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O ladrão da Babilônia

CRIAÇÃO / POESIA

O ladrão da Babilônia

Tradução de Paulo Henriques Britto

Nos morros verdes do Rio

Há uma mancha a se espalhar:

São os pobres que vêm pro Rio

E não têm como voltar.

São milhares, são milhões,

São aves de arribação,

Que constróem ninhos frágeis

De madeira e papelão.

Parecem tão leves que um sopro

Os faria desabar

Porém grudam feito líquens

Sempre a se multiplicar,

Pois cada vez vem mais gente.

Tem o morro da Macumba,

Tem o morro da Galinha,

E o morro da Catacumba;

Tem o morro do Querosene,

O Esqueleto, o do Noronha,

Tem o morro do Pasmado

E o morro da Babilônia.

Micuçú* * Nota da autora: nome popular de uma cobra da região Norte cujo veneno é mortal. era ladrão,

Assassino, salafrário.

Tinha fugido três vezes

Da pior penitenciária.

Dizem que nunca estuprava,

Mas matou uns quatro ou mais.

Da última vez que escapou

Feriu dois policiais.

Disseram: "Ele vai atrás da tia,

Que criou o sem-vergonha.

Ela tem uma birosca

No morro da Babilônia".

E foi mesmo lá na tia,

Beber e se despedir:

"Eu tenho que me mandar,

Os home tão vindo aí.

Eu peguei noventa anos,

Nem quero viver tudo isso!

Só quero noventa minutos,

Uma cerveja e um chouriço.

"Brigado por tudo, tia,

A senhora foi muito legal.

Vou tentar fugir dos home,

Mas sei que eu vou me dar mal".

Encontrou uma mulata

Logo na primeira esquina.

"Se tu contar que me viu

Tu vai morrer, viu, menina?"

Lá no alto tem caverna,

Tem esconderijo bom,

Tem um forte abandonado

Do tempo de Villegaignon.

Micuçú olhava o mar

E o céu, liso como um muro.

Viu um navio se afastando,

Virando um pontinho escuro,

Uma mosca na parede,

Até desaparecer

Por detrás do horizonte.

E pensou: "Eu vou morrer".

Ouvia berro de cabra,

Ouvia choro de bebê,

Via pipa rabeando,

E pensava: "Eu vou morrer".

Urubu voou bem baixo,

Micuçú gritou: "Péra aí",

Acenando com o braço,

"Que eu ainda não morri!"

Veio helicóptero do Exército

Bem atrás do urubu.

Lá dentro ele viu dois homens

Que não viram Micuçú.

Logo depois começou

Uma barulheira medonha.

Eram os soldados subindo

O morro da Babilônia

Das janelas dos barracos,

As crianças espiavam.

Nas biroscas, os fregueses

Bebiam pinga e xingavam.

Mas os soldados tinham medo

Do terrível meliante.

Um deles, num acesso de pânico,

Metralhou o comandante.

Três dos tiras acertaram

Os outros tiraram fino.

O soldado ficou histérico:

Chorava feito um menino.

O oficial deu suas ordens,

Virou pro lado, suspirou,

Entregou a alma a Deus

E os filhos ao governador.

Buscaram depressa um padre,

Que lhe deu a extrema-unção.

– Ele era de Pernambuco,

O mais moço de onze irmãos.

Queriam parar a busca,

Mas o Exército não quis.

E os soldados continuaram

A procurar o infeliz.

Os ricos, nos apartamentos,

Sem a menor cerimônia,

Apontavam seus binóculos

Pro morro da Babilônia.

Depois, à noite no mato,

Micuçú ficou de vigília,

De ouvido atento, olhando

Pro farol lá longe, na ilha,

Que olhava pra ele também,

Depois dessa noite de insônia

Estava com frio e com fome,

No morro da Babilônia.

O sol nasceu amarelo,

Feio feito um ovo cru.

Aquele sol desgraçado

Era o fim de Micuçú.

Ele via as praias brancas,

Os banhistas bem dormidos,

Com barracas e toalhas.

Mas ele era um foragido.

A praia era um formigueiro:

Toda a areia fervilhava,

E as pessoas dentro d'água

Eram cocos que boiavam.

Micuçú ouviu o pregão

Do vendedor de barraca,

E o homem do amendoim

Rodando sua matraca.

Mulheres que iam à feira

Paravam um pouco na esquina

Pra conversar com as vizinhas,

E às vezes olhavam pra cima.

Os ricos, com seus binóculos,

Voltaram às janelas abertas.

Uns subiam nos telhados

Para assistir mais de perto.

Um soldado – ainda era cedo,

Oito horas, oito e dez –

Fez mira no Micuçú

E errou pela última vez.

Micuçú ouvia o soldado

Ofegando, esbaforido,

Tentou se embrenhar no mato:

Levou uma bala no ouvido.

Ouviu um bebê chorando

E sua vista escureceu.

Um vira-lata latiu.

Então Micuçú morreu.

Tinha um revólver Taurus

E mais as roupas do corpo,

Com dois contos no bolso.

Foi tudo que acharam com o morto.

A polícia e a população

Respiraram aliviadas.

Porém na birosca a tia

Chorava desesperada.

"Eu criei ele direito,

Com carinho, com amor.

Mas não sei, desde pequeno

Micuçú nunca prestou.

"Eu e a irmã dava dinheiro,

Nunca faltou nada, não.

Por que foi que esse menino

Cismou de virar ladrão?

"Eu criei ele direito,

Mesmo aqui, nessa favela".

No balcão os homens bebiam,

Sérios, sem olhar pra ela.

Mas já fora da birosca

Comentou um dos fregueses:

"Ele era um ladrão de merda.

Foi pego mais de seis vezes".

Hoje está chovendo fino

E estão de volta os soldados,

Com fuzis metralhadoras

E capacetes molhados.

Vieram dar mais uma batida,

Só que é outro criminoso.

Mas o pobre Micuçú –

Dizem – era mais perigoso.

Nos morros verdes do Rio

Há uma mancha a se espalhar:

São os pobres que vêm pro Rio

E não têm como voltar.

Tem o morro do Querosene,

O Esqueleto, o do Noronha,

Tem o morro do Pasmado

E o morro da Babilônia.

  • *
    Nota da autora: nome popular de uma cobra da região Norte cujo veneno é mortal.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Jun 2005
    • Data do Fascículo
      Ago 1997
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