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Marcelo Damy: revolução no ensino da Física

DEPOIMENTOS

Marcelo Damy: revolução no ensino da Física

Estudos Avançados — Antes da criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras o senhor cursava a Politécnica. Por que abandonou a engenharia e seguiu o curso de Física?

Marcelo Damy — Sempre gostei muito de Física. Isso desde o o Ginásio do Estado, em Campinas. Lá, fui aluno do professor Aníbal Freitas, um apaixonado pela Física, que ilustrava suas aulas com experiências e considerações muito importantes. Tive a atenção despertada para a matéria mas já gostava de Física desde o primário. Nessa época, quando estava me preparando para o exame de admissão ao Ginásio do Estado, meu pai deu-me uma coleção de livros que teve influência muito grande na minha geração. Era o antigo Tesouro da Juventude. Seguindo as sugestões dessa coleção, eu construía os aparelhinhos, entre eles, um higrômetro. Depois comecei a mexer também com Química. Sentia grande atração por eletricidade, sobretudo porque, nessa época, por volta de 1926-1928, o rádio começou a invadir o Brasil.

Naquela ocasião, só se estudava Ciência — sobretudo Física, Química e Matemática, com alguma profundidade — na Escola Politécnica. Como eu gostava de eletricidade, resolvi fazer o curso de engenharia elétrica. Ao fim do terceiro ano, em 1934, surpreendeu-me o surgimento da Faculdade de Filosofia. A cadeira de Física, da Politécnica, estava vaga, sendo preenchida por alguns professores contratados, como o engenheiro Francisco Gayotto, excelente professor de Física Clássica, mais tarde substituído por Antônio Soares Romeu, que era professor do Ginásio do Estado — também engenheiro, um homem culto. Na Química tínhamos também um bom professor, o engenheiro Eduardo Ribeiro da Costa, formado pela Escola de Minas, de Ouro Preto — MG. Em Matemática, havia outro excelente professor, Otávio Monteiro de Camargo, engenheiro formado pela Politécnica, que havia passado longos anos na França, aperfeiçoando seus conhecimentos.

Todos os meus colegas da Poli foram influenciados pelo professor Camargo, um homem de inteligência multiforme. Essa influência se manifestava em conversas depois das aulas, nos intervalos e, com freqüência, no bonde. Eu morava no Brooklin. Tomava o bonde Santo Amaro, descia em Vila Mariana. No caminho, o bonde apanhava outros colegas — entre os quais José Carlos de Figueiredo Ferraz e Abraão de Morais. Descíamos no largo Ana Rosa para esperar o da Ponte Grande, que nos conduzia até a Politécnica. O professor Camargo, com freqüência, ia à Politécnica no mesmo bonde. Como era um homem afável, vínhamos conversando. Ele foi a primeira pessoa que chamou a minha atenção para aspectos da Física Moderna, que nunca haviam sido objeto de consideração pelos professores de Física. Então, passamos a ter conhecimento dos trabalhos de Einstein, Eddington, Bertrand Russel... Era apaixonado por Astronomia e a Astrofísica, que naquela época tiveram um surto de desenvolvimento enorme, a última graças ao trabalho de Eddington — a rigor, o criador da Astrofísica. Posteriormente, tive a felicidade de ser seu aluno, na Universidade de Cambridge.

Durante o curso na Politécnica tive excelentes professores, como Francisco Emídio da Fonseca Teles, engenheiro brasileiro, formado na Universidade de Louvain, que ministrava aulas no curso de eletricidade, magnetismo e motores elétricos. Vivíamos nesse ambiente de aprender a parte mais tecnológica da Física, importante para um futuro engenheiro.

A criação da Faculdade de Filosofia

Em 1934, quando foi criada a Faculdade de Filosofia, havia o problema de se dar alunos aos professores estrangeiros que haviam sido contratados. O que se fez? Os professores brasileiros da Politécnica foram dispensados. Wataghin, substituiu o professor Gayotto e Fantappié, o professor Monteiro de Camargo. Passamos a assistir às aulas no curso de engenharia, comum aos alunos da Faculdade de Filosofia, dos professores Wataghin, Fantappié e Albanese, com uma dificuldade básica: as aulas eram ministradas em italiano, uma disciplina optativa do curso ginasial daquela época. Nos velhos tempos do Ginásio do Estado, em Campinas, tínhamos cursos de inglês e de francês, ministrados com profundidade e rigor, pois, no 3° ano de ginásio, os livros de texto eram franceses e consultávamos livros ingleses que líamos sem grande dificuldade.

Como Mário Schenberg, Júlio Rabim, José Miguel Lauande, Cândido da Silva Dias, seguimos outros cursos que os professores Wataghin e Fantappié davam, além do curso da Politécnica. Alguns de meus colegas da Poli matricularam-se na Faculdade de Filosofia para fazer os dois cursos simultaneamente. Segui o curso como ouvinte. Quando foram realizados os exames dessas disciplinas (todos orais) fui assistir para ver como meus colegas iriam se sair. Wataghin, que me via sempre nas aulas e não guardava bem o nome de todos os alunos, porque eram muitos, dirigiu-se a mim e disse: "venha você". Fui. Ele inquiriu-me e disse que eu havia ido muito bem. Esclareci, então, que não era seu aluno, apenas ouvinte. Ele me disse que eu tinha jeito para a Física e gostaria que eu fizesse o curso, matriculando-me na Faculdade, para seguir as outras disciplinas. Respondi que isso não era possível porque havia terminado o 3° ano da Politécnica, e só dependia de mais dois anos para me formar. Naquele tempo eu trabalhava, para poder estudar, em um cartório de registro de imóveis e dava aulas particulares de Matemática e Física. Consertava aparelhos de rádio para poder sobreviver. Por isso, disse a ele que não tinha condições de esperar vários anos para me formar porque, inclusive, tinha o compromisso de auxiliar minha família.

Wataghin, então, fez a seguinte proposta:"como você assistiu a todos os cursos fundamentais na Politécnica como ouvinte, vou estudar a possibilidade de você fazer todos os exames correspondentes aos três anos da Faculdade num período curto, de um ou dois meses. Aí você se forma e fica sendo meu assistente". Aceitei. Fui dispensado daqueles exames que já havia feito das cadeiras comuns com a Politécnica e tive de fazer os outros num período de dois meses. Foi o período em que mais estudei na vida. Tinha de trabalhar, freqüentar as aulas e, às vezes, ficava tão cansado que chegava a cochilar no estribo do bonde. Mas, fiz os exames, fui muito bem e comecei a trabalhar com Wataghin, isso durante dois anos — 1936 e 37. No início de 1938, resolveu mandar-me para a Inglaterra. Fui para a Universidade de Cambridge.

Há uma série de fatos interessantes que presenciei, como aluno e como assistente do professor Wataghin. Durante o período em que fui seu aluno havia um clima de revolta entre os antigos professores, tanto da Escola Politécnica quanto da Faculdade de Medicina, que haviam sido afastados, bem como dos alunos que achavam que o curso não era próprio para engenheiro e sim para formar filósofos. Havia muita efervescência, e como acontece nos meios universitários, por trás de movimentos estudantis sempre há um professor que os instiga. Isso aconteceu naquela época na Faculdade de Medicina e na Escola Politécnica. Os alunos de Ciências Naturais foram expulsos da Medicina. E nós, da Politécnica, fomos confinados a uma pequena sala no sótão. O professor Wataghin tinha um laboratório montado e conseguiu do governo, com a influência de Júlio de Mesquita Filho, verbas para importar equipamento moderno. Um dia, quando chegamos em companhia de Wataguin à Politécnica, Mário Schenberg, eu e outro assistente, Fernando Jorge Larraboure, encontramos a sua mesa no corredor, os livros e os equipamentos no chão. Um servente da escola disse: "o senhor me desculpe, mas tivemos ordem de colocar seu equipamento e seus livros no corredor. E o senhor não pode entrar no laboratório. Agora está com o professor fulano de tal". Wataghin dirigiu-se ao diretor da Escola Politécnica. Este disse que os cursos tinham sido separados e que ele continuaria a ensinar na Faculdade de Filosofia. A Politécnica continuaria a dar os cursos com os seus professores e, desse modo, ofereceu a Wataghin uma sala no sótão do prédio principal. Nessa havia um quadro negro, um armário, cuja tampa estava no nível do batente das janelas, e seis cadeiras para os alunos. Wataghin tinha mesa, cadeira e dois armários para guardar os aparelhos; nós, seus assistentes, usávamos parte do balcão e as banquetas do laboratório.

Ao lado do balcão foi montada uma bancada na qual o técnico do laboratório de Física, Francisco Bentivoglio Guidolin, construía aparelhos para as pesquisas de raios cósmicos que começavam a ser realizadas. Quando Wataghin dava aulas, não podíamos falar e sequer o Bentivoglio trabalhar. Quando trabalhávamos, o fazíamos no meio de barulho de martelo, serra etc. Nesse ambiente permanecemos durante dois ou três anos, até que, em 1938, conseguiu-se alugar o prédio de uma antiga pensão, na avenida Tiradentes. Nele, e que o departamento começou realmente a se desenvolver.

No começo de 1938, vieram para cá os professores Giuseppe Occhialini, que passou a ter um lugar no balcão, e Luiz Cintra do Prado, professor de Física da Politécnica, que acabara de voltar de um estágio em Paris, no Instituto do Radium. Então, ficamos lá, cinco pessoas e mais professor Wataghin, trabalhando nessa pequena sala, com o mecânico, no local em que se ministravam aulas, funcionava a biblioteca, a oficina, a sala de estudos etc. Ali foram feitas as primeiras pesquisas de Física no Brasil, publicadas em revistas internacionais. As condições em que esses trabalhos foram realizados ilustram bem uma frase de Cannon, o grande fisiologista da Universidade de Harvard, que havia trabalhado também em condições precárias: "a natureza da gaiola não influi no modo de cantar do passarinho".

A revolução no ensino uspiano

EA - Por que foi de fundamental importância parei a USP e também para a modernização da Ciência no Brasil a vinda de professores estrangeiros para a Faculdade de Filosofia? Em que medida esses professores estrangeiros influenciaram a alteração nos métodos adotados no ensino superior e no trabalho de pesquisa?

MD — A revolução que houve foi fundamental, tanto na Matemática, quanto em Física, Química, Biologia e Ciências Humanas.. Até então, a influência que se tinha no Brasil era da França, na época o maior centro de cultura do mundo, inegavelmente superior à Inglaterra e à Alemanha. Os Estados Unidos eram subdesenvolvidos no mundo científico. A grande revolução que eles trouxeram foi conseqüência de terem vivido e sido formados em um meio cuja tradição era considerar a Ciência como algo vivo, que se desenvolve continuamente à custa de pesquisas. No Brasil não havia o regime de tempo integral no ensino superior. Grande parte dos professores era contratada por hora/aula, com exceção de alguns da Faculdade de Medicina. Na Escola Politécnica, por exemplo, não havia professores em regime de tempo integral. Eram engenheiros, autodidatas, que adquiriram muito conhecimento em decorrência de esforço próprio. Faltava-lhes, no entanto, a vivência num grande centro universitário no qual a pesquisa é fundamental. Somente o professor pesquisador pode ministrar um ensino de alto nível, capaz de formar alunos com a idéia de que Ciência é um organismo vivo e para o qual se pode dar uma contribuição. Naturalmente, um professor que é profissional de Engenharia divide sua preocupação entre esta e o magistério e não dispõe de tempo para fazer pesquisas. Além disso, naquela ocasião, não havia quem fizesse pesquisas em Física, que pudesse orientar os alunos.

Foi uma verdadeira revolução verificarmos a possibilidade de jovens brasileiros participarem do esforço pelo desenvolvimento científico, bem como a ocorrência de renovação dia a dia, sem nada ser definitivo. Verificamos também que o ensino de Física seria excelente, em padrões internacionais, para o fim do século XIX, pois aprendíamos a Física de 1800-1900. A Física da segunda metade do século XIX, entretanto, era totalmente desconhecida aqui. Não conhecíamos as equações de Maxwell. Não se ensinava eletrônica. Os aspectos mais profundos da Ciência, que eram conseqüência da mecânica quântica, por exemplo, totalmente desconhecida no país. O próprio conceito do átomo e de sua constituição, com núcleo e com elétrons circulando em órbitas, que é a concepção de Bohr, de 1913, não era ensinada no Brasil. Conhecíamos apenas a concepção do átomo de Leucipo.

EA — Wataghin trouxe a Física quântica?

MD — Wataghin trouxe tudo isso. Era um homem de imensa cultura. Em primeiro lugar, nos deu um curso de Física geral e experimental totalmente revolucionário, sob todos os aspectos. Quando Wataghin começou a ensinar vimos que aquilo era parte do curso obrigatório de formação nas universidades do exterior. Descobrimos um novo mundo e vimos que a Física era muito mais bonita do que se imaginava. Mais importante do que isso, vimos que havia aspectos, de importância fundamental para o próprio desenvolvimento da Ciência que estavam ao alcance de laboratórios pequenos, como o nosso. Esse foi um dos maiores méritos do professor Wataghin.

Ele iniciou as atividades da Física no Brasil escolhendo duas linhas básicas em pesquisa que existem em todo grande laboratório do exterior: uma linha experimental, com físicos que tivessem boa formação teórica, tendência para experiência e certa habilidade manual para construir aparelhos que seriam usados em pesquisas; em outro grupo, representado inicialmente por Mário Schenberg e, mais tarde, com a colaboração de Abraão de Morais, Walter Schützer, entre outros — fazia a Física puramente teórica, isto é, o estudo das teorias e dos fenômenos físicos por métodos matemáticos, baseados naturalmente na experiência dada pelos físicos experimentais. O meu grupo — de linha experimental — inicialmente foi constituído por mim e por Paulus Aulus Pompéia e , em 1938, contou com a colaboração do professor Occhialini, que dividia a orientação do grupo com Wataghin.

Wataghin era fundamentalmente um físico teórico, mas encorajou o início da física experimental. Contudo, o grande desenvolvimento da Física experimental começou a ter lugar em São Paulo com a vinda do professor Occhialini, a convite de Wataghin. Apesar de ser um físico teórico, possuía grande visão da parte experimental e sabia que a Física não poderia ser feita somente com lápis e papel, porque é preciso observar os fenômenos da Natureza. Nessa época (em 1938), o professor Occhialini integrava o melhor grupo experimental que existia na Inglaterra — o do professor Blackett, da Universidade de Cambridge. Nos, então, passamos a trabalhar com a melhor técnica do mundo. Esta dependia muito do trabalho do experimentador, que tinha de projetar e construir seus aparelhos. Nenhuma fábrica produzia tais aparelhos, nós mesmos tínhamos de fazê-los. Assim, aprendemos a técnica de vácuo e a do trabalho mecânico de fazer as partes de metal do contador. Elas eram feitas pelo Bentivoglio, que nos ensinou a trabalhar com torno, com metais, a fazer soldas etc. Esses contadores funcionavam à base de uma eletrônica bastante sofisticada para a época. Nessa parte, eu levava vantagem sobre meus colegas, porque havia trabalhado em rádio desde o tempo de ginásio. Assim, juntamos nossas forças e pudemos trabalhar no Brasil com técnicas comparáveis às melhores do exterior. Posteriormente, na Inglaterra, aperfeiçoei essa técnica e, quando voltei, no início de 1940, foram organizadas as grandes pesquisas que nos conduziram à descoberta da produção de mesons simultâneos pela radiação cósmica, descoberta fundamental feita em São Paulo.

Estagiando no exterior

EA — Na sua formação parece que foram muito importantes esses estágios, cursos, que o senhor fez no exterior. Como isso pesou na sua formação como físico?

MD — Foi fundamental. A viagem para a Inglaterra foi conseguida por influência do professor Wataghin junto ao governo do estado e do consulado inglês. Ele também havia estudado em Cambridge, onde fez estágios de pós-doutoramento na universidade em que havia o maior centro de Física do mundo. Achou que eu deveria ir para Cambridge aprender técnicas experimentais novas, sendo muito influenciado por Occhialini, que viera de lá.

Quando cheguei à Inglaterra, fui entrevistado antes de ser aceito como estudante de pesquisas. Aí há um aspecto curioso. Em primeiro lugar, conversei com alguns professores que procuraram conhecer o quanto eu sabia da Física Moderna, da Física Clássica etc. Nesses exames fui aprovado. Então, o diretor do laboratório, Sir William L. Braggs, Prêmio Nobel de Física me disse: "Muito bem, soube que você tem uma base teórica boa... Agora, para trabalhar num laboratório e ser aceito como estudante preciso conhecer o que você sabe da parte experimental". Perguntou se eu seria capaz de trabalhar num torno ou numa fresa. Indaguei: "Mas, por quê?" Ele respondeu: "Temos aqui 40 a 50 estudantes de pesquisa por ano e a Universidade não pode pôr um único mecânico, um soprador de vidro à disposição de cada um. Aqui o físico faz seus próprios aparelhos. Essa é a tradição inglesa". Disse a ele que sabia trabalhar em um torno, razoavelmente e em vidro fazia alguma coisa mas não muito bem. Ele retrucou: "você vai se submeter a um exame com o chefe da oficina mecânica e com o soprador de vidro" — isso depois de ter sido aprovado na parte teórica!... Fui ao chefe da oficina mecânica. Ele disse que eu precisava fazer um estágio para trabalhar com precisão. Passei uns 20 dias lá, trabalhando na oficina, e aprendi essas técnicas. Depois tive de fazer um parafuso helicoidal e este foi aprovado pelo chefe da oficina. À tarde, eu ficava na oficina mecânica e, no período da manhã, na de vidro.

A contribuição da USP durante a guerra

EA — É importante agora, quando comemoramos os 60 anos da USP, relembrar um fato que as novas gerações não conhecem, que é a contribuição da USP, particularmente do Departamento de Física, durante a guerra, ao ponto de depois da guerra, a USP receber a medalha de Mérito Naval. O senhor poderia recapitular esse fato?

MD — Permaneci na Inglaterra até o início da guerra. O professor Pompéia, nessa ocasião, encontrava-se nos Estados Unidos, na Universidade de Chicago, trabalhando com o professor Compton, Prêmio Nobel de Física. Quando o Brasil entrou na guerra, nós dois acabávamos de voltar. O Exército e a Marinha tinham problemas extremamente sérios. Nosso equipamento militar era, na sua quase totalidade, de origem germânica, inglesa ou francesa. Para a munição dos fuzis o problema já havia sido resolvido, desde a Revolução de 32. Mas para os canhões o problema era mais sério e afetava também a Marinha por causa das bombas de profundidade e dos canhões navais. O Exército tinha também problemas de comunicações, exigindo transmissores de rádio de onda curta, que não se propagasse a grandes distâncias, para que as bases pudessem se comunicar com navios e ter informações, por exemplo, da presença de submarinos e de navios na superfície. Precisava, portanto, de aparelhos portáteis que pudessem, por exemplo, ser montados num jipe e funcionar com baterias. Esses foram os primeiros desafios que resolvemos.

Logo depois, estabelecemos contato com o antigo Departamento de rádio da Marinha, através do comandante Reis que havia procurado a Universidade de São Paulo, cujo reitor era o professor Jorge Americano. Logo que o Brasil entrou na guerra, Jorge Americano instituiu na USP os Fundos Universitários de Pesquisa, que deram origem à Fapesp. Ele conseguia recursos das indústrias para custear pesquisas de interesse do Brasil. A Marinha tinha problemas fundamentais na época: nossos navios, inclusive os de guerra, navegavam completamente cegos, sem qualquer método de detecção de submarinos e de navios de superfície. Então, o Brasil ficou sem poder navegar. E ficar sem navegar em 1942 significava não poder trazer açúcar do Norte e não transportar trigo e demais mercadorias para outras regiões do país.

Ouvimos as explicações da Marinha e dissemos que nenhum de nós jamais havia visto de perto um submarino e muito menos um aparelho de detecção de submarino. "Fazemos ciência pura — dissemos — trabalhamos em raios cósmicos. O que podemos prometer é que vamos estudar": o que aprendemos na ciência pura é que nela parte-se da existência de um fenômeno e o físico procura um método de pôr esse fenômeno em evidência, de descobri-lo e estudar suas propriedades. A vantagem que o físico leva sobre o engenheiro é que este trabalha na física aplicada, nos problemas físicos já de âmbito aplicativo. Fomos procurar a bibliografia existente depois da Primeira Guerra Mundial, pois, nessa época, já existiam equipamentos precários de detecção de submarinos e navios de superfície. Nossas primeiras tentativas foram baseadas na construção de um microfone que apanhasse os ruídos produzidos pela rotação das hélices na água. Para produzir sons na água e detectá-los à distância, precisávamos de um laboratório. O professor Jorge Americano, que era um homem de sete instrumentos, decidiu projetar e construir para nós um laboratório na represa de Santo Amaro.

Depois descobrimos que no fim da Primeira Guerra o grande físico francês Langevin havia desenvolvido um método de localização por ultra-som. A detecção era feita com cristais de quartzo, lançando mão do efeito piezelétrico, descoberto por Pierre Curie. Após essa época foram descobertos outros métodos de se produzir a piezeletricidade, por meio de cristais artificiais, os cristais de sal de Rochelle. Para construir um detector de sal de Rochelle tivemos de produzir os cristais em laboratório, cortá-los no ângulo certo, revesti-los e colocá-los de tal forma que resistissem às ondas de pressão no navio devido às bombas de profundidade. Essas ondas eram tão fortes que um aparelho frágil seria destruído. Fizemos esses detectores com o auxilio de colegas da Química e Geologia, que nos ajudaram sobre a produção e a orientação dos cristais. Depois, acabamos criando os cristais, cortando e revestindo no próprio laboratório de Física. Além disso necessitávamos de amplificadores eletrônicos para corrente alternada de alta freqüência. Outro problema para a época era o da construção de geradores para corrente alternada, porém, este foi solucionado por uma indústria pequena, mas de excelente qualidade, de um engenheiro húngaro chamado Kessler. Nasceu, assim, o detector de submarinos, que funcionava com cristais de sal de Rochelle e com tubos de níquel colocados abaixo da quilha do navio. Aí surgiram outros problemas. Era necessário furar o casco do navio, ter um dispositivo telescópico para baixar esse aparelho em profundidade. Era preciso então usar materiais que resistissem à pressão da água e não sofressem corrosão. Surgiu, assim, a necessidade de se fazer aço inoxidável. Pela primeira vez o aço inoxidável foi feito no Brasil, pelo IPT. Como não se fazia na época nada em metalurgia de níquel no Brasil, procuramos o apoio da Laminação Nacional de Metais. Eles laminaram o níquel e, depois, com o auxílio de uma firma de fabricação de móveis de aço, conseguimos fazer o tubo. Essa empresa de móveis de aço era dirigida pelo engenheiro Aldo Magnelli, que havia trabalhado em Roma em Física experimental, sob a orientação de Enrico Fermi — o criador da primeira reação em cadeia com o urânio, em Chicago.

As pesquisas do pós-guerra

EA — Depois do fim da guerra, quais as pesquisas mais importantes do Departamento de Física da USP?

MD — A Segunda Guerra Mundial repercutiu em todos os ramos da Ciência e da Física em particular. Por exemplo, foi depois dela que um capítulo importante da Física, hoje chamado de Física do estado sólido ou Física da matéria condensada, passou a ter uma enorme importância pelas aplicações que surgiram durante a guerra. Outro exemplo surgiu com o esforço feito para a obtenção da primeira bomba atômica: a necessidade de se realizar um número de cálculos incrivelmente longo e trabalhoso pelos métodos de então, conduziu à descoberta do computador, baseado na evolução da eletrônica, desenvolvido sobretudo nos laboratórios de Física. Conseqüência do esforço decorrente da guerra foi o progresso dessas tecnologias novas, mostrando a importância do conhecimento da Física dos semicondutores e da Física do estado sólido. Isso continua em franco desenvolvimento e hoje é um dos ramos mais ativos da Física.

Com o término da guerra, a Física encontrou-se de uma hora para outra diante de um problema importante. De um lado, a formação de físicos foi altamente prejudicada, pois grande parte dos jovens encontrava-se envolvida com o serviço militar com a aplicação dos seus conhecimentos para fins bélicos. Como conseqüência desse fato, a pesquisa não teve grande desenvolvimento. Logo após a guerra o jovem pesquisador passou a encontrar dificuldades dada a instituição do segredo sobre as pesquisas. Por decisão dos países que venceram a querra, todos os laboratórios deveriam tomar cuidado extremo para não publicarem qualquer trabalho que pudesse ter aplicações de natureza bélica. Assim, criou-se no mundo inteiro imensa pressão contra os países aliados, para que tornassem públicos pelo menos os fatos científicos de natureza fundamental. Isso foi feito graças ao esforço de alguns países como França, Noruega e Suécia. Esses países tiveram a idéia de desenvolver essa tecnologia, que estava sendo subtraída ao conhecimento do mundo, e passaram a publicar em revistas científicas dados considerados secretos pelos aliados. Pouco tempo depois, Noruega e Holanda fizeram um pequeno reator e começaram a publicar resultados. A França também. Os países aliados, fundamentalmente os Estados Unidos, maior propugnador dessa política do segredo, verificaram que se não publicassem alguns segredos, dentro de pouco tempo não teriam mais nada para contar a alguém, que os demais já não tivessem descoberto. Então, para manter a prioridade e a importância da sua contribuição nesse campo, criaram o Programa de Átomos para a Paz. Ao mesmo tempo, alguns físicos americanos mais independentes que haviam participado do Projeto Manhattan, resolveram abrir o jogo e começaram a publicar trabalhos em livros. Alguns foram violentamente perseguidos, perderam seus lugares nas universidades, mas, assim, os dados fundamentais foram sendo divulgados; outros, porém, permaneceram secretos, como o são até hoje. Todavia, como as leis da natureza estão abertas a quem queira investigá-las, no Brasil estudamos os problemas fundamentais de uma reação em cadeia, e os resolvemos com tecnologia nacional, como o fez a Marinha, descobrindo um método de enriquecimento de urânio utilizando ultracentrífugas originais, construídas aqui, com material nacional, e que funcionam melhor do que as de outros países que publicaram os resultados obtidos com as suas.

Defrontávamo-nos, então, com duas coisas fundamentais: a tecnologia de observação de partículas nucleares havia se desenvolvido pelas necessidades impostas no esforço de se produzir a bomba atômica, mas inúmeros problemas da Física Nuclear não foram abordados porque não implicavam conseqüências militares. No pós-guerra o grupo brasileiro de pesquisa compreendeu que, para trabalhar na radiação cósmica, era preciso aprender a investir em tecnologias novas, o que tornava nossas técnicas ultrapassadas. Assim, não teria sentido continuar a trabalhar com as velhas técnicas que nos conduziram, por exemplo, à descoberta do meson. Nessa ocasião, surgiu-nos uma boa oportunidade, em reconhecimento à contribuição que demos aos aliados durante a guerra. A Fundação Rockfeller resolveu nos fazer uma doação de US$ 75 mil para que instalássemos no Brasil um acelerador para estudos de Física Nuclear. No final de 1945, a convite da Fundação Rockfeller, o professor Wataghin e eu fomos aos Estados Unidos e visitamos vários laboratórios. A maior parte das universidades estava ainda sujeita ao regime de segredo. O professor Compton encarregou-se de organizar o roteiro de nossa visita. Nossa atenção especial concentrou-se na Universidade de Illinois, onde foi posto em funcionamento, em 1941, o primeiro acelerador de elétrons — o bétatron. Só três universidades no mundo possuíam o bétatron — a de Illinois e a de Pensilvânia, nos Estados Unidos, e a de Saskatchevan, no Canadá. Assim, decidimos instalar um bétatron em São Paulo porque poderíamos competir com três dos melhores laboratórios do exterior num campo novo de pesquisas.

Coisas desse tipo demonstravam a inteligência de Wataghin, que o levou, por exemplo, a escolher raios cósmicos para se pesquisar aqui. Quando começamos a pesquisar raios cósmicos, em 1937, utilizávamos tecnologia de outros países e acabamos superando-a e descobrindo a produção múltipla de mesons. Wataghin abriu um campo de pesquisa em que se podia obter grandes resultados com pequenos investimentos. A aparelhagem, toda foi feita aqui, com material que comprávamos em São Paulo. Às vezes, eu ia, com Occhialini, adquirir material nas Lojas Americanas para produzir aparelhos visando à detecção de mesons da radiação cósmica. Resolveu-se, então, que se montaria o bétatron em São Paulo e coube a mim o estudo sobre a maneira de sua montagem, bem como a construção de todo o equipamento de comando.

EA — Em que época o Wataghin saiu do Brasil?

MD — Em 1949.

EA — Houve algum problema, não quis continuar e voltou para a Itália?

MD — Quando terminou a guerra, o governo italiano resolveu pagar os salários de todos os professores que estavam em missão no exterior, desde que voltassem para a Itália. Wataghin tinha família na Itália (mãe, irmã e irmão), a família da mulher, os dois filhos estudando lá, e ainda poderia receber cinco ou seis anos de salário, além de ter assegurado um lugar na universidade. Por isso voltou para Turim. Mas continuou sempre nosso amigo, tendo voltado ao Brasil por várias vezes.

EA — E a volta de Occhialini?

MD — O problema de Occhialini é um pouco mais complicado: ele era muito amigo de Blackett e sempre foi antifascista. Esse foi o motivo pelo qual ele veio ao Brasil e não quis permanecer na Itália, após a sua volta da Inglaterra. Continuou antifascista e sabia que na Itália não teria grandes possibilidades. Desejou voltar para a Inglaterra para ver os amigos e participar das pesquisas. Lá, acabou trabalhando, em Bristol, com o professor Powell, ganhador de um Premio Nobel, que, a meu ver, deveria ter sido dividido com Occhialini, pela descoberta do meson PI.

O ensino e a pesquisa da Física na atualidade

EA — Que indicações o senhor daria para as atividades de ensino e pesquisa da Física no Brasil, levando em conta nossas restrições devido ao custo desses equipamentos modernos? Como encaminhar a pesquisa e o ensino da Física no Brasil?

MD — São dois problemas fundamentais. O primeiro é o do ensino. Acho que cabem algumas críticas ao ensino da Física como está sendo feito. Mas essas críticas não são peculiares à Universidade; atingem também o ensino secundário que está em estado de calamidade inacreditável. Só quem tem contatos diários com alunos, como eu, é que pode avaliar. Recebo, no 4° ano, alunos que não sabem escrever e estão mentalmente ilhados do resto do mundo por desconhecer línguas como o inglês e o francês. O pior é que algumas vezes encontramos muitos professores doutores, mas não muito doutos.

A outra questão é o estudo das linhas de pesquisa que deveriam ser adotadas para o desenvolvimento do país. Esse é um problema extremamente difícil, pois a experiência internacional mostrou que a Ciência não pode ser dirigida; não é possível se pretender que um pesquisador trabalhe em determinado campo que não seja o de sua predileção. O pesquisador só pode trabalhar e produzir fazendo aquilo que gosta. A experiência internacional mostra que essa tentativa de se dirigir a pesquisa tem conduzido a resultados que não são proporcionais aos investimentos feitos em material humano e em capital. Esse problema vem sendo discutido há muitos anos e há uma série de cartas publicadas no Boletim dos Cientistas Atômicos, na Revista da Associação Internacional dos Trabalhadores Científicos e pela Science.

Houve uma discussão interessante entre o professor Fred Hoyle, que é o maior astrofísico vivo, e o diretor do Laboratório Nacional de Oak Ridge (USA), Alvin Weinberg. Quando iniciou-se a época dos grandes aceleradores — cada universidade começou a fazer uma máquina um pouco maior do que a outra. E a época chamada de better and bigger elephants. A preocupação era fazer um acelerador que desse mais energia de que outro já existente, para fazer ciência de quase rotina. Quando se projetava o grande acelerador de Batavia (USA), Hoyle dizia que a Ciência sempre progrediu sem que recursos maciços de dinheiro fossem aplicados. Ele dizia mais ou menos o seguinte: "Não defendo a teoria de que a miséria produz a descoberta, mas o excesso de dinheiro certamente não a produz, porque a Ciência engorda e fica preguiçosa". O professor Weinberg concordou com esse argumento e desenvolveu "a teoria das três moléstias da Ciência contemporânea: argentite, propagandite e burocratite." A argentite vem da necessidade de os laboratórios lutarem por dinheiro. É claro que o laboratório que conseguir mais irá fazer um elefante maior. Então, é muito importante que os físicos se empenhem com políticos e reúnam forças e influência para conseguir uma grande cota. Em lugar de o pesquisador preocupar-se em fazer a pesquisa fundamental, ele intenciona possuir uma máquina maior, que certamente lhe dará um resultado de rotina. Isso é contra a criatividade e a originalidade na Ciência.

A segunda moléstia é a burocratite. Um organismo que financia pesquisas precisa ter certeza absoluta de que o seu dinheiro é bem aplicado. Então se organiza a burocracia. O indivíduo tem de fazer relatórios convincentes, prestar contas etc. Mas é preciso também que o diretor desse centro mostre que aplicou bem o dinheiro, de outra forma, no ano seguinte, as subvenções são interrompidas, ou fecha-se o centro por malversação da verba subvencionada. Na aplicação desses recursos para o desenvolvimento da Ciência ele precisa se assegurar de que a proposta de pesquisas apresentada vai produzir aqueles resultados previstos no prazo fixado. Ora, a Ciência é imprevisível. Tudo que pode ser previsível em prazo determinado não implica uma nova descoberta, pois ninguém pode assegurar que vai descobrir amanhã, uma coisa ainda desconhecida. Ademais o órgão que financia e recebe esses relatórios precisa mostrá-los às autoridades que dão o dinheiro.

A propagandite vem da necessidade de sobrevivência do organismo financiador e do laboratório financiado, trabalhando conjuntamente — um para mostrar que aplicou bem o dinheiro; outro, demonstrando que o laboratório realmente correspondeu às expectativas.

EA — É importante reciclar no exterior nossos pesquisadores?

MD — Acho que devemos reviver a experiência trazida por Wataghin, Occhialini e pelos professores estrangeiros de Matemática e Ciências Sociais, entre outros, no sentido de se exigir dos alunos cada vez um nível mais alto e fazer com que o ensino acompanhe o desenvolvimento de cada ramo da Ciência porque ela não é estática. Estamos nos atrasando cada vez mais. Outro aspecto fundamental que deve ser enfatizado é a luta que Wataghin e todos os outros venceram para estimular a pesquisa pura: dar a um jovem talentoso a oportunidade de trabalhar naquilo que ele gosta é o único modo de produzir coisas novas. Depois da Segunda Guerra Mundial, o intercâmbio científico com o exterior tem sido tão grande que raramente se encontra, em uma universidade, professores brasileiros que não tenham feito estágios e viagens ao exterior. Temos grande número de professores que podem dar cursos de alto nível, mas isso não dispensa dois aspectos: a ida periódica desses professores ao exterior, para a troca de idéias e a vinda periódica de pesquisadores de alto nível para colaborarem aqui. Não precisamos importar pesquisadores permanentes, mas trazê-los para cá durante algum tempo. Porque nenhum pesquisador de alto nível deixa as grandes oportunidades que existem no exterior para se radicar em um país como o Brasil, onde a Física está lutando com falta de verbas, o mesmo acontecendo com os outros setores das ciências exatas.

EA — Vários professores ligados à Física criticaram nosso sistema de ensino dizendo que os alunos perdem as suas energias em aprender um excesso de coisas e entram logo numa rotina de pós-graduação. Schenberg, como Leite Lopes e Lates, também, achavam que o aluno deve, o mais cedo possível, se jogar na pesquisa e não se incomodar muito com essa parte administrativa da Ciência, com os títulos e coisas do gênero.

MD — O Schenberg usava uma expressão muito boa. Dizia: "É preferível uma cabeça bem formada a uma cabeça cheia de idéias bem guardadas como um arquivo de museu". Quer dizer, não adianta o indivíduo conhecer uma porção de coisas se ele não sabe para que servem. É preferível o indivíduo ter uma cabeça bem-formada e aprofundar seus conhecimentos numa linha que seja produtiva. Essa é a coisa fundamental para desenvolvermos a Ciência. A idéia de pós-graduação no exterior sempre foi essa. O professor escolhe um aluno, com bacharelado em Ciências (ou em Letras), no qual ele aprende os fenômenos e as leis ou os instrumentos fundamentais, e o orienta para que possa utilizar sua criatividade, pondo-a em funcionamento para dar uma nova contribuição à Ciência ou à Arte, seja lá o que for. Para isso existem no exterior os cursos de pós-graduação, concebidos de maneira totalmente diferente do que foi feito aqui. Um curso de pós-graduação no exterior é geralmente livre, com uma série de disciplinas ministradas por diferentes professores. O aluno precisa somar um certo número de créditos para ser considerado apto para elaborar sua dissertação de mestrado ou sua tese de doutorado. Essas disciplinas podem ser díspares. Um indivíduo pode ser doutor em Física estudando, por exemplo, uma cadeira de Física, duas de Química e três de Biologia se ele quiser trabalhar na natureza dos impulsos elétricos produzidos por células. Porque quando observamos o progresso da Ciência em geral, sobretudo nos últimos 30 anos, há uma coisa muito curiosa — as grandes descobertas localizam-se na interface entre as Ciências. No Brasil, o aluno é obrigado a seguir um curso com disciplinas pré-determinadas que, muitas vezes, nada ou pouco têm a ver com o assunto que o preocupa.

A ligação do ensino com a pesquisa

EA — O senhor tem insistido em uma tese — a importância da ligação Ao ensino com a pesquisa. Poderia dizer alguma coisa sobre isso levando em conta inclusive que o senhor sempre soube fazer bem as duas coisas, ao mesmo tempo?

MD — Eu já disse, há cerca de três décadas, que a diferença existente entre um professor que não faz pesquisa e um aluno é que o primeiro estuda o livro na véspera e o outro no dia seguinte. O professor que pesquisa, ao ensinar um assunto qualquer do seu ramo de conhecimento, transmite sua experiência pessoal, pois com freqüência aquele capítulo já foi abordado por ele em uma das pesquisas que fez e para as quais teve que estudar o assunto profundamente, procurando tirar dali algum conhecimento que estava subjacente no texto dos livros e dos manuscritos de outras pesquisas. Então, quando o professor dá uma aula, ele faz mais do que repetir um livro, ele transmite ao aluno seu modo de ver aquele assunto. O problema fundamental é a atitude sempre alerta do professor na transmissão do assunto aos alunos. Esse foi um importante ensinamento que aprendi na Inglaterra. E preciso que o aluno tenha o espírito aberto para investigar tudo. Por isso é que é tão importante a pesquisa.

EA — Qual foi a maior influência científica que recebeu na Inglaterra? Com qual universidade inglesa o senhor se identificou?

MD — O pessoal que conheço melhor é o de Cambridge, onde vivi o tempo todo em que estive lá. Depois que voltei, visitei várias universidades e conheço professores que eram do meu tempo e que hoje estão espalhados pela Inglaterra inteira, pelo Canadá, e por outros países.

EA — Particularmente em Cambridge, o senhor se lembra de algum professor que o influenciou muito?

MD — Penso em uma gama de influências que recebi de inúmeras pessoas, em diversos países. Mas em Cambridge, em primeiro lugar, do excelente grupo de física nuclear que lá existia: o professor Bragg, Prêmio Nobel de Física, o professor Carmichael, que trabalhava em raios cósmicos; o professor Heitler, um físico teórico que se dedicava à física experimental e escreveu um livro sobre a teoria quântica da radiação, pois é o maior físico que se conhece nesse setor. Já citei o professor Hoyle, que também me influenciou muito. Outros, foram professor Curran, o maior especialista em descarga dos gases e detectores de partículas da Inglaterra; professor Dunworth, um físico nuclear de primeira ordem; professor Cockroft, Prêmio Nobel; professor Lewis, um fantástico físico nuclear que trabalhou com Rutherford e era o maior conhecedor de eletrônica que lá existia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 1994
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