP, está equipada e concentra capacitação em Ciência para o exame dos processos oceânicos, centralizada na escala do Homem, assim nominada por corresponder ao período médio da vida produtiva do ser humano — cerca de 50 anos — e estar circunscrita às dimensões do planeta.

Na multidisciplinaridade, em todas as escalas, reconhece-se, há uma hierarquia nos estudos dos processos oceânicos que são, muitas vezes, conduzidos de forma não-simultânea. A precedência se dá às questões de existência e unicidade, isto é, as questões da realidade factual dos processos físicos, químicos e geológicos, que moldam, se não determinam, os processos biológicos.

Tal hierarquia, pode-se interpretar, parece apontar para as escalas dos processos inerentes ao fenômeno da vida, as quais não se sabe avaliar. Entretanto, com fé inabalável e com o estímulo dos progressos da ciência, obtidos até agora, acredita-se que, medindo e refletindo, conseguir-se-á chegar a esse conhecimento, decifrando-se o angustiante enigma da existência, algum dia... em alguma época

Afrânio Rubens de Mesquita é professor do Instituto Oceanográfico da USP.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 1994
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