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Diferentes formas da poesia resistência

RESUMO

Desde 1976, quando escreveu o ensaio “Poesia resistência”, Alfredo Bosi revisitou o tema, esclarecendo nuances e apontando as diferentes formas sob as quais o pensamento de resistência pode se manifestar. Nessas tentativas de exploração, a reflexão sobre o termo ideologia, e quanto ao que sejam as ideologias dominantes tem papel decisivo. O artigo relaciona as investigações de Bosi com uma pequena parte de um estudo comparado entre a poesia de Drummond e as canções de Bob Dylan, obras que frequentemente entram em tensão “com as ideologias dominantes no seu tempo ou, ainda mais dramaticamente, entram em tensão consigo mesmas” (Bosi, 2005, p.327), projetando desdobramentos e transformações do sentido original de poesia resistência como proposto por Bosi.

PALAVRAS-CHAVE:
Bosi; Resistência; Ideologia; Drummond; Bob Dylan

ABSTRACT

Since 1976, when he wrote the essay “Poesia Resistência”, Alfredo Bosi has revisited that subject, clarifying nuances and pointing the various ways resistance thinking may take shape. On those investigative efforts, his thoughts on dominant ideology play a decisive role. This article relates those investigations to a small part of a comparative study between the poetry of Carlos Drummond de Andrade and the songs of Bob Dylan, works that often clash “with the dominant ideologies of their time or, more dramatically, clash with themselves” (Bosi, 2005, p.327), developing and transforming the original sense of resistance poetry proposed by Bosi.

KEYWORDS:
Bosi; Resistance; Ideology; Drummond; Bob Dylan

Retorno ao ensaio de 1976

Ensaio mais célebre de O ser e o tempo da poesia, “Poesia resistência” ganhou uma espécie de existência autônoma e independente do restante do livro, não apenas por não fazer parte da organicidade que entrelaça mais diretamente os quatro ensaios anteriores, mas também pela importância que foi adquirindo ao longo do tempo na bibliografia sobre poesia no Brasil, e sobretudo pela proeminência que o conceito presente em seu título ganharia dentro do conjunto da obra de Alfredo Bosi.1 1 “Leitura de Vico” parece-me um caso ainda mais à parte; o texto entraria muito dificilmente na categoria de uma teoria da lírica aplicável aos demais ensaios do livro. Se o livro fosse um álbum, essa seria uma espécie de faixa-bônus, recolhendo alguns dos conceitos discutidos nos capítulos precedentes e amarrando-os como síntese num exercício de leitura que, entretanto, não acrescenta um novo problema teórico ao conjunto já apresentado. Simplificando muito, a ideia básica do ensaio é que a poesia é uma forma de discurso que busca resistir ao discurso da ideologia dominante. Podemos exemplificar sua face mais óbvia evocando autores como Maiakóvski, Brecht, Lorca, ou tantos poemas de Drummond, sobretudo nos anos 1930 e 1940,2 2 O próprio Bosi (2002, p.126) dirá que a “literatura de resistência tem em alguns poemas de Drummond o seu ponto alto”. A rosa do povo é de 1945. em que o horror da guerra e dos regimes totalitários praticamente impôs aos poetas (como aos demais artistas, intelectuais ou homens públicos em geral) alguma espécie de participação na forma de recusa e denúncia dos rumos em que a humanidade parecia caminhar. Em A verdade da poesia, Michael Hamburger (2007, p.120) aponta como desde as primeiras décadas do século XX “ficou claro que ser não-político ou antipolítico num tempo em que o destino de um homem apresenta seu sentido em termos políticos é quase inevitavelmente ser conservador ou reacionário”. De certa forma, era como se não existisse a opção de se calar, ou simplesmente ignorar o presente se voltando para questões alheias ao contexto histórico.

Nomear a revolta humanitária diante da miséria - literal e figurada - que uma sociedade absurdamente desigual produz era, e ainda é, um ato de recusa, de resistência. Mas o conceito de “poesia resistência” não para aí. O ensaio abre muitas possibilidades interpretativas para além de seu sentido mais imediato e facilmente identificável. Desde que o li pela primeira vez certa passagem me impressionou e se impôs, sugerindo uma abrangência que agora, ao tomar o tema como assunto central de um ensaio - em vez de aparato teórico no meio de um longo capítulo de tese - eu precisava confirmar. Ou refutar, ou apenas compreender melhor.

A poesia resiste à falsa ordem, que é, a rigor barbárie e caos, “esta coleção de objetos de não amor” (Drummond). Resiste ao contínuo “harmonioso” pelo descontínuo gritante; resiste ao descontínuo gritante pelo contínuo harmonioso. Resiste aferrando-se à memória viva do passado; e resiste imaginando uma nova ordem que se recorta no horizonte da utopia.

Quer refazendo zonas sagradas que o sistema profana (o mito, o rito, o sonho, a infância, Eros); quer desfazendo o sentido do presente em nome de uma liberação futura, o ser da poesia contradiz o ser dos discursos correntes. (Ainda que nem sempre possa impedir de todo que um outro pseudovalor formal vigente - e, daí, obliquamente ideológico - venha a cruzar seu jogo verbal.) (Bosi, 1997, p.146)

Como se vê, apenas dizer que a poesia resiste à ideologia dominante é de fato uma enorme simplificação; a mobilidade de seus alvos, os recursos que convoca, os modos como resiste, tudo isso é matéria complexa que demanda esforço de compreensão e permite diversas interpretações. Da primeira vez em que citei essa passagem, em tese de doutorado,3 3 Um mundo feito de ferro, tese defendida no programa de pós-graduação em Estudos Literários na Faculdade de Letras da UFMG em 2018. Focado nos poemas de Carlos Drummond de Andrade e nas canções de Bob Dylan, o trabalho buscava identificar pontos de convergência nos procedimentos formais e temáticas centrais das obras. As raízes de Drummond e Dylan, ambos vindos de pequenas cidades mineradoras, guardam semelhanças simbólicas significativas, bem como a elaboração dessa experiência no discurso lírico. A tese abordava também a prática da arte participante, que teria grandes implicações em suas trajetórias, tanto como elemento de construção de uma visão de mundo quanto no desenvolvimento de processos poéticos específicos. O modo como a linguagem poética dos dois autores projeta a noção de um sujeito fraturado é o tema do último capítulo. A tese incluiria ainda reflexões sobre as relações entre popular e erudito, o estatuto da canção em face da literatura, o lugar que ambas as obras ocupam no contexto cultural brasileiro e norte-americano e as particularidades que afastam e aproximam esses contextos. meu objetivo era compreender o que me pareciam determinadas modulações da atitude poética em momentos chave das obras de Drummond e Bob Dylan.

Revisitando o que escrevi então, me perguntei se por estar mais interessado em alcançar um ponto de chegada eu talvez não teria feito um percurso muito ligeiro, sem que fosse capaz de distinguir (ou ao menos de nomear a imprecisão) o quanto havia ali de desdobramento consequente das ideias presentes no ensaio de fato, e o quanto havia de intuições provocadas pelo texto - até legitimamente - mas ausentes do horizonte de preocupações de Bosi, senão até mesmo em contradição com o que ele dizia. Ao retomar o conceito num corte vertical, agora com a finalidade específica de produzir um ensaio a respeito, percebi a necessidade de percorrer uma trajetória mais sinuosa (ou, por que não, até mesmo um tanto errática?), convocando outros textos de Bosi que pudessem iluminar áreas complexas do problema, para compreender de fato o modo de ser da poesia resistência. Para compreender, enfim, as dez linhas da passagem acima, cheias de beleza e de significados.

Títulos, imagens, discursos

Títulos podem não explicar muito, mas ocasionalmente sugerem reflexões importantes, ainda que a leitura da obra que nomeiam nem sempre as corroborem. Poderíamos perguntar, por que razão o livro de Bosi em que o conceito de resistência está presente do início ao fim exercendo o papel de fio condutor intitula-se Literatura e resistência, enquanto no ensaio que lhe é anterior o autor prescinde do conectivo? Seria por querer conferir à função aposta uma espécie de imanência (ou de valor intrínseco à poesia), como se o texto poético contivesse nele mesmo o ato de resistência, enquanto na prosa ele seria apenas vetor pelo qual essa pode - ou não - se exercer? Consequentemente, se o objeto é a narrativa ficcional, como no livro de 2002, os dois termos aparecem como eventos distintos, talvez complementares, mas não intrínseca e fatalmente ligados, terminando por resultar numa coisa única, como o título do ensaio de 1976 dá a entender.

Ainda falando em títulos, o do livro em que “Poesia resistência” aparece, O ser e o tempo da poesia, também dá o que pensar. Apontei anteriormente o quanto o ensaio de alguma maneira se descola do restante do livro em duas frentes: como texto que se tornou mais relevante e provavelmente mais lido que os demais, e também por não estar diretamente articulado aos quatro ensaios que o precedem, já que esses em conjunto contemplariam aspectos-chave da teoria da lírica; seu “ser”, feito de imagem, som e ritmo, e seu “tempo”, dado na exploração do contexto histórico, categoria sempre importante, para não dizer decisiva para Bosi.4 4 Tais questões estão postas na quarta capa da primeira edição, sem autoria identificada e como espécie de explicação para o título O ser e o tempo da poesia. A referência ao clássico de Martin Heidegger parece evidente, e pode intrigar quem percorra suas 200 páginas sem encontrar uma nota sequer mencionando o filósofo alemão. Mas a leitura atenta dos ensaios - sobretudo “Imagem, discurso” - sugere a presença discreta da fenomenologia e de Heidegger, e até mesmo uma certa dicção heideggeriana:

A imagem é um modo da presença que tende a suprir o contato direto e a manter, juntas, a realidade do objeto em si e a sua existência em nós. O ato de ver apanha não só a aparência da coisa, mas alguma relação entre nós e essa aparência: primeiro e fatal intervalo.

[...]

O nítido e o esfumado, o fiel ou o distorcido da imagem devem-se menos aos anos passados que à força e à qualidade dos afetos que secundaram o momento de sua fixação. (Bosi, 1977BOSI, A. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1977., p.13)

Mais do que aquilo que de fato a imagem é, importa o ser da imagem naquele que a observa: o ato de vê-la; o que ela devolve ao observador, transformando-o; a engrenagem interior misteriosa que o olhar coloca para funcionar; o afeto subjetivo, enfim, que determina - talvez para sempre - o significado daquele primeiro encontro entre o eu e o objeto, estabelecendo-o como um momento de duração eterna. Paradoxalmente, à eternidade dessa percepção, retomada muitas vezes no curso de uma vida humana, não corresponde uma suposta imutabilidade do eu que observa, como se tal percepção restasse como mero resultado, sintoma e prova cabal de um pretenso “ser essencial”, imune aos demais encontros com demais imagens que a passagem do tempo felizmente nos possibilita. Fixada pelos afetos, como Bosi aponta com sensibilidade, a imagem exterior, sua aparência, se encontra, ao contrário, com uma sempre renovada entidade interior, subjetiva máquina mental e sensível cuja transformação está garantida pela variação temporal.

O próprio Bosi nega a influência de Heidegger na fatura do livro durante uma entrevista a Robert Newcomb, quando esse lhe diz que “o título do livro [O ser e o tempo da poesia] parece dialogar claramente com Martin Heidegger”:

Apesar do título, meu livro não é heideggeriano. Para Heidegger, a poesia é a casa ou a revelação do Ser, uma visão ontológica da linguagem poética. É uma bela e profunda doutrina, sem dúvida, mas distante da História e da Psicologia, que, no entanto, têm muito a dizer quando se interpreta um poema. A poesia não é uma atividade pura, absoluta: ela exprime sentimentos de determinados indivíduos e, ao mesmo tempo, responde a certas tensões sociais historicamente produzidas. (Bosi; Newcomb, 2009BOSI, A.; NEWCOMB, R. P. Um programa para toda a vida: uma entrevista com Alfredo Bosi. Luso Brazilian Review, v.46, n.2, pp.171-178, 2009. p.174)

Diante da negativa do próprio autor, seria impróprio relacionar uma fenomenologia do encontro entre sujeito e mundo presente em “Imagem, discurso” como uma das possibilidades da linguagem poética, com as tentativas de investigação do ser propostas por Heidegger em Ser e tempo? A velha querela entre intencionalidade autoral e potência de sentido sempre tão lembrada para autonomizar o texto literário dos propósitos conscientes de seu autor, não valeria também no âmbito da análise teórica?

É legítimo pensar em novos mecanismos de relação entre o pensamento de resistência e o discurso dominante que não estavam no horizonte de Bosi, mas que existem em estado germinal nos seus ensaios? Poderíamos pensar, enfim, numa subjetividade sem essência e em construção permanente, a partir dos múltiplos encontros que experimenta com o mundo das imagens (como apresentada em “Imagem, discurso”), como uma forma de resistência às noções de identidade, sujeito e pensamento cartesiano que predominam na vida convencional, no mundo cotidiano do pragmatismo e do utilitarismo?

Numa viagem exploratória cujo foco é o ensaio “Poesia resistência”, a visita ao livro em que esse apareceu faz parte da boa prática de pesquisa, mas de certa maneira, a variada temática de O ser e o tempo da poesia leva a mais dúvidas do que elucidações quanto ao conceito ali exposto, suas possíveis manifestações, o seu alcance os seus limites. Tais respostas têm que ser buscadas em outras obras de Bosi aparecidas bem mais tarde.

Drummond, Dylan, Bosi, resistência

Alfredo Bosi nasceu e quase sempre viveu em São Paulo. Um homem que atingiu o topo de sua carreira profissional vivendo na cidade mais competitiva e produtiva do país, Bosi nunca se deixou levar pela opulência e o frenesi paulistano. Um cultivador dos hábitos simples, como atestam tantos testemunhos de amigos que conquistou ao longo de sua trajetória, e que assim foi lembrado por Pedro Meira Monteiro (2021MONTEIRO, P. Crítica com alma. Piauí, Rio de Janeiro, junho, 2021.) em ensaio para a revista Piauí por ocasião de sua morte. Numa narrativa comovente sobre sua convivência com o homenageado, Pedro Monteiro fala da “simplicidade franciscana” da chácara de Bosi em Cotia e de suas sofisticadas reflexões sobre poesia, cultura popular, religião, artes plásticas e política; menciona Robert Newcomb, que além de haver entrevistado Bosi foi também seu tradutor (junto com o próprio Pedro Monteiro); cita o comentário de Bosi sobre “a ideia de ‘atenção’ desenvolvida por [Simone] Weil, para quem a vitória sobre a ‘coisificação’ do mundo seria possível apenas com uma mente liberta das paixões, capaz de dar primazia ‘às figuras e às suas propriedades geométricas’” (Monteiro, 2021). Recorda ainda a visita que Bosi lhe fizera nos Estados Unidos, o encontro com Ricardo Piglia, os comentários sobre John Ashbery, e narra como conversaram “sobre Bob Dylan, a cujo concerto ele assistiria mais tarde com os netos no Brasil, confessando-me depois que o ‘barulho’ não o deixou ouvir sequer um verso” (ibidem).

Um dos capítulos do meu estudo comparado sobre os poemas de Drummond e as canções de Bob Dylan tem como foco o profundo envolvimento de ambos com a arte participante, etapa de suas carreiras a que permanecem ainda hoje muito identificados no imaginário coletivo. Sem desmerecer a importância daquele período e enfatizando como a lírica participante de repercussões muito amplas que construíram vinha sempre vazada numa linguagem altamente elaborada, eu procurava mostrar um ponto de viragem semelhante nas duas obras. Tendo atingido o que poderíamos chamar do ápice de um projeto (não necessariamente consciente) que unia ética e estética, Drummond e Dylan, ao se verem alvos de imensas pressões externas - do público, da crítica, da obra que construíram - decidiram escapar do papel de “porta-vozes” nunca desejado, imprimindo rumos novos e, felizmente, profundamente profícuos às suas carreiras.

Não se tratava, como ficaria claro em estágios futuros, de abandonar quaisquer preocupações políticas ou sociais, mas de recusar temporariamente temáticas explicitamente engajadas, gesto que tinha como um de seus objetivos declarados evitar rótulos incômodos como “poeta político” ou “cantor de protesto”, meros reducionismos incongruentes com o caráter multifacetado de ambas as poéticas.

De minha parte, eu via tais “gestos de recusa” como uma atitude estética de amplas implicações, e buscava relacioná-la, dentre outras tentativas, ao conceito de “poesia resistência”, não sem me perguntar com certo incômodo, o que Alfredo Bosi diria quanto a aparecer num estudo sobre um artista associado à indústria cultural... naquela época eu certamente não podia esperar que Bosi houvesse algum dia entabulado qualquer conversa séria sobre Dylan (o que ele e Pedro Monteiro teriam dito?) e muito menos que acabasse comparecendo a um concerto seu! De todo modo, essa ainda hoje me parece uma incongruência não mais do que anedótica; retomando a dialética entre intencionalidade autoral e sentido latente, penso que a teoria e a crítica perderiam muito se não pudéssemos associar os conceitos de um determinado autor a obras originalmente ausentes do seu horizonte de preocupações.

O verdadeiro problema nesse caso, porém, era o tipo de analogia implícito na associação. O que eu pretendia era uma espécie de volta a mais ao parafuso, relacionando ao pensamento de resistência uma atitude estética que na verdade buscava negar quaisquer envolvimentos diretos com o que se considerava então a ideologia dominante, fosse para atacá-la, fosse para endossá-la. O que Drummond fazia nas décadas de 1930 e 1940, em poemas como “Nosso tempo”, “Mãos dadas”, “A flor e a náusea”; o que Dylan fazia no início da década de 1960, hinos à rebeldia como “Blowin´ in the wind” e manifestos pacifistas como “A hard rain´s a-gonna fall”, isso sim era “poesia resistência” e recusa da ideologia dominante. Como dizer então, de uma guinada radical que deixaria para trás tais temáticas, em resumo, que buscasse negar o gesto de resistência pudesse ser visto paradoxalmente como “poesia resistência”?

Resistência, modos de ser

Logo no início de “Narrativa e resistência”, um dos ensaios de Literatura e resistência, Bosi estabelece uma importante distinção quanto a dois diferentes modos como essa pode se manifestar:

[…] eu diria que a ideia de resistência, quando conjugada à de narrativa, tem sido realizada de duas maneiras que não se excluem necessariamente:

a) a resistência se dá como tema;

b) a resistência se dá como processo inerente à escrita. (Bosi, 2002_______. Literatura e resistência. São Paulo: Cia. das Letras, 2002., p.120, grifos meus)

A passagem destacada pode dar a impressão de que a distinção não se aplicaria à poesia, ainda que posteriormente, ao tratar da segunda modalidade, Bosi fale em uma “resistência profunda, às vezes difícil de sondar, da poesia mítica; a resistência interiorizada da lírica, que entrança os fios da memória com os da imaginação; enfim, a resistência que se faz projeto ou utopia no poema voltado para a dimensão do futuro” (ibidem, p.130), numa clara retomada de formas e temas já tratados no ensaio de 1976. Sob a rubrica “resistência como forma imanente da escrita” (que se alterna com “processo inerente à escrita”, mas com o mesmo significado) me parece que Bosi já indica o quanto o conceito pode ser abrangente, indo além de sua encarnação mais óbvia e imediata, que é fazer da resistência à ideologia dominante - em geral imposta e exercida pelo poder político - uma temática, seja no terreno da narrativa, seja no da poesia. Mais do que uma denúncia dos totalitarismos políticos ou do capitalismo de consumo, a “poesia mítica” e a “resistência interiorizada da lírica”, são tentativas de resistir à dominação imposta pelo pensamento uniformizado e pela vulgarização dos conceitos, que o poeta e o ficcionista levam a cabo por meio de elaborações formais, do pensamento, da linguagem, do pensamento que se faz linguagem, da linguagem que é, em si mesma, modo de pensar. E isto, conforme Bosi aponta na distinção que abre o texto, “realizado de duas maneiras que não se excluem necessariamente”, já que a resistência como temática central também pode - e deve - aparecer vazada através de recursos formais sofisticados.

A poesia é difícil. A prosa do mundo é fácil. A poesia é ambivalente. O mundo pede objetividade. A produtividade é finalidade em si mesma. A “riqueza” produzida pela atividade poética é quase nula.

Essa relativização - ou ampliação - do conceito não é apresentada aqui para desmerecer a práxis política embutida no exercício de uma poesia combativa, modalidade de expressão e de ação absolutamente legítimas. Por que seria diferente? Feita de combinações heteróclitas, a poesia busca sua matéria-prima na experiência do viver, e a ação política, a percepção tantas vezes crispada do tempo histórico, ou depurando um tanto mais, a atitude francamente ativa de indignar-se perante as injustiças e expressá-lo pela linguagem, tudo isso é parte de tal experiência. Como contraponto e complemento (é irresistivelmente bela para ser desperdiçada a ideia de uma contraposição que também complementa; se ela soa estranha nos contextos rígidos do pensamento cartesiano, me parece perfeitamente à vontade nos domínios do fazer poético) à poesia mítica forjada no ciclo “presente-passado-presente”, quando “a evocação é um movimento da alma que vai do presente do ‘eu’ lírico para o pretérito, e daí retorna, presentificado, ao tempo de quem enuncia” (Bosi, 1977BOSI, A. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1977., p.158), Bosi convoca “Os momentos sofridos e insofridos da práxis também capazes de gerar poesia” a partir da “recusa irada do presente com vistas ao futuro”.

Se ao ciclo presente-passado-presente Bosi não oferece uma contrassíntese exata, mas o “eixo sem limite presente-futuro” (Bosi, 1977BOSI, A. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1977., p.160) que ao invés de evocar o paraíso passado invoca-o, a bela imagem que usa (“passagem do agora para o ainda não”) se insinua como lacuna e promessa, estimulando a ousadia de complementar pela imaginação essa contrassíntese. A hipótese mais óbvia, “presente-futuro-presente”, sugerida a partir de uma tríade bem conhecida de “poetas políticos” - Maiakovski, Brecht e Neruda - indicaria uma poesia que inicia o seu ciclo no olhar indignado do eu lírico para o mundo que o rodeia, partindo rumo à idealização de um futuro menos cinzento para em seguida retornar ao momento presente de posse de uma palavra - a boa nova - cujo poder é capaz de plasmar um presente outro a partir das lacunas do presente concreto, das formas em negativo que a viagem ao futuro evidenciou. “Vejam homens ímpios, o quanto falta para que a vida seja o que pode ser”, diria o poeta-profeta que empreendeu tal viagem.

Não se trata, portanto - o que pareceria um anátema para Bosi -, de insinuar o que Adorno (2003_______. (Org.) Leitura de poesia. São Paulo: Ática, 2003., p.152) chamou de “antítese obtusa”, entre uma arte participante de um lado e a “arte pura” de outro, perde-ganha reducionista e “sintoma da trágica tendência ao estereótipo, ao pensamento enrijecido em fórmulas esquemáticas que a indústria cultural produz por toda parte e já invadiu há muito tempo o âmbito da reflexão estética”. O que chamamos de arte participante - arte verdadeira, não o panfleto - apenas ganha em contundência quando não prescinde dos procedimentos estéticos que são esteio da “arte pura”, essa por sua vez já participativa e forma de resistência, na medida em que ao enfatizar formas cada vez mais distanciadas daquelas que a vida e o discurso prático consagram, se firma como “recusa aos costumes, à linguagem e aos modos de pensar correntes” (Bosi, 1977, p.163). Trata-se de uma chave importante para perceber o quanto essas duas atitudes poéticas, diferenciadas muitas vezes apenas pelo grau de ênfase que empregam, não são sucessivas, mas simultâneas: contraponto e complemento. Entre uma e outra, nada melhor que ficar com as duas. Através de uma elaboração formal que contém, em si mesma, outras modalidades de “desafio” eventualmente dirigidas a alvos também diversos daqueles que a recusa mais claramente visível e exercida em nível temático mira, o discurso poético evidencia sua multiplicidade e abrangência.

Essa abrangência apenas sobrevive se considerarmos, de um lado, a multiplicidade de seus modos de ser, e de outro, uma certa mobilidade quanto ao que entendemos como ideologia dominante. “Narrativa e resistência” traz considerações importantes acerca da primeira questão, por sua vez antecipada em “Poesia resistência”. Já ideologia dominante é um termo cujos amplitude e potencial alcance não se definem com clareza em nenhum dos dois ensaios, algo que Bosi (2010_______. Ideologia e contraideologia. São Paulo: Cia. das Letras, 2010.) faria anos mais tarde e que apareceria em outro fascinante volume de ensaios, Ideologia e contraideologia.

Na introdução à coletânea de ensaios críticos Leitura de poesia que ele mesmo organizou, diz ainda Bosi (2003_______. (Org.) Leitura de poesia. São Paulo: Ática, 2003., p.36) a propósito da renomada “Palestra sobre lírica e sociedade” de Adorno:

Particularmente feliz me parecia o trecho em que o pensador augurava uma interpretação social da lírica que fosse capaz de dizer “até que ponto fica a obra de arte condicionada à sociedade, e em que medida ela a ultrapassa”. Outro momento forte do ensaio: “A grandeza das obras de arte consiste unicamente em revelar o que a ideologia oculta”.

O ponto de cisão, ou esse momento de crise entre arte e sociedade ou arte e ideologia, enfatiza o “sentido forte, marxista, de mistificação de interesses” (Bosi, 2010_______. Ideologia e contraideologia. São Paulo: Cia. das Letras, 2010., p.119) que o termo carrega e a que Bosi se refere em passagens diversas de “Ideologia e contra ideologia”. A frase de Adorno poderia tranquilamente ser “revelar aquilo que a ideologia deliberadamente oculta”, sem qualquer exagero de seu sentido; um sistema, portanto, de mistificação de interesses. Vale reter esse sentido, ainda que como metonímia de um emaranhado complexo de forças e correndo o risco de tomar a coisa por uma de suas formas de manifestação. Não seria exagerado dizer que todo projeto revolucionário tem entre suas propostas medidas contraideológicas cujo objetivo é denunciar aquilo que a ideologia dominante precisa manter velado, sob custas de não se sustentar. Se olharmos para o capitalismo de consumo, forma de dominação plenamente estabelecida e entre as mais brutais em seu apetite para alcançar todas as esferas da existência humana, vemos o quanto ele depende em larga medida das mensagens subliminares que emite para que compremos sempre, pagando cada vez mais. E, sobretudo, questionando cada vez menos.

A ideologia e seus nomes (que ela não diz)

Após uma breve arqueologia do termo que indica a sua origem no fim do século XVIII, Bosi (2010_______. Ideologia e contraideologia. São Paulo: Cia. das Letras, 2010., p.71) identifica em Karl Mannheim o autor do “ensaio mais complexo que a sociologia jamais produziu em torno do conceito de ideologia”, e fundamental para entender os alcances e limites possíveis do termo conforme se enfatize o que Norberto Bobbio determinou como seus sentidos forte e fraco. Essa distinção é também fundamental para aceitar - ou não - a potencial abrangência do conceito de “poesia resistência” proposta aqui. Acompanhando a síntese de Bosi (2010, p.72):

Recapitulando: o significado forte do termo é tópico e estruturalmente político, desde que foi usado como sinônimo de justificação do poder. Assim Marx e Engels o caracterizaram na Ideologia alemã. O discurso ideológico seria sempre elaborado na chave retórica da persuasão: o ideólogo quer convencer o interlocutor de que seus argumentos foram construídos em nome e por meio da razão universal.

O que ficaria conhecido como sentido forte, ou marxista, é aquele que identificava na expressão ideologia dominante uma força que se exerce sobretudo no campo político, a partir da atividade partidária ou pelo estado constituído. Tal acepção restringiria, portanto, o campo do que podemos denominar como “resistência” da literatura àquelas obras que tenham tal dominação como alvo específico a atacar e façam da recusa aos seus valores e substratos - o autoritarismo, a violência, a desigualdade - o seu tema preferencial.

Curiosamente, se, por um lado, o sentido marxista original é aquele restrito, virá justamente do pensamento de teóricos marxistas (e foucaltianos) o sentido fraco,

[...] difuso e generalizante do termo […] que se tem em mente quando se diz, por exemplo, que no começo do século XIX predominou na Europa uma “ideologia” romântica, a que se seguiu uma “ideologia” realista e positivista. Nessa passagem da acepção forte e política para acepções culturais (filosóficas, artísticas, literárias…), o termo ideologia ganha em amplitude o que perde em precisão e em teor valorativo. (Bosi, 2010_______. Ideologia e contraideologia. São Paulo: Cia. das Letras, 2010., p.73)

Consequentemente, se ampliaria também o leque de manifestações artísticas que pudessem ser consideradas como obras de resistência. Mais ainda, avolumam-se os paradoxos, como aquele implícito na dinâmica dos movimentos de vanguarda e ruptura, incipientes e restritos de início, mas que acabam prevalecendo sobre as tendências dominantes que questionavam, se tornando finalmente dominantes eles mesmos e passando a ocupar o lugar de alvo preferencial, quando na origem exerciam a função de flecha. Essa dinâmica pode levar justamente a tensões como aquelas que investiguei nas obras de Drummond e Dylan; quando o questionamento e a rebeldia se tornam regra e são absorvidos por uma ideologia, sob certos aspectos, dominante, qual seja, especialmente no caso de Dylan, uma sub-repartição do capitalismo de consumo conhecida como indústria cultural, que de repente aprendeu a transformar o que eram gestos de questionamento em fonte de lucros e estandardização do pensamento, esse gesto de questionamento perde seu viço e deixa de ser pensamento de resistência. Restam ao artista duas opções: render-se ou explorar novas formas de questionamento. Mas, é possível objetar, poderíamos classificar de fato a indústria cultural como uma ideologia dominante?

Se a complexidade de uma ideia ou da abordagem de um problema que mostra ter vários lados - uma nova face se desdobrando cada vez que se olha para ele - torna difícil a sua formalização em linguagem, reiterar o que se conseguiu numa síntese parece uma boa prática, senão como superação e esclarecimento, como apaziguamento da angústia por não lograr uma explicação final clara e abrangente.

Talvez um primeiro passo para desatar o nó semântico armado pela coexistência de ambas as acepções do termo seria constatar lisamente que não conviria adotar a mesma palavra para designar conteúdos qualitativamente diferentes. Uma solução viável seria escolher, por amor da clareza, só o significado forte e abertamente valorativo para definir “ideologia”, preferindo outras palavras para recobrir a riqueza do significado difuso: cultura, mentalidade, ideário, estilo de época, contexto cultural amplo, concepção ou visão de mundo, a weltanschauung concebida pelo historicismo de Dilthey.

[…]

Embora aparentemente sensata, essa redução do espectro semântico do termo ideologia a suas dimensões propriamente políticas não encontra, em geral, apoio nos teóricos de formação marxista, ou, mais recentemente, foucaltiana. Ambas pretendem detectar a presença da falsa consciência não somente no discurso partidário, mas em outras manifestações da cultura, que passariam a ser também suspeitas de distorcer a verdade de atos e fatos mediante manobras articuladas pela mesma retórica solerte da persuasão. (Bosi, 2010_______. Ideologia e contraideologia. São Paulo: Cia. das Letras, 2010., p.73-4)

Essa passagem me pareceu reforçar a ideia de amplitude do conceito de poesia resistência, permitindo desdobrá-lo em contextos mais amplos que o da resistência discursiva à ideologia dominante imposta pelo poder político, já que esta pode se espraiar por outros campos da cultura. O passo decisivo para caracterizá-la - para caracterizar, enfim, quais alvos o pensamento de resistência pode alinhar em sua alça de mira - é justamente a distorção da verdade por meio de manobras persuasivas e deliberadamente veladas. Ora, nada menos que a “grandeza das obras de arte para revelar o que a ideologia oculta”, como lemos na bela síntese de Adorno mencionada por Bosi. Respaldados nesse ponto de interseção entre estado autoritário, política partidária, capitalismo de consumo e corporações globais, podemos levar adiante uma investigação em novas frentes quanto ao modo como conceitos e propostas a princípio surgidas da promoção do bem-estar coletivo, são apropriadas, distorcidas e hipertrofiadas por sistemas de difusão cultural constrangidos de dizer o seu nome e reais propósitos. O discurso persuasivo é seu ponto comum; para resistir a ele com argúcia e sofisticação, poucas formas serão mais eficazes que a literatura, capaz de recusar, fraturar, colocar em crise e indiretamente, contrapersuadir, mesmo trazendo em seu cerne um natural pendor contrário ao proselitismo.

Drummond, Dylan, Bosi, resistência - Revisitando o problema

Em “Relendo Carpeaux”, ensaio de 2013 para a revista Estudos Avançados do IEA, Bosi (2013_______. Relendo Carpeaux. Estudos Avançados, São Paulo, v.27, n.78, p.279-290, mai./ago. 2013. Disponível em: < https://www.scielo.br/j/ea/a/FPhQXb9f44Vw34yJ8L6YLGm/?lang=pt>. Acesso em: 10 mar. 2023.
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) associa o combate dos teóricos da Escola de Frankfurt contra a “padronização dos modos de vida e pensamento que o capitalismo estava produzindo”, ao combate do próprio Carpeaux contra a “desagregação dos estilos tradicionais substituídos por modas efêmeras ditadas pela necessidade de variar as aparências em função do consumo”. Como ponto comum entre ambos, uma aspiração “à criação de um mundo de valores que estaria acima ou fora do ramerrão rasteiro do seu tempo. Desejavam criar uma linguagem cifrada, de alcance metafísico, cujo sentido seria uma verdade capaz de pairar sobre todas as pseudoverdades do século”. Quem os melhores (ou os únicos) capazes de levar a tarefa a cabo? “Yeats, Rilke, Blok, Antonio Machado, Valéry, Stephan George... Poderíamos acrescentar os nomes de T. S. Eliot, Eugenio Montale e Jorge Guillén, ‘poeta das essências’, bem como dos surrealistas avessos à mesmice burguesa, ou dos nossos Jorge de Lima, Murilo Mendes, Cecília Meireles...” (Bosi, 2013, p.282, grifos meus).

Aquilo que entendemos por ideologia pode ser algo movente, consequentemente mudando também as formas da resistência e como ela se exerce. Esse movimento pode ocorrer, por exemplo, quando o discurso de resistência se fortalece e se expande, ganhando tons de unanimidade e rechaçando quaisquer tentativas de dissenso. A resistência se tornaria, portanto, ela mesma, ideologia dominante, numa alternância de papéis que, no entanto, nunca será completa; se o discurso de resistência se vulgariza e se desgasta, é preciso encontrar novas formas mais radicais de enunciar o seu não; o que eventualmente pode incluir, é claro, uma recusa àquela proposta de engajamento que anteriormente era o seu mote e razão de existir. Essa “nova forma mais radical” pode ser, justamente, uma “linguagem cifrada”, usada pelo poeta como modo de “criação de um mundo de valores que estaria acima ou fora do ramerrão rasteiro de seu tempo”. Parece razoável dizer que tanto Drummond quanto Bob Dylan, exerceram as duas modalidades possíveis de resistência; aquela que se volta contra a ideologia dominante imposta por meio do poder político e aquela “forma imanente”, por meio de uma prática poética que desafia em níveis muito mais profundos a própria estrutura do pensamento armada com sutileza pela linguagem.

Muitos poetas realmente grandes se verão levados, em momentos dramáticos como os que se impuseram em meados do século XX, a enfatizar em suas obras a experiência histórica - ainda que comprometidos em primeiro lugar consigo próprios - projetando uma tensão que nem sempre se resolve, e que será por sua vez, um dos traços determinantes que Michael Hamburger identifica na lírica moderna. No capítulo “Poesia absoluta e política absoluta” de A verdade da poesia, Hamburger (2007, p.127) investiga como as duas tendências se manifestam em autores e obras importantes da lírica moderna, sobretudo aqueles nos quais participação e recolhimento comparecem em tensão. Alguns encenaram nas próprias obras o dilaceramento que o tema impõe, como Yeats, que “criou sua poesia a partir do conflito com ele mesmo, em vez das resoluções desse conflito” (ibidem). Hamburger vê em Yeats aquela multiplicidade inescapável destacada em Drummond e Dylan. “Sob todas as máscaras de Yeats percebemos a necessidade de ser ‘plenamente ele mesmo’” (ibidem, p.128), incluído aí o eu social, político, histórico, ainda que o poeta irlandês não deixasse de refratar a assunção de compromisso que a arte engajada impõe:

Como até mesmo Yeats reconheceu, a “politização da arte” neste século impôs um fardo de responsabilidade por demais grande sobre a imaginação poética [...]. Yeats escreveu:

Acho melhor em tempos como este

Que o poeta silencie, porque, de fato,

Nos falta o dom de guiar um estadista.

(Hamburger, 2007, p.154-5)

Hamburger conclui observando que “quanto mais pesou a consciência social nos poetas, mais difícil se tornou a eles produzir uma obra tão consistente em qualidade quanto a de Yeats” (ibidem, p.155). Para Drummond e para Dylan, a consciência social daria origem a grandes poemas e canções, sem impedir que ambos os autores alcançassem um alto nível de qualidade, fosse quando se pronunciaram sobre os tempos sombrios, fossem ao guardar distância deles; como Yeats, ambos não deixariam de ser eles mesmos na multiplicidade de papéis que encarnaram.

Os casos de Drummond e Dylan, ricos e complexos como o de Yeats, carregam também o sentido de uma prática que se converteu em recusa em face da arte participante. Quando esta se tornou ameaça de aprisionamento, ou na medida em que a necessidade da ordre e clarité que parecia ser seu imperativo (como meio de evitar posições equívocas) se impôs, a prática se mostrou insuficiente para dar conta das necessidades expressivas do sujeito lírico, e inadequada para fazer falar sua autenticidade individual, sempre enredada em profundas ambivalências.

De certa maneira é como se o desejo genuíno desses autores incluísse o debate em torno da política, mas num nível mais aprofundado, inclusive com margem para as posições contraditórias que percebiam em si, num aprofundamento, entretanto, que “o inferno dos outros” tornara inviável. O engajamento - sobretudo naquele contexto de recrudescimento em que as partes envolvidas exigem compromissos incondicionais - não permite a dúvida, o equívoco, o passo vacilante de quem se conhece a fundo e por isso se sabe muito mais a sede de uma relativização sistemática do que de certezas absolutas. O poeta e o cantor, vozes que por seu caráter participante podiam ser consideradas como dissonantes em face das ideologias dominantes, perceberiam que se tornavam - mau grado seu - as vozes “oficiais” de uma ideologia que na verdade era feita mais de doutrina autoritária do que de uma ética e uma estética libertárias. “A ideologia procura compor a imagem de uma pseudototalidade, que tem partes, justapostas ou simétricas, mas não admite nunca as contradições reais. A ideologia dominante não consegue ser, a rigor, nem empírica nem dialética” (Bosi, 1977BOSI, A. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1977., p.146).

Incapaz de assimilar o sujeito contraditório (valor poético essencial), o compromisso do engajamento (ordem social e cultural) rechaça tudo que não se lhe adere incondicionalmente; exige uma integridade de convicções que difere muito da integridade da subjetividade, por si mesma feita de conflito e ambivalência. Não resta alternativa ao artista, a não ser resistir. E eis que estamos de volta àquelas belas dez linhas cheias de significado de “poesia resistência”:

A poesia resiste à falsa ordem, que é, a rigor barbárie e caos, “esta coleção de objetos de não amor” (Drummond). Resiste ao contínuo “harmonioso” pelo descontínuo gritante; resiste ao descontínuo gritante pelo contínuo harmonioso. Resiste aferrando-se à memória viva do passado; e resiste imaginando uma nova ordem que se recorta no horizonte da utopia” (Bosi, 1977BOSI, A. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1977., p.146)

Resiste à política com a subjetividade; aos excessos da subjetividade com a abertura para o mundo, resiste a si mesmo com o “seu outro tipo de eu”, negando-se sempre a assumir uma fixidez qualquer à que é naturalmente infensa. Quando os enunciados poéticos que eram originalmente “resistência” à ideologia dominante, se erigem, pela sua potência expressiva, em regra ética ou estética, arregimentando seguidores e alimentando uma nova ideologia (e em muitos casos, se vulgarizando), o artista sente o impulso urgente de se renovar, escapando do lugar de porta-voz autorizado em que - mau grado seu - o público ou a crítica ou outros artistas o colocam. Continuando com Alfredo Bosi,

Quer refazendo zonas sagradas que o sistema profana (o mito, o rito, o sonho, a infância, Eros); quer desfazendo o sentido do presente em nome de uma liberação futura, o ser da poesia contradiz o ser dos discursos correntes. (Ainda que nem sempre possa impedir de todo que um outro pseudovalor formal vigente - e, daí, obliquamente ideológico - venha a cruzar seu jogo verbal.) (ibidem)

Quando o ser da poesia passa a encontrar na sociedade que critica uma voz institucional que o assimila, é hora para o poeta de buscar novos caminhos, pois por mais que essa voz seja a de grupos progressistas, contrários à ideologia dominante e portadora daqueles valores que o poeta reconhece em si mesmo, ela é, ainda assim, um forte discurso corrente, como fala Bosi, capaz de anular a tendência natural do poema para a contradição. A resistência da poesia tem diante de si uma tarefa infinita; ela pode ser o resgate do clássico num contexto em que se demanda a afirmação do novo (Drummond renovando as formas clássicas em Claro enigma); ou a descoberta do novo complexo num âmbito em que se demanda a simplicidade arcaica (Dylan e a incorporação do rock ao folk). Pode ser, como fora para ambos, um mergulho em si próprio enquanto a voz dos outros demandava um entregar-se à coletividade.

Se, por um lado, a virada expressiva de Drummond e Dylan não encena o falso dilema entre “arte engajada” e “arte pela arte”, que segundo Adorno (2003ADORNO, T. Palestra sobre lírica e sociedade. In: ___. Notas de literatura I. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Duas cidades; Ed. 34, 2003., p.152) nunca foi uma distinção válida, por outro lado, ela sem dúvida aponta para um traço inerente ao discurso lírico: “A lírica é o gênero no qual o poeta, como o escritor irônico, volta as costas à audiência” (Frye, 1973FRYE, N. Anatomia da crítica. Trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Cultrix, 1973., p.266), um dar as costas espetacular no caso de Dylan, mas não menos contundente no caso de Drummond, como mostram as reações extremadas da sua “audiência”.

É possível contra-argumentar, classificando o afastamento da arte participante como um fechamento do poeta para o mundo, sempre podendo resultar no que Bosi chama de “autismo altivo” (Bosi, 1977BOSI, A. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1977., p.143) que ocorre quando a poesia se volta apenas para si mesma. Mas não parece ser esse o caso, pois o resultado terá sido uma prática poética mais diversificada, capaz de englobar, ao lado das relações entre sujeito e mundo, as relações (em geral crispadas, que é o terreno por onde a arte caminha) entre sujeito e ele mesmo, sujeito e família, sujeito e pensamento e sujeito e linguagem, como que substituindo a perspectiva política por uma perspectiva filosófica, que também engloba a primeira, mas não se reduz a ela. Esse movimento, entretanto, não elimina as implicações entre lírica e sociedade, primeiro porque os condicionamentos sociais estão impressos na mente do artista, quer ele queira ou não, comparecendo na obra ainda que como negatividade; e segundo porque o próprio movimento da lírica de se afastar do mundo objetivo traz implícita uma crítica feroz. “Seu distanciamento [da lírica] da mera existência torna-se a medida do que há nesta de falso e ruim” (Adorno, 2003ADORNO, T. Palestra sobre lírica e sociedade. In: ___. Notas de literatura I. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Duas cidades; Ed. 34, 2003., p.69). Diante de uma radicalização tacanha que vê o mundo em preto e branco, a negação e o afastamento não deixam de ser um expediente também político; ainda que não evidente à primeira vista, permanece aquela interpenetração de que se falou há pouco, agora da dimensão política e social numa prática que a princípio enfatiza o mergulho na subjetividade.

Contrariamente ao que dizem seus detratores, portanto, as inflexões do sujeito lírico não são, de maneira alguma, resultantes de um processo de cooptação por forças externas, mas precisamente o seu contrário, ou seja, sinais de uma profunda fidelidade sem descanso a si próprio; dada sua natureza múltipla e em metamorfose, o sujeito lírico busca, para responder a ela, formas expressivas também diversas, nem sempre sucessivas, mas muitas vezes simultâneas, como simultâneos são os desdobramentos contraditórios da sua personalidade, da sua imaginação.

Referências

  • ADORNO, T. Palestra sobre lírica e sociedade. In: ___. Notas de literatura I. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Duas cidades; Ed. 34, 2003.
  • BOSI, A. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1977.
  • _______. Dialética da colonização. São Paulo: Cia. das Letras, 1992.
  • _______. Literatura e resistência. São Paulo: Cia. das Letras, 2002.
  • _______. (Org.) Leitura de poesia. São Paulo: Ática, 2003.
  • _______. Caminhos entre a literatura e a história. Estudos Avançados, São Paulo, v.19, n.55, p.315-34, set./dez. 2005. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/ea/a/FWGH6kzqsmKR8V9f34nW3YQ/?lang=pt>. Acesso em: 10 mar. 2023.
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  • _______. Ideologia e contraideologia. São Paulo: Cia. das Letras, 2010.
  • _______. Relendo Carpeaux. Estudos Avançados, São Paulo, v.27, n.78, p.279-290, mai./ago. 2013. Disponível em: < https://www.scielo.br/j/ea/a/FPhQXb9f44Vw34yJ8L6YLGm/?lang=pt>. Acesso em: 10 mar. 2023.
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  • BOSI, A.; NEWCOMB, R. P. Um programa para toda a vida: uma entrevista com Alfredo Bosi. Luso Brazilian Review, v.46, n.2, pp.171-178, 2009.
  • FRYE, N. Anatomia da crítica. Trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Cultrix, 1973.
  • HAMBURGUER, M. A verdade da poesia. Trad. Alípio Correia de França Neto. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.
  • MONTEIRO, P. Crítica com alma. Piauí, Rio de Janeiro, junho, 2021.

Notas

  • 1
    “Leitura de Vico” parece-me um caso ainda mais à parte; o texto entraria muito dificilmente na categoria de uma teoria da lírica aplicável aos demais ensaios do livro. Se o livro fosse um álbum, essa seria uma espécie de faixa-bônus, recolhendo alguns dos conceitos discutidos nos capítulos precedentes e amarrando-os como síntese num exercício de leitura que, entretanto, não acrescenta um novo problema teórico ao conjunto já apresentado.
  • 2
    O próprio Bosi (2002, p.126) dirá que a “literatura de resistência tem em alguns poemas de Drummond o seu ponto alto”. A rosa do povo é de 1945.
  • 3
    Um mundo feito de ferro, tese defendida no programa de pós-graduação em Estudos Literários na Faculdade de Letras da UFMG em 2018. Focado nos poemas de Carlos Drummond de Andrade e nas canções de Bob Dylan, o trabalho buscava identificar pontos de convergência nos procedimentos formais e temáticas centrais das obras. As raízes de Drummond e Dylan, ambos vindos de pequenas cidades mineradoras, guardam semelhanças simbólicas significativas, bem como a elaboração dessa experiência no discurso lírico. A tese abordava também a prática da arte participante, que teria grandes implicações em suas trajetórias, tanto como elemento de construção de uma visão de mundo quanto no desenvolvimento de processos poéticos específicos. O modo como a linguagem poética dos dois autores projeta a noção de um sujeito fraturado é o tema do último capítulo. A tese incluiria ainda reflexões sobre as relações entre popular e erudito, o estatuto da canção em face da literatura, o lugar que ambas as obras ocupam no contexto cultural brasileiro e norte-americano e as particularidades que afastam e aproximam esses contextos.
  • 4
    Tais questões estão postas na quarta capa da primeira edição, sem autoria identificada e como espécie de explicação para o título O ser e o tempo da poesia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2023
  • Aceito
    08 Maio 2023
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