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O Ocaso da Exegese: sobre a performance docente de Gilles Deleuze

RESUMO

Recuperando algumas discussões sobre a performance docente de Gilles Deleuze, presentes em certa literatura francófona recente, esse ensaio apresenta algumas correlações dessa performatividade docente deleuziana com elementos da filosofia do autor. Para tanto, apresenta-se um breve panorama da discussão presente em uma leva de comentadores, articulando-as com discussões conceituais presentes no corpus deleuziano e deleuzo-guattariano. Como hipótese norteadora, defende-se haver em Deleuze uma preocupação em filosofar a partir de um lastro sensível mais do que racional, sendo impossível compreender sua prática docente sem levar em consideração seu apelo por uma sensibilidade filosófica.

Palavras-chave
Gilles Deleuze; Sensibilidade Filosófica; Performance Docente

ABSTRACT

Based on some discussions on the teaching performance of Gilles Deleuze, present in some recent francophone literature, this essay will seek to present some correlations between this Deleuzian teaching performativity and elements of the author’s philosophy. To this end, we will present a brief overview of the discussion found in a series of commentators, correlating them with conceptual discussions present in the Deleuzian and Deleuzian-Guattarian corpus. As a guiding hypothesis, we argue that Deleuze has a concern to philosophize from a sensitive rather than rational perspective, being impossible to understand his teaching practice without taking into consideration his appeal for a philosophical sensitivity.

Keywords
Gilles Deleuze; Philosophical Sensibility; Teaching Performance

Introdução

Exímio professor, Gilles Deleuze procurava construir em suas aulas uma certa atmosfera pedagógica, considerada por muitos como pouco ou nada usual. Uma atmosfera que, nas palavras de Charles Sourié (2015, p. 303)SOURIÉ, Charles. Deleuze Pedagogo: ou a voz do mestre de Vincennes. Linhas, Florianópolis, v. 16, n. 32, p. 286-314, 2015. Disponível em: https://www.revistas.udesc.br/index.php/linhas/article/view/1984723816322015286. Acesso em: 24 mar. 2022.
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, poderia ser denominada de “carismática” dada a exacerbada preocupação deleuziana em promover o “afeto ou a sensibilidade de seu público” e, assim, permitir que temas filosóficos complexos fossem abordados tanto a partir de um lastro sensível quanto de um puramente intelectual1 1 Claude Jaeglé, comentador interessado em discutir uma certa performatividade docente de Deleuze, argumenta que, ao final de uma aula dedicada ao pensamento de Espinosa, o autor de Diferença e Repetição cedeu a palavra a alguns estudantes afoitos em questioná-lo sobre um elemento ou outro do corpus espinosano, mas não sem antes alertá-los: “Nada de teoria. Sentimento, hein!” (Jaeglé, 2005, p. 17). Para Sourié (2015), falas similares àquela relatada por Jaeglé seriam a manifestação do “[…] mal presságio de um filósofo que lamenta a ingenuidade daqueles que especulam a teoria apenas a partir da teoria” (Sourié, 2015, p. 303). . Costumeiramente, Deleuze incitava seus/suas estudantes a realizarem uma leitura capaz de operar uma sensibilidade filosófica, considerada pelo filósofo como um contraponto ao “amargor” característico daqueles/as leitores/as interessados/as unicamente na elaboração de extensos comentários por mera “necessidade de ofício” (Deleuze, 2008DELEUZE, Gilles. En Medio de Spinoza. Buenos Aires: Ediciones Cactus, 2008., p. 51, tradução nossa)2 2 Do original em francês: “besoin d’artisanat”, e “necesidad del oficio”, na versão em espanhol utilizada. . Antes, dizia-lhes, seria mais prudente construir uma relação apaixonada com certos textos, selecionando os/as autores/as desejados/as e, a partir de uma leitura afetiva de suas obras, experimentando intensamente as suas ideias3 3 A temática da leitura afetiva ou em intensidade é algo recorrente no corpus deleuziano, sendo considerada um modo de ler que, diferente daquele considerado por Deleuze como tradicional, possibilitaria ao leitor conectar certas ideias com experimentações vitais por ele empreendidas. Um livro, por conseguinte, capaz de se conectar com a vida – compreendida não enquanto dado biológico, mas força intensiva –, potencializando-a e levando-a a ir além daquilo que ela aparentemente seria capaz de realizar. Certa vez, sobre essa temática, disse Deleuze: “Essa outra leitura é uma leitura em intensidade: algo passa ou não passa. Não há nada a explicar, nada a compreender, nada a interpretar. É do tipo ligação elétrica. Corpo sem órgãos, conheço gente sem cultura que compreendeu imediatamente, graças a seus próprios ‘hábitos’, graças à maneira de se fazer um. […] Essa maneira de ler em intensidade, em relação com o fora, fluxo contrafluxo, máquina com máquinas, experimentações, acontecimentos em cada um que nada têm a ver com um livro, fragmentação do livro, maquinação dela com outras coisas, qualquer coisa… etc., é uma maneira amorosa” (Deleuze, 2007, p. 16-18). .

Eu sonho em fazer alguma coisa acerca dessa sensibilidade filosófica, pois só assim cada um encontrará os autores que ama. Não estou dizendo a vocês que se tornem espinosistas, pouco me importa isso. O que me importa de fato é que vocês encontrem aquilo que lhes faz falta, que vocês encontrem os autores lhes falta, quer dizer, os autores que têm algo para lhes dizer e a quem vocês têm algo a dizer. O que me interessa em filosofia é essa seleção. […] Defendo, antes, que vocês estabeleçam relações moleculares com os autores que leem. Encontrem aquilo que lhes atrai, não passem sequer um segundo criticando algo ou alguém. Nunca, nunca, nunca critiquem. E caso alguém venha a lhes criticar, digam ‘de acordo’ e prossigam, não há nada a fazer

(Deleuze, 2008DELEUZE, Gilles. En Medio de Spinoza. Buenos Aires: Ediciones Cactus, 2008., p. 161, tradução nossa)4 4 Do original: “Yo sueño con hacer alguna cosa sobre la sensibilidade filosófica. Es así que encontrarán los autores que cada uno amará. No estoy diciéndoles que sean spinozistas, porque me importa um bledo. Lo que no importa un bledo es que usteds encuentren lo que hes hace falta, que cada uno de ustedes encuentre los autores que los hacen falta, es decir, los autores que tienen algo para decirles y a quienes ustedes tienen algo que decirles. Lo que a mí me atormenta em filosofia es esa elección. […] Yo abogo por relaciones moleculares con los autores que leen. Encuentren lo que les gusta, no pasen jamás un segundo criticando algo e a alguíen. Nunca, nunca, nunca critiquem. Y si los critican a ustedes, digan de acuerdo y sigan, no hay nada que hacer”. .

Essa incitação por uma relação outra com os/as autores/as estudados/as, mais da ordem do afecto5 5 Para Deleuze e Guattari, o afecto não deve ser compreendido como um sentimento pessoal, individualizado e racionalizado, mas sim a “[…] efetuação de uma potência […], que subleva e faz vacilar o eu” (Deleuze; Guattari, 1997, p. 80). O afecto, por conseguinte, não diz respeito aos sentimentos individuados de um eu, mas sim às potências dessubjetivantes que arrastam o eu para outras paragens ou, em outros termos, remeteria ao processo próprio do devir. do que necessariamente da exegese, partiria de uma aguda percepção de que a filosofia necessitaria sempre de uma relação com o seu fora, com aquilo que Deleuze denominou em certa ocasião de não-filosofia. Em O que é a Filosofia? (Deleuze; Guattari, 1992DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia?Tradução: Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 1992.), obra escrita em parceria com Félix Guattari, amiúde deparamos com uma tal leitura. Seus autores, ali, insistiram na importância do não-filosófico para o desenvolvimento do fazer filosófico ou para a produção de um “devir da filosofia” (Deleuze; Guattari, 1992DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia?Tradução: Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 1992., p. 279), não sendo possível ao filósofo renovar seus modos de pensar sem a produção de uma conexão com um alhures qualquer6 6 Em um outro momento, em uma entrevista publicada no Magazine Littéraire e depois inseria na compilação denominada de Conversações (Deleuze, 2007), o filósofo retomou tal temática e argumentou: “Foi aí [nas aulas em Vincennes] que entendi a que ponto a filosofia tinha necessidade, não só de uma compreensão filosófica, por conceitos, mas de uma compreensão não filosófica, a que opera por perceptos e afectos. Ambas são necessárias. A filosofia está numa relação essencial e positiva com a não-filosofia: ela se dirige diretamente aos não-filósofos […]. Há, por outro lado, um excesso de saber que mata o que é vivo na filosofia. A compreensão não filosófica não é insuficiente nem provisória, é uma das duas metades, uma das duas asas” (Deleuze, 2007, p. 174). . Tal apelo ressoava outro, mais antigo, lançado por Deleuze há tempos no famoso prólogo de Diferença e Repetição (Deleuze, 2006aDELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Tradução: Roberto Machado e Luiz B. Orlandi. São Paulo: Graal, 2006a.). Naquele momento, o filósofo convocava seus/suas leitores/as a prosseguirem com a pesquisa de novos modos de expressão iniciada por campos artísticos diversos – “o teatro ou o cinema” (Deleuze, 2006aDELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Tradução: Roberto Machado e Luiz B. Orlandi. São Paulo: Graal, 2006a., p. 18) –, pois apenas por meio da retomada de uma tal pesquisa seria possível produzir um outro estilo de filosofar e, concomitante, promover um outro modo de existência7 7 Para Deleuze, convém notar, a filosofia é eminentemente crítica, mas tal crítica não segue os parâmetros kantianos, mas sim aqueles elaborados por Friedrich Nietzsche. A filosofia, em sua vertente crítica tal qual vislumbrada por Deleuze no corpus nietzschiano, não procuraria sondar os limites daquilo que podemos conhecer ou fazer, mas avaliar tais limites e, em sua forma mais radical, transpô-los, levando-nos com isso a experienciar outros modos de existência. Tal experimentação passar por uma reconfiguração sensível, sempre. Por esse motivo, em Nietzsche e a Filosofia, comentando acerca dessa tarefa singular, Deleuze argumenta: “[…] na crítica não se trata de justificar, mas sim de sentir de outro modo: uma outra sensibilidade” (Deleuze, 1976, p. 77). . Embora as expressões se modifiquem ao longo do corpus deleuziano – da busca pela construção de um outro estilo de filosofar até a procura por um devir da filosofia –, o intuito parecia sempre ser um só: a necessidade de abdicarmos de um lastro puramente intelectual em filosofia em prol daquela dita sensibilidade filosófica defendida por Deleuze em suas aulas.

A correlação entre essa busca por uma outra maneira de praticar filosofia, expressa em diversos textos do corpus deleuziano, e a prática docente de Deleuze, preocupada em provocar uma sensibilidade filosófica em seus ouvintes, tem sido um ponto de discussão recorrente em certa literatura francófona (Jaeglé, 2005JAEGLÉ, Claude. Portrait Oratoire de Gilles Deleuze aux yeux jounes. Paris: PUF, 2005.; Charbonnier, 2009CHARBONNIER, Sébastien. Deleuze Pédagogue: la fonction transcendantale de l'apprentissage et du problema. Paris: L'Harmattan, 2009.; Boudinet, 2012BOUDINET, Gilles. Deleuze et L'Anti-Pédagogue: vers une esthétique de l'éducation. Paris: L'Harmattan, 2012.; Mengue, 2013MENGUE, Philippe. Faire L'Idiot: la politique de Deleuze. Paris: Germina, 2013.). Para esses comentadores, a busca deleuziana por um outro modo de filosofar não teria se limitado a algum lastro ou apelo teórico no interior de seu pensamento apenas, mas ecoaria em outros tantos espaços ocupados por Deleuze, como aquele da docência. As aulas ministradas pelo autor de Diferença e Repetição poderiam ser compreendidas como uma espécie de laboratório sensível, no qual algumas teorias seriam performadas (Jaeglé, 2005JAEGLÉ, Claude. Portrait Oratoire de Gilles Deleuze aux yeux jounes. Paris: PUF, 2005.) ou dramatizadas (Charbonnier, 2009CHARBONNIER, Sébastien. Deleuze Pédagogue: la fonction transcendantale de l'apprentissage et du problema. Paris: L'Harmattan, 2009.) ou encarnadas (Boudinet, 2012BOUDINET, Gilles. Deleuze et L'Anti-Pédagogue: vers une esthétique de l'éducation. Paris: L'Harmattan, 2012.; Mengue, 2013MENGUE, Philippe. Faire L'Idiot: la politique de Deleuze. Paris: Germina, 2013.). Por ter escrito pouco ou nada sobre educação (Gallo, 2008GALLO, Silvio. Deleuze e a Educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.), afora alguns apontamentos sobre a questão da aprendizagem (Corazza, 2006CORAZZA, Sandra Mara. Artistagens: filosofia da diferença e educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2006.)8 8 Ainda assim, conforme leitura de Sandra Corazza (2006), a discussão sobre aprendizagem apareceria uma única vez em todo o corpus deleuziano e de forma pontual. Diz-nos a autora: “Podem parar de procurar! Só uma única vez, em toa a sua produção, Deleuze fala em aprendizagem” (Corazza, 2006, p. 37). Tal inferência deve ser nuançada, contudo, uma vez que a discussão sobre aprendizagem aparece em três momentos distintos ao menos: em Bergsonismo (Deleuze, 2012), em Diferença e Repetição (Deleuze, 2006a) e em Proust e os Signos (Deleuze, 2010). , os comentadores acima referenciados resgataram suas experiências como ouvintes dos seminários ministrados por Deleuze em Vincennes e procuraram referendar suas posições por meio da rememoração de um certo lastro performático do pensamento deleuziano que teria se manifestado nos rituais professorais adotados pelo autor de Diferença e Repetição em suas aulas.

Na famosa entrevista concedida à Claire Parnet e divulgada sob o epiteto de Abecedário (L’Abécédaire…, 1988L’ABÉCÉDAIRE de Gilles Deleuze. Direção: Pierre-André Boutang e Michel Pamart. Intérpretes: Claire Parnet e Gilles Deleuze. Produção: Pierre-André Boutang. Paris: Éditions du Montparnasse, 1988.), Deleuze não deixou de tecer comentários sobre a importância do ofício docente em sua vida. Ali, na letra P de professor, Deleuze demonstrou levar em alta consideração suas aulas, compreendendo-as como um espaço capaz de inspirá-lo. Não obstante a manifestação de um tal apreço, Deleuze argumentou como, naquele momento de sua vida, parecia ser cada vez mais escassa a inspiração advinda de suas aulas, sobretudo ao levar em consideração os exaustivos ensaios aos quais se submetia antes de cada encontro9 9 Encontramos comentário similar na já mencionada entrevista concedida à Magazine Littéraire, na qual lemos: “As aulas foram uma parte de minha vida, eu as dei com paixão. Não são de modo algum como as conferências, porque implicam uma longa duração, e um público relativamente constante, às vezes durante vários anos. É como um laboratório de pesquisa: dá-se um curso sobre aquilo que se busca e não sobre o que se sabe. É preciso muito tempo de preparação para obter alguns minutos de inspiração. Fiquei satisfeito em parar quando vi que precisava preparar mais e mais para ter uma inspiração mais dolorosa. E o futuro é sombrio porque está cada dia mais difícil fazer pesquisa nas universidades francesas” (Deleuze, 2007, p. 173). . É curioso notar como esses ensaios, segundo relatos colhidos por François Dosse (2010)DOSSE, François. Gilles Deleuze & Félix Guattari: biografia cruzada. Tradução: Fátima Murad. Porto Alegre: Artmed, 2010., não se restringiam apenas ao conteúdo a ser abordado em sala, mas a todo uma performance professoral adotada por Deleuze. Acerca disso, um amigo de Deleuze, Pierre Chevalier, comentou: “Sua aula era amadurecida durante três dias e antes de ministrá-la era como uma preparação física, como antes de uma corrida” (Chevalier10 10 Entrevista realizada por François Dosse (2010) para sua obra Gilles Deleuze & Félix Guattari: biografia cruzada. apud Dosse, 2010DOSSE, François. Gilles Deleuze & Félix Guattari: biografia cruzada. Tradução: Fátima Murad. Porto Alegre: Artmed, 2010., p. 291). Por conta, talvez, desse caráter ritualístico de suas aulas, Deleuze passou a ser considerado pelos autores supramencionados como uma espécie de professor performático.

Tais leituras, de largada, apresentaram uma tarefa positiva importante, qual seja: ressignificar a figura de Deleuze sob uma outra ótica que não a do anedotário. É importante salientar, ainda, o modo como os cursos de Deleuze preparam discussões que, tempos depois, tomariam corpo em seus livros, ou seja, as discussões promovidas em aula não são mero apêndice ao trabalho de pensamento do filósofo francês e possuem desdobramentos filosóficos importantes que não devem ficar restritos ao mero anedotário pessoal. Em relação a esse anedotário, recorrentemente lemos algo acerca da excessiva preocupação de Deleuze com sua figura. A começar por suas vestimentas, consideradas por muitos como algo caricatural (Cressole, 1973CRESSOLE, Michel. Deleuze. Paris: Ed. Universitaires, 1973.), sempre dignas de apreço e responsáveis por lhe conferir certo dandismo, passando por suas extensas unhas e chegando até mesmo ao modo como modulava a sua voz, adotando um tom suave e monocórdio, sendo considerada por uns como algo hipnotizante (Beaubatie, 2000BEAUBATIE, Yannick. Tombeau de Gilles Deleuze. Tulle: Mille Sources, 2000.) e por outros, aristocrático (Sourié, 2015SOURIÉ, Charles. Deleuze Pedagogo: ou a voz do mestre de Vincennes. Linhas, Florianópolis, v. 16, n. 32, p. 286-314, 2015. Disponível em: https://www.revistas.udesc.br/index.php/linhas/article/view/1984723816322015286. Acesso em: 24 mar. 2022.
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). Ao ser confrontado por Parnet sobre sua figura, Deleuze (L’Abécédaire…, 1988L’ABÉCÉDAIRE de Gilles Deleuze. Direção: Pierre-André Boutang e Michel Pamart. Intérpretes: Claire Parnet e Gilles Deleuze. Produção: Pierre-André Boutang. Paris: Éditions du Montparnasse, 1988.) argumentou que tais elementos configurariam mistificações de sua personalidade que, a despeito do efeito produzido, não passariam de suplementos. Os relatos colhidos por seus/suas ex-estudantes, contudo, parecem indicar que essa preocupação não era algo meramente acessório ou suplementar, mas integrava uma experimentação gestual interessada em produzir uma ambiência capaz de reconfigurar a atmosfera sensível e inteligível daqueles/as que se deparavam com tão singular personagem. Em outros termos, sua presença em sala de aula era marcada por certos jogos performáticos (Jaeglé, 2005JAEGLÉ, Claude. Portrait Oratoire de Gilles Deleuze aux yeux jounes. Paris: PUF, 2005.) interessados não em reafirmar o dandismo do professor Deleuze, mas em produzir aquela dita atmosfera pedagógica carismática (Sourié, 2015SOURIÉ, Charles. Deleuze Pedagogo: ou a voz do mestre de Vincennes. Linhas, Florianópolis, v. 16, n. 32, p. 286-314, 2015. Disponível em: https://www.revistas.udesc.br/index.php/linhas/article/view/1984723816322015286. Acesso em: 24 mar. 2022.
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). Algumas de suas falas mais densas, por exemplo, eram enunciadas à meia-voz, permitindo apenas àqueles/as estudantes próximos/as ao professor compreender em minúcias a interpretação dada por Deleuze a algum trecho complexo de Leibniz ou Espinosa, diferente de alguns chistes e outras interpelações, bradadas à pleno pulmão11 11 François Dosse (2010), responsável por elaborar uma bibliografia cruzada de Gilles Deleuze e Félix Guattari, relembra uma aula sobre Espinosa na qual Deleuze iniciou com uma piada teatral digna de um comediante. Ao entrar em sala, Deleuze disse ter se encontrado com um homem no trem portando uma valise similar à sua e, sem perceber, acabou trocando as malas. Aquele homem, infelizmente, seria surpreendido com um exemplar da Éticaespinosana, Deleuze, por seu turno, teria de se contentar em ministrar sua aula com um antigo exemplar de Proust que, aparentemente, aquele seu colega de trem lia no momento. Obviamente, tal escolha remete à necessidade de uma compreensão não-filosófica da filosofia, Proust era o escolhido para tratar de certas passagens do livro que seria estudado naquele momento. . Havia, em suma, certos elementos performáticos nas aulas ministradas por Deleuze, interessadas sempre em operacionalizar aspectos sensíveis de sua interpretação para além das interpretações racionais e, assim, produzir um estilo de filosofar prenhe de afecto.

Esse aspecto performativo das aulas de Deleuze, segundo Gilles Boudinet (2012)BOUDINET, Gilles. Deleuze et L'Anti-Pédagogue: vers une esthétique de l'éducation. Paris: L'Harmattan, 2012., flertaria com elementos de uma dita estética deleuziana, definida não como um conjunto de saberes sobre o belo ou o fenômeno artístico, mas sim como parte de uma teoria da sensação (Buydens, 2005BUYDENS, Mireille. Sahara: l'esthétique de Gilles Deleuze. Paris: Vrin, 2005.). O objeto dessa teoria seria os aspectos intensivos produzidos por um determinado encontro com algum signo sensível, signo este capaz de produzir uma sensibilidade para além do sentir e nos arrastar para outras searas de pensamento. Deleuze trabalhou essa sua desconfiança com certa naturalização do ato de pensar em Proust e os Signos, entre outras obras, defendendo ali que não portamos uma propensão inata ao pensamento, mas só pensamos coagidos por um signo sensível que nos força a apensar. Argumentou Deleuze, naquela ocasião:

Há sempre a violência de um signo que nos força a procurar, que nos rouba a paz. A verdade não é descoberta por afinidade, nem com boa vontade, ela se trai por signos involuntários. O erro da filosofia é pressupor em nós uma boa vontade de pensar, um desejo, um amor natural pela verdade. A filosofia atinge apenas verdades abstratas que não comprometem, nem perturbam. […] As ideias da inteligência só valem por sua significação explícita, portanto convencional. Um dos temas em que Proust mais insiste é este: a verdade nunca é o produto de uma boa vontade prévia, mas o resultado de uma violência sobre o pensamento. […] A verdade depende de um encontro com alguma coisa que nos força a pensar e a procurar o que é verdadeiro. O acaso dos encontros, a pressão das coações são os dois temas fundamentais de Proust. Pois é precisamente o signo que é objeto de um encontro e é ele que exerce sobre nós a violência. O acaso do encontro é que garante a necessidade daquilo que é pensado

(Deleuze, 2010DELEUZE, Gilles. Proust e os Signos. Tradução: Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010., p. 14-15).

Uma estética interessada no movimento, portanto; movimento capaz de nos arrastar de uma seara de saber para uma de não-saber, operando assim um deslocamento ao mesmo tempo sensível e inteligível. Deparamos aqui, uma vez mais, com a proeminência da sensação sobre o pensar, algo corriqueiro no interior do corpus deleuziano, conforme nota Mireille Buydens (2005)BUYDENS, Mireille. Sahara: l'esthétique de Gilles Deleuze. Paris: Vrin, 2005.; visto ser a sensação, compreendida como algo que extravasa os seres individuados com seus modos próprios de sentir e pensar, quem dispara outros modos de pensamento. Tal leitura dialoga com aquela ofertada por Jacques Rancière (2000)RANCIÈRE, Jacques. Existe uma estética deleuziana?. In: ALLIEZ, Éric (Org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Editora 34, 2000. P. 505-516., autor para quem existiria em Deleuze um modo sensível do pensamento, compreendido como “[…] a potência de pensamento que o habita antes do pensamento, sem o conhecimento do pensamento” (Rancière, 2000RANCIÈRE, Jacques. Existe uma estética deleuziana?. In: ALLIEZ, Éric (Org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Editora 34, 2000. P. 505-516., p. 505). Uma potência passível de ser apreendida sensivelmente apenas, por meio das intensidades disparadas quando de um encontro com um signo qualquer. Em resumo, essa estética deleuziana diria respeito a esse modo sensível do pensamento e não a objetos estéticos ou ao belo propriamente e, mais importante, portaria uma dimensão pedagógica ainda pouco explorada, ligada ao movimento próprio que nos conduziria para uma dimensão de não saber. Em Deleuze, toda a educação, se seguirmos a senda argumentativa aberta por Boudinet (2012)BOUDINET, Gilles. Deleuze et L'Anti-Pédagogue: vers une esthétique de l'éducation. Paris: L'Harmattan, 2012., seria antes de ordem estética.

Esse ensaio, interessado em experimentar algumas das correlações disparadas pelas leituras supramencionadas, procurará pensar esse lastro performático referendado por essa literatura francófona recente. Recuperando elementos do corpus deleuziano, procuraremos esmiuçar os modos como essa performance operaria ou, em outras palavras, quais elementos – sensíveis ou conceituais – Deleuze incorporaria em sua performance professoral. Cientes do apelo deleuziano por uma compreensão não-filosófica da filosofia, ou em prol de uma sensibilidade filosófica, compreendemos essa performance professoral levada à cabo por Deleuze como um modo de operar na chave da sensação para além da mera intelecção12 12 Convém pontuar que, para Deleuze e Guattari (1992), em O que é a Filosofia?, o conceito porta também um aspecto sensível, ou seja, a distinção entre o sensível e o inteligível seria meramente formal e, de certo modo, cada um desses lastros não se sustenta sem o aporte do outro. Em suma, como em outros momentos de sua obra, trata-se de um falso dualismo, importando antes aquilo que ocorre no “entre” um termo em outro, na passagem de uma à outra ponto desse par binário. Certa feita, Deleuze pontuou para Claire Parnet: “Só se sai efetivamente dos dualismos deslocando-os como se de um fardo se tratasse, e quando se encontra entre os termos, quer sejam dois ou mais, um desfiladeiro estreito como uma margem ou uma fronteira que vai fazer do conjunto uma multiplicidade, independentemente do número de partes” (Deleuze; Parnet, 2004, p. 160). , de modo a promover um apagamento da sanha exegética que toma de assalto as aulas de filosofia. Acreditamos que o apelo deleuziano por uma sensibilidade filosófica nos instiga a operar com um pensamento sob uma égide da criação, recuperando elementos de um autor para desenvolvê-los no heterogêneo, e não apenas da recognição, por meio da imitação/replicação de certas ideias e/ou mesmo de certa performance, por esse motivo se demonstra necessário procedermos com uma leitura cautelosa dessa performatividade docente de Deleuze, a fim de evitarmos resgatar os registros professorais do pensador sob a égide da imitação apenas.

Um Deleuze Performático?

Em seu Portrait Oratoire de Gilles Deleuze [Retrato oratório de Gilles Deleuze], Claude Jaeglé (2005)JAEGLÉ, Claude. Portrait Oratoire de Gilles Deleuze aux yeux jounes. Paris: PUF, 2005., um ex-ouvinte dos seminários ministrados por Deleuze em Vincennes, procurou reconstruir a performance professoral de seu antigo professor, relembrando os cerimoniais adotados pelo autor de Diferença e Repetição em suas aulas. Tais seminários, de acordo com Jaeglé, assemelhavam-se mais com um evento artístico desenvolvido em um ateliê abarrotado de pessoas, muitas das quais completamente desinteressadas do conteúdo desenvolvido em classe, do que com uma aula propriamente. Deleuze repetia sempre o mesmo ritual, ingressava em sala um tanto tímido e, após colocar seus livros sobre a mesa central, solicitava o fechamento das portas, momento no qual se impunha um estrondoso silêncio; com as portas fechadas, após alguns tresloucados gestos de mão, demandava o fechamento das janelas, gerando alguns segundos de rangidos, só então pigarreava e iniciava de forma calma e monocórdia sua exposição. Ao longo de sua fala, contudo, sua voz ia sofrendo variações de timbre. Em certos momentos, sua fala transmutava-se em um som estridente difícil de ser decifrado, ruído logo entrecortado por uma piada qualquer em tom grave e límpido, seguido de uma troca de olhares com seus observadores. Qual o assunto tratado? Jaeglé (2005)JAEGLÉ, Claude. Portrait Oratoire de Gilles Deleuze aux yeux jounes. Paris: PUF, 2005. diz jamais se lembrar do conteúdo abordado por Deleuze em aula: poderia ser a questão da individualidade em Espinosa ou a alma em Leibniz, lembrava-se apenas das variações vocais de seu professor.

Para Jaeglé (2005)JAEGLÉ, Claude. Portrait Oratoire de Gilles Deleuze aux yeux jounes. Paris: PUF, 2005. essas variações vocais não eram algo aleatório, decorrência de algum mal-estar físico, mas surgiam em momentos específicos da exposição de certos conceitos – “[…] era como se a substância do conceito resultasse de uma operação sonora oculta” (Jaeglé, 2005JAEGLÉ, Claude. Portrait Oratoire de Gilles Deleuze aux yeux jounes. Paris: PUF, 2005., p. 10, tradução nossa)13 13 Do original: “Comme si la substance du concept résultait d’une opération sonore oculte. Une voix d’ogre racontant une histoire de fantômes”. . Não por outro motivo, conseguia identificar um personagem conceitual para cada variação vocal: o gaiato, responsável pelo timbre anasalado e malicioso; o clow, responsável pelas repetições e ritimações; o moribundo, aquele emissor de gemidos estridentes e agonizantes; e, por fim, o anfitrião, responsável pela emissão de ordens burocráticas, sendo considerado por Jaeglé (2005)JAEGLÉ, Claude. Portrait Oratoire de Gilles Deleuze aux yeux jounes. Paris: PUF, 2005. a única personagem que trabalha para o professor público e não para o filósofo propriamente14 14 Deleuze, em alguns momentos de sua obra, trabalha com a distinção entre professor público e pensador privado. Para um panorama dessa discussão, remetemos o leitor a Vinci (2018). . Esse trabalho vocal, ainda conforme o comentador, não seria algo acessório, mas ecoaria o apelo deleuziano pela construção de uma leitura em intensidade dos textos filosóficos, aquela interessada em:

[…] tratar um livro como se ouve um disco, como se vê um filme ou uma emissão televisiva, como se recebe uma canção: qualquer tratamento do livro que exija um respeito especial, uma atenção de outro tipo, vem do passado e condena definitivamente o livro. Não há nenhuma questão de dificuldade nem de compreensão: os conceitos são exatamente como sons, cores ou imagens. São intensidades que vos são ou não convenientes, que passam ou não passam. Pop’filosofia. Não há nada a compreender, nada a interpretar

(Deleuze; Parnet, 2004DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Lisboa: Relógio D'Água, 2004., p. 14, grifos nossos).

Se os conceitos, na concepção deleuziana, devem ser compreendidos como sons, seria de se esperar, defende Jaeglé (2005)JAEGLÉ, Claude. Portrait Oratoire de Gilles Deleuze aux yeux jounes. Paris: PUF, 2005., que na vocalização professoral de Deleuze encontremos algo como a “substância de seus conceitos” (Jaeglé, 2005JAEGLÉ, Claude. Portrait Oratoire de Gilles Deleuze aux yeux jounes. Paris: PUF, 2005., p. 10, tradução nossa)15 15 Do original: “[…] la substance de ses concepts”. . Essa substância, prossegue, não deveria ser confundida com uma explicação qualquer, a vocalização não replicaria algo que estaria latente nos textos escritos por Deleuze, antes performaria um pensamento em ato, recuperando as forças que o agitam e o arrastam. Diz-nos Jaeglé:

Um filósofo pode dizer sua filosofia, mas não a explicar. A exposição dos conceitos seria um testemunho de um pensamento em ato, o objetivo maior dos seminários. Os tempos de explicação, imbuído de certa importância pedagógica, não são representativos do estado de espírito e das forças em ação na elaboração conceitual

(Jaeglé, 2005JAEGLÉ, Claude. Portrait Oratoire de Gilles Deleuze aux yeux jounes. Paris: PUF, 2005., p. 23, tradução nossa)16 16 Do original: “[…] un philosophe peut dire sa philosophie, mais non pas l’expliquer. La diction des concepts comme témoignage d’une pensée em act est bel et bien au coeur des séminaires. Les temps d’explication, d’importance pédagogique, ne sont pas représentatifs de l’état d’espirit et des forces à l’ouvre dans l’élaboration conceptuelle”. .

A vocalização própria do professor Deleuze, por conseguinte, não seria posterior ou anterior à formulação conceitual, não representaria um trabalho de pensamento expresso anteriormente ou posteriormente em seus livros, antes expressaria os embates travados no campo do pensável – tais embates, para o comentador, seriam a substância própria da criação conceitual. Se o pensamento não partiria de uma propensão inata, como deseja Deleuze (2006a)DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Tradução: Roberto Machado e Luiz B. Orlandi. São Paulo: Graal, 2006a., mas sim de uma violência, essas modulações vocais seriam a expressão maior desses movimentos violentos que arrastavam Deleuze para as searas do impensável. A vocalização deleuziana seria uma espécie de “[…] modo primitivo de expressão pelo qual um princípio transbordante se sinaliza no pensamento por meio de uma exclamação imanente” (Jaeglé, 2005JAEGLÉ, Claude. Portrait Oratoire de Gilles Deleuze aux yeux jounes. Paris: PUF, 2005., p. 50, tradução nossa)17 17 Do original: “[…] le mode d’expression primitif par lequel un principe débordant se signale dans la pensée par exclamation imanente”. .

Pela primeira vez, desde as acusações lançadas por Michel Cressole (1973)CRESSOLE, Michel. Deleuze. Paris: Ed. Universitaires, 1973.18 18 Cressole inaugurou, na década de 1970, a leva dos primeiros comentários ao corpus filosófico deleuziano. Em seu livro, Deleuze (Cressole, 1973), o comentador dirigiu uma série de ataques à Deleuze, muitos deles ad hominem. Essas críticas foram encaminhadas em uma carta ao filósofo que as respondeu na famosa “Carta à um crítico severo”, publicada à guisa de prefácio no livro de Cressole e posteriormente integrada na compilação intitulada Conversações. à Deleuze, os modos de se portar e se expressar do pensador francês foram articulados com discussões maiores da filosofia deleuziana e não pensadas à guisa de certo anedotário. Essa correlação, entre obra e vida, abriu uma senda inédita de discussão, prolongada por outros tantos comentadores. Sébastien Charbonnier (2009)CHARBONNIER, Sébastien. Deleuze Pédagogue: la fonction transcendantale de l'apprentissage et du problema. Paris: L'Harmattan, 2009., por exemplo, resgatou esse retrato construído por Jaeglé para pensar o quanto a pedagogia elaborada por Deleuze comportava uma dramatização singular, em diálogo com certos aspectos metodológicos de seu trabalho.

Charbonnier estrutura sua leitura a partir de um comentário ao texto O Método da Dramatização. Ali, Deleuze (2006b)DELEUZE, Gilles. O método da Dramatização. In: ORLANDI, Luiz (Org.). A Ilha Deserta e Outros Textos. São Paulo: Iluminuras, 2006b. P. 129-154. havia insistido sobre a dissociação entre pensamento e uma consciência formada, compreendendo aquele como “[…] um desses movimentos terríveis inconciliáveis com um sujeito formado, qualificado e composto como o do cogito na representação” (Deleuze, 2006bDELEUZE, Gilles. O método da Dramatização. In: ORLANDI, Luiz (Org.). A Ilha Deserta e Outros Textos. São Paulo: Iluminuras, 2006b. P. 129-154., p. 133). Apenas os sujeitos larvares, pré-formados ou não individuados, conseguiriam suportar os movimentos próprios do pensar. O pensamento, nesse diapasão, deveria ser compreendido como uma intensidade, mais do que uma capacidade e/ou uma faculdade própria dos sujeitos individuados. A dificuldade em acessar esse caráter intensivo do pensamento decorre do fato de que nós, sujeitos individuados, raramente possuímos meios de acessar essa força latente de modo imediato. No geral, em nosso cotidiano, lidamos com o pensamento sob a chave da recognição. Mais do que pensar, argumenta Deleuze (2006a)DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Tradução: Roberto Machado e Luiz B. Orlandi. São Paulo: Graal, 2006a., aquilo que comumente fazemos sob o epíteto de pensamento implica apenas um jogo mimético a partir do qual balizamos nossa experiência com categorias construídas de véspera. Qualquer novidade, qualquer acontecimento, por conseguinte, seria sempre referido a partir do passado, de modelos e conceitos pré-fabricados, que implicam uma reconfiguração dos usos de nossas faculdades para operar sob a égide da recognição: “[…] a recognição se define pelo exercício concordante de todas as faculdades sobre um objeto suposto como sendo o mesmo: é o mesmo objeto que pode ser visto, tocado, lembrado, imaginado, concebido” (Deleuze, 2006aDELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Tradução: Roberto Machado e Luiz B. Orlandi. São Paulo: Graal, 2006a., p. 221). Não escapamos, desse modo, do pressuposto da identidade, uma vez que não há nada que não remeta a alguma pressuposição anterior e a ela se refira. Por operar sob essa chave da recognição, a força intensiva do pensamento acabaria por ser calada. Como libertar o pensamento, ali onde ele se encontra aprisionado? Um caminho possível, na leitura empreendida por Charbonnier (2009)CHARBONNIER, Sébastien. Deleuze Pédagogue: la fonction transcendantale de l'apprentissage et du problema. Paris: L'Harmattan, 2009., seria pela recuperação da dramatização própria de cada conceito.

Cada conceito, compreendido por Deleuze (2006b)DELEUZE, Gilles. O método da Dramatização. In: ORLANDI, Luiz (Org.). A Ilha Deserta e Outros Textos. São Paulo: Iluminuras, 2006b. P. 129-154. como a criação máxima da filosofia19 19 Para Deleuze, pensamento seria sempre criação. Em Diferença e Repetição, Deleuze insistia com seus leitores: “[…] pensar é criar, não há outra criação, mas criar é, antes de tudo, engendrar pensar no pensamento” (Deleuze, 2006a, p. 213). Como engendrar pensar no pensamento? Por meio de encontros violentos com signos sensíveis que nos forçariam a pensar. , comportaria um drama próprio, uma espécie de esquematismo que atualiza em algumas linhas toda a força intensiva do pensamento que o originou. Para Deleuze, “[…] o conceito jamais se dividiria nem se especificaria no mundo da representação sem os dinamismos dramáticos que assim o determinam num sistema material sob toda representação possível” (Deleuze, 2006bDELEUZE, Gilles. O método da Dramatização. In: ORLANDI, Luiz (Org.). A Ilha Deserta e Outros Textos. São Paulo: Iluminuras, 2006b. P. 129-154., p. 134). Esses esquemas dramáticos remeteriam aos embates travados entre forças qualitativas distintas no campo do pensar, embates cujos traços seriam evanescidos quando de sua atualização em certas ideias – no caso da filosofia, as ideias são compreendidas como conceitos (Deleuze; Guattari, 1992DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia?Tradução: Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 1992.). Quando de sua atualização, tais conceitos acabariam por abrir o campo do pensável para problematizações nunca imagináveis, uma vez que conseguiriam romper “[…] as dualidades do pensamento ordinário e, ao mesmo tempo, dão às coisas uma verdade nova, uma distribuição nova, um recorte extraordinário” (Deleuze, 2012DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Tradução: Luiz Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2012., p. 103). Esse rompimento não se operaria em uma chave intelectiva apenas, mas por meio de elementos sensíveis que modificariam a imagem do pensamento vigente – aquela responsável por afirmar que pensamos por recognição, apenas – e apontariam para uma outra sensibilidade, capaz de nos abrir para novas formas de pensar e, no limite, viver. Por essa razão, Deleuze (1976)DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976. não deixou de conceber a criação conceitual como uma espécie de acontecimento sensível tanto quanto inteligível. Apreender esse movimento, levando em consideração o momento de erupção de um conceito e regredindo até o campo de forças que o originou, corresponderia à dita dramatização deleuziana. Recuperar tal processo, por conseguinte, implicaria recuperar essa força acontecimental típica do conceito, força capaz de abrir nosso campo de pensamento para problematizações outras.

Charbonnier (2009)CHARBONNIER, Sébastien. Deleuze Pédagogue: la fonction transcendantale de l'apprentissage et du problema. Paris: L'Harmattan, 2009., em diálogo com esse método, compreende que a discussão da dramatização não se esgotou apenas ao campo teórico, mas inspirou uma certa pedagogia utilizada pelo filósofo francês em seus seminários. A performance do professor Deleuze, argumenta o comentador, buscaria trazer à tona a dramatização específica de alguns conceitos, de modo a possibilitar o acesso às intensidades próprias de cada um e instigar seus ouvintes a uma outra apreensão do exercício filosófico, mais sensível do que racional. Sentir de outro modo para que, assim, possam se livrar das amarras dos regimes de inteligibilidade e de sensibilidade vigentes, possibilitando a construção de campos de problematização singulares. Como essa performance balizaria uma pedagogia deleuziana propriamente? Seguindo a discussão deleuziana sobre aprendizagem, Charbonnier (2009)CHARBONNIER, Sébastien. Deleuze Pédagogue: la fonction transcendantale de l'apprentissage et du problema. Paris: L'Harmattan, 2009. insiste que não sabemos como alguém efetivamente aprende algo, portanto convém elaborar um estilo de ensinar que apele não para a memorização de conteúdos, mas para o engajamento afetivo do ouvinte – tal premissa, ademais, poderia ser recuperada por docentes interessados/as em promover outro acesso ao exercício filosófico. Nesse sentido, as aulas de Deleuze seriam laboratórios nos quais elementos teóricos seriam expostos de maneira desinteressada, por meio de uma performance voltada para o exercício da dramatização conceitual, de modo a possibilitar o desenvolvimento de ideias em um heterogêneo20 20 Curiosamente, Gilles Boudinet (2012) apresenta uma leitura similar, mas diferindo radicalmente de Charbonnier. Justamente por conta desse apelo ao sensível, seria impossível pensarmos em uma pedagogia deleuziana, visto que cada qual desdobraria os seus encontros sensíveis em um heterogêneo que raramente coincidiria. Se compreendermos pedagogia como um conjunto de saberes que visa atestar/regular certos resultados, Deleuze não pode ser considerado um pedagogo, antes um anti-pedagogo, uma vez que sua performance professoral visa o inédito, a criação de algo que não encontra referência no mundo e, por isso, jamais poderia ser derivado de uma ação pedagógica. . Para uns, interessaria de fato certa ideia em Espinosa, para outros isso não seria significativo e conviria voltar à Descartes, não importa. O importante seria apenas produzir uma atmosfera por meio da qual cada um se deixe arrastar por um caminho de aprendizagem, sendo convocado a pensar a partir de um campo de problematizações singular para, por fim, permitir a emergência de conceitos próprios.

Embora Charbonnier não partilhe da leitura de Jaeglé sobre as vocalizações próprias de Deleuze, não deixa de considerar que o autor de Diferença e Repetição, ao realizar suas dramatizações, encarnaria também um personagem em suas aulas, qual seja: o do idiota21 21 Sobre uma discussão sobre tal figura no interior do corpus deleuziano, remetemos o leitor à Vinci (2017). . Outro autor, Philippe Mengue (2013)MENGUE, Philippe. Faire L'Idiot: la politique de Deleuze. Paris: Germina, 2013., corrobora tal leitura, insistindo que o único modelo de conduta passível de ser extraído do corpus deleuziano seria aquele oferecido pela figura do idiota. Apenas o idiota, em sua concepção, poderia combater os malefícios da besteira, essa força surgida no século XIX e tornada uma das principais rivais da filosofia. Para Deleuze (2006a)DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Tradução: Roberto Machado e Luiz B. Orlandi. São Paulo: Graal, 2006a., a besteira seria uma espécie de pensamento não efetivado, responsável por criar obstáculos ao pensar. Por meio da besteira, crer-se-ia estar pensando quando na verdade apenas referendaríamos os saberes e valores construídos de véspera, operando assim a favor do pensamento compreendido como recognição. A besteira, por conseguinte, diria respeito ao jogo infantil das perguntas e respostas há tempos denunciado por Deleuze em Bergsonismo, texto no qual atentava:

Com efeito, cometemos o erro de acreditar que o verdadeiro e o falso concernem somente às soluções, que eles começam apenas com as soluções. Esse preconceito é social (pois a sociedade, e a linguagem que dela transmite as palavras de ordem, ‘dão’-nos problemas totalmente feitos, como que saídos de ‘cartões administrativos da cidade’, e nos obrigam a ‘resolvê-los’, deixando-nos uma delgada margem de liberdade). Mais ainda, o preconceito é infantil e escolar, pois o professor é quem ‘dá’ os problemas, cabendo ao aluno a tarefa de descobrir-lhes a solução. Desse modo, somos mantidos em escravidão. A verdadeira liberdade está em um poder de decisão de constituição dos próprios problemas: esse poder, ‘semidivino’, implica tanto o esvaecimento de falsos problemas quanto o surgimento criador de verdadeiros

(Deleuze, 2012DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Tradução: Luiz Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2012., p. 11).

Essa condição de escravidão, a partir da qual não conseguiríamos construir os nossos próprios problemas, seria o principal produto da besteira, responsável por nos alocar em uma relação de submissão aos poderes vigentes e impedir a emergência do pensamento, compreendido por Deleuze (2006a)DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Tradução: Roberto Machado e Luiz B. Orlandi. São Paulo: Graal, 2006a. como um ato criativo. Por qual razão o idiota combateria a besteira? Ora, conforme argumentam Deleuze e Guattari (1992)DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia?Tradução: Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 1992., em um primeiro momento o idiota se identificaria com a imagem do pensador privado, aquele que “[…] forma um conceito com forças inatas que cada um possui de direito por sua conta (eu penso)” (Deleuze; Guattari, 1992DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia?Tradução: Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 1992., p. 83). A força dessa estranha personagem conceitual estaria na sua vontade em querer pensar, mas não pensar aquilo que todos pensam, as besteiras cotidianas, mas pensar por si mesmo ao ponto de ser levado a duvidar de tudo e qualquer coisa. Nesse momento de sua argumentação, Deleuze e Guattari pensam o modo como o idiota se expressa no plano de pensamento de René Descartes, com sua dúvida hiperbólica. Em um outro momento, na Rússia do século XIX, o idiota assume uma outra feição, mais interessante para o horizonte filosófico de Deleuze e Guattari, qual seja: passa a desejar o absurdo, a criação de novos modos de pensar e viver. Diz-nos os autores, sobre esses dois momentos d’o idiota:

O antigo idiota queria evidências, às quais ele chegaria por si mesmo: nessa expectativa, duvidaria de tudo, mesmo de 3 + 2 = 5; colocaria em dúvida todas as verdades. O novo idiota não quer, de maneira alguma, evidências, não se ‘resignará’ jamais a que 3 + 2 = 5, ele quer o absurdo – não é a mesma imagem de pensamento. O antigo idiota queria o verdadeiro, mas o novo quer fazer o absurdo a mais alta potência do pensamento, isto é, criar. […] O antigo idiota queira dar-se conta, por si mesmo, do que era compreensível ou não, razoável ou não, perdido ou salvo, mas o novo idiota quer que lhe devolvam o perdido, o incompreensível, o absurdo. Seguramente não é o mesmo personagem, houve uma mutação. E, todavia, um fio tênue une os dois idiotas, como se fosse necessário o primeiro perdesse a razão para que o segundo reencontrasse o que o outro tinha perdido a princípio, ganhando-a

(Deleuze; Guattari, 1992DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia?Tradução: Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 1992., p. 84-85).

A força do absurdo, nesse diapasão, iria confundir-se com a possibilidade de inventarmos os nossos próprios campos de problemas, bem como os conceitos que os viriam povoar. Os conceitos, segundo Deleuze, possibilitariam ultrapassar as dualidades e banalidades do pensamento ordinário, aquele que sempre operaria sob a égide da recognição, conferindo às coisas “[…] uma verdade nova, uma distribuição nova, um recorte extraordinário” (Deleuze, 2012DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Tradução: Luiz Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2012., p. 103). Para promover essa mudança em seus estudantes, ou na política vigente (Mengue, 2013MENGUE, Philippe. Faire L'Idiot: la politique de Deleuze. Paris: Germina, 2013.), Deleuze passaria a performar certa idiotia em suas aulas.

Percebe-se como, em Deleuze, habitaria um esforço em produzir um deslocamento em relação ao fazer filosófico tradicional que, tanto para Jaeglé (2005)JAEGLÉ, Claude. Portrait Oratoire de Gilles Deleuze aux yeux jounes. Paris: PUF, 2005. quanto Charbonnier (2009)CHARBONNIER, Sébastien. Deleuze Pédagogue: la fonction transcendantale de l'apprentissage et du problema. Paris: L'Harmattan, 2009., se manifestaria também na performance professoral do autor. Filosofar não significaria a elaboração de um intricado sistema, tampouco a formulação de certos esquematismos, mas a abertura para um pensamento outro, compreendido como criação, capaz de modificar os esquemas sensíveis e inteligíveis aos quais estamos cotidianamente submetidos. Toda uma reconfiguração, pois, do nosso viver. O próprio Deleuze, nesse sentido, foi enfático ao afirmar:

Em lugar de um conhecimento que se opõe a vida, um pensamento que afirme a vida. A vida seria a força ativa do pensamento, e o pensamento seria o poder afirmativo da vida. Ambos iriam no mesmo sentido, encadeando-se e quebrando os limites, seguindo-se passo a passo um ao outro, no esforço de uma criação inaudita. Pensar significaria descobrir, inventar novas possibilidades de vida

(Deleuze, 1976DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976., p. 83).

A filosofia, pois, deve servir à criação de novos modos de existência. Natural, por conseguinte, que essa compreensão ecoe nas aulas ministradas por Deleuze. Se para o teórico interessa promover outros modos de existência, o mesmo caberia ao professor. Por esse motivo, de Jaeglé à Boudinet, passando por Charbonnier, todos buscam pensar como essa incitação a um outro modo de filosofar ecoaria na prática pedagógica de Deleuze. Sem sombra de dúvidas, conforme expomos até o momento, podemos traçar inúmeros paralelos entre certas discussões conceituais deleuzianas e a sua prática pedagógica, mas não haveria, nessa literatura, certa confusão entre personagens conceituais e figuras estéticas? Em O que é a Filosofia?, Deleuze e Guattari distinguem personagens conceituais de figuras estéticas. Argumenta, ali, os autores:

Uns são potências de conceitos, os outros, potências de afectos e de perceptos. […] As grandes figuras estéticas do pensamento e do romance, mas também da pintura, da escultura e da música, produzem afectos que transbordam as afecções e percepções ordinárias, do mesmo modo os conceitos transbordam as opiniões correntes

(Deleuze; Guattari, 1992DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia?Tradução: Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 1992., p. 88-89).

Enquanto os personagens conceituais povoam os planos de imanência filosóficos, dando expressão a problemas e conferindo movimento ao pensamento – transmutando-se em “agentes de enunciação” (Deleuze; Guattari, 1992DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia?Tradução: Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 1992., p. 87) de certa filosofia –, as figuras estéticas realizam algo similar, porém em planos de composição artísticos e dando expressão a perceptos e afectos. Ambas as personagens lidam com o caos, o fundo obscuro do pensamento, mas de maneiras distintas e com intenções diversas. Os primeiros procuram povoar o plano de imanência erigido por um filósofo com problemas e questões que demandam, para sua resolução, um movimento de criação conceitual singular. Os segundos, por seu turno, habitam um campo de composição de modo a produzir afectos e perceptos capazes de quebrar com a cadeia sensível na qual estamos imersos, abrindo o nosso campo perceptivo para uma outra sensibilidade.

A despeito de suas diferenças, personagens conceituais e figuras estéticas, bem como plano de imanência e plano de consistência, se intercruzam a todo o instante, não podendo ser considerados entidades estanques sem qualquer relação umas com as outras. Podemos, portanto, povoar um plano de imanência filosófico com uma figura estética, bem como um plano de composição artístico com um personagem conceitual. Sobre essa relação, argumentam Deleuze e Guattari:

Um pensador pode portanto modificar de maneira decisiva o que significa pensar, traçar uma nova imagem de pensamento, instaurar um novo plano de imanência, mas, em lugar de criar novos conceitos que o ocupam, ele o povo com outras instâncias, outras entidades, poéticas, romanescas, ou mesmo pictóricas ou musicais

(Deleuze; Guattari, 1992DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia?Tradução: Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 1992., p. 89).

Embora personagens conceituais e figuras estéticas possam se bifurcar, jamais podemos confundi-las. Cada qual possui uma especificidade, mas isso não as impede de trabalharem em conjunto. Costumeiramente, uma figura estética acaba sendo convocada por um filósofo como uma espécie de intercessor. Intercessores, diz-nos Deleuze (2007)DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução: Peter Pal Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2007., são encontros com signos sensíveis capazes de produzir o famigerado pensar no pensamento. Pode se tratar de um encontro com uma pessoa – como o encontro de Deleuze com Guattari –, com alguma coisa qualquer, com uma planta ou até mesmo animais. Qualquer coisa pode servir como intercessor, desde que produza um deslocamento sensível e nos conduza a searas outras de pensamento. A arte, por conseguinte, pode se tornar uma intercessora importante para o exercício filosófico – “[…] a filosofia, a arte e a ciência entram em relações de ressonância mútua e em relações de troca, mas a cada vez por razões intrínsecas. É em função de sua evolução própria que elas percutem uma na outra” (Deleuze, 2007DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução: Peter Pal Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2007., p. 156). É como nos diz Vasconcellos (2005, p. 1225)VASCONCELLOS, Jorge. A Filosofia e seus Intercessores: Deleuze e a não-filosofia. Educação e Sociedade, Campinas, v. 26, n. 93, p. 1217-1227, 2005.: “O conceito de ‘intercessores’ é fundamental na démarche deleuziana. É por meio dele que podemos relacionar filosofia e arte, criação de conceitos e invenção de imagens, pois em Deleuze a questão fundamental do pensamento é a criação: pensar é inventar o caminho habitual da vida, pensar é fazer o novo, é tornar novamente o pensamento possível. Pensar é produzir ideias”.

Em suas performances professorais, Deleuze quiçá se valha de certas figuras estéticas – o clow, o moribundo e as outras notadas por Jaeglé (2005)JAEGLÉ, Claude. Portrait Oratoire de Gilles Deleuze aux yeux jounes. Paris: PUF, 2005. – para a elaboração de seus conceitos. Tais figuras, atuando como intercessores, possibilitariam ao filósofo escapar de certas amarras filosóficas responsáveis por impedir o pensamento de pensar realmente, tornando-o refém da besteira, e, desse movimento, o auxiliariam na criação conceitual. Contudo, o conceito não pertence propriamente à tais figuras estéticas, mas ao personagem conceitual privilegiado por Deleuze, qual seja: o idiota. Nesse sentido, ressaltamos a importância das leituras de Charbonnier (2009)CHARBONNIER, Sébastien. Deleuze Pédagogue: la fonction transcendantale de l'apprentissage et du problema. Paris: L'Harmattan, 2009., um dos poucos autores a notarem que a única personagem conceitual que podemos depreender tanto da performance professoral de Deleuze quanto do corpus deleuziano seria a do idiota – Mengue (2013)MENGUE, Philippe. Faire L'Idiot: la politique de Deleuze. Paris: Germina, 2013., mais radical, chega a sugerir que o idiota seria a condição de toda e qualquer filosofia, uma espécie de a priori. Apenas o idiota, como insiste Charbonnier, poderia vencer a besteira cotidiana que nos impele a dizer aquilo que todos dizem, pensar pensamentos construídos de véspera etc., apenas ele poderia promover o objetivo último da filosofia deleuziana, qual seja: o ocaso da exegese.

O Ocaso da Exegese

Deleuze, em um pequeno texto interessado a discutir os intercessores em filosofia, recupera a questão da besteira e alega: “[…] a besteira nunca é muda nem cega” (Deleuze, 2007DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução: Peter Pal Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2007., p. 161). Tal afirmação parte do pressuposto de que vivemos em meio a um excesso de comunicação, excesso responsável por nos cercar de “[…] palavras inúteis, de uma quantidade demente de falas e imagens” (Deleuze, 2007DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução: Peter Pal Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2007., p. 161). Em O que é a Filosofia?, Deleuze e Guattari (1992)DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia?Tradução: Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 1992., retornariam à questão do excesso de comunicação, compreendendo-a agora como um impeditivo para a criação conceitual. Ali, lemos: “Não nos falta comunicação, ao contrário, nós temos comunicação demais, falta-nos criação. Falta-nos resistência ao presente” (Deleuze; Guattari, 1992DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia?Tradução: Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 1992., p. 140). Essa massa comunicacional, prenhe de inutilidades, reprime o pensamento ao mesmo tempo que incentiva os indivíduos a se expressarem. Essa expressão individual, contudo, apenas replica certas ideias consensuais erigidas pelo senso comum e referendadas pelo bom senso. Em Diferença e Repetição (2006a), Deleuze insiste no caráter pernicioso do senso comum e do bom senso, compreendendo ambos como modelos de operação a serviço da recognição. Tanto o senso comum quanto o bom senso operam como um pressuposto do pensamento dito dogmático, pressuposto que atrela o ato de pensar a certo exercício natural inerente a todos os seres racionais. Diz-nos Deleuze (2006a, p. 218-219)DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Tradução: Roberto Machado e Luiz B. Orlandi. São Paulo: Graal, 2006a.:

Neste sentido, o pensamento conceitual filosófico tem como pressuposto implícito uma Imagem do pensamento, pré-filosófica e natural, tirada do elemento do senso comum. Segundo esta imagem, o pensamento está em afinidade com o verdadeiro, possui formalmente o verdadeiro e quer materialmente o verdadeiro. E é sobre esta imagem que cada um sabe, que se presume que cada um saiba o que significa pensar. Pouco importa, então, que a filosofia comece pelo objeto ou pelo sujeito, pelo ser ou pelo ente, enquanto o pensamento permanecer submetido a esta imagem que já prejulga tudo, tanto a distribuição do objeto e do sujeito quanto do ser e do ente. Podemos denominar esta imagem do pensamento de imagem dogmática ou ortodoxa, imagem moral.

Continuamos, assim, imersos em um campo problemático construído de véspera, reagindo às suas interpelações com respostas previsíveis. Nesse diapasão, nada criamos e o pensamento continua operando sob a égide da recognição. Para Deleuze (2007, p. 162)DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução: Peter Pal Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2007., romper esse ciclo comunicacional típico da besteira exige a construção de “vacúolos de solidão e de silêncio”. Ora, como produzir tais vacúolos, sobretudo em uma sala de aula?

Deleuze sabia que em suas de aulas, embora pairasse o silêncio, certos ruídos insistiam em perdurar. As perguntas de seus/suas estudantes, por exemplo, costumeiramente apontavam para a necessidade de elucidar uma passagem obscura de determinado autor, compreender melhor o tratamento concedido por um filósofo a alguns conceitos etc. Ora, essa ânsia por uma impecável interpretação dos autores analisados seria decorrência da velha função repressora exercida pela História da Filosofia há muito denunciada por Deleuze (L’Abécédaire…, 1988L’ABÉCÉDAIRE de Gilles Deleuze. Direção: Pierre-André Boutang e Michel Pamart. Intérpretes: Claire Parnet e Gilles Deleuze. Produção: Pierre-André Boutang. Paris: Éditions du Montparnasse, 1988.). Tal função estabeleceria que, antes de buscar pensar por conta própria – tal qual o faz o idiota –, conviria compreender em minúcias o pensamento de um ou outro autor, bem como os modos como determinados problemas foram tratados ao longo dos séculos por uma diferente gama de pensadores. Diante dessa demanda, poucos/as são aqueles/as que encontram o próprio tom. Por esse motivo, Deleuze (2005)DELEUZE, Gilles. Exasperación de la Filosofía: el Leibniz de Deleuze. Buenos Aires: Ediciones Cactus, 2005. insistia tanto com seus/suas estudantes sobre a necessidade de aprenderem a desfilosofar.

O que gostaria de fazer é quase uma operação de desfilosofar. Creio verdadeiramente que não existe leitura filosófica completa, a não ser quando coexiste com uma leitura não-filosófica. Por isso a filosofia é uma questão de especialistas e, ao mesmo tempo, de não especialistas. Uma boa filosofia é eminentemente coisa de especialista, posto que consiste em criar conceitos, porém é também fundamentalmente coisa de não especialistas, porque os conceitos são verdadeiros esboços, esboços de intuições sensíveis

(Deleuze, 2005DELEUZE, Gilles. Exasperación de la Filosofía: el Leibniz de Deleuze. Buenos Aires: Ediciones Cactus, 2005., p. 148).

Desfilosofar, caso ousássemos estabelecer uma definição ao termo, diria respeito a um certo exercício de pensamento que opera a partir de um lastro sensível e não apenas intelectivo. Os conceitos apresentados interessam na medida em que tocam questões vitais, compreendendo aqui não a vida individuada, mas aquela uma vida definida por Deleuze como “[…] uma vida impessoal e, contudo, singular, que resgata um puro acontecimento liberado dos acidentes da vida interior e exterior, ou seja, da subjetividade e da objetividade daquilo que ocorre” (Deleuze, 2016DELEUZE, Gilles. A Imanência: uma vida. In: DELEUZE, Gilles. Dois Regimes de Loucos: textos e entrevistas (1975-1995). Tradução: Guilherme Ivo. São Paulo: Editora 34, 2016. P. 407-415., p. 410). Essa vida, singular e imanente, emerge reconfigurando sensivelmente o espaço do real, produzindo a eclosão das individualidades e possibilitando a reconfiguração objetiva de certas cenas, ainda que de modo efêmero. Tal qual o exemplo recuperado por Deleuze em seu texto, extraído de um livro de Dickens no qual

Um canalha, um sujeito ruim, desprezado por todos, é recolhido morrendo e, aqueles que estão cuidando dele, eis que manifestam um tipo de desvelo, de respeito, de amor para com o menor signo de vida do moribundo. Todo mundo se precipita para salvá-lo, a ponto de o próprio vilão sentir, no mais profundo de seu coma, algo de doce a penetrá-lo. Porém, à medida que retorna à vida, seus salvadores ficam mais frios e ele reencontra toda a sua grosseria, sua maldade. Entre sua vida e sua morte, há um momento que nada mais é do que uma vida jogando com a morte

(Deleuze, 2016DELEUZE, Gilles. A Imanência: uma vida. In: DELEUZE, Gilles. Dois Regimes de Loucos: textos e entrevistas (1975-1995). Tradução: Guilherme Ivo. São Paulo: Editora 34, 2016. P. 407-415., p. 409-410).

Trata-se sempre de uma mudança; convém acentuar, de ordem estética, apenas com a dissolução de nosso sistema de representações sensíveis – o modo como sinto a mim e aos outros, a partir de julgamentos pré-concebidos –, conseguimos apreender outras possibilidades de agir e pensar, ou seja, apenas modificando o nosso modo perceptivo conseguimos experimentar outras possibilidades de pensamento.

No caso de suas aulas, a adoção de certas figuras estéticas visava produzir um deslocamento de uma forma de escuta sistemática, interessada em compreender um sistema de pensamento alheio, para uma de ordem intensiva. Provocar uma escuta atenta para elementos singulares, signos sensíveis capazes de conduzir os/as ouvintes para regiões de não-saber e disparar problemas cujos conceitos capazes de os solucionar ainda estariam por inventar. Esse movimento seria típico do ato de aprender, conforme o compreende Deleuze:

Aprender é tão somente o intermediário entre não-saber e saber, a passagem viva de um ao outro. Pode-se dizer que aprender, afinal de contas, é uma tarefa infinita, mas esta não deixa de ser rejeitada para o lado das circunstâncias e da aquisição posta para fora da essência supostamente simples do saber como inatismo, elemento a priori ou mesmo Ideia reguladora. E, finalmente, a aprendizagem está, antes de mais nada, do lado do rato no labirinto, ao passo que o filósofo fora da caverna considera somente o resultado – o saber – para dele extrair os princípios transcendentais

(Deleuze, 2006aDELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Tradução: Roberto Machado e Luiz B. Orlandi. São Paulo: Graal, 2006a., p. 238).

Essa passagem viva é que interessa fomentar em uma aula, produzi-la é difícil, exige o abandono de velhas fórmulas professorais e a construção de um espaço pedagógico que privilegie os encontros com signos sensíveis singulares. Uma piada, um ruído, uma leitura de Proust, um filme, qualquer coisa. Deleuze o sabia, por isso insistia em adotar uma performance professoral singular, a fim de produzir encontros inusitados e desconectar seus alunos daquela ânsia por compreensão, visando provocar o ocaso do exercício exegético tão caro aos filósofos clássicos. Tudo isso para fazer-lhes acessar o elemento vital de um pensamento, as assinaturas espirituais dos conceitos e os modos de vida que engendram. Conforme argumentou Deleuze em uma aula: “Os conceitos são assinaturas espirituais, porém isso não significa que estejam apenas no intelecto, os conceitos são também modos de vida” (Deleuze, 2005DELEUZE, Gilles. Exasperación de la Filosofía: el Leibniz de Deleuze. Buenos Aires: Ediciones Cactus, 2005., p. 19).

Considerações Finais

Em suas aulas, Deleuze buscava privilegiar o sensível não simplesmente em detrimento do intelectivo, mas em conexão com este. Não havia meta a ser alcançada ou um conteúdo a ser assimilado, nada a compreender de largada. Por esse motivo, Gilles Boudinet (2012)BOUDINET, Gilles. Deleuze et L'Anti-Pédagogue: vers une esthétique de l'éducation. Paris: L'Harmattan, 2012. insistiu que não podemos pensar uma pedagogia de acento deleuziano, ao menos em termos clássicos, uma vez que sua figura professoral se define como a de um anti-pedagogo, por entender que a emergência do pensamento, atividade última de qualquer ação pedagógica, não nasce da replicação de um pensamento pronto, mas de uma outra coisa. “Nunca se aprende fazendo como alguém, mas fazendo com alguém, que não tem relação de semelhança com o que se aprende”, argumento Deleuze em Proust e os Signos (Deleuze, 2010DELEUZE, Gilles. Proust e os Signos. Tradução: Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010., p. 21). Percebemos, pelo excerto em questão, a importância de um intercessor, uma companhia capaz de disparar pensamento. Essa companhia não nos ensina nada, apenas nos desloca. Faz-nos ver algo nunca visto, sentir algo nunca sentido. Essas experimentações sensíveis calam as palavras inúteis propagadas pela besteira, obrigam-nos a vivenciar um campo de experiências sem qualquer mediação intelectiva – faltam-nos palavras, em outros termos. Essa carência de expressões capazes de dar forma ao desconhecido produzem os vacúolos de solidão e silêncio, vacúolos que nos possibilitam, por fim, pensar.

Sem dúvida que tal discussão soa por demais abstrata, Deleuze jamais se imaginou ofertando uma fórmula pronta para produzir pensamento, por considerar ser impossível saber como alguém produz pensar no pensamento ou, em outras palavras, como alguém aprende. Isso não o impediu, contudo, de pensar estratégias ou de buscar aliados na construção de modos expressivos capazes de produzir uma outra relação com o pensar – livros como o Anti-Édipo, uma das experimentações mais radicais de Deleuze, o comprovam. Ao longo de sua obra, por sua vez, deparamos com pistas sobre essas estratégias: o uso de intercessores, a remissão a certas experimentações literárias etc. Todas essas estratégias apontam para uma tentativa de operar filosoficamente com elementos não-filosóficos, pois apenas assim seria possível provocar o dito devir da filosofia. As discussões sobre o quanto essas estratégias foram incorporadas por Deleuze em seu labor professoral abrem um campo de investigação novo àqueles/as interessados/as em sua filosofia, uma vez que permite perceber que tais estratégias não se limitaram ao campo teórico apenas, mas ecoaram em uma performatividade docente singular. Ao recuperarmos os relatos de seus antigos estudantes, percebemos o quanto Deleuze se valeu de figuras estéticas, deu vazão a personagens conceituais – o idiota – e buscou emitir signos sensíveis mais do que fórmulas inteligíveis em suas aulas. Como operar com esse fato, contudo?

Ora, embora possamos observar elementos performáticos integrados na prática docente de Deleuze, que ecoam estratégias utilizadas em suas obras teóricas, isso não significa que devemos buscar correlações tão estreitas entre essas esferas. O apelo de Deleuze para que seus/suas leitores/as buscassem estabelecer uma relação intensiva com seus escritos, poderia se estender também para pensarmos sua performance docente, prenhe de “[…] intensidades que vos são ou não convenientes” (Deleuze; Parnet, 2004DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Lisboa: Relógio D'Água, 2004., p. 14). Não podemos negar, contudo, a existência de uma demanda por avaliarmos a nossa própria performance docente à luz dessa discussão, buscando sondar os elementos que operamos em nossas aulas – os intercessores e as conexões por nós realizadas. Esse apelo, de fato, já se encontra nos escritos teóricos de Deleuze, suas aulas demonstram ser possível levar tais instigações para o espaço da sala de aula, mas não como Deleuze o fez. Antes, convém recuperar os jogos performáticos do autor de Diferença e Repetiçãocomo signos, entendendo que “[…] nada aprendemos com aquele que nos diz: faça como eu. Nossos únicos mestres são aqueles que nos dizem ‘faça comigo’ e que, em vez de nos propor gestos a serem reproduzidos, sabem emitir signos a serem desenvolvidos no heterogêneo” (Deleuze, 2006aDELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Tradução: Roberto Machado e Luiz B. Orlandi. São Paulo: Graal, 2006a., p. 48).

  • 1
    Claude Jaeglé, comentador interessado em discutir uma certa performatividade docente de Deleuze, argumenta que, ao final de uma aula dedicada ao pensamento de Espinosa, o autor de Diferença e Repetição cedeu a palavra a alguns estudantes afoitos em questioná-lo sobre um elemento ou outro do corpus espinosano, mas não sem antes alertá-los: “Nada de teoria. Sentimento, hein!” (Jaeglé, 2005JAEGLÉ, Claude. Portrait Oratoire de Gilles Deleuze aux yeux jounes. Paris: PUF, 2005., p. 17). Para Sourié (2015)SOURIÉ, Charles. Deleuze Pedagogo: ou a voz do mestre de Vincennes. Linhas, Florianópolis, v. 16, n. 32, p. 286-314, 2015. Disponível em: https://www.revistas.udesc.br/index.php/linhas/article/view/1984723816322015286. Acesso em: 24 mar. 2022.
    https://www.revistas.udesc.br/index.php/...
    , falas similares àquela relatada por Jaeglé seriam a manifestação do “[…] mal presságio de um filósofo que lamenta a ingenuidade daqueles que especulam a teoria apenas a partir da teoria” (Sourié, 2015SOURIÉ, Charles. Deleuze Pedagogo: ou a voz do mestre de Vincennes. Linhas, Florianópolis, v. 16, n. 32, p. 286-314, 2015. Disponível em: https://www.revistas.udesc.br/index.php/linhas/article/view/1984723816322015286. Acesso em: 24 mar. 2022.
    https://www.revistas.udesc.br/index.php/...
    , p. 303).
  • 2
    Do original em francês: “besoin d’artisanat”, e “necesidad del oficio”, na versão em espanhol utilizada.
  • 3
    A temática da leitura afetiva ou em intensidade é algo recorrente no corpus deleuziano, sendo considerada um modo de ler que, diferente daquele considerado por Deleuze como tradicional, possibilitaria ao leitor conectar certas ideias com experimentações vitais por ele empreendidas. Um livro, por conseguinte, capaz de se conectar com a vida – compreendida não enquanto dado biológico, mas força intensiva –, potencializando-a e levando-a a ir além daquilo que ela aparentemente seria capaz de realizar. Certa vez, sobre essa temática, disse Deleuze: “Essa outra leitura é uma leitura em intensidade: algo passa ou não passa. Não há nada a explicar, nada a compreender, nada a interpretar. É do tipo ligação elétrica. Corpo sem órgãos, conheço gente sem cultura que compreendeu imediatamente, graças a seus próprios ‘hábitos’, graças à maneira de se fazer um. […] Essa maneira de ler em intensidade, em relação com o fora, fluxo contrafluxo, máquina com máquinas, experimentações, acontecimentos em cada um que nada têm a ver com um livro, fragmentação do livro, maquinação dela com outras coisas, qualquer coisa… etc., é uma maneira amorosa” (Deleuze, 2007DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução: Peter Pal Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2007., p. 16-18).
  • 4
    Do original: “Yo sueño con hacer alguna cosa sobre la sensibilidade filosófica. Es así que encontrarán los autores que cada uno amará. No estoy diciéndoles que sean spinozistas, porque me importa um bledo. Lo que no importa un bledo es que usteds encuentren lo que hes hace falta, que cada uno de ustedes encuentre los autores que los hacen falta, es decir, los autores que tienen algo para decirles y a quienes ustedes tienen algo que decirles. Lo que a mí me atormenta em filosofia es esa elección. […] Yo abogo por relaciones moleculares con los autores que leen. Encuentren lo que les gusta, no pasen jamás un segundo criticando algo e a alguíen. Nunca, nunca, nunca critiquem. Y si los critican a ustedes, digan de acuerdo y sigan, no hay nada que hacer”.
  • 5
    Para Deleuze e Guattari, o afecto não deve ser compreendido como um sentimento pessoal, individualizado e racionalizado, mas sim a “[…] efetuação de uma potência […], que subleva e faz vacilar o eu” (Deleuze; Guattari, 1997DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Volume 2. São Paulo: Editora 34, 1997., p. 80). O afecto, por conseguinte, não diz respeito aos sentimentos individuados de um eu, mas sim às potências dessubjetivantes que arrastam o eu para outras paragens ou, em outros termos, remeteria ao processo próprio do devir.
  • 6
    Em um outro momento, em uma entrevista publicada no Magazine Littéraire e depois inseria na compilação denominada de Conversações (Deleuze, 2007DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução: Peter Pal Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2007.), o filósofo retomou tal temática e argumentou: “Foi aí [nas aulas em Vincennes] que entendi a que ponto a filosofia tinha necessidade, não só de uma compreensão filosófica, por conceitos, mas de uma compreensão não filosófica, a que opera por perceptos e afectos. Ambas são necessárias. A filosofia está numa relação essencial e positiva com a não-filosofia: ela se dirige diretamente aos não-filósofos […]. Há, por outro lado, um excesso de saber que mata o que é vivo na filosofia. A compreensão não filosófica não é insuficiente nem provisória, é uma das duas metades, uma das duas asas” (Deleuze, 2007DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução: Peter Pal Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2007., p. 174).
  • 7
    Para Deleuze, convém notar, a filosofia é eminentemente crítica, mas tal crítica não segue os parâmetros kantianos, mas sim aqueles elaborados por Friedrich Nietzsche. A filosofia, em sua vertente crítica tal qual vislumbrada por Deleuze no corpus nietzschiano, não procuraria sondar os limites daquilo que podemos conhecer ou fazer, mas avaliar tais limites e, em sua forma mais radical, transpô-los, levando-nos com isso a experienciar outros modos de existência. Tal experimentação passar por uma reconfiguração sensível, sempre. Por esse motivo, em Nietzsche e a Filosofia, comentando acerca dessa tarefa singular, Deleuze argumenta: “[…] na crítica não se trata de justificar, mas sim de sentir de outro modo: uma outra sensibilidade” (Deleuze, 1976DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976., p. 77).
  • 8
    Ainda assim, conforme leitura de Sandra Corazza (2006)CORAZZA, Sandra Mara. Artistagens: filosofia da diferença e educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2006., a discussão sobre aprendizagem apareceria uma única vez em todo o corpus deleuziano e de forma pontual. Diz-nos a autora: “Podem parar de procurar! Só uma única vez, em toa a sua produção, Deleuze fala em aprendizagem” (Corazza, 2006CORAZZA, Sandra Mara. Artistagens: filosofia da diferença e educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2006., p. 37). Tal inferência deve ser nuançada, contudo, uma vez que a discussão sobre aprendizagem aparece em três momentos distintos ao menos: em Bergsonismo (Deleuze, 2012DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Tradução: Luiz Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2012.), em Diferença e Repetição (Deleuze, 2006aDELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Tradução: Roberto Machado e Luiz B. Orlandi. São Paulo: Graal, 2006a.) e em Proust e os Signos (Deleuze, 2010DELEUZE, Gilles. Proust e os Signos. Tradução: Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.).
  • 9
    Encontramos comentário similar na já mencionada entrevista concedida à Magazine Littéraire, na qual lemos: “As aulas foram uma parte de minha vida, eu as dei com paixão. Não são de modo algum como as conferências, porque implicam uma longa duração, e um público relativamente constante, às vezes durante vários anos. É como um laboratório de pesquisa: dá-se um curso sobre aquilo que se busca e não sobre o que se sabe. É preciso muito tempo de preparação para obter alguns minutos de inspiração. Fiquei satisfeito em parar quando vi que precisava preparar mais e mais para ter uma inspiração mais dolorosa. E o futuro é sombrio porque está cada dia mais difícil fazer pesquisa nas universidades francesas” (Deleuze, 2007DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução: Peter Pal Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2007., p. 173).
  • 10
    Entrevista realizada por François Dosse (2010)DOSSE, François. Gilles Deleuze & Félix Guattari: biografia cruzada. Tradução: Fátima Murad. Porto Alegre: Artmed, 2010. para sua obra Gilles Deleuze & Félix Guattari: biografia cruzada.
  • 11
    François Dosse (2010)DOSSE, François. Gilles Deleuze & Félix Guattari: biografia cruzada. Tradução: Fátima Murad. Porto Alegre: Artmed, 2010., responsável por elaborar uma bibliografia cruzada de Gilles Deleuze e Félix Guattari, relembra uma aula sobre Espinosa na qual Deleuze iniciou com uma piada teatral digna de um comediante. Ao entrar em sala, Deleuze disse ter se encontrado com um homem no trem portando uma valise similar à sua e, sem perceber, acabou trocando as malas. Aquele homem, infelizmente, seria surpreendido com um exemplar da Éticaespinosana, Deleuze, por seu turno, teria de se contentar em ministrar sua aula com um antigo exemplar de Proust que, aparentemente, aquele seu colega de trem lia no momento. Obviamente, tal escolha remete à necessidade de uma compreensão não-filosófica da filosofia, Proust era o escolhido para tratar de certas passagens do livro que seria estudado naquele momento.
  • 12
    Convém pontuar que, para Deleuze e Guattari (1992)DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia?Tradução: Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 1992., em O que é a Filosofia?, o conceito porta também um aspecto sensível, ou seja, a distinção entre o sensível e o inteligível seria meramente formal e, de certo modo, cada um desses lastros não se sustenta sem o aporte do outro. Em suma, como em outros momentos de sua obra, trata-se de um falso dualismo, importando antes aquilo que ocorre no “entre” um termo em outro, na passagem de uma à outra ponto desse par binário. Certa feita, Deleuze pontuou para Claire Parnet: “Só se sai efetivamente dos dualismos deslocando-os como se de um fardo se tratasse, e quando se encontra entre os termos, quer sejam dois ou mais, um desfiladeiro estreito como uma margem ou uma fronteira que vai fazer do conjunto uma multiplicidade, independentemente do número de partes” (Deleuze; Parnet, 2004DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Lisboa: Relógio D'Água, 2004., p. 160).
  • 13
    Do original: “Comme si la substance du concept résultait d’une opération sonore oculte. Une voix d’ogre racontant une histoire de fantômes”.
  • 14
    Deleuze, em alguns momentos de sua obra, trabalha com a distinção entre professor público e pensador privado. Para um panorama dessa discussão, remetemos o leitor a Vinci (2018)VINCI, Christian Fernando Ribeiro Guimarães. Entre o Professor Público e o Pensador Privado: a figura do mestre em Deleuze. ETD – Educação Temática Digital, Campinas, v. 20, n. 4, p. 1018-1035, 2018..
  • 15
    Do original: “[…] la substance de ses concepts”.
  • 16
    Do original: “[…] un philosophe peut dire sa philosophie, mais non pas l’expliquer. La diction des concepts comme témoignage d’une pensée em act est bel et bien au coeur des séminaires. Les temps d’explication, d’importance pédagogique, ne sont pas représentatifs de l’état d’espirit et des forces à l’ouvre dans l’élaboration conceptuelle”.
  • 17
    Do original: “[…] le mode d’expression primitif par lequel un principe débordant se signale dans la pensée par exclamation imanente”.
  • 18
    Cressole inaugurou, na década de 1970, a leva dos primeiros comentários ao corpus filosófico deleuziano. Em seu livro, Deleuze (Cressole, 1973CRESSOLE, Michel. Deleuze. Paris: Ed. Universitaires, 1973.), o comentador dirigiu uma série de ataques à Deleuze, muitos deles ad hominem. Essas críticas foram encaminhadas em uma carta ao filósofo que as respondeu na famosa “Carta à um crítico severo”, publicada à guisa de prefácio no livro de Cressole e posteriormente integrada na compilação intitulada Conversações.
  • 19
    Para Deleuze, pensamento seria sempre criação. Em Diferença e Repetição, Deleuze insistia com seus leitores: “[…] pensar é criar, não há outra criação, mas criar é, antes de tudo, engendrar pensar no pensamento” (Deleuze, 2006aDELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Tradução: Roberto Machado e Luiz B. Orlandi. São Paulo: Graal, 2006a., p. 213). Como engendrar pensar no pensamento? Por meio de encontros violentos com signos sensíveis que nos forçariam a pensar.
  • 20
    Curiosamente, Gilles Boudinet (2012)BOUDINET, Gilles. Deleuze et L'Anti-Pédagogue: vers une esthétique de l'éducation. Paris: L'Harmattan, 2012. apresenta uma leitura similar, mas diferindo radicalmente de Charbonnier. Justamente por conta desse apelo ao sensível, seria impossível pensarmos em uma pedagogia deleuziana, visto que cada qual desdobraria os seus encontros sensíveis em um heterogêneo que raramente coincidiria. Se compreendermos pedagogia como um conjunto de saberes que visa atestar/regular certos resultados, Deleuze não pode ser considerado um pedagogo, antes um anti-pedagogo, uma vez que sua performance professoral visa o inédito, a criação de algo que não encontra referência no mundo e, por isso, jamais poderia ser derivado de uma ação pedagógica.
  • 21
    Sobre uma discussão sobre tal figura no interior do corpus deleuziano, remetemos o leitor à Vinci (2017)VINCI, Christian Fernando Ribeiro Guimarães. Humorística e Sensibilidade Filosófica em Gilles Deleuze. Prometheus – Journal of Philosophy, Aracaju, v. 10, n. 23, p. 167-187, 2017..

Disponibilidade dos dados da pesquisa

o conjunto de dados de apoio aos resultados deste estudo está publicado no próprio artigo.

Referências

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  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia?Tradução: Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 1992.
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Editado por

Editora responsável: Fabiana de Amorim Marcello

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    27 Abr 2022
  • Aceito
    27 Abr 2023
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