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USP 94: a terceira fundação

UMA VISÃO CRÍTICA

USP 94: a terceira fundação

Marilena Chauí

Tenho, sobre a mesa, um documento de 1967, escrito pelo professor Simão Mathias, em nome da comissão de reestruturação da USP, e um conjunto de documentos de 1979, redigidos por membros da recém-criada Adusp, produzidos durante a primeira greve de docentes da Universidade. Ao lado, um artigo de 1984, do professor Azis Simão, rememorando, no ano do cinqüentenário, a fundação da Universidade, os anos de ferro do terror político e do autoritarismo. Estão aqui, também, entrevistas, publicadas em vários jornais, com professores e pesquisadores, durante a comemoração dos 50 anos da Universidade. Mais além, documentos da Adusp, alguns de 1980, outros de 1984, sobre reestruturação da Universidade, questões salariais e divergências de posições entre os diferentes autores. À sua volta, artigos e documentos de pesquisa, escritos por vários professores, entre 1988 e 1994, relacionados com a avaliação da Universidade. Coleção heteróclita, revela momentos de grandes debates e, outros, de monotonia repetitiva.

Entre o texto de 1967 e os de 1994 pressente-se um abismo, porém, contraditoriamente, uma grande proximidade. Proximidade, porque todos os textos e entrevistas voltam-se para questões de fundo, relativas à estrutura da Universidade, às suas finalidades, ao sentido da docência e da pesquisa, à exigência de autonomia universitária, de representatividade concreta dos órgãos colegiados de direção da USP e da qualidade do trabalho que deve ser realizado pela instituição acadêmica. Se tal proximidade não afasta o sentimento de distância intransponível não é porque cada um dos textos exprima seu momento histórico e, portanto, a diferença entre passado e presente. Não se trata de diferença dos tempos, mas de diferença temporal: os temas discutidos são os mesmos, mas seu conteúdo e significado não têm parentesco.

Abismo, portanto, porque o documento do professor Mathias refere-se à necessidade de passar das escolas e faculdades isoladas a uma universidade propriamente dita, com departamentos e institutos ou faculdades regidos por um estatuto comum, sob a direção da reitoria e de um conselho universitário articulado, enquanto os de 1979 insurgem-se contra o centralismo, a burocracia, a falta de representatividade do Conselho Universitário e exigem a autonomia universitária, os de 1984 indicam diferenças de perspectiva entre os que lutavam pela democratização e renovação da USP, e os de 1994 ocupam uma posição inversa à de Simão Mathias, advogando, agora, a racionalização e modernização universitárias, através da divisão das diferentes atividades acadêmicas. O texto de Simão Mathias vem no bojo da luta pela escola pública; os de 1994, no do elogio à privatização de grandes parcelas do espaço público. Entre 1967 e 1994, as grandes mudanças na forma do modo de produção capitalista e, conseqüentemente, das relações sociais, do lugar ocupado pela ciência e pela tecnologia, das novas expectativas de uma sociedade de massa e de consumo, fascinada por imagens velozes e fugazes, determinaram outras maneiras de perceber a universidade e parecem impor-lhe outras finalidades.

Entre 1967 e 1984, uma nova USP foi criada. Houve uma segunda fundação. Quis a ironia da história que os prepostos da ditadura, na universidade, realizassem as propostas contidas no documento de Simão Mathias, disso resultando o que vimos: ali onde Mathias falava em integração, fez-se a centralização; onde falava em reformulação curricular e vestibular unificado por áreas de conhecimento, fez-se a escolarização e a massificação dos testes de múltipla escolha; onde propunha articular pesquisa básica e aplicada, graduação e pós-graduação, formação de novos docentes, pesquisadores e profissionais, fez-se a partilha entre pesquisa financiada por poder público e iniciativa privada, instituiu-se a distinção hierárquica e de prestígio entre os dois níveis do ensino, e a separação entre docentes, pesquisadores e profissionais ligados ao mercado.

Lendo o documento de 1967 e os vários textos aduspianos de 1979, pode-se observar que são muito semelhantes porque guiados por um mesmo espírito universitário. Entre eles há a continuidade de um projeto que a ditadura interrompera e que poderia ser retomado, na perspectiva do retorno democrático em curso no país. No entanto, entre o conjunto formado pelos textos de 1967 e 1979, de um lado, e os que foram produzidos em 1984, de outro, o contraste das propostas já é grande e torna-se uma fonte preciosa para a compreensão do que se passara e ainda se passa na USP.

De fato, a leitura desses escritos, particularmente do contraste entre 1967-1979 e 1984, lança algumas luzes históricas sobre a origem e as causas das posições adotadas por professores e estudantes entre 1970 e 1994, isto é, a discussão incansável sobre os efeitos da reforma universitária ditatorial e a necessidade de encontrar caminhos para desfazê-la. Mas também revela algo surpreendente, pois muito do que se passou a propor para a USP, no final dos anos 80 e início dos 90, cindindo os uspianos em várias facções, encontrava-se em germe entre 1970 e 1984. Ali, já se anunciava a divisão entre os que desejavam manter as posições de defesa da democratização da universidade e aqueles que pretendiam corrigir os erros cometidos pela ditadura e prosseguir no projeto de modernização universitária. Em outras palavras, há hoje, na USP, um antagonismo que já não se traduz nos termos em que apareceu, sucessivamente, no correr dos anos 70 e início dos 80, colocando autonomia versus servilismo, representação versus autoritarismo, participação versus centralização, democratização versus modernização, mas refere-se à questão contemporânea do público e do privado, dos conceitos de democracia, docência e pesquisa que se encontravam adormecidos e, ao despertarem, revelaram velhas e consideráveis diferenças entre os antigos aliados.

Explicitar essas diferenças tem sido tarefa de seminários, colóquios, artigos e entrevistas, cuja importância, todavia, não impediu a implantação de uma estrutura institucional que tende a aguçar as divergências não tendo energia criativa para trabalhá-lhas e superá-las. Donde o sentimento de repetição monótona dos debates, em certos períodos, e agora mais do que nunca.

Imperceptivelmente, a estrutura e a organização da Universidade de São Paulo transformaram-se, apesar de críticas, alertas e discussões acaloradas. Se, em certas ocasiões, como durante os dois primeiros congressos realizados pela Adusp, ou durante a formulação e votação dos estatutos da Universidade, ou nas campanhas por eleições diretas das direções universitárias, parecia ser clara a percepção do risco iminente de uma reorganização da universidade bastante distanciada dos ideais da escola e da pesquisa públicas, da ênfase na qualidade da docência e nas formas de avaliação dos trabalhos e títulos acadêmicos, hoje esses temas possuem um tom nostálgico e envelhecido, sob o impacto do que se convencionou designar como modernização racionalizadora. Em suma, o que muitos pressentiam como risco possível, tornou-se realidade.

Há, hoje, na Universidade de São Paulo, três tipos de escola que não correspondem à divisão institucional da universidade em institutos e faculdades, mas ao modo como a atividade universitária é pensada e exercida, os três tipos podendo existir e coexistir em qualquer dos institutos e faculdades: a que propicia prestígio curricular ao docente; a que oferece complementação salarial a docentes e pesquisadores; e a universidade pública.

A escola do prestígio curricular é aquela na qual o docente não é pesquisador e tampouco se dedica à docência em tempo integral, mas ali leciona em tempo parcial, dedicando-lhe algumas horas por semana. Embora a verdadeira profissão seja exercida noutro lugar (consultório, escritório particular, empresas privadas), o profissional tem interesse em apresentar-se com o currículo de professor da USP porque este vale clientes ricos ou um bom cargo na firma. Sabe-se que o regime do tempo parcial foi proposto a muitos profissionais eminentes para que a universidade pudesse contar com a experiência e o prestígio que lhe traziam. Hoje, porém, instalou-se a situação inversa, a USP legitimando carreiras não-acadêmicas que prestigiam o docente e não a instituição.

A escola de complementação salarial é aquela em que as pesquisas são financiadas por empresas e organismos privados que subsidiam a montagem e manutenção de laboratórios, bibliotecas e equipamentos, congressos e simpósios nacionais e internacionais, publicações, bolsas, viagens e cursos no estrangeiro. Como esses recursos externos são vinculados pelos órgãos financiadores direta e autonomamente a institutos e departamentos, orçamentos, finalidades e resultados dos trabalhos não são públicos, no duplo sentido do termo, isto é, não têm origem pública e não são publicizados. Além disso, os financiadores fazem uso privado da instituição pública, tendo em vista que esta forma os pesquisadores, cede seus espaços e infra-estrutura, mas os resultados são apropriados privadamente pela fonte de financiamento. Este tipo de escola é visto — dentro e fora da USP — como modelo de modernidade porque desincumbe o poder público da responsabilidade com os custos da pesquisa e recebe o nome de cooperação entre a universidade e a sociedade civil. Nela, consagra-se a idéia de que a universidade é essencialmente prestadora de serviços, sendo por isso produtiva. É o tipo acabado da universidade moderna do Terceiro Mundo, visto que os grandes e verdadeiros financiamentos privados para pesquisas fundamentais e de ponta são destinados a universidades e institutos do Primeiro Mundo.

A terceira escola é a universidade pública propriamente dita. Nela, os docentes dedicam-se ao ensino e à pesquisa em tempo integral, dependem inteiramente dos recursos públicos (nos dois sentidos do termo: os orçamentos e os resultados são públicos e publicizados) e destinam a totalidade de seus trabalhos à sociedade, seja formando profissionais de várias áreas, seja formando novos professores, seja publicando suas pesquisas e as de seus estudantes, seja realizando atividades de extensão universitária para profissionais de várias áreas e para atualização de professores de primeiro e segundo graus, seja realizando pesquisas ou participando na formulação e supervisão de projetos e programas sociais para os governos. Esta terceira escola é aquela que mantém um vínculo interno entre docência e pesquisa, portanto, entre formação e criação, conhecimento e pensamento, realizando as pesquisas fundamentais, ou seja, as de longo prazo, independentes, que acarretam aumento de saber, mudanças no pensamento, descobertas de novos objetos de conhecimento e novos campos de investigação, reflexões críticas sobre a ciência, as humanidades e as artes, e compreensão-interpretação das realidades históricas. Esta terceira escola foi a que nasceu com o nome de Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e, no documento de Simão Mathias, punha-se como coração da Universidade de São Paulo.

Quando confrontamos, de um lado, essa situação institucional e o documento de Simão Mathias e, de outro, os debates do final dos anos 70, é fantástico perceber que, atualmente, a USP concretiza tudo quanto foi combatido durante quase três decênios! Nos idos de 67, a discussão se fazia entre a escola de prestígio e a de docência-pesquisa, ou na linguagem do professor Mathias, entre as escolas profissionalizantes e a universidade propriamente dita. Por seu turno, nas discussões do final dos anos 70, já estava na pauta o problema das fundações operando como complementação salarial e com autonomia face à universidade. No vocabulário de 1970, o fenômeno era designado, por seus defensores, como desburocratização e agilização da universidade, e por seus opositores, como uso da universidade pública pela classe dominante.

Também é interessante observar, comparando documentos, que, nos anos 60, buscava-se a universidade. No centro dessa busca, encontravam-se a autonomia docente — criação de departamentos sem o antigo poder da cátedra — e a integração dos campos de pesquisa — formação de institutos a partir do agrupamento interdisciplinar de pesquisas afins. Dessa busca, seguiu-se a separação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras em uma Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, e nos institutos científicos. Em contrapartida, quando tomamos as dicussões dos anos 80, prevalece a idéia de que a separação de faculdades e institutos em outros, menores, ou a divisão qua divisão, é racionalizadora, desburocratizando e agilizando o trabalho universitário. Levada às últimas conseqüências, essa idéia desemboca exatamente naquilo que se combatia nos anos 60: a dispersão e fragmentação dos trabalhos de docência e pesquisa, uma vez que sua diferença tanto quanto sua integração não eram (e não são) levadas em conta.

Também chama a atenção, quando comparamos os debates de 60 e 70, com os dos anos 80, a mudança do lugar e papel da docência: altamente valorizada anteriormente, vista como base indispensável para a pesquisa, nos debates recentes a tendência é lançá-la para um lugar menor e dar-lhe o papel reduzido de reprodutora, dissociável, de fato e de direito, da pesquisa, considerando-se esta última mais importante e prioritária. Desaparece, assim, a idéia de formação acadêmica e de preparação de novos docentes, aptos para a pesquisa tanto quanto para o ensino.

Finalmente, o tema acalorado dos anos 60 e 70 sobre a universidade participativa, tanto porque professores e estudantes participariam das decisões, quanto porque a universidade marcaria seu lugar e papel na sociedade, combatendo a destruição operada no ensino público de primeiro e segundo graus, lutando contra a massificação do ensino como substituto da democratização educacional, resistindo ao autoritarismo estatal, defendendo a socialização dos conhecimentos e orientando suas pesquisas para finalidades diretamente sociais, foi substituído, nos anos 80, pelas idéias de eficácia, produtividade e vínculo preferencial com as fontes privadas de financiamento das pesquisas, pela tendência a criar funis seletivos que excluem boa parte dos estudantes do campo das pesquisas, e pela imagem da sociedade vista por um único prisma: o das relações de mercado e, portanto, sob o signo da idéia de interesse.

Reunindo os fios esparsos da memória, um curioso tecido surge diante de nós. Os anos 60 sonharam com a revolução social que teria na universidade pública (a universidade crítica, como a chamávamos) uma de suas principais frentes de luta. Os anos 70, silenciando a universidade crítica, deixaram realizar o sonho de ascensão social da classe média da ditadura, destruindo a qualidade do ensino público em todos os graus, na alegria da massificação. Os anos 80 acreditaram numa universidade autônoma e democrática, capaz de equilibrar as exigências do rigor acadêmico e as demandas de uma sociedade marcada pela carência, pela miséria e pela violência. Os anos 90 tornaram-se prosaicamente realistas: do lado das associações docentes, estudantis e de funcionários, o discurso está centrado na idéia de interesse das categorias, enquanto do lado das direções universitárias prevalece o discurso de eficiência, produtividade e competitividade, associado à imagem de ligação umbilical entre os interesses da sociedade civil e da pesquisa, isto é, os interesses do mercado. Da utopia revolucionária à adesão à ideologia neoliberal, a Universidade de São Paulo entra na sua terceira fundação.

Terceira fundação

Seria longo e cansativo continuar na perspectiva comparativa. Superficialmente, ela nos indica o óbvio: o tempo passou, a sociedade e a USP mudaram, novos problemas se colocam e novas respostas são necessárias. Todavia, o que se nos afigura é que essa aparência de superfície é exatamente isto, aparência e superfície. Por um lado, porque os problemas continuaram os mesmos, sob a mudança de vocabulário, mas, por outro, porque a diferença temporal fez seu trabalho secreto e profundo e as soluções propostas indicam, sob nova terminologia, a consolidação de três vigas mestras: as idéias de privatização (através de convênios com empresas e fundações privadas e pagamento de anuidades pelos estudantes mais ricos), de enxugamento da máquina administrativa (através da terceirização dos serviços) e de distinção entre escola profissionalizante e centro de pesquisa (isto é, graduação e pós-graduação). A novidade surpreendente está no fato de que parte dos defensores dessas idéias foi, ontem, defensora da escola pública democrática.

Basicamente, os que fazem a engenharia de implantação daquelas três vigas mestras alegam como motivos principais a compreensão das transformações do modo de produção capitalista e a nova forma de inserção sócio-econômica da universidade. Partindo da idéia de que houve a proletarizado dos universitários (e dos intelectuais, em geral), acarretando a ilusão corporativa que bloqueia o avanço moderno da universidade, os novos engenheiros da mudança universitária alegam:

  • à medida em que o modo de produção capitalista transformou a ciência e a tecnologia em forças produtivas, não só tornou obsoletos os antigos humanistas e pesquisadores puros, como ainda exige adequação da universidade à nova realidade histórica, se esta não quiser perder-se em vagas abstrações;

  • à medida em que os agentes da ciência e da tecnologia formam a classe média e que é esta quem procura a universidade, será preciso atender às demandas daquela classe, sem o que a universidade se torna inútil, essa demanda sendo dupla, isto é, demanda de diploma profissionalizante para entrada competente no mercado de trabalho e demanda de qualificação como pesquisador para atrair fundos privados para a universidade;

  • à medida em que a sociedade contemporânea é uma sociedade de massa, combater abstratamente a massificação do ensino universitário é inócuo e, no fundo, antidemocrático, de sorte que a universidade deve combinar duas tarefas: a massificadora, através da escolarização dos cursos de graduação; e a seletiva, formadora de quadros propriamente científicos, através da pós-graduação.

Essas idéias têm doce encanto persuasivo, mesmo quando seus defensores não são doces nem encantadores, pois correspondem à maneira como a sociedade está dada na experiência imediata. A persuasão aumenta quando o discurso vem seguido de números, curvas, médias, indicadores e variáveis. E torna-se hegemônica porque os opositores, colocando-se no mesmo plano em que os persuasores, mantém o mesmo discurso que seus adversários, ou seja o discurso dos interesses (no caso, das categorias), enfraquecendo suas posições por não parecerem capazes de fazer valer o restante de suas propostas: defesa da escola pública nos três graus de ensino, recuperação e reformulação do ensino de primeiro e segundo graus, exigência de reconhecimento do valor da docência, exigência de infra-estrutura adequada às pesquisas, exigência de financiamentos públicos constantes e regulares para as pesquisas fundamentais e trabalhos de extensão universitária, em suma, responsabilidade do poder público com a docência e a pesquisa.

As transformações da USP, iniciadas ao longo dos anos 70 e, hoje, consubstanciadas na absorção irrefletida do modelo neoliberal tiveram como data de nascimento a instalação de fundações privadas no interior da universidade. No batismo, receberam o nome de modernização pela ampliação de recursos externos. No dia do crisma, foram confirmadas como avaliação do desempenho e produtividade universitários.

É inegável que toda instituição pública deve prestar contas de suas atividades à sociedade. Sob este aspecto, a avaliação das atividades universitárias é necessária e indispensável, além de auxiliar na orientação da política universitária, graças a um saber da universidade sobre si mesma, sobre seu modo de inserção na sociedade e o significado de seu trabalho, e para reorientação de programas e projetos. Dadas as dimensões da USP, avaliá-la é também necessário para orientar a análise técnica dos problemas operacionais e financeiros, oferecer fundamentos para propostas orçamentárias, suprir carências, atender demandas, quebrar bolsões de privilégios e de inoperância. Ao realizá-la, a universidade cumpre o dever da prestação de contas aos cidadãos.

Ora, se para muitos, o crisma foi sentido como extrema-unção, é porque a avaliação que vem sendo realizada na USP não cumpre qualquer dessas finalidades. Um dos aspectos mais surpreendentes dos embaraços e desencontros do denominado processo avaliativo encontra-se num fato paradoxal. Com efeito, a universidade, como centro de investigação, é (ou deveria ser) o lugar em que, por princípio e por definição, tudo quanto existe deveria transformar-se em objeto de conhecimento e, no caso da avaliação universitária, o sujeito e o objeto do saber seriam o mesmo, de sorte que avaliação deveria ser, rigorosamente, reflexão, dela devendo surgir os critérios avaliativos. Ora, a universidade tem-se mostrado incapaz de colocar-se como objeto de saber, criando métodos próprios que permitam elaborar técnicas específicas de auto-avaliação. Resultado: vem aplicando, de modo acrítico e desastrado, os critérios usados pelas empresas, imitando — e muito mal — procedimentos ligados à lógica do mercado (compreensivelmente, a lógica necessária para as empresas), portanto, uma aberração científica e intelectual, quando aplicados à docência e à pesquisa. Além disso, elegeu como paradigma de avaliação de uma instituição pública as universidades privadas norte-americanas que, por força de seu modo de inserção social, são regidas claramente pela lógica do mercado, especialmente pela competição mortal dos docentes por postos e títulos e a dos estudantes por vagas em pós-graduação para o PhD.

Conseqüentemente, a USP vêm empregando critérios que visam à homogeneidade (necessária à lógica empresarial), despojando a universidade de sua riqueza e especificidade, isto é, a diversidade e pluralidade de suas atividades, determinadas pela natureza própria dos objetos de pesquisa e de ensino, regidos por lógicas específicas, temporalidades e finalidades diferentes. A avaliação amortece a peculiaridade de uma instituição cuja vida é a diversidade. Bastaria lembrar que, nas Humanidades, um livro possui maior relevância do que artigos (estes, em geral, são esboços ou partes de um todo que somente o livro revela), enquanto nas Ciências dá-se exatamente o contrário, de sorte que usar um deles como critério geral de avaliação é impossibilitar que se avalie adequadamente uma das áreas do conhecimento. Pior do que isto. No caso das Humanidades, o critério publicação de artigos estimula a proliferação do mesmo artigo em versões variadas, sem qualquer contribuição efetiva. Além disso, nas condições precárias do mercado editorial brasileiro, o critério da publicação, no caso de livros e revistas, deve ser usado com extremo cuidado, uma vez que a demora para publicar ou intervalos longos entre publicações não indicam necessariamente ausência de pesquisa, mas podem estar assinalando dificuldades editoriais. Também vale recordar que o critério empregado pelas Ciências Exatas e Naturais, qual seja, a publicação de trabalhos em revistas e periódicos internacionais, pode não fazer muito sentido em várias áreas das Humanidades, nas quais o tema pesquisado pode estar referido à particularidade brasileira. Sem dúvida, em certas ocasiões, congressos e publicações buscam apreender e revelar uma mesma questão sob diferentes perspectivas locais e, neste caso, a pesquisa particular insere-se numa totalidade internacional ou transnancional, mas não é esta a situação mais freqüente. Estes breves exemplos e muitos outros indicam os equívocos da modernização racionalizadora em curso entre nós.

Por conseguinte, nada é conseguido como autoconhecimento da instituição, obtendo-se apenas um catálogo de atividades e publicações (acompanhadas de inexplicados conceitos classificatórios) que, absurdamente, passa a orientar a alocação de recursos, vagas, postos e concursos.

Além disso, a prestação de contas à sociedade não se cumpre porque tanto orçamentos quanto execuções orçamentárias são apresentados com os números agregados, sem explicitação de critérios, prioridades, objetivos e finalidades e sem explicitar publicamente os convênios privados (montante dos recursos, destinação, prazos das pesquisas, usos dos resultados etc).

Em geral, os critérios empregados para avaliar a excelência acadêmica, costumam ser identificados aos indicadores usados para medi-la, acarretando, como já observamos, um número razoável de problemas, pois seria necessário que a noção de qualidade acadêmica fosse explicitada e dela surgissem os critérios e indicadores para a avaliação. Além disso, por qualidade acadêmica, costuma-se entender o número de teses e de publicações, estágios no estrangeiro e participação em congressos, numa visão simplista da pesquisa, e deixando na sombra a docência, seus problemas e sua qualidade própria, uma vez que o ensino, como observamos, é, agora, considerado tarefa menor e simplesmente reprodutora, sem qualquer papel formador.

A respeito da qualidade acadêmica

Valeria a pena que a USP, na comemoração de seus 60 anos, propusesse questões e assinalasse caminhos que explicitassem as idéias de qualidade da docência e da pesquisa. Que indagações poderiam balizar a definição da qualidade da docência? Para iniciar o debate, sugerimos, entre muitas outras, as seguintes:

Os professores variam os conteúdos de seus cursos, preparam suas aulas, pesquisam para novos cursos, introduzem novas questões para os alunos, exigem pesquisas dos estudantes, alunos, transmitem os clássicos de sua área, as principais questões e impasses, as inovações mais significativas? Ou prevalecem rotina, repetição, pouca exigência para avaliação dos alunos, pouco conhecimento dos clássicos da área e dos principais problemas e inovações da área?

Os cursos são capazes de mesclar e equilibrar informação e formação? Os estudantes são iniciados, por meio do estilo de aula e do método de trabalho do professor, ao estilo acadêmico, ou não? Qual a bibliografia usada? Como o estudante é introduzido ao trabalho de campo e ao laboratório? Como o professor e os alunos enfrentam a precariedade do segundo grau quanto a informações e desconhecimento de línguas estrangeiras? Que tipos de trabalhos são exigidos dos alunos? Que condições de trabalho são dadas a docentes e estudantes pela universidade?

O que poderíamos considerar elementos indispensáveis da excelência do trabalho docentes? Pensamos que, entre outros aspectos, a docência excelente seria aquela que:

  • inicia os estudantes aos clássicos, aos problemas e às inovações da área;

  • varia e atualiza cursos, bibliografias, aproveitando os trabalhos de pesquisa que o professor está realizando (tanto para uma tese, um livro ou um artigo);

  • inicia ao estilo e às técnicas de trabalho próprios da área;

  • informa e forma novos professores ou profissionais não-acadêmicos da área;

  • força os estudantes ao aprendizado de outras línguas e consegue que os departamentos de línguas lhes ofereçam cursos;

  • luta por condições de infra-estrutura para os estudantes: bibliotecas, laboratórios, computadores, instrumentos de precisão, veículos para trabalho de campo etc.;

  • exige trabalhos escritos e orais contínuos dos estudantes, oferecendo-lhes uma correção explicativa de cada trabalho realizado, de tal modo que cada novo trabalho possa ser melhor do que o anterior, graças às correções, observações e sugestões do professor;

  • o professor incentiva os diferentes talentos, sugerindo trabalhos que, posteriormente, auxiliarão o estudante a optar por uma área de trabalho acadêmico, ou uma área de pesquisa ou um aspecto da profissão escolhida e que será exercida logo após a graduação — em suma, a docência forma novos docentes, incentiva novos pesquisadores ou prepara profissionalmente para atividades não-acadêmicas.

No caso da pesquisa, também poderíamos discutir o estabelecimento de alguns parâmetros, a partir de um conjunto de indagações sobre a qualidade desse trabalho. Assim, por exemplo, podemos indagar:

Os temas escolhidos são relevantes na área, seja porque enfrentam impasses e dificuldades teóricas e práticas nela existentes, seja porque inovam em métodos e resultados, abrindo caminho para novas pesquisas?

O pesquisador conhece as várias alternativas metodológicas e as implicações científicas, políticas e ideológicas de cada uma delas, de modo que, ao escolher a metodologia, o faz com conhecimento de causa?

O pesquisador conhece o estado da arte no tema que está pesquisando: as discussões clássicas e as discussões mais recentes sobre o assunto e a bibliografia clássica e atual sobre o assunto? O pesquisador dispõe de tempo para várias horas seguidas de trabalho? Recebe auxílio financeiro para isto?

O orientador estimula caminhos novos para seus orientandos e é cientificamente receptivo a conclusões, mesmo quando estas contrariam resultados e idéias a que ele próprio havia chegado em suas pesquisas? O orientador estimula estágios no estrangeiro, escolhendo os locais onde, de fato, o tema trabalhado pelos orientandos tem sido objeto de pesquisas importantes? O orientador luta para que haja condições de infra-estrutura para o trabalho dos orientandos e o seu próprio? O orientador tem clareza da necessidade de diferenciar prazos para seus orientandos, em função do tema por eles escolhido, das diferentes condições de vida e trabalho dos orientandos, das dificuldades ou facilidades de expressão de cada um dos orientandos, da infra-estrutura e da bibliografia disponíveis para os diferentes trabalhos dos orientandos?

O orientador estimula a formação de pequenos grupos de discussão e de seminários de seus orientandos? Respeita a pesquisa solitária, conforme o tipo de tema ou dos orientandos? O orientador não se apropria da pesquisa dos orientandos e não a publica em seu próprio nome? Não explora os orientandos como força-de-trabalho?

A universidade reconhece a importância da pesquisa e cria condições para que se realize, se renove e se amplie (bibliotecas, laboratórios, instrumentos e equipamentos, intercâmbios nacionais e internacionais, verbas para publicação de revistas; para editora universitária; para co-edições com editoras comerciais, bolsas)?

O pesquisador pode contar com o reconhecimento público de seu trabalho, tanto pela publicação quanto pela utilização acadêmica, profissional ou social que dele é ou será feito? O pesquisador pode ter expectativa de reproduzir seu aprendizado e formar novos pesquisadores porque outras universidades do país poderão contratá-lo, ou sua própria universidade tem uma previsão de ampliação dos quadros? O pesquisador tem clareza da diferença entre pesquisa e consultoria, pesquisa e assessoria?

Indagações como estas podem auxiliar-nos a formular um conceito geral da excelência na pesquisa e encontrar critérios qualitativos para avaliá-la. Aqui, sugerimos alguns:

  • a inovação — seja pelo tema, seja pela metodologia, seja pela descoberta de dificuldades novas, seja por levar a uma reformulação do saber anterior sobre a questão;

  • a durabilidade — a pesquisa não é servil a modismos e seu sentido não termina quando a moda acadêmica acabar porque não nasceu de uma moda;

  • a obra — a pesquisa não é um fragmento isolado de idéias que não terão seqüência, mas cria passos para trabalhos seguintes, do próprio pesquisador ou de outros, sejam seus orientandos, sejam os participantes de mesmo grupo ou setor de pesquisa; há obra quando há continuidade de preocupações e investigações, quando há retomada do trabalho de alguém por um outro, e quando se forma uma tradição de pensamento na área;

  • dar a pensar — a pesquisa faz com que novas questões conexas, paralelas ou do mesmo campo possam ser pensadas, mesmo que não tenham sido trabalhadas pelo próprio pesquisador; ou que questões já existentes, conexas, parelas ou do mesmo campo possam ser percebidas de maneira diferente, suscitando um novo trabalho de pensamento por parte de outros pesquisadores;

  • impacto ou efeito social, político ou econômico — a pesquisa alcança receptores extra-acadêmicos para os quais o trabalho passa a ser referência de ação, seja porque leva à idéia de pesquisa aplicada, a ser feita por outros agentes, seja porque seus resultados são percebidos como direta ou indiretamente aplicáveis em diferentes tipos de ação; •

    autonomia — a pesquisa suscita efeitos para além do que pensara ou previra o pesquisador, mas o essencial é que tenha nascido, de exigências próprias e internas ao pesquisador e ao seu campo de atividades, da necessidade intelectual e científica de pensar sobre um determinado problema, e não por determinação externa ao pesquisador (ainda que tenham sido outros sujeitos acadêmicos, sociais, políticos ou econômicos que possam ter despertado no pesquisador a necessidade e o interesse da pesquisa, esta só consegue tornar-se excelente, se nascida de uma exigência interna ao pensamento e à ação do próprio pesquisador);

  • articulação de duas lógicas diferentes, a lógica acadêmica e a lógica histórica (social, econômica, política) — a pesquisa inovadora, duradoura, autônoma, que produz uma obra e uma tradição de pensamento e que suscita efeitos na ação de outros sujeitos é aquela que busca responder às questões colocadas pela experiência histórica e para as quais a experiência, enquanto experiência, não possui respostas; em outras palavras, a qualidade de uma pesquisa se mede pela capacidade de enfrentar os problemas científicos, humanísticos e filosóficos postos pelas dificuldades da experiência de seu próprio tempo; quanto mais uma pesquisa é reflexão, investigação e resposta ao seu tempo, menos perecível e mais significativa ela é;

  • articulação entre o universal e o particular — a pesquisa excelente é aquela que, tratando de algo particular, o faz de tal maneira que seu alcance, seu sentido e seus efeitos tendam a ser universalizáveis — quanto menos genérica e quanto mais particular, maior possibilidade de possuir aspectos ou dimensões universais (por isso, e não para

    contagem de pontos, é que poderá vir a ser publicada e conhecida internacionalmente, quando o tempo dessa publicação surgir). Donde a preocupação que os orientadores deveriam ter com o momento em que os estudantes escolhem um tema de iniciação à pesquisa, que antecipa o futuro mestrado e o futuro doutorado, de modo o que o primeiro tema fosse um exercício preparatório para as escolhas seguintes, garantindo, ao final do percurso, um novo pesquisador em condições de realizar novos trabalhos nos quais a articulação entre o particular e o universal se tornem perceptíveis para ele por haver aprendido, na iniciação e no mestrado, a trabalhar sobre o particular com rigor e originalidade.

Irracionalismo pós-moderno e cidadania

De maneira muito sumária, recordemos que a economia capitalista contemporânea se realiza a partir da desmontagem do modelo fordista e da concepção keynesiana. Ao modelo fordista, a economia contrapõe a dispersão e terceirização da produção, a centralização e velocidade espaço-temporal da informação, o abandono das noções de estoque e de durabilidade dos produtos, com predomínio dos descartáveis, a absorção da ciência e da tecnologia como forças produtivas e um modo de acumulação do capital que não opera por absorção crescente de toda a sociedade ao mercado da mão-de-obra e do consumo, mas, ao contrário, pela velocidade crescente do turn-over da mão-de-obra e pela exclusão crescente de grandes parcelas da sociedade desses dois mercados, criando, assim, bolsões de miséria e de riqueza que cindem o social numa divisão que não corresponde mais à antiga divisão das classes, retirando os referenciais que permitiam à classe trabalhadora organizar-se na luta de classes. À concepção keynesiana, contrapõe-se a visão monetarista da economia, a idéia de desregulação do mercado, acompanhada das idéias de competitividade e de Estado mínimo, afastado tanto da ação planejadora, no nível da economia, quanto da ação social, no nível dos serviços públicos, encaminhados progressivamente à privatização. Encolhimento do espaço público e alargamento do espaço privado marcam a nova fase do capitalismo.

A essa base material, corresponde, no plano da ideologia, o predomínio do fetichismo da mercadoria, particularmente a mais abstrata e enfeitiçada de todas: o dinheiro ou a moeda, fazendo do consumo e da busca de ganhos financeiros a aspiração mais forte, além de imprimir sua efígie naquele consumo e naquele ganho, isto é, a velocidade e a imagem do tempo como instante fugaz. A nova ideologia estabelece o privilégio da intimidade contra a sociedade, do narcisismo contra movimentos sociais e populares, da contingência e do acaso contra a necessidade natural e histórica, et pour cause, refugia-se na astrologia, na magia, nas fadas, duendes, cristais e pirâmides.

A nova ideologia declara o fim da modernidade ou da razão moderna, posta, agora, como mito iluminista, etnocêntrico, repressivo e totalitário. Ao fazê-lo, instaura a célebre crise dos paradigmas científicos. Fala-se numa crise da razão, resumível em alguns aspectos principais:

  • negação da existência de uma esfera da objetividade, substituída pela subjetividade narcísica desejante;

  • negação de que a razão possa conhecer uma continuidade temporal e captar o sentido imanente do tempo e da história, substituída por temporalidades descontínuas, locais e fragmentadas;

  • negação de que a razão possa captar núcleos de universalidade no real, posto, agora, como dispersão de diferenças e alteridades, reino das particularidades sem conexão;

  • negação da diferença entre Natureza e Cultura, tanto porque os movimentos ecológicos

    místicos tendem a antropomorfizar a Natureza, quanto porque a biogenética, a bioquímica e a engenharia genética determinam o cultural como mero efeito dos códigos genéticos naturais;

  • negação de que o poder se realize à distância do social, através de instituições que lhe são próprias, fundadas tanto na lógica da luta de classes e da dominação, quanto nas ações emancipatórias. Em seu lugar, surgem as idéias de micropoderes capilares, que disciplinam a sociedade, e políticas que se realizam sem as mediações institucionais, resultando, no primeiro caso, em ações fragmentadas que terminam em meras demandas, e, no segundo, em reforço dos populismos e dos fascismos.

Diante desse quadro, torna-se incompreensível que a USP, auto-colocada como a primeira e mais excelente universidade do país, não realize atividades docentes, de pesquisa e de discussões interdisciplinares voltadas para estas questões que afetam todos os campos do conhecimento. A docência se submete ao consumismo estudantil, à pesquisa, aos imperativos competitivos do mercado, às discussões, às lutas dos interesses conflitantes cuja origem e sentido não são objeto de análise, mas de aceitação passiva.

Inúmeras conseqüências desse alheamento poderiam ser apontadas. Pretendemos, porém, assinalar apenas uma delas, clara e imediatamente política.

Sabemos que a democracia não é um simples regime político, mas uma forma da existência social fundada nas idéias e práticas do conflito e da contradição, na igualdade perante a lei e perante a opinião pública, na representação e participação nas decisões coletivas, no alargamento da esfera pública e no estímulo a contrapoderes sociais que limitem, regulem e transformem o poder estatal. Longe de ser, como desejariam os cientistas políticos neoliberais, a forma política do consenso e do equilíbrio, a democracia é a única forma política cuja peculiaridade e grandeza está no fato de considerar conflitos, oposições, desequilíbrios e contradições legítimos e o coração pulsante do social e do político. Essas características da democracia derivam de uma outra, fundadora dessa forma sócio-política: a idéia dos direitos e da criação de novos direitos, ampliando a noção clássica de cidadania para alcançar a esfera da economia, da cultura e do todo social. As lutas democráticas, contrariando a lógica do liberalismo clássico, foram sempre lutas populares e sociais por direitos novos, tornando a democracia uma forma político-social eminentemente histórica, pois continuamente transformada pelas conquistas e pelo reconhecimento de novos direitos.

Um direito diferencia-se de uma carência, de um privilégio e de um interesse. Carência e privilégio são, por definição, particulares e específicos, não podendo generalizar-se em interesses comuns nem transformar-se em direitos universais. Por este motivo, satisfazer carências e quebrar privilégios é pré-condição da democracia e não a própria democracia, uma vez que esta opera com o princípio da igualdade e da universalidade. Interesses são gerais, referindo-se a grupos e classes sociais que definem seu modo de inserção na sociedade, seus antagonismos e diferenças no campo da generalidade da divisão social. Direitos são universais, seja porque são os mesmos para todos, seja porque são universalmente reconhecidos quando explicitam diversidades (de gênero, religião, etnia, sexualidade etc).

Ora, a forma atual do capitalismo opera gerando carências crescentes — os bolsões de excluídos e desorganizados — e privilégios crescentes — os bolsões de riqueza — e tende a apresentar estes últimos como interesses gerais, dissolvendo a noção democrática da universalidade dos direitos na particularidade de privilégios generalizados como interesses. Em outras palavras, a lógica neoliberal é internamente contrária à lógica democrática.

Se assim é, temos visto as conseqüências da absorção passiva do neoliberalismo pela USP. Assim, a proposta da universidade paga pelos mais ricos, aparentemente igualitária e justa, esconde o fato de que o direito à educação se transforma em privilégio dos ricos e benemerência para os carentes (resolve-se o efeito, abandonando-se a gênese do problema). A proposta da universidade prioritariamente financiada pelas empresas, liga a pesquisa científico-tecnológica aos interesses específicos de grupos e do mercado, deixando de lado o papel da pesquisa pública, voltada para os direitos de toda a sociedade. A idéia da avaliação segundo critérios de produtividade, eficácia e competitividade transforma a natureza conflitiva e antagônica da democracia, estimuladora de novos direitos, em luta mortal dos interesses, fazendo com que a cisão universitária surja como cisão dos interesses e, sobretudo, fazendo com que os opositores à universidade neoliberal caiam na armadilha do neoliberalismo, uma vez que se sentem forçados, pelas condições econômicas, a centrar suas lutas nas questões salariais e nos interesses da categoria. Em outras palavras, dois corporativismos encontram-se em choque na USP: o das entidades ou corporações empresariais e financeiras e o das associações ou corporações de professores e funcionários. Os critérios de tempo da produção acadêmica, empregados para a avaliação universitária, incorporam, sem perceber, a velocidade e a fugacidade do mercado de consumo e da moda. O menosprezo pela docência indica menosprezo pela melhoria da qualidade em todos os graus do ensino, impedindo que a escola pública seja garantidora de um dos direitos fundamentais da cidadania, e, pior, tenta-se corrigir a injustiça atual do acesso à USP por meio da escola pública paga e benemerente.

A título de exemplo, a respeito de alguns problemas postos pelos indicadores existentes, menciono:

  • congressos e seminários: em geral, sobretudo quando não são pequenos colóquios e seminários específicos, os acadêmicos vão para fazer relações profissionais de intercâmbio e não para apresentar trabalhos originais e de fôlego — não é um bom critério de aferição;

  • na área de filosofia

    pega mal publicar muito — significa ou que está reciclando artigos ou que há pouco pensamento, pouca pesquisa, pouca reflexão. Ninguém tem grandes e novas idéias anualmente — não é um bom critério;

  • nas humanidades, os livros, mesmo os ensaísticos, são mais importantes do que os artigos isolados e o tempo para preparar e publicar um livro é muito maior do que para artigos — é inadequado o prazo de três anos para um livro, a menos que sejam coletâneas de artigos já publicados esparsamente;

  • o mercado editorial brasileiro é muito precário, com graves problemas técnicos para a edição e, sobretudo, para a distribuição; portanto, o pequeno número de livros e revista não indica que não houve pesquisa, e sim que é possível não haver verba para publicar a revista e, no caso do livro, o autor pode estar

    na fila de espera de uma editora sem ter idéia do prazo quanto à espera — o critério da publicação pode ser abstrato quando não leva em conta as condições editoriais concretas;

  • em certas áreas, como na de filosofia por exemplo, um bom doutorado deve ser feito em cinco anos; infelizmente, o uso do critério norte-americano (três anos, em média) prejudica a qualidade da produção;

  • problemas graves de infra-estrutura: bibliotecas, laboratórios, instrumentos de precisão, material para trabalho de campo, computadores etc.; a deficiência e carência são tão grandes que a maioria dos universitários já nem as percebe e sente-se satisfeita com o que tem;

  • preparo dos estudantes: com o segundo grau tal como é, quem está contente com o nível dos estudantes? O que se pode fazer numa graduação em que os estudantes não estão preparados para a vida universitária e em instituições nas quais não há condições de trabalho adequadas? A qualidade da docência decai quando precisa adaptar-se ao nível em que os estudantes chegam à universidade; em lugar de uma excelente graduação que permita preparar uma boa pós-graduação, o curso tende a ser um colegial avançado e a pós, a antiga graduação — omitir na avaliação da qualidade da docência e da pesquisa a situação dos primeiro e segundo graus também é uma abstração que distorce os resultados;

  • critérios de financiamentos: embora tenha havido grande melhoria na decisão para financiamentos, ainda existem os casos de bolsa em Paris para doutoramento sobre os engenhos de açúcar; bolsa em Londres para doutoramento sobre imigração italiana para o Brasil; bolsa para doutoramento nos USA sobre movimentos populares — em suma: critério coronelístico de uso dos recursos; • as burocracias das agências de financiamento consomem mais da metade dos recursos para sua auto-reprodução, de tal modo que recursos preciosos para criar infra-estrutura em universidades que desejam estimular a pesquisa e para auxílios individuais ou para grupos tornam-se escassos — além disso, as agências financiadoras tendem a uma rotina que gera não-senso; por exemplo, uma agência exigiu exame de habilitação em língua estrangeira para uma bolsista que ia fazer pesquisa em Portugal!;

  • como a forma atual do capitalismo opera com a terceirização e com a alta rotatividade de bens e mão-de-obra, a tendência de todas as formas de trabalho — universitárias ou não — é o individualismo extremamente competitivo e que se realiza sob duas formas principais, no caso universitário: ou o uso e abuso da patronagem (é o prestígio de alguém mais velho na carreira que permite o trabalho de um mais jovem, numa relação de clientela) ou a formação de núcleos autônomos que fragmentam a universidade — em geral, acha-se isto muito bom e fala-se em pluralismo e diversificação, quando na verdade se tem clientelismo acadêmico, individualismo competitivo e fragmentação dos trabalhos acadêmicos.

O que tem faltado nas avaliações sobre a excelência acadêmica? Entre outras coisas:

  • histórico do que aconteceu com o primeiro e o segundo graus durante o milagre e seus efeitos sobre todo o trabalho universitário;

  • histórico das causas de criação da maioria das universidades federais durante a ditadura: para satisfazer ao desejo de prestígio de caciques e oligarcas locais que empregam nelas seus apadrinhados (lembrar o que Quércia-Fleury fizeram com a Unesp, absorvendo faculdades privadas de baixo nível) e as conseqüências tanto para os que desejam transformá-las em universidades verdadeiras e entram em desespero, quanto para os que nelas se empoleiraram definitivamente, bloqueando o esforço dos primeiros e desconhecendo os critérios mínimos da atividade universitária;

  • avaliação das agências de financiamento;

  • diversificação dos critérios avaliativos: por exemplo, nas áreas de ciências básicas — exatas, naturais, humanas e filosofia — o intercâmbio internacional é muito importante, mas seu grau de importância, de necessidade e de intensidade não é o mesmo em cada uma delas; se, para um químico ou um físico, é essencial ter sua pesquisa imeditamente publicada em periódicos internacionais, no caso das humanas, dependendo do assunto, a urgência não é tão grande, sendo muito mais importante torná-la imediatamente conhecida no Brasil — se a publicação internacional for um critério decisivo, como julgam alguns, a relevância de pesquisas básicas locais se perde;

  • perversidade de alguns critérios: exemplo: o número de citações de um trabalho é um bom indicador da relevância e qualidade da pesquisa. Resultado: como este critério passa a servir para determinar financiamentos, cargos, empregos melhores, os universitários norte-americanos passaram a duas atitudes: formar

    grupos de citação recíproca e a

    reciclar artigos para serem citados novamente; mas, muito pior, passaram a reduzir e restringir as áreas de pesquisa, mantendo apenas as já existentes, pois quando um campo novo está sendo aberto, não há como ter citações dos trabalhos porque são pioneiros e não há muita gente pesquisando o assunto — o critério da citação, que poderia ser um bom indicador, acaba oscilando entre a picaretagem e o modismo.

De modo muito esquemático, gostaria de propor algumas perguntas e algumas respostas, enfatizando a idéia de excelência qualitativa da docência e da pesquisa.

Marilena Chauí é professora do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 1994
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