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Espaço, cidades e escalas territoriais: novas implicações de políticas de desenvolvimento regional

Space, cities, and territorial scales: new implications for regional development policies

Resumos

O papel do espaço no processo de desenvolvimento socioeconômico constitui um objeto de estudo bastante complexo. Os teóricos da Escola Francesa de Sociologia Urbana elaboraram uma série de estudos nesta área com o intuito de esclarecer as relações entre a forma espacial e os processos sociais. O objetivo do artigo é destacar os principais argumentos desta Escola de Pensamento, o papel desempenhado pelas cidades neste processo e as principais recomendações de políticas de desenvolvimento que surgem a partir de então. A análise sugere que as escalas territoriais tornam-se fundamentais para a dinâmica das economias nacionais, o que lhes concede papel de destaque como objeto de política: medidas intervencionistas devem ser combinadas nas diversas escalas territoriais, considerando a localidade como parte do todo. É preciso repensar a espacialidade, o que contribuirá para o desenvolvimento socioeconômico integrado.

Espaço; Cidades; Escalas territoriais; Desenvolvimento regional; Sociologia urbana


The role of space in the socioeconomic development process is a complex area of study. Theorists of the French School of Urban Sociology developed a number of studies in this area in order to clarify the interactions between the spatial forms and the social processes. The aim of this paper is to highlight the main arguments of these theories, the importance of cities in this process, and recommend development policies which arise thereafter. The analysis suggests that territorial scales become central to the dynamics of national economies. Because of this, they are important as policy objects: interventionist measures should be combined in different territorial scales. This will contribute to an integrated socioeconomic process.

Space; Cities; Territorial scales; Regional development; Urban sociology


Espaço, cidades e escalas territoriais: novas implicações de políticas de desenvolvimento regional

Space, cities, and territorial scales: new implications for regional development policies

Ana Carolina da Cruz LimaI; Rodrigo SimõesII; Roberto Luís de Melo Monte-MórIII

IProfessora Adjunta da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCE/UERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: ana.lima@uerj.br

IIProfessor Associado do Departamento de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (Cedeplar/UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: limoes@cedeplar.ufmg.br

IIIProfessor Associado do Departamento de Ciências Econômicas da UFMG (Cedeplar/UFMG); Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: montemor@cedeplar.ufmg.br

RESUMO

O papel do espaço no processo de desenvolvimento socioeconômico constitui um objeto de estudo bastante complexo. Os teóricos da Escola Francesa de Sociologia Urbana elaboraram uma série de estudos nesta área com o intuito de esclarecer as relações entre a forma espacial e os processos sociais. O objetivo do artigo é destacar os principais argumentos desta Escola de Pensamento, o papel desempenhado pelas cidades neste processo e as principais recomendações de políticas de desenvolvimento que surgem a partir de então. A análise sugere que as escalas territoriais tornam-se fundamentais para a dinâmica das economias nacionais, o que lhes concede papel de destaque como objeto de política: medidas intervencionistas devem ser combinadas nas diversas escalas territoriais, considerando a localidade como parte do todo. É preciso repensar a espacialidade, o que contribuirá para o desenvolvimento socioeconômico integrado.

Palavras-chave: Espaço; Cidades; Escalas territoriais; Desenvolvimento regional; Sociologia urbana.

ABSTRACT

The role of space in the socioeconomic development process is a complex area of study. Theorists of the French School of Urban Sociology developed a number of studies in this area in order to clarify the interactions between the spatial forms and the social processes. The aim of this paper is to highlight the main arguments of these theories, the importance of cities in this process, and recommend development policies which arise thereafter. The analysis suggests that territorial scales become central to the dynamics of national economies. Because of this, they are important as policy objects: interventionist measures should be combined in different territorial scales. This will contribute to an integrated socioeconomic process.

Keywords: Space; Cities; Territorial scales; Regional development; Urban sociology.

JEL R00; B50.

Introdução

O papel desempenhado pelo espaço no processo de desenvolvimento socioeconômico constitui um objeto de estudo bastante complexo. Diversas correntes de pensamento procuraram elaborar conceitos que englobassem as principais características do espaço, entre as quais destaca-se a Escola Francesa de Sociologia Urbana. Seus principais teóricos (Lefebvre, Harvey e Castells) desenvolveram estudos que buscavam definir o espaço de forma mais abrangente, considerando-o um agente ativo na configuração dos processos socais. Além disto, estes teóricos também ressaltaram a importância dos grandes centros urbanos sobre o processo de acumulação capitalista: as cidades seriam o ambiente construído que melhor viabilizaria a concentração e a centralização do capital.

Esta necessidade de analisar a problemática espacial sob uma ótica mais abrangente possibilitou o surgimento de diversos estudos sobre a importância das escalas territoriais para o desenvolvimento econômico, o que gerou novas recomendações de políticas de desenvolvimento territorial, cujo objetivo deve ser o estímulo da dinâmica nacional nas mais variadas esferas de governo (local, regional, nacional, etc.).

O objetivo deste trabalho é destacar os principais argumentos da Escola Francesa de Sociologia Urbana sobre a questão espacial e os processos sociais, evidenciando as recomendações de políticas que surgem a partir de então. Para a consecução do mesmo, são analisados os mecanismos de interação entre o espaço e a configuração das atividades produtivas, com ênfase na questão urbana, dado o relevante papel desempenhado pelas cidades neste processo. A análise permite identificar a importância das escalas territoriais como parte integrante da estratégia de desenvolvimento das economias nacionais.

O artigo está dividido em três seções, além desta introdução. Na primeira delas é discutido o papel do espaço no processo de desenvolvimento socioeconômico. A importância das cidades para a dinâmica do crescimento e as novas recomendações de políticas territoriais são evidenciadas na segunda e na terceira seção, respectivamente. Em seguida são realizadas as considerações finais.

1 A importância do espaço para o desenvolvimento socieconômico

A busca pela definição do conceito "espaço" e de seu papel no processo de desenvolvimento socioeconômico é objeto de estudo das mais variadas áreas do conhecimento, como, por exemplo, filosofia, matemática, física, geografia e economia. Estudiosos destas áreas, especialmente os matemáticos, desenvolveram os conceitos de espaços abstratos, euclidianos, n-dimensionais, etc., com o objetivo de explicar a multiplicidade dos mesmos. Contudo, segundo Lefebvre (1991), as análises realizadas por estes teóricos restringem-se a uma observação descritiva do espaço, o que não permite explicar sua dinâmica, ou seja, como surgem e desaparecem os diferentes tipos de espaço – arquitetônicos, geográficos, econômicos, demográficos, ecológicos, políticos, comerciais, etc. – e como os fluxos entre os mesmos são estabelecidos.

A partir da observação do espaço capitalista – o mercado mundial –, Lefebvre (1991) evidencia que o espaço geográfico não se limita a ser o locus passivo das relações sociais. Pelo contrário, o espaço desempenha papel ativo na construção destas relações ao assegurar a dinâmica do capital, de tal forma que sociedades com modos de produção distintos terão características diferentes, originadas a partir das relações sociais estabelecidas em seus respectivos espaços. Em outras palavras, a dinâmica do capital e o capitalismo influenciam as práticas relacionadas ao espaço por meio da distribuição de investimentos e da divisão do trabalho, estabelecendo relações sociais que se originam no cerne do processo de produção e se concretizam nas transações monetárias. Esta constatação evidencia que as análises descritivas realizadas até então não são capazes de explicar esta dinâmica e, por este motivo, o autor propõe uma teoria que englobe diferentes aspectos do espaço utilizando o conceito de Espaço Unitário.

O Espaço Unitário seria uma categoria para explicar as diferentes formulações do espaço, englobando três importantes aspectos do mesmo, indispensáveis para a sua compreensão, que seriam: aspectos físicos (naturais), mentais (lógicos e abstratos) e sociais. Estes atributos transformam o espaço ativo no processo social e político. Este é um conceito bastante complexo, pois procura cobrir um campo de pesquisa amplo, o que dificulta sua representação matemática e/ou física (hipóteses restritivas) e, consequentemente, a elaboração da Teoria do Espaço Unitário. Outro fator que dificulta sua representação é a ação estatal que, por meio de medidas de regulamentação, influencia a própria configuração do espaço, tornando a análise ainda mais complexa. Apesar da inviabilidade de construção desta teoria, Lefebvre (1991) destaca que não se deve deixar o conceito de Espaço Unitário em segundo plano nas análises realizadas. Pelo contrário, suas constatações implicam que, tendo este conceito em mente, deve-se procurar unificar os vários campos da análise social através da observação dos atuais problemas articulados com problemas de natureza espacial.

Para Lefebvre (1991), o espaço (social) é um produto social, ou seja, cada sociedade produz seu próprio espaço a partir de suas relações sociais, de suas bases produtivas e culturais. Assim, o espaço serve como ferramenta de ideias e ações e funciona como um meio de controle e dominação. Estas afirmações levam às seguintes conclusões, que têm implicações significativas para a análise espacial:

i) O espaço físico (natural) está desaparecendo: em todas as sociedades há um discurso de que é preciso preservar o meio ambiente para sustentar o crescimento futuro e garantir o bem-estar das próximas gerações. Todavia, na prática não é isto que ocorre, pois o processo de produção afeta a natureza de forma cada vez mais intensa (seja por meio da utilização de matérias-primas, seja poluindo os ativos naturais), o que tem prejudicado o espaço físico;

ii) Cada sociedade e, portanto, cada modo de produção, produz seu próprio espaço: cada sociedade tem uma prática social específica que gera um espaço apropriado para a mesma. O espaço social contém representações específicas das interações entre as relações sociais de produção e reprodução (coexistência e coesão) e possui três dimensões. A primeira seria o espaço vivido ou a prática social (inclui a produção e a reprodução das formações sociais), a segunda seria o espaço concebido (ideia de planejamento e concepção do espaço, ou seja, códigos formais para planejar o espaço, aos quais o espaço vivido está articulado) e a terceira seria o espaço percebido/representacional (cada indivíduo percebe o espaço de forma diferente, porque possui dimensões diferentes da forma de viver e de conceber o mesmo. Esta dimensão é essencial para o modo de vida em sociedade, pois apesar das diferentes percepções, os indivíduos se adaptam às normas);

iii) Se o espaço é um produto social, o conhecimento dos indivíduos sobre o mesmo deve ser reproduzido durante o processo de produção: a relação dialética entre suas dimensões condiciona o espaço (a interação entre as mesmas e sua dinâmica ao longo do tempo determinarão a conformação do espaço das diferentes sociedades);

iv) Se o espaço é produzido e se há um processo produtivo, a análise requer uma perspectiva histórica: a história do espaço, sua produção, sua forma e representação não devem ser consideradas apenas casuais e imutáveis ou consequências de costumes, leis, ideologias, estruturas socioeconômicas e instituições. As relações de produção têm papel fundamental na produção do espaço, o que torna as relações casuais acima passíveis de mudanças, ou seja, a sociedade pode intervir e mudar a configuração espacial social; e

v) É preciso distinguir entre ideologia e prática: o que fica no campo ideológico tende a desaparecer e não influencia a conformação do espaço (ex. sociedade socialista). Uma revolução que não produz um novo espaço não cumpriu seu potencial, apenas mudou superestruturas ideológicas, mas não gerou transformação social.

Neste sentido, para viabilizar a inclusão social, políticas econômicas e sociais devem considerar o papel desempenhado pelo espaço no processo de desenvolvimento, ou seja, as mesmas devem alterar o modo de produção social, pois esta mudança resultará em uma nova conformação do espaço11) A passagem de um modo de produção para outro tem grande importância teórica para os propósitos do autor: o espaço do socialismo, ao contrário do capitalismo, seria o espaço da inclusão social (Lefebvre, 1991). (. Além disso, esta mudança não deve ser analisada apenas a partir de um evento histórico específico, mas sim de fatores históricos globais que influenciaram o comportamento da sociedade e de suas instituições. Ressalta-se ainda que a reprodução das relações sociais no espaço está sujeita a duas tendências, que seriam a dissolução de antigas relações de um lado e a geração de novas relações de outro. Alterar estas tendências não é algo trivial, envolve o estudo de questões teóricas e práticas relacionadas ao espaço e implica necessariamente mudanças nas forças produtivas, pois sem estas não há nova conformação espacial e o sistema de exclusão se renova.

Similarmente a análise realizada por Lefebvre, Harvey (1980) procurou evidenciar em seus estudos a importância de relacionar os processos sociais à sua forma espacial, ou seja, a necessidade de integrar à análise as imaginações sociológica e geográfica (ou consciência espacial). A imaginação sociológica permite conhecer o significado histórico e social do indivíduo na sociedade e no período no qual ele tem sua existência e seu ser. Já a imaginação geográfica habilita o indivíduo a relacionar-se aos espaços que ele vê ao seu redor e a reconhecer como as transações entre os indivíduos e entre as organizações são afetadas pelo espaço que os separa, o que o leva a julgar a importância dos acontecimentos em outros lugares, conduzindo-o a encarar e usar o espaço.

Harvey (1980) descreve uma série de avanços teóricos realizados por economistas, cientistas regionais, sociólogos, geógrafos, etc., na tentativa de aprofundar os relacionamentos entre processos sociais e formas espaciais, especialmente nos espaços urbanos (entendidos como sistemas dinâmicos complexos no qual a forma espacial e o processo social estão em contínua interação). Todavia, estes avanços não foram suficientes para explicar a complexidade das cidades, pois em geral cada abordagem enfatiza um elemento específico, ora os processos sociais, ora a forma espacial. Para o autor, qualquer estratégia de análise dos sistemas urbanos deve partir de uma estrutura conceitual adequada, incluindo ambas as imaginações, ou seja, deve-se relacionar o comportamento social com a forma espacial que a cidade assume e reconhecer que uma vez criada uma forma espacial particular, ela tende a se institucionalizar e, em alguns aspectos, a determinar o desenvolvimento futuro do processo social. Por isso é preciso formular conceitos que possibilitem a integração de estratégias capazes de lidar com a complexidade do processo social, os elementos da forma espacial e um conceito mais abrangente de espaço (entender como a forma espacial ganha significado para seus habitantes – percepção pessoal de espaço, moldada pela experiência e influenciada pelo tempo).

Assim, a compreensão do espaço em toda sua complexidade depende de uma apreciação dos processos sociais e a compreensão destes depende da forma espacial. Todavia, trabalhar na intersecção entre imagem sociológica e imagem geográfica não é simples, pois cada situação exige um instrumental de análise específico, o que inviabiliza generalizações sobre o tema. Nas análises existentes até hoje, como as teorias econômicas da localização industrial, é preciso manter a forma espacial ou o processo social constante, o que possui várias limitações para o planejamento e a avaliação de resultados futuros. Estas considerações de Harvey (1980) evidenciam que qualquer estratégia para lidar com os sistemas urbanos deve considerar políticas destinadas a mudar sua forma espacial e seus processos sociais em busca de um objetivo social coerente.

Vale ressaltar que os geógrafos econômicos também têm trabalhado no sentido de melhor identificar o papel desempenhado pelo espaço nos processos econômicos e sociais. Storper (1997) discute que as economias regionais devem ser redefinidas como estoques de ativos de relacionamento (relational assets) e o desenvolvimento regional como a evolução destes ativos. Ele destaca que a característica central do capitalismo contemporâneo é a flexibilidade, visto que as mudanças qualitativas que ocorreram nos últimos anos alteraram as formas de controle das firmas, dos mercados e das instituições, bem como sua extensão espacial e social. Estas mudanças foram tão significativas que grupos de atores em diferentes esferas institucionais podem influenciar o rumo do desenvolvimento econômico. Neste contexto, os agentes que são capazes de aprender de forma mais rápida e continuada se tornam mais competitivos e evitam a relocalização de suas atividades. Os territórios regionais devem ser considerados como escalas de dinâmica própria e não meras divisões do território nacional, pois cada espaço mantém e articula seus atores de forma peculiar, o que se reflete numa grande diversidade da organização econômica entre territórios (estabelecem não apenas relações insumo-produto específicas, mas também fundamentos informacionais e culturais). Assim, os territórios, ao lado das tecnologias e das organizações/instituições, constituem os elementos essenciais para o dinamismo dos projetos econômicos. Ao chamá-los conjuntamente de holy trinity, Storper (1997) tem como objetivo destacar sua importância neste processo. As interações entre estes três elementos são essenciais para compreender porque as atividades econômicas se desenvolvem de forma diferenciada no espaço e evidenciam porque as economias regionais funcionam como ativos relacionais para o desenvolvimento econômico.

No caso do Brasil, Santos (1979) procurou discutir o espaço em toda a sua totalidade, considerando os seus mais variados elementos, que seriam os homens, as firmas, as instituições, as infraestruturas e o meio ecológico. Estes elementos são mutáveis e se inter-relacionam de tal forma que o espaço influencia e é influenciado pelos processos sociais. Neste sentido, cada espaço atribui determinado valor a cada um dos elementos que o constitui e apenas por meio de uma análise conjunta é possível avaliar estes valores. Os elementos espaciais formam um sistema e são influenciados pelo modo de produção dominante. O espaço seria então um sistema complexo submetido à evolução (interna, externa ou inter-cambial) de suas próprias estruturas. A evolução destas, por sua vez, estimula a evolução do espaço como um todo.

Ao buscarem um conceito mais abrangente de espaço, estes teóricos evidenciaram a importância de incorporar à análise econômica a influência que o próprio espaço possui sobre o processo de desenvolvimento. Seus estudos levantam questões essenciais para o entendimento da dinâmica socioeconômica em seus mais variados níveis e representam um avanço para a elaboração e aplicação de políticas de desenvolvimento regional (implicam novas recomendações de políticas, mais amplas). Antes de discutir as principais recomendações de políticas influenciadas por estas correntes de pensamento é preciso destacar o papel desempenhado pelos grandes centros urbanos neste processo.

2 As cidades e o desenvolvimento do modo de produção capitalista

A constatação da influência do espaço sobre o desenvolvimento socioeconômico tem implicações diretas sobre o papel desempenhado pelos grandes centros urbanos neste processo. Se o espaço (social) é um produto social, as cidades, consideradas como um sistema dinâmico complexo no qual a forma espacial e os processos sociais estão em contínua interação (Harvey, 1980), constituem elementos centrais na análise. Gottdiener (1993) evidencia a necessidade de construir formas mais adequadas de análise para compreender os processos criadores dos atuais padrões de reestruturação espacial e da dinâmica urbana, uma vez que a cidade passou a se organizar em áreas regionais hierarquizadas e em permanente expansão. Para o autor, os padrões espaciais e os processos sociais estão mais relacionados dialeticamente do que ligados por ciclos de causa e efeito, o que indica a necessidade de construção de novas formas de pensamento que facilitem o entendimento das forças que alteraram (e alteram) o espaço de assentamento em geral e as cidades em particular.

Ainda segundo Gottdiener (1993), a Escola Francesa de Sociologia Urbana foi aquela que elaborou as principais contribuições para este estudo. Influenciados pelas obras de Karl Marx, seus autores elaboraram teorias que tratam o problema do espaço em um sentido generalizado, equiparando a análise urbana às investigações econômicas, cujas principais contribuições foram realizadas por Henri Lefebvre e Manuel Castells. Suas análises tinham como objetivo desenvolver uma concepção mais global da articulação entre sociedade e espaço, mas com epistemologias distintas.

Castells (1983) realiza um estudo marxista althusseriano (estruturalista) da ciência urbana. Critica as teorias urbanas convencionais (ecologia urbana, Escola de Chicago, etc.) e sua maneira simplista de articular espaço e Estado. Em sua análise, a cidade é um produto do Estado e da economia e, por este motivo, os processos sociais que ocorrem na mesma são bastante peculiares. O urbano seria uma forma específica da sociedade moderna e os aspectos das relações socioespaciais seriam dominados por fatores econômicos, visto que estes determinam a dinâmica do modo capitalista de produção. Assim, o urbano (a cidade) seria uma unidade espacial de reprodução da força de trabalho (o locus da reprodução da força de trabalho). Além disto, o autor evidencia a existência de um "urbanismo dependente" em algumas sociedades contemporâneas, ou seja, algumas sociedades possuem um tipo de urbanismo que surge de situações em que a forma urbana existe como um canal para a extração de quantidades de excedente de um hinterland rural com objetivos de enviá-los para os centros metropolitanos – esta seria uma característica das cidades latino-americanas. Esta noção de urbanismo dependente também pode ser estendida para áreas não-rurais de países/regiões periféricas e a mesma pode assumir diversas faces, dado que a hierarquia existente entre as cidades mundiais é bastante complexa (cidades médias das regiões periféricas trabalham no sentido de permitir a acumulação de suas grandes cidades; e estas, por sua vez viabilizam a acumulação das grandes cidades mundiais)22) É preciso salientar que o conceito de dependência na abordagem de Castells (1983) não se restringe meramente às escalas espaciais, com a exploração exclusiva das pequenas cidades pelos grandes centros urbanos. A ideia intrínseca ao urbanismo dependente engloba relações assimétricas nas quais as formações (espaços) sociais possuem lógica apenas dentro de um sistema global. As unidades espaciais são interligadas e interdependentes dentro de um sistema produtivo específico de tal forma que a relação dialética da extração da mais-valia entre cidades pode ocorrer em diferentes direções. (.

Assim, o espaço urbano seria o território próprio da produção capitalista. O urbano, como consumo econômico, incluiria dimensões de reprodução individual (da força de trabalho) e coletiva (das condições de produção). As ações do Estado na cidade teriam como objetivo viabilizar a reprodução da força de trabalho e, consequentemente, do capital, bem como reduzir o preço da força de trabalho (habitação, transportes, etc.) e aumentar a possibilidade de extração do excedente. O planejamento urbano e as políticas estatais na cidade corresponderiam, então, a ações no campo do consumo para viabilizar a produção da mais-valia. Em resumo, Castells (1983) desenvolve uma teoria dos problemas urbanos e não do espaço per se, evidenciando que os movimentos sociais devem ser o foco das políticas urbanas, o que representa o deslocamento da luta de classes da área de trabalho para o espaço da vida comunal. Contudo, ele resume o espaço aos domínios de produção, consumo e troca, ignorando o domínio de relações sociais, representado pela produção de mais-valia.

Lefebvre (1999) realiza uma abordagem dialética socioespacial e evidencia como as novas técnicas de produção desenvolvidas no final do século XVIII estimularam o crescimento das grandes cidades industriais e comerciais33) Segundo Lefebvre (1999), o papel desempenhado pelas cidades no pensamento marxista aparece primeiramente em "A Ideologia Alemã" (1845-46). Neste trabalho a realidade urbana está em primeiro plano, ainda que de um modo limitado. (. Destaca a importância dos fenômenos urbanos devido à dupla tendência centralizadora do capitalismo: a concentração da população e do capital. A primeira acompanha a segunda em torno das grandes fábricas, onde se constituem vilas que se tornam cidades, pois quanto maior for a cidade, maiores são as vantagens da aglomeração e mais facilmente reúnem-se os elementos da indústria. A tendência centralizadora domina a cidade e cada indústria criada no campo tem em si o germe de uma cidade industrial.

O desenvolvimento das cidades, segundo Lefebvre (1969), ocorre a partir de uma situação de inexistência da cidade até a urbanização completa (absorção do campo pela cidade, ou seja, predominância da produção industrial). A primeira fase deste desenvolvimento seria a cidade política, ou seja, aquela efetivamente realizada e mantida no modo de produção asiático, que organiza a vida agrária dominando-a. A segunda seria a cidade comercial que principia relegando o comércio para sua periferia e que a seguir integra o mercado e ela mesma em uma estrutura social baseada nas trocas, nas comunicações, no dinheiro e na riqueza mobiliária. A seguir vem um ponto crítico: há um recuo da importância da produção agrícola frente à produção artesanal e industrial, ao mercado, ao valor de troca e ao capitalismo nascente. Atinge-se então uma terceira fase, a cidade industrial com suas implicações. Segue-se então um período em que a cidade em expansão se prolifera e invade os campos. O duplo processo de industrialização e urbanização produz um movimento de explosão-implosão. É, portanto, ao redor deste ponto crítico que se situa a atual problemática da cidade e da realidade urbana.

O espaço urbano seria então o retrato das contradições do sistema capitalista de produção (segregação espontânea entre burguesia e proletariado). A divisão do trabalho, industrial e comercial de um lado e agrícola de outro, reflete-se na separação entre cidade e campo e na oposição de seus interesses, de onde se seguem múltiplas divisões e separações particulares das atividades sociais. A cidade destrói a estrutura feudal e a incorpora, transformando-a. No decorrer deste processo ela gera algo diferente e superior a si mesma nos planos econômico (a indústria), social (a propriedade mobiliária) e político (o Estado). Neste contexto, a cidade seria o sujeito da história, aquele a quem se imputa o global, a práxis em seu conjunto. Nela estão concentrados a população, os instrumentos de produção, o capital, as necessidades e o lazer, o trabalho intelectual, etc., o que a separa do campo e bloqueia a totalidade social. A cidade é o suporte e o agente do processo de transição para o sistema capitalista.

A cidade e seu relacionamento com o campo constituem o suporte permanente das mudanças sociais. Mais especificamente, a cidade seria um espaço intermediário de mediação que permite a transformação da terra, tornando-se, em lugar desta, o local da alienação do trabalhador. Ela representa uma força produtiva (mas não é um meio de produção) e intervém ativamente no desenvolvimento e no crescimento. Em outras palavras, a cidade é o lugar privilegiado da acumulação devido à sua capacidade associativa, fundamental para o crescimento econômico (Lefebvre, 1999). A cidade é a sede do econômico e de sua importância; nela o valor de troca vence o valor de uso e há a submissão formal do trabalho ao capital. É a sede do poder político que garante o poder econômico do capital e que protege a propriedade burguesa dos meios de produção.

Todavia, o desenvolvimento da grande indústria moderna retira da cidade a posição de sujeito do processo histórico. A cidade passa a constituir o suporte social do sistema capitalista, ou seja, "a cidade torna-se o pano de fundo do capitalismo" (Lefebvre, 1999, p. 113). Isto não significa que seu papel no processo se encerra. Pelo contrário, nos quadros econômicos e sociais resultantes no interior do modo de produção capitalista, a cidade persiste (grandes cidades industriais, comerciais e políticas), mas seu papel passa a ser ambíguo e mesmo contraditório, pois a continuidade da acumulação depende da supressão da cidade e do campo simultaneamente, ou seja, da generalização do urbano. A cidade continua a desempenhar papel essencial nesta transformação, ainda que não seja seu propulsor, contribuindo para o crescimento das forças produtivas, da produtividade do trabalho e da utilização de técnicas, o que estimula o aumento da população urbana e a importância das cidades.

Neste sentido, a cidade representa a subordinação do espaço ao capital e o espaço perfeitamente apropriado. A cidade e o meio urbano seriam o lugar onde se realizam os ciclos da reprodução, mais amplos e complexos. A reprodução das relações capitalistas de produção implica a reprodução da divisão do trabalho, técnica e social, e a cidade é o lugar desta reprodução. Assim, o espaço urbano é a sede de uma contradição específica, a explosão das cidades. Além disso, a exploração da classe operária é duplicada por meio de uma exploração indireta, que se estende da empresa ao conjunto da vida quotidiana na cidade. Esta situação permanece até que os trabalhadores começam a sentir que eles constituem uma classe na sua totalidade e tomam consciência de que, se isoladamente são fracos, representam todos juntos uma força; as grandes cidades tornam-se sede do movimento operário: é nelas que os mesmos começam a refletir sobre sua situação e sua luta; é onde se manifesta a oposição entre proletariado e burguesia44) Cabe ressaltar que a cidade assume e aperfeiçoa o papel antes desempenhado pelo campo no processo de concentração e centralização do capital (Lefebvre, 1999). Por este motivo, os fenômenos sociais antes delineados no campo, e que evidenciavam as divergências entre os interesses dos capitalistas e dos camponeses, tornam-se mais intensos nos grandes centros urbanos. A consciência de classe dos trabalhadores emerge como a expressão das intensas reivindicações do proletariado urbano, estimulando sua organização..

Lefebvre (1969) ressalta ainda que a industrialização, por ser uma característica da sociedade moderna (ao mesmo tempo em que induz transformações na mesma), deve ser o ponto de partida para discutir a problemática urbana. Esta relação é tão forte que a indústria passou a produzir seus próprios centros urbanos dos mais variados tamanhos (exemplos: Le Creusot, Saint-Etienne, etc.). A indústria apodera-se da cidade, sem impedir a extensão do fenômeno urbano, passando a ocorrer um processo duplo de industrialização e urbanização, crescimento e desenvolvimento, produção econômica e social. Este é um processo dialético, pois existe um choque entre a realidade urbana e a realidade industrial.

Também sob uma perspectiva marxista (geografia crítica) e em uma análise convergente àquela realizada por Lefebvre (1969), Harvey (1980) destaca a complexidade inerente às cidades, o que gera dificuldades para analisar sua dinâmica e seus processos, bem como as várias limitações conceituais das estruturas disciplinares que discutem sua problemática. Segundo este teórico, é preciso reconhecer que uma vez criada uma forma espacial particular (a cidade moderna), ela tende a se institucionalizar e, em alguns aspectos, a determinar o desenvolvimento futuro do processo social. Se o objetivo é entender a trajetória do sistema urbano, é preciso decifrar os relacionamentos funcionais existentes no mesmo, seus processos sociais e sua forma espacial. A cidade é a grande expressão tangível do urbanismo e a questão crucial para entender seu papel no processo de desenvolvimento refere-se à importância dos modos de produção e da organização social sobre as diferentes formas que o urbanismo pode assumir. O urbanismo, enquanto forma social e modo de vida, estabelece uma determinada divisão do trabalho e uma ordem hierárquica das atividades consistentes com o modo de produção vigente, o que possibilita a extração do excedente. Logo, seu estudo pode contribuir para a compreensão das relações sociais na base econômica da sociedade, assim como para compreender outros elementos políticos e ideológicos na superestrutura.

Neste sentido, o papel da cidade consiste em tornar viáveis as possibilidades econômicas, sociais, tecnológicas e institucionais que governam a quantidade da mais-valia nela concentrada. Há "cidades geradoras", que alocam somas consideráveis de mais-valia acumulada dentro de si em formas de investimento que ampliem a produção e há "cidades parasitárias", cuja organização econômica e social é dedicada ao consumo do excedente social. A integração do mercado seria então uma ferramenta para a preservação do urbanismo e da integração espacial, pois estimula a criação, a mobilização e a concentração do excedente social. Assim, considerando o conceito de excedente, o modo de integração econômica e a organização espacial é possível desenvolver uma estrutura para interpretar o urbanismo e sua expressão tangível, a cidade.

Além disto, o significado da cidade depende amplamente de sua localização com respeito à circulação geográfica do excedente (muda o local de concentração do excedente, muda o tipo de urbanização) e ao papel desempenhado pelo Estado, que deve funcionar como uma força contra-balanceadora à potencialidade destrutiva do mercado de troca, sustentando as condições estruturais necessárias à sobrevivência de formas capitalistas de produção. O papel crescente do Estado na sociedade urbanizada tem que ser entendido tomando-se como referência a crescente acumulação de capital, a expansão da produção, a penetração crescente do mercado de troca e a urbanização do campo em escala global.

Para Gottdiener (1993), entre os teóricos aqui relacionados, Lefebvre foi aquele que melhor propôs uma estratégia de análise da articulação complexa entre forças econômicas, políticas e culturais no espaço. Sua Teoria do Espaço é um modo alternativo de pensar as questões urbanas: engloba os conflitos de classe e a questão espacial, destacando inclusive como os interesses fundiários influenciam estas relações. Esta análise permite visualizar que os interesses socioespaciais dividem em frações não só a classe capitalista (industriais e imobiliários, por exemplo) como também a classe trabalhadora, e, por este motivo, o conflito socioespacial não pode ser reduzido à luta de classes sob relações existentes, assim como a ação do espaço não pode ser reduzida ao conceito de terra dos economistas (o valor da terra, especialmente a urbana, é um produto social e isto não pode ser ignorado na análise). Somente através de uma análise da interação entre frações de classe e agrupamentos de raça, gênero e consumo, é possível entender as novas divisões socioespaciais (o espaço social e seus valores não devem ser negligenciados).

3 Novas implicações de políticas de desenvolvimento: a importância das escalas territoriais

As mudanças nas percepções do espaço social e na organização político-econômica em meados da década de 1970 estimularam sobremaneira os movimentos do capital no espaço, devido às maiores possibilidades de concentração e centralização em determinadas localidades (Swyngendouw, 1989). Em um primeiro momento, as mudanças ocorridas na economia mundial (aumento dos mercados, expansão tecnológica, desregulamentação e liberalização econômica, mudanças organizacionais das empresas, etc.) resultaram na compressão do tempo e do espaço pelo capital e introduziram um novo modo de produção, flexível, cujo objetivo seria otimizar as economias de aglomeração, baseadas em atividades localmente integradas e de alto teor tecnológico, o que provocou a desconcentração e a desterritorialização do espaço e de sua estrutura organizacional e concedeu à esfera local papel de destaque nas discussões acadêmicas e na elaboração de políticas econômicas.

A orientação e a organização das políticas regionais e urbanas, antes vistas como extensões das políticas nacionais, foram alteradas em direção ao estímulo das dinâmicas locais (o foco das orientações de políticas espaciais mudou drasticamente), o que resultou na competição e na fragmentação espacial e teve implicações significativas sobre a produção do espaço. A ênfase exagerada na localidade estimulou a elaboração de políticas econômicas direcionadas para a redução das barreiras e a homogeneização do espaço (para facilitar a movimentação do capital e viabilizar sua acumulação), mas também aumentou a competição inter-territorial, comprometendo a coesão das economias nacionais.

A constatação da baixa efetividade das políticas territoriais localizadas e a emergência de novas teorias preocupadas em explicar a importância do espaço no processo de desenvolvimento econômico estimulou, a partir da década de 1990, a elaboração de estudos que procuravam incorporar a questão das escalas geográficas à discussão do papel do meio urbano na determinação da produção do espaço. Brenner (1998) destaca que a problemática da escala espacial e sua produção social deixaram de ser subordinadas às práticas espaciais dentro de escalas geográficas fixas (local, urbana, regional, nacional, global) e passaram a ser vistas como elementos constituintes do processo de interação social.

As escalas espaciais são construídas para manter a posição do capital em cada escala geográfica dentro de determinados padrões hierárquicos de interdependência, o que constitui infraestruturas organizacionais fixas para cada rodada do capital, cujas principais representações são as cidades e os Estados Nacionais. Estas estruturas são organizadas de acordo com a contradição entre os fatores fixos (necessários para o início da acumulação) e móveis (necessários para a expansão da acumulação do capital, que gerará a concentração e a centralização do mesmo) da circulação do capital. Ou seja, estas estruturas garantem condições estáveis para a reprodução do capital, mas ao primeiro sinal de crise do processo de acumulação elas se reconfiguram, criando novas infraestruturas de organização territorial que viabilizem uma nova rodada de acumulação (as escalas são dinâmicas). Os processos urbanos são peças locacionais fundamentais para a espacialidade do capital, visto que a configuração espacial urbana assegura um espaço fixo para o mesmo durante sucessivas rodadas e é reconstruída quando necessário para servir de base geográfica para uma nova onda de acumulação. Assim, a cada rodada do capital há territorialização, desterritorialização e reterritorialização (o capital se acumula no território, mas tende a aniquilá-lo ao superar barreiras no processo de acumulação, o que pode favorecer regiões mais dinâmicas).

Assim, as escalas espaciais são dimensões essenciais da organização territorial capitalista porque são o produto das forças sociais contraditórias associadas às relações de capital e porque as diferentes formas de organização territorial interagem para territorializar o capital em cada escala geográfica. Cada uma destas escalas representa uma arena na qual as contradições espaço-tempo se reproduzem de forma continuada. Além disso, é importante o papel desempenhado pelo Estado Nacional, visto que o mesmo garante, de forma multiescalar, a territorialização do capital (funciona como agente mediador do processo, pois possibilita o aumento da mobilidade de fatores de produção, dos bens de consumo, do fluxo de informações; gera toda infraestrutura necessária para viabilizar a acumulação, ao prover as condições de produção em diferentes escalas geográficas; e regula o desenvolvimento geográfico irregular por meio de suas instituições – cria novos espaços para a acumulação quando a rigidez é prejudicial para a mesma).

Brenner (1998) exemplifica esta contradição fixo-móvel através de movimentos na economia mundial desde o final do século XIX: chega um ponto em que a rigidez das escalas espaciais atrapalha a acumulação, o que cria a necessidade de novas escalas que estimulem a acumulação de capital, ou seja, a crise induz a reestruturação e o re-escalonamento, o que altera a geografia econômica mundial. Isto tem provocado mudanças nas estratégias de localização global, em prol de escalas supra ou sub-nacionais, como forma de manter as vantagens de acumulação oriundas de aglomerações industriais e urbanas.

Lefebvre (1999) já destacava que o capitalismo exige que a cidade seja suprimida para permitir novos ciclos de acumulação, visto que a mesma (escala territorial fixa) torna-se um obstáculo à acumulação capitalista. Em outras palavras, o mesmo capital que exige determinada rigidez de instituições que garantam seu ciclo também exige que estas mesmas instituições sejam flexíveis para que nos momentos de crise de acumulação sejam encontradas novas possibilidades de lucro. Harvey (1980) também discutia como maximizar a equidade no sistema urbano (como controlar seus mecanismos de distribuição de renda). Sua resposta passa pela discussão sobre a organização regional e territorial em um sistema urbano, ou seja, pela questão das escalas espaciais, pois cada problema exige um nível para ser resolvido.

Apesar de os teóricos da Escola Francesa já evidenciarem a importância das escalas territoriais para o processo de desenvolvimento, apenas mais recentemente (a partir da década de 1990), com o relativo fracasso das recomendações de políticas baseadas na esfera local, é que surgem trabalhos que enfatizam a necessidade de combinar políticas em diferentes escalas territoriais para superar o subdesenvolvimento.

Segundo Amin e Thrift (1994), o processo de globalização envolve uma relação dialética entre as esferas global e local, pois a última foi/é transformada pela primeira. Os autores procuram refletir sobre os principais fatores relacionados a este processo com o intuito de desenvolver um framework conceitual que contribua para o entendimento do desenvolvimento econômico regional em uma era de globalização intensa (explorar como o contexto global em que estão inseridas as cidades/regiões se expressa em diferentes tipos de economias locais). A globalização não representa o fim das distinções territoriais, mas sim um conjunto de novos fatores que influenciam as identidades econômicas locais e seus respectivos potenciais de desenvolvimento. Neste contexto, a persistência de aglomerações seria viabilizada pelo papel desempenhado por determinadas condições institucionais (institutional thickness).

Em outras palavras, em uma economia globalizada, a escala de produção capitalista é mundial e, por este motivo, é preciso pensar o que o local significa em termos globais. Apesar de a globalização ser considerada a supressão do tempo e do espaço, observa-se que a diversidade local, dentro e entre regiões, permanece (cada localidade tem sua identidade própria, bem como instituições, governos, consumidores, etc. e permanece como a unidade base da organização política, cultural e econômica). As localidades não devem ser vistas como separadas do todo, pois elas fazem parte do global, são influenciadas pelo mesmo (espaços são justapostos e compartilhados) e sua posição depende de suas janelas de oportunidade. Estes fatos trouxeram à tona o reconhecimento da importância dos arranjos institucionais para o desenvolvimento local no sentido de criar e manter as aglomerações, o que remete ao debate realizado por Granovetter (1985) sobre a imersão social (embeddedness). Este conceito implica que as ações econômicas são influenciadas por relações sociais, o que demonstra a necessidade de considerar não apenas as razões econômicas para a aglomeração da atividade produtiva, mas também as razões sociais e culturais, características de cada localidade (territorial embeddedness).

A robustez institucional torna-se condição fundamental para o desenvolvimento destas localidades e a mesma depende da forte presença institucional local (firmas, instituições financeiras, agências de treinamento, centros de pesquisa e inovação, autoridades locais, associações de comércio, agências governamentais, etc.), da interação entre estas instituições (cooperação, troca de informações, compartilhamento de regras e conhecimento, etc.), da estrutura de dominação vigente e da consciência local de que todos devem trabalhar em prol de um objetivo comum. Há uma sinergia local que produzirá seis resultados principais: i) persistência institucional; ii) construção de um estoque de conhecimento tácito; iii) flexibilidade das organizações; iv) elevada capacidade de inovação; v) confiança e reciprocidade; e vi) senso de inclusão. Estes permitirão que a localidade mantenha sua posição na economia globalizada. Além disso, o nível de contribuição da robustez institucional dependerá também da interação destas localidades com outras partes do mundo (capacidade de evitar o lock in).

Amin (2007) destaca ainda que em uma época de globalização em que todas as localidades estão ligadas, não faz sentido deixar as regiões menos favorecidas resolverem, por seus próprios meios, seus problemas de atraso e privações. Para o autor, políticas regionais de baixo para cima não apenas trazem poucos resultados para as regiões, mas também têm causado poucos impactos sobre as forças causadoras de disparidades sociais. A partir destas constatações e considerando a influência do espaço e das escalas territoriais sobre no processo de desenvolvimento econômico, o autor propõe uma estrutura alternativa de política regional como forma de assegurar que estratégias locais possam florescer. Estas estratégias não podem se restringir apenas à construção de encadeamentos locais, mas devem explorar conexões e fluxos externos virtuosos. Além disso, as obrigações nacionais devem permanecer significativas através de uma ampla política regional nacional e a vida política nacional deve se estender para todas as regiões.

Entre as décadas de 1950 e 1970 havia um consenso de que as estratégias de efetivo desenvolvimento econômico local deveriam fazer parte de uma política mais ampla, visto que as localidades estão interligadas (base teórica: economia política clássica – Keynes, Myrdal, Perroux, Hirschman, Kaldor). Os problemas locais eram entendidos como produto de forças locais e não-locais, cuja solução era vista como uma questão de responsabilidade do governo central, por meio de políticas de objetivos espaciais generalizados. Entretanto, a partir da década de 1980 houve uma reorientação das recomendações de política de desenvolvimento, agora destinadas a promover o empreendedorismo e a inovação em regiões menos favorecidas. A desigualdade espacial passou a ser associada ao legado da intervenção estatal e houve uma redefinição desta disparidade como um problema de origem local, necessitando de solução empresarial. Este novo regionalismo apresenta diversas falhas entre as quais pode-se destacar a ênfase exagerada no local, a falta de controle das forças envolvidas nos espaços da organização transterritorial e o falso pressuposto de que há um território geográfico definido, no qual agentes locais podem exercer controle efetivo e o qual podem administrar como um espaço social e econômico. Estas críticas não se destinam a negar a importância das estratégias de fortalecimento social e de desenvolvimento de baixo para cima, referem-se apenas à ideia de governo exercido tão somente pela comunidade local.

Uma política de desenvolvimento territorial efetiva deve pensar no espaço de forma mais complexa e as regiões não devem ser analisadas como meras entidades espaciais, pois elas não são coesas. Tal constatação tem implicações sobre a definição das estratégias de desenvolvimento regional, pois a imersão cada vez maior da região em um espaço mundial interligado dá origem e estimula um grande número de novos arranjos espaciais (espaços relacionais). Estes novos espaços tornaram-se decisivos para a constituição do local, de tal forma que as regiões são o produto de relações e conexões sociais num mundo globalizado. Logo, é preciso reconhecer os aspectos relacionais da região (redes, processos humanos, fluxos variados, lembranças do passado, etc.), bem como a presença de instituições, normas, etc. A região deve ser vista como um local de intensa justaposição de diferenças e a contiguidade espacial deixa de desempenhar um papel fundamental.

Em uma economia global, constituída de maneira relacional, a política regional deve ser multipolar e alternativa, considerando um conjunto mais amplo de conexões econômicas e deveres institucionais. O esforço local deve ser feito através de amplas conexões e obrigações e não poderá haver uma simples divisão de responsabilidades entre as instituições nacionais e regionais. A ação no âmbito regional não deve ser focalizada apenas em aglomerados locais, ou seja, é preciso encontrar um modo de agir com conectividade em uma economia política integrada (regiões menos desenvolvidas devem tentar superar suas dificuldades por meio de conexões internas e externas). A ação em termos nacionais, fundamental para sustentar as medidas locais, deve assegurar que os termos de troca e os investimentos atuem em favor das regiões menos favorecidas, por meio de medidas especiais para estas regiões, tais como a criação e/ou ampliação de fundos de desenvolvimento regional, melhoria da infraestrutura logística, etc., bem como por meio de economias de dispersão (realocação de atividades do setor público). Estas últimas medidas confeririam às regiões periféricas os recursos institucionais necessários ao seu desenvolvimento. Ou seja, uma reconsideração geográfica da economia nacional aponta para múltiplas geografias de organização e fluxos que transcendem e rompem os limites territoriais regionais. Assim, o pressuposto por trás do regionalismo que favorece as regiões mais prósperas (pick up the winners) deve ser substituído por um princípio mais equânime, no qual não apenas o centro, mas também as demais regiões possuam papeis fundamentais para o desenvolvimento do todo. Além disso, é preciso considerar que as cidades têm um papel importante nesse processo.

Em resumo, Amin (2007) destaca que é preciso repensar a espacialidade do poder nacional, o que contribuirá para a superação das limitações político-econômicas das regiões menos favorecidas. Sem que isso ocorra, suas prioridades de desenvolvimento permanecerão secundárias. A recuperação das regiões periféricas não pode ser uma questão apenas de responsabilidade local, pelo contrário, deve ser parte de uma economia política mais ampla de poder descentralizado e de justiça redistributiva. A sociedade local deve ser entendida como parte de uma sociedade cosmopolita e, por isso, não pode ser considerada de forma isolada, como única responsável por seus problemas e possíveis soluções.

Araújo (2007) evidencia que para entender o caso do Brasil e discutir políticas regionais consistentes com a sua realidade é preciso estar ciente de como o mesmo se inseriu na economia mundial. É preciso ter consciência que a globalização é um processo hierarquizado que privilegia determinadas escalas territoriais – a mundial e a local. A contestação das escalas mundial e local em relação à escala nacional demonstra como é difícil trabalhar com o conceito de globalização, visto que o mesmo não é apenas econômico, mas também social, cultural e ideológico. Para a autora, as bases para a elaboração de uma política de desenvolvimento regional no Brasil devem considerar duas faces de uma mesma realidade: a grande disparidade regional (de oportunidades, infraestrutura, poder, etc.) e a grande diversidade regional. A primeira constitui um grande problema para o desenvolvimento nacional e a segunda um enorme potencial.

As disparidades sociais são encontradas em todas as regiões brasileiras e em todas as escalas de seu território (não tem corte espacial específico). Por esse motivo, elas não serão minimizadas por políticas locais/regionais, ou seja, a política de desenvolvimento regional deve ser delineada em várias escalas, envolver diversos agentes – públicos em especial – e utilizar diversos instrumentos. No Brasil, definir e adotar uma política de desenvolvimento local é importante, mas insuficiente. É necessário elaborar uma política nacional de desenvolvimento regional, que englobe não apenas a esfera federal (a única capaz de articular e intervir em escalas mais amplas), mas uma política que defina desafios e propostas em várias escalas. As regiões Norte e Nordeste continuam a representar os principais desafios na escala macro-regional, mas a política não deve se limitar às mesmas (seguir o exemplo da União Européia que combina políticas supra-nacionais e sub-regionais). O ponto de partida para a elaboração de uma política nacional de desenvolvimento regional proposta por Araújo (2007) é a criação de um Conselho Nacional de Políticas Regionais e de um Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional. Por meio destes instrumentos seriam implementados os objetivos e metas para reduzir as disparidades regionais, via recursos federais, estaduais e privados.

Considerações finais

A década de 1970 marca um período de grandes transformações na economia mundial: a mudança do modo de produção fordista para a acumulação flexível, os avanços nas tecnologias de comunicações e transportes e o aumento das possibilidades de migração do capital no espaço. Estes fenômenos evidenciaram a necessidade de melhor identificar as relações socioespaciais, ou seja, de elaborar conceitos mais amplos do espaço, que capturem suas múltiplas dimensões. A Escola Francesa de Sociologia Urbana foi uma das que mais contribuiu para o estudo da questão espacial. Seus principais teóricos (Lefebvre e Castells) procuraram ressaltar a importância do espaço sobre os processos sociais, como o mesmo influencia e é influenciado pelas relações sociais que se estabelecem em diferentes comunidades e suas implicações sobre o desenvolvimento socioeconômico.

A análise da problemática espacial no novo contexto capitalista de produção evidencia que as formas espaciais, especialmente os grandes centros urbanos, funcionam como suportes do processo de concentração e centralização do capital. As cidades desempenham papel fundamental no processo de acumulação porque viabilizam a reprodução dos fatores de produção ao apresentarem a rigidez e a flexibilidade necessárias para os diversos ciclos de acumulação do capital. As cidades representam assim o ambiente construído que melhor viabiliza a acumulação capitalista.

Estes estudos estimularam várias discussões com o objetivo de identificar a importância das escalas territoriais para o desenvolvimento das economias nacionais. Entre estes destacam-se os trabalhos realizados por Brenner (1998) e Amin (1994 e 2007). Estes estudiosos evidenciam que políticas destinadas a superar o subdesenvolvimento não devem se concentrar em escalas territoriais específicas como tem ocorrido desde meados da década de 1980. Pelo contrário, as políticas devem combinar ações nas diversas escalas territoriais, considerando o desenvolvimento das localidades como parte do todo. É preciso repensar a espacialidade do poder nacional, o que contribuirá para a superação das limitações político-econômicas das regiões menos favorecidas, conforme recomenda Araújo (2007).

No caso do Brasil observa-se que a discussão e a aplicação destes conceitos é bem mais recente. Na década de 1980, as recomendações de políticas econômicas, especialmente territoriais, foram significativamente influenciadas pela questão local e ainda hoje há forte resistência em alterar este paradigma (poucas medidas elaboradas e aplicadas possuíam objetivos locais e regionais/nacionais). Apenas em meados da década de 1990 esta questão ganhou espaço no cenário nacional (mais no acadêmico do que no político), mas ainda de forma bastante tímida e lenta. Poucos autores tratam deste tema, entre os quais Santos (1979, 1993) e Araújo (2007). Segundo estes autores, disparidades econômicas e sociais existem em todas as regiões brasileiras, nas mais variadas escalas territoriais e, por este motivo, elas não serão superadas por políticas de base local. A superação do subdesenvolvimento no Brasil pressupõe a elaboração de uma política nacional de desenvolvimento territorial em várias escalas, que envolva agentes públicos e privados.

Trabalho recebido em 12 de novembro de 2010 e aprovado em 5 de maio de 2013.

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  • 1
    ) A passagem de um modo de produção para outro tem grande importância teórica para os propósitos do autor: o espaço do socialismo, ao contrário do capitalismo, seria o espaço da inclusão social (Lefebvre, 1991).
    (
  • 2
    ) É preciso salientar que o conceito de dependência na abordagem de Castells (1983) não se restringe meramente às escalas espaciais, com a exploração exclusiva das pequenas cidades pelos grandes centros urbanos. A ideia intrínseca ao urbanismo dependente engloba relações assimétricas nas quais as formações (espaços) sociais possuem lógica apenas dentro de um sistema global. As unidades espaciais são interligadas e interdependentes dentro de um sistema produtivo específico de tal forma que a relação dialética da extração da mais-valia entre cidades pode ocorrer em diferentes direções.
    (
  • 3
    ) Segundo Lefebvre (1999), o papel desempenhado pelas cidades no pensamento marxista aparece primeiramente em "
    A Ideologia Alemã" (1845-46). Neste trabalho a realidade urbana está em primeiro plano, ainda que de um modo limitado.
    (
  • 4
    ) Cabe ressaltar que a cidade assume e aperfeiçoa o papel antes desempenhado pelo campo no processo de concentração e centralização do capital (Lefebvre, 1999). Por este motivo, os fenômenos sociais antes delineados no campo, e que evidenciavam as divergências entre os interesses dos capitalistas e dos camponeses, tornam-se mais intensos nos grandes centros urbanos. A consciência de classe dos trabalhadores emerge como a expressão das intensas reivindicações do proletariado urbano, estimulando sua organização.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Jun 2014
    • Data do Fascículo
      Abr 2014

    Histórico

    • Aceito
      05 Maio 2013
    • Recebido
      12 Nov 2010
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