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A ORGANIZAÇÃO MILITAR: INSTITUIÇÃO EDUCATIVA, SEUS DIFERENTES SUJEITOS E CULTURA ESCOLAR NA CAPITANIA DE MATO GROSSO

MILITARY ORGANIZATION: EDUCATIVE INSTITUTIONS, THEIR DIFFERENT SUBJECTS AND SCHOOL CULTURE AT MATO GROSSO CAPTAINCY

RESUMO:

Neste artigo pretende-se analisar elementos das práticas educativas e culturais - tendo por base a circulação cultural entre oficiais de alta patente, homens letratados do corpo militar da Coroa portuguesa, e também entre os de baixa patente, integrada por homens livres, pobres e escravos, na sociedade mato-grossense colonial. Objetiva, por meio da transposição de conteúdos e normas, condutas a inculcar e práticas educativas a ensinar, mostrar o diferencial existente na transmissão desses conhecimentos, envoltos nos espaços de quartéis, fortes, prisões e fortalezas, de ferramentas de trabalho, como facões, réguas, mapas, canoas, armas, madeira, ferro, água e animais, além dos ensinamentos práticos de ofício, que exigiam o aprendizado da leitura, da escrita e do cálculo, a compreensão das noções de medidas e pesos, e outros serviços e saberes necessários para se erguerem edificações. E, ainda, o funcionamento da Organização Militar, enquanto instituição de saber e fazer.

Palavras-chave:
Organização militar; Instituição educativa; Cultura escolar; Mato Grosso colonial.

ABSTRACT:

This article aims to analyze elements of educational and cultural practices - based on the cultural movement between high-ranking officials, letratados men of military corps of the Portuguese crown, and also between low-ranking, composed of free men, poor and slaves in mato Grosso colonial society. Objective through the implementation of content and standards, conducts to inculcate and educational practices to teach, show the differential in the transmission of knowledge, wrapped in the spaces barracks, forts, prisons and fortresses of work tools such as machetes, rulers , maps, canoes, weapons, wood, iron, water and animals, in addition to the practical lessons of craft, which required the learning of reading, writing and arithmetic, understanding the concepts of dimensions and weights, and other services and knowledge necessary to erect buildings. And yet, the operation of the military organization as an institution to know and do.

Keywords:
Military Organization; Educational institution; School culture; Mato Grosso colonial.

Considerações iniciais

A Organização Militar é uma das instituições1 1 1 Andrê Burgière (1993, p. 442-446), no Dicionário das Ciências Humanas, traz a seguinte acepção: "No vocabulário contemporâneo, as 'instituições' designam a constituição da República, ou mais tecnicamente, o conjunto de regras e de órgãos que fixam a organização de um setor da vida pública, ou mais amplamente, o conjunto das formas sociais fundadas pela lei ou pelo costume {...}". compreendida no presente texto enquanto instituição educativa por exercer nas espacialidades e nas temporalidades mato-grossenses, papel significativo, pois, além de cumprir suas funções específicas, incumbiu-se de gerir outras funções, inclusive no âmbito educativo, junto à sociedade mato-grossense, principalmente ao longo da extensa fronteira oeste, que abrangia desde o Guaporé até o Baixo Paraguai, na segunda metade do século XVIII e início do XIX.

Trata-se de instituição estendida de Portugal para a América portuguesa, em especial enquanto corpos de Ordenanças criados pela Lei de 1549, expedida por D. João III, e organizada conforme o Regimento das Ordenanças de 1570 e a provisão de 1574. De acordo com a historiografia, a trajetória histórica das organizações militares portuguesas remonta, portanto, à cavalaria templária na Idade Média, às guerras de libertação dos domínios dos povos mouriscos da Península Ibérica, entre outras. Desse modo, para se conhecer a evolução na formação das tropas portuguesas, há de se recorrer à legislação e às normas que incluem desde cartas régias, instruções, regimentos, lei de armas e provisão de ordenanças, além das extraordinárias pertinentes às diferentes organizações estabelecidas nos domínios portugueses.

Este estudo tem como meta analisar elementos das práticas educativas e culturais tendo por base a circulação cultural entre oficiais de alta patente do corpo militar da Coroa portuguesa, e também entre os de baixa patente, integrada por homens livres, pobres e escravos, na sociedade mato-grossense colonial. Portanto, objetiva, por meio da transposição de conteúdos e normas, condutas a inculcar e práticas educativas a ensinar, mostrar o diferencial existente na transmissão desses conhecimentos, envoltos nos espaços de quartéis, fortes, prisões e fortalezas, as ferramentas de trabalho, como facões, réguas, mapas, canoas, armas, madeira, ferro, água e animais. Além dos ensinamentos práticos de ofícios que exigiam o aprendizado da leitura, da escrita e do cálculo, a compreensão das noções de medidas e pesos, e outros serviços e saberes necessários para se erguerem edificações. E, ainda, apresentar a formação e o funcionamento da mencionada instituição nos espaços mato-grossenses, especialmente no que diz respeito aos assuntos relacionados às ações educativas e culturais que atingiram diversos segmentos da população, composta por nativos indígenas, homens livres e escravos, ao longo do projeto colonizador português, com veiculação de saberes e fazeres na Vila de Cuiabá e em Vila Bela da Santíssima Trindade.

Vale dizer que a administração portuguesa, preocupada em garantir os domínios e as conquistas territoriais obtidos por ocasião das negociações do Tratado de Madri, de 1750, resolveu asseverar e resguardar suas posses investindo na defesa da fronteira oeste da América portuguesa, compreendida pela capitania de Mato Grosso. As medidas compreenderam a militarização dos colonos naturais e reinóis, a execução de reformas das antigas fortalezas e os investimentos em edificações de novas fortificações e quartéis. Priorizou também a organização dos espaços militarizados da Vila de Cuiabá e Vila Bela da Santíssima Trindade, sendo esta última a parte mais crítica daquela capitania, especialmente a região do vale do rio Guaporé, antemural à aldeia jesuíta de Santa Rosa, instalado em domínio tanto português como espanhol (Vice-Reinado do Peru).Otávio Chaves explica que o processo de militarização do distrito de Mato Grosso consistiu em

{...} manter a soberania portuguesa na região, utilizando o baixo custo de soldados recrutados junto à população, além da manutenção de ameríndios aldeados e oriundos dos povoados espanhóis, que se encontravam familiarizados com os valores civilizacionais propagados pelos padres das missões de Moxos e Chiquitos. (CHAVES, 2012CHAVES, Otávio Ribeiro. Militarização e povoamento da Capitania de Mato Grossoséculo XVIII. Revista Eletrônica Documento Monumento, Cuiabá, v. 7, n. 1, dez., 2012. Disponível em <http://www.ufmt.br/ndihr/revista>. Acesso em: 27 dez.2012.
http://www.ufmt.br/ndihr/revista...
, p. 14)

De acordo com a leitura e a análise da empiria, as primeiras instruções recebidas por Rolim de Moura, primeiro governador da capitania de Mato Grosso, mostram a preocupação da administração portuguesa com a organização militar e a defesa da fronteira. E, para atender a esse fim, a população masculina da região guaporeana e cuiabana foi dividida de acordo com suas características étnicas em: brancos, pardos, pretos forros e indígenas e passaram a compor as fileiras da organização militar, conforme estabeleciam as instruções régias.

A Militarização da capitania de Mato Grosso

Antonio Rolim de Moura procurou seguir à risca os ordenamentos, estabeleceu e organizou a formação de uma Companhia de Ordenança, seguida da de outras companhias militares, como as de Dragões, Tropas regulares, Milícias, Ordenanças, Pedestres, Pardos e Aventureiros, estimuladoras do povoamento da capitania. Ao contingente militar coube erigir fortalezas e fortes em trechos estratégicos dos distritos de Mato Grosso e no Baixo Paraguai, visando à defesa territorial. Esse trabalho contou com a participação das populações branca, índia e negra, recrutadas para ingressar nas organizações militares, que foi agrupada em linhas de tropas e segundo a origem social e étnica de seus integrantes, ao arremedo das forças remanejadas dos regimentos portugueses, oriundas dos sistemas de recrutamento da população masculina.

No entanto, vale ressalvar que o império português na América não se estruturou sob uma única forma de administração, porque aqui expressavam situações sociopolíticas e institucionais que se definiam mediante diferentes práticas, em resposta às especificidades regionais, a exemplo da constituição familiar, dos vieses dos tratados, das redes de relações comerciais, das atividades de ofícios, religiosas, das irmandades, dos missionários e dos aventureiros, ou seja, constituem-se de um conjunto de agentes que travam relações entre si e com a sociedade à qual servem. Portanto, essas especificidades regionais permitiram à Metrópole apropriar-se das experiências adquiridas pelas práticas dessas instituições e sujeitos em diferentes lugares e tempos, na capitania de Mato Grosso.

Nessa perspectiva, a Rainha de Portugal, D. Maria Ana de Áustria, preocupada com a defesa da fronteira oeste da América Portuguesa - capitania geral de Mato Grosso e Cuiabá, valendo-se das conquistas territoriais obtidas durante a negociação do Tratado de Madri, travadas com base no princípio do uti possidetis a posse de fato determinaria a posse legal, admitia como certo que os pequenos núcleos de povoamento fundados no Vale do Guaporé necessitavam de providências com relação à sua vigilância e defesa, especialmente no tocante à porção confinante da Capitania, região fronteiriça com as províncias do Peru (América Espanhola).

Assim, houve por bem determinar que a cabeça do governo se pusesse no mesmo distrito de Mato Grosso. Por esse princípio, as observações de Elizabeth Siqueira reforçam que os limites se circunscreviam da linha imaginária à presença efetiva dos homens -, acrescentando que "as fronteiras do período colonial não se restringiam a mero marco geográfico, mas correspondiam aos limites fixados pela movimentação dos homens no território. Assim foi o processo de colonização do Centro-Oeste." (SIQUEIRA, 2002SIQUEIRA, Elizabeth Madureira. História de Mato Grosso da Ancestralidade aos dias atuais. Cuiabá: Entrelinhas, 2002., p. 50).

Em 19 de janeiro de 1749, a Rainha de Portugal expediu uma Carta Régia instrutiva contendo várias disposições, dentre elas a designação de D. Antônio Rolim de Moura, capitão-general e governador da capitania de Mato Grosso, para estabelecer e desempenhar completamente a sua expectação, principalmente por se ter entendido que Mato Grosso se constituía na "chave e o propugnáculo do sertão do Brasil pela parte do Peru." (INSTRUÇÕES AOS CAPITÃES-GENERAIS, 2001INSTRUÇÕES AOS CAPITÃES-GENERAIS Cuiabá: Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso. (Publicações Avulsas, nº 27), 2001., p. 11-20). Determinou ainda a Rainha que, ao chegar à capitania, deveria o nobre militar se empenhar em fazer:

{...} uma população numerosa, e haja forças bastantes a conservar os confinantes {...} ordenei se fundasse naquela paragem uma vila e concedi diversos privilégios e isenções {...} e, para a decência do governo e pronta execução das ordens se levantasse uma Companhia de Dragões e se erigisse Juiz de Fora no mesmo distrito {...} tereis também o cuidado de mandar traçar as ruas direitas e largas {...} e, se estabeleça com boa direção {...} Fareis alistar em ordenanças todos os moradores do vosso Governo, procurando que andem quanto for possível, exercitados e disciplinados {...} Nomeareis pela primeira vez os Capitães e mais oficiais das Companhias e os Capitães-Mores dos distritos, do que dareis conta pelo Conselho Ultramarino para serem confirmados por mim, fazendo nas patentes menções desta ordem, e do número de gentes de que se compuseram os corpos, que deve ser ao menos de 60 soldados em cada Companhia. (MOURA, 1982MOURA, Carlos Francisco. D. Antônio Rolim de Moura, Primeiro Conde de Azambuja (Biografia)Cuiabá: UFMT: Imprensa Universitária, 1982. (Coleção Documentos Ibéricos. Série: Capitães-Generais, 1)., p. 127-137)

Infere-se que, com os encaminhamentos propostos pela Rainha, através da Instrução de 1749, o levantamento da Companhia de Dragões2 2 2 "O termo 'dragão' - como designação de um tipo de soldado - terá aparecido em meados do século XVI para se referir aos membros do corpo de arcabuzeiros que combatiam a pé e se deslocavam a cavalo, criados em 1554 pelo marechal de França Carlos 1º de Cossé, conde de Brissac para servir no Exército do Piemonte. A origem do termo é, contudo, incerta, pensando-se que se pode referir aos supostos dragões contidos nos estandartes das tropas do conde de Brissac ou a uma espécie de arcabuz curto ou carabina usada pelas mesmas e que era então chamada "dragão". Também é referida ocasionalmente à hipótese de o termo se ter originado do fato de um soldado de infantaria a galope - com a sua casaca solta e a mecha a arder ao vento - se parecer com um dragão {...} Durante o período colonial, os dragões constituíram um dos mais prestigiados tipos de tropas no Brasil, desempenhando tanto missões militares de defesa externa como missões de segurança interna". Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Drag% (militar) >. Acesso em: 30 jan. 2013. Assim, a primeira tropa militar a entrar na Região Oeste do Brasil foi conduzida pelo capitão-general Rolim de Moura, no ano de 1748. Formada por uma Companhia de Dragões, o efetivo era responsável por guarnecer as novas fronteiras. Posteriormente, o Capitão-General Mello e Cáceres iniciou a defesa das fronteiras contra incursões externas, criando os Fortes de Coimbra, Corumbá, Cáceres, e, depois, o do Príncipe da Beira, estabelecendo, assim, postos defensivos que favoreceram a ocupação e a manutenção de nossos limites territoriais. Disponível em:< http://pt.wikipedia.org/wiki/Comando_Militar_do_Oeste>. Acesso em 30 jan. 2013. e a formação de Companhias de Ordenanças seria a forma mais adequada para garantir a defesa da vila-capital e de toda a capitania de Mato Grosso. Esse procedimento, segundo a percepção da Coroa deveria ser executado pelos governantes e alterados naquilo que se fizesse necessário, para se adequar à estruturação e à dinâmica da capitania de Mato Grosso.

Essas preocupações no que diz respeito "à organização militar e à formação de duas companhias de Ordenanças por homens sem fardamento e que não recebiam soldos ou ordenados." (ASSIS, 1998ASSIS, Edvaldo. Os Mapas de Habitantes de Mato Grosso (1768-1872): Guia de Pesquisa. 1994. 449folhas. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FLCH) - Universidade de São Paulo/USP, São Paulo. 1994., p. 20) já estavam presentes no início do século XVIII, durante a permanência, na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1727-1728), do governador da Capitania de São Paulo, Rodrigo César de Menezes. Otávio Canavarros, ao analisar esse processo de estruturação das forças militares na Vila de Cuiabá, revela que

{...} por extensão do Extremo Oeste, chegara Rodrigo Cesar de Menezes {...} com uma missão política bastante clara: fundar a vila, estabelecer os poderes sob os quais a fiscalização viria por decorrência e, assim, criar uma cabeça-de-ponte que facilitasse a concretização dos objetivos geopolíticos da Coroa Portuguesa. (CANAVARROS, 2004CANAVARROS, Otávio. O poder metropolitano em Cuiabá (1727-1752)Cuiabá: EdUFMT, 2004., p. 98)

O autor ainda esclarece que a administração de Rodrigo Cesar foi operosa e que

{...} durante a sua estada na Vila de Cuiabá, assinou quarenta e oito provisões de nomeações para cargos e ofícios os mais variados {...} entre os ofícios prevaleciam os de tabeliães, escrivães de meirinhos, tanto da Fazenda, quanto da Justiça e Câmara. No período em questão, a Companhia de Ordenanças, se constitui na guarda do governador, o que justifica o quantitativo de patentes de oficiais das ordenanças para Cuiabá, que corresponde em 24 concessões, sendo 21 lá assinadas por Rodrigo César {...}. Assim, com essas nomeações e concessões de patentes, dava Rodrigo César forma e substancia a instalação e organização do Estado naquelas minas. (CANAVARROS, 2004CANAVARROS, Otávio. O poder metropolitano em Cuiabá (1727-1752)Cuiabá: EdUFMT, 2004., p. 97)

Desse modo, "criaram-se em Cuiabá seis companhias de Ordenanças: duas na vila de Cuiabá, uma no distrito de Vila Maria (Cáceres), uma na Serra Acima (Chapada), uma no Coxipó, outras no Rio Cuiabá Acima e Rio Abaixo" (LEVERGER, 2001LEVERGER, Augusto. Apontamentos cronológicos da Província de Mato GrossoCuiabá: Instituto Histórico e Geográfico do Estado de Mato Grosso, 2001. (Publicações Avulsas, 19)., p. 47).

No governo de Rolim de Moura, foram criadas, também, as Companhias de Dragões e Pedestres. As últimas ficaram adidas à Companhia de Dragões. Desse modo, através da carta de 25 de fevereiro de 1757, Rolim de Moura apresentou uma minuciosa descrição ao Rei de Portugal, D. José I, sobre a atuação dos soldados pedestres, cujo contingente era composto por mestiços e índios:

Os soldados pedestres desta capitania são enquanto ajustou das qualidades seguintes: bastardo (por isto cá na América se entende filho de branco com índio) mulato, caribocas (isto é, filho de preto, e índio, e estes são ordinariamente os que melhor provam) e também se admite algum índio puro principalmente Bororo, pela habilidade, que têm de serem bons rastejadores, o que é {...} Andam sempre descalços de pé e perna e o seu único vestido são um jaleco e umas bombachas. As armas de que usam uma espingarda sem baionetas, uma bolsa de caça e uma faca do mato. E quanto ao serviço que deles se tira é grande, porque verdadeiramente diligencias nenhuma podem fazer os Dragões, alguma coisa distante dos povoados, sem levarem consigo os Pedestres. Na escolta das monções e em todas as diligencias do rio, servem de pilotos e remeiros e ao mesmo tempo podem servir bem na ação, por que são ordinariamente bons atiradores... Na guarda dos diamantes, fazem-se, sobretudo precisos, porque os Dragões não podem examinar e penetrar por toda a parte nem seguir um trilho com a mesma facilidade com que o fazem os Pedestres, aos quais, pelo seu modo de trajar, por serem bons nadadores, estarem acostumados a sulcarem matos e sertões e coisas nenhuma serve de embaraço. (MOURA, 1982MOURA, Carlos Francisco. D. Antônio Rolim de Moura, Primeiro Conde de Azambuja (Biografia)Cuiabá: UFMT: Imprensa Universitária, 1982. (Coleção Documentos Ibéricos. Série: Capitães-Generais, 1). citado por LEVERGER, 2001LEVERGER, Augusto. Apontamentos cronológicos da Província de Mato GrossoCuiabá: Instituto Histórico e Geográfico do Estado de Mato Grosso, 2001. (Publicações Avulsas, 19)., p. 46)

Segundo Chaves (2012CHAVES, Otávio Ribeiro. Militarização e povoamento da Capitania de Mato Grossoséculo XVIII. Revista Eletrônica Documento Monumento, Cuiabá, v. 7, n. 1, dez., 2012. Disponível em <http://www.ufmt.br/ndihr/revista>. Acesso em: 27 dez.2012.
http://www.ufmt.br/ndihr/revista...
, p. 13) "as atenções do reinado de D. José I, a partir da segunda metade do século XVIII, encontravam-se direcionadas para as regiões fronteiriças aos domínios espanhóis, e visavam garantir a posse de áreas em que a soberania portuguesa ainda era bastante precária. {...}". Rolim de Moura, em carta de 1755, revelou as providências tomadas com relação à guarnição da fronteira, com destaque para a criação e a atuação dos corpos militares, como as forças pedestres, integradas, em sua maioria, por mulatos, caribocas/caboclos e índios da tribo Bororo.

Como se vê, além de conviver com as ameaças de invasões e guerras, a população local, inclusive a indígena, era convocada pelos agentes portugueses para participar dos corpos militares, ocasião em que contribuíam significativamente para a manutenção e a ampliação dos domínios durante as disputas territoriais com a porção colonial espanhola e, ainda, nos conflitos internos, pela tenaz resistência que os indígenas impunham aos invasores. Já nas disputas travadas entre as tribos rivais, acabavam as autoridades administrativas tirando proveito, em especial, do saber técnico e do fazer da população autóctone, que era arregimentada para lutar nos conflitos e guerras. Também o segmento negro - escravo ou forro - de propriedade da Coroa ou requisitado de particulares, colaborou reforçando em quantidade os contingentes e contribuindo com os seus saberes.

Rolim de Moura, além de criar e estabelecer as ordenanças militares para a defesa da fronteira mato-grossense, principalmente em ocasiões de confronto com os padres espanhóis, instituiu em Vila Bela, na região de sítio de Pedras, às margens do rio Guaporé, outro tipo de apoio militar formado por soldados denominados Aventureiros, em sua maioria sertanistas itinerantes, munindo-os de armas de fogo, algumas peças de amiudar e foices roçadeiras, que, montadas em compridas hastes, serviam de armamentos para uso também dos índios e dos pretos que os acompanhavam. (LEVERGER, 2001LEVERGER, Augusto. Apontamentos cronológicos da Província de Mato GrossoCuiabá: Instituto Histórico e Geográfico do Estado de Mato Grosso, 2001. (Publicações Avulsas, 19)., p. 51). De acordo com Leverger (2001LEVERGER, Augusto. Apontamentos cronológicos da Província de Mato GrossoCuiabá: Instituto Histórico e Geográfico do Estado de Mato Grosso, 2001. (Publicações Avulsas, 19)., p. 51), no ofício de 30 de setembro de 1762, Rolim de Moura explica o significado e quem compunha o grupo de Aventureiros:

Os soldados que eu chamo de Aventureiros são vários sertanistas que haviam por este rio e que antes de minha chegada a Mato Grosso viviam de fazer entradas pelos sertões e buscar gentio; e outros serviam aos padres castelhanos nas mesmas diligencias ou de outras muitas nas aldeias. A estes mandei assentar praça a título de Aventureiros, dando-lhes o soldo de soldado, sem farda.

Com base na explicação de Rolim de Moura sobre os Aventureiros, depreende-se que a apropriação dos saberes e fazeres da população nativa, miscigenada e pobre, moradora da região, acontecia dentro de um modelo pautado em subordinação, sobrevivência, interesse, dominação e astúcia, e que expressava certa circulação cultural entre índios, colonos, militares, religiosos, escravos e negros forros. Além disso, essa era uma prática cotidiana do governo durante o processo de instalação e execução do projeto de colonização portuguesa na América. É claro que, para os índios e os negros, a luta pela liberdade perdida se fazia sempre permanente.

A Companhia dos Homens Pardos, organizada para defesa de Vila Bela da Santíssima Trindade, era constituída de acordo com a cor da pele e, também, pela condição civil e de propriedade de armas. A documentação mostra que a Companhia dos Homens Pardos da Vila-Capital foi composta por indivíduos oriundos de várias localidades do Brasil. Revela, também, o empenho da Corte em tornar a fronteira povoada e melhor vigiada, para assegurar a Portugal o pleno acesso ao território fronteiriço. A Companhia dos Homens Pardos era estratégica: o baixo nível de profissionalização do seu contigente era aceito desde que tivessem ambição, coragem, armas, além de serem bons atiradores, experientes no ramo da guerra e detentores de saberes relativos a algumas atividades técnicas de ofícios e militares. O perfil pessoal do homem da companhia contribuiu para o povoamento na região, já que a maioria de seu contingente era formada por homens casados e viúvos, grupos com vivência nos moldes familiares legitimados e propícios à institucionalização da família na região mato-grossense.

Esses homens engajados nas fileiras militares, alguns, de acordo com as habilidades apresentadas durante os serviços realizados no trabalho, na guerra e nas festas, recebiam dos mais graduados e portadores de saberes e de ofícios, os ensinamentos práticos profissionais e de bons costumes. (ACBM/IPDAC Caixa 45 - env.1565).

Com a descoberta das riquezas minerais e a consolidação da região como espaço promissor no processo de colonização, o lugar recebeu incentivos da Coroa portuguesa para ser povoado por migrantes de diversas partes do Brasil. Para isso, o governo português ofereceu uma série de privilégios e concessões aos que se dispusessem a habitar na capital mato-grossense e em seus arredores. Assim, homens e mulheres trataram de aparelhar o lugar tendo por base a produção agrícola, a criação de animais e vários outras atividades.

Dessa maneira, os processos de dimensões educativas e culturais, desencadeados nesse espaço específico se realizavam no contexto dessa sociedade mestiça, em torno da qual se costuravam culturas, podendo muitas delas adquirir novos significados e, em consequência, construir novas sociabilidades locais nas espacialidades da capitania de Mato Grosso. Nela se destacavam as minas de ouro cuiabanas e do Guaporé, os inúmeros arraiais, aldeias, povoações e vilas, como as Vilas Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1719), Vila Bela da Santíssima Trindade (1751).

Para garantir os domínios e as novas conquistas pelo império português os naturais da terra e os escravos eram aliciados para integrar as forças militares. Além de utilizarem sua força física, os colonizadores se apropriavam, também, dos saberes e fazeres desses dois segmentos sociais. Particularmente os indígenas, que além de serem fonte de trabalho e de guerra, tinham destreza na condução dos caminhos pelo sertão - de pé e perna - desde a escolta das monções e nas diligências do rio, servindo de guias, pilotos, remeiros, atiradores, mas também como partícipes dos ensinamentos práticos e informais, para que os governantes, sertanistas, comerciantes, militares, religiosos e outros conseguissem se movimentar na região.

Instituição educativa: "Lugar de saber e fazer"

As instituições militares, no cenário mato-grossense, tiveram um papel estratégico uma vez que seus componentes se responsabilizaram pela edificação de fortes e fortalezas espalhadas ao longo da fronteira oeste, assim como serviram de anteparo aos governantes nos momentos de litígio. Foi a força dessa instituição que acolheu todos os militares em torno da Irmandade de Santo Antônio de Lisboa, aberta a qualquer categoria. Tal instituição tinha como objetivo central apoiar os militares em suas dificuldades, congregá-los em torno da confraria e, também, responsabilizar-se por seu sepultamento.

Para compreender esses processos em Mato Grosso no período colonial, encontramos nas proposições de Justino Pereira de Magalhães o entendimento sobre as funções que as diferentes instituições tiveram na educação:

As funções básicas de uma instituição educativa centram-se na dimensão sociocultural e concretizam-se pela transmissão e pela produção de uma cultura científica e tecnológica, bem como pela socialização e pela formação de hábitos e mudança de atitudes e pela interiorização de valores. (MAGALHÃES, 2004MAGALHAES, Justino Pereira deTecendo nexos: história das instituições educativas. Bragança Paulista: Universitária São Francisco, 2004., p. 145)

É nessa perspectiva que as instituições militares, na capitania de Mato Grosso, são compreendidas neste texto, como instituição educativa precursora das escolas, uma vez que exerceram tarefas de educar e instruir para a vida urbana e para o mundo do trabalho, suprindo, de certa forma, a existência de um inicial ou experimental sistema escolar naquela capitania.

As ações pedagógicas e técnicas, na Capitania do Mato Grosso, foram executadas, num primeiro momento, principalmente por professores militares, engenheiros, camaristas e clérigos; e manifestas nos campos de trabalho através de atividades culturais e domésticas, improvisadas pelas instituições que tinham, dentre outras funções, a de educar e instruir, como as Organizações Militares, as Câmaras Municipais e a Igreja, juntando-se a essas, o grupo dos Cientistas.3 3 3 A designação de "grupo de Cientistas" utilizada no presente texto, diz respeito aos homens de formação acadêmica e técnica, a exemplo de botânicos, engenheiros, cartógrafos, astrônomos, cirurgiões, matemáticos, desenhistas, geógrafos, além de altos funcionários eclesiásticos, civis e militares. Homens cultos, educados na Europa, geralmente originários das elites européias e brasileiras que chegaram às regiões mato-grossenses e se dedicaram aos estudos e à investigação cientifica e cultural. Muitos deles, não só ensinaram e repassaram seus conhecimentos técnico-científicos aos locais, mas também trocaram e assimilaram experiências do saber e fazer com as populações locais, composta de indígenas, africanos, mestiços e brancos pobres. Entre tantos se destacam alguns como: Alexandre Rodrigues Ferreira, Ricardo Franco de Almeida Serra, Francisco José de Lacerda e Almeida, Antonio Pires da Silva Pontes, Joaquim José Ferreira, Álvaro da Fonseca Zuzarte, Pe. José Manoel de Siqueira, Luiz D'Alincourt, Augusto Leverger, entre outros. (DOURADO, 2014, p. 190-192).

As práticas educativas e culturais realizadas por essas instituições podem ser percebidas ou identificadas não só através dos exercícios de ensinamentos práticos de ofícios técnicos, mas também na esfera da civilidade e da fé. Assim, percebe-se que houve um imbricamento nas atividades e nos procedimentos educativos e culturais, seja por meio da socialização dos costumes e na formação de novos hábitos, seja pela interiorização de atitudes e valores. Vale ressaltar que essas instituições, ao cuidarem da educação, da instrução, da produção material e do desenvolvimento cultural da coletividade mato-grossense, esforçavam-se por reproduzir o projeto colonizador português.

Os estudos de Thais Fonseca (2008FONSECA, Thais Nivia de Lima e. Instrução e assistência na capitania de Minas Gerais: das ações das câmaras às escolas para meninos pobres (1750-1814). Rev. Bras. Educ, Rio de Janeiro, v. 13, n. 39, dez. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo> Acessos em:30 nov. 2012.
http://www.scielo.br/scielo...
, p. 535) mostram que, no "mundo luso-brasileiro do século XVIII e nas primeiras décadas do XIX, a instrução e a assistência estiveram muito próximas, envolvendo o Estado e a Igreja." Conforme a autora trata-se de instituições "movidas tanto pela necessidade do controle social, por meio da educação para o trabalho, como de civilizar os povos por meio da difusão dos valores morais e religiosos, principalmente para as camadas mais baixas da população." Argumenta também que "essa educação ocorreria predominantemente em instituições assistencialistas de ordens religiosas ou patrocinadas por recursos privados." Conclui que "o objetivo do ensino das primeiras letras seria, fundamentalmente, facilitar o aprendizado da doutrina, sem implicar a criação de possibilidades de ascensão social pela educação." Finalmente, revela que "a educação profissional era, então, prioritária para o aprendizado de ofícios mecânicos que pudessem servir de ocupação e de sustento." (FONSECA, 2008FONSECA, Thais Nivia de Lima e. Instrução e assistência na capitania de Minas Gerais: das ações das câmaras às escolas para meninos pobres (1750-1814). Rev. Bras. Educ, Rio de Janeiro, v. 13, n. 39, dez. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo> Acessos em:30 nov. 2012.
http://www.scielo.br/scielo...
, p. 535).

Prática Educativa e Cultura escolar na fronteira

A partir dessa perspectiva, infere-se, com base na documentação oficial, que os elementos dessa educação, no que se refere aos esforços de transposição de conteúdos e normas, condutas a inculcar e práticas a ensinar, na capitania de Mato Grosso estavam presentes em diferentes espaços, como os quartéis, fortes, prisões, oficinas, igrejas, sacristias, dependências das Câmaras, sedes das irmandades, residências dos mestres e até mesmo nas praças e largos, espaços de troca e veiculação de saberes e fazeres.

O "mobiliário e os instrumentos escolares" eram, nessa medida, constituídos de instrumentos de trabalho, como: facões, foices, pás, picaretas, martelos, enxadas, réguas, desenhos/mapas, canoas, armas, madeiras, pedras, areia, ferro, água e animais; identificados com o cenário das ruas, praças e largos; e visualizados através de vestimentas e adornos utilizados por ocasião da encenação de peças teatrais, atos litúrgicos e festas de cunho cristão.

Já os "compêndios escolares" podem ser vislumbrados nos textos escritos e declamados oralmente em representações de comédias, recitações de poesias, cânticos, sermões e ladainhas, presentes nos ensinamentos práticos de ofício, bem como naqueles que exigiam o aprendizado de leitura, escrita e cálculo, a compreensão das noções de medidas e pesos, as formas corretas do manuseio de ferramentas utilizadas no corte técnico de madeira e pedras, na confecção de telhas, portais, portas, e outros serviços necessários para se erguerem edificações etc.

Na análise da documentação perscrutada, foi possível flagrar a importância da instituição Militar nas práticas educativas e culturais, pois relacionava-se às necessidades diversas atinentes à sua atuação específica como: ensinamentos técnicos e de ofícios - nos espaços de construções dos quartéis, fortes, fortalezas; transmissão dos mecanismos para a segurança da população e nas prisões edificadas na fronteira; ensinamento dos ofícios domésticos, das artes, da guerra. Os conhecimentos práticos e científicos necessários a essas atividades eram transmitidos pelos oficiais de alta e baixa patente, grupos de cientistas, civis ou religiosos, a exemplo de engenheiros, arquitetos, desenhistas, naturalistas e matemáticos mandados vir de Portugal ou de outros locais do Brasil e da Europa para desenvolver trabalhos na região, tomando para si a responsabilidade de formação da mão de obra. Esses conhecimentos eram apropriados pela força de trabalho composta por indivíduos quase sempre analfabetos ou semialfabetizados, que, auxiliados por outros trabalhadores igualmente sem instrução formal, ergueram, com precisão milimétrica, estabelecimentos de defesa na fronteira, antemurais das possessões e dos domínios lusitanos na América portuguesa, em demonstração evidente de aprendizado recebido e incorporado.

Tais práticas educativas eram realizadas no contexto dos movimentos culturais transversais, estabelecidos entre indivíduos e grupos, tendo por base a diversidade e a maneira de fazer cotidianas dos sujeitos históricos, fossem eles brancos, índios ou negros. Essas expressões aconteciam nos espaços da moradia, do trabalho, de religiosidade, de festejos, nas áreas de defesa e de guerra, instâncias estas que permitiam a construção de identidades nessa região de fronteira.4 4 4 O entendimento de "Fronteira" adotado diz respeito ao conceito elaborado por Sérgio Buarque de Holanda (1994, p. 12-13) "{...} entre paisagens, populações, hábitos, instituições, técnicas, até idiomas heterogêneos que aqui se defrontavam ora a esbater-se para deixar lugar à formação de produtos mistos ou simbióticos, ora a afirmar-se, ao menos enquanto não a superasse a vitória final dos elementos que se tivessem revelado mais ativos, mais robustos, ou melhor, equipados".

Nesse sentido, a categoria prática educativa, apropriada neste presente estudo, encontra similaridade com o conceito de maneira de fazer cotidiana dos sujeitos, elaborado por Michel de Certeau. Com esse fundamento, o autor ordena a sua análise em três níveis: "as modalidades da ação"; "as formalidades das práticas; os tipos de operação especificados pelas maneiras de fazer". (CERTEAU 1994CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994., p. 20).5 5 Tática: "{...} um cálculo que não pode contar com um próprio, nem, portanto, com uma fronteira que distingue o outro como totalidade visível. A tática só tem por lugar o do outro. Ela aí se insinua, fragmentariamente, sem apreendê-lo por inteiro, sem poder retê-lo à distância. Ela não dispõe de base onde capitalizar os seus proveitos, preparar suas expansões e assegurar uma independência em face das circunstancias. O 'próprio' é uma vitória do lugar sobre o tempo. Ao contrário, pelo fato de seu não-lugar, a tática depende do tempo, vigiando para 'captar no voo' possibilidades de ganho, não o guarda. Tem constantemente que jogar com os acontecimentos para transformá-los em 'ocasiões'. Sem cessar, o fraco deve tirar partido de forças que lhe são estranhas {...}" (CERTEAU, 1994, p. 46-47).

Tais proposituras podem ser compreendidas nas práticas concretas vivenciadas cotidianamente pela população que habitava diferentes espaços culturais da Capitania de Mato Grosso e que buscavam pelas possibilidades de ganho, fazendo-se necessário "constantemente jogar com os acontecimentos para transformá-los em ocasiões" (CERTEAU, 1994CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994., p. 20).

Tal movimento pode ser visto, com destaque, na dinâmica da relação entre diferentes sujeitos, a exemplo do que foi observado durante o processo de edificação das fortificações, apontado pelo responsável pela gestão da Capitania, capitão Joaquim Lopes Poupino, que participou ao capitão-general, governador Luís de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres, sua proposta de admissão, na carreira militar, de um jovem de menos de 20 anos, que possuía relativo grau de escolarização e que poderia, com esse conhecimento, melhorar as condições de construção dos estabelecimentos que guardariam a fronteira.

Nesse sentido, a opção deste estudo recai, também, sobre os conceitos e as categorias elaborados por Sérgio Buarque de Holanda (1994HOLANDA, Sérgio Buarque. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.) e Norbert Elias (1994ELIAS, Norbert. O Processo civilizadorRio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. 2v.), suportes valiosos para se pensar os indivíduos e os grupos sociais no que diz respeito às práticas educativas, aos saberes, fazeres, às adaptações culturais, ao comportamento e à civilidade e, também, à invenção do cotidiano do homem comum, ambos interessados no entrecruzamento de tradições culturais e nos movimentos de assimilação, nas estratégias de sobrevivência e apropriação mútua de saberes e fazeres, portanto, aspectos revelados nos movimentos que envolvem pessoas comuns a partir de realidades vivenciadas no cotidiano das espacialidades e das temporalidades de Mato Grosso.

A essa prática de aquisição, troca e circulação de saberes confere como uma modalidade específica de educação, denominada usualmente de informal. Isso porque é uma prática de aprendizado obtido de maneira muitas vezes dispersa, não intencional e nem institucional; porém realizada nas dimensões social, cultural e política. Tal modalidade de transmissão e apreensão de saberes muitas vezes se realiza de forma imperceptível, quase invisível aos olhos daqueles que consideram que a transmissão de saberes somente poderia ocorrer no âmbito da escolarização. Por isso, neste estudo, o conceito de aprendizagem é concebido de forma ampla, muitas vezes abarcando ações imitativas e de arremedo que, no interior da sociedade, manifestavam-se na circularidade. Tal concepção não é hierarquizada; ao contrário, engloba todos os segmentos sociais detentores de um determinado capital cultural expresso no seu cotidiano.

No decorrer do processo colonizador, o sentido de aprendizagem tem por base os valores e as concepções de matriz europeia, colonizadora, daí o empenho de se instruir e educar a grande massa populacional por diferentes mecanismos: ensino de ofícios e transmissão de valores de comportamento dos colonizadores para serem imitados. Em contrapartida, essa mesma população, em sua relação com o colonizador, absorvia os ensinamentos destes, e também oferecia o seu saber, que, muitas vezes, era apropriado, agregando valor cultural no interior do processo de trabalho. Mesmo revestida, muitas vezes, de um caráter intencional, a transmissão informal de conhecimentos e valores se realizava com muita sutileza, sendo poucas vezes evidenciada em documentos oficiais.

Percebe-se que os 'operários' que atuavam junto às construções militares raramente eram identificados pelo nome. Porém, na carta datada de 23 de maio de 1775, escrita por José Pinheiro de Lacerda, ajudante de engenheiro do Forte Príncipe da Beira, ao capitão-general Luís de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres, alguns operários eram nomeados, o que oferece ao pesquisador mais dados para sustentação de sua propositura.

Foi o caso de João Leme, mestre carpinteiro responsável por todas as edificações em madeira, tão recorrentes nesse tipo de construção. Mesmo sendo auxiliado por dois outros operários, de menor instrução, ganhou o auxílio de um mulato chamado Taipeiro, visto estar encontrando muita dificuldade para finalização das portas do citado forte. José Pinheiro de Lacerda, assim avaliou o andamento dos trabalhos:

Um único mestre carpinteiro, ainda que trabalhador, com o limitado número dos oficiais sobreditos, não pode dar expedição na feitura dos portais e portas, que em grande número são necessárias, principalmente devendo ele acudir na feitura das edificadas, como no levantar dos esteios, correr frechais, comieiras, encaibrar etc.

Falando eu repetidas vezes com o tenente comandante sobre esta falta de carpinteiros, ele me tem desenganado que aqui os não há; e nestes termos recorro a V. Exa, para que se sirva dar algumas providências, enviando ao menos desta vila um oficial capaz da construção destes edifícios para, assim, se não divertir da carpintaria o sobredito João Leme. (ARQUIVO DA CASA DE ÍNSUA, Arquivo dos Albuquerque. Doc. 3, 23/05/1775, pasta 72, citado por FREYRE, 1978FREYRE, Gilberto. Contribuição para uma sociologia da biografia: o exemplo de Luiz de Albuquerque, Governador de Mato Grosso, no fim do século XVIII. Cuiabá: Fundação Cultural de Mato Grosso, 1978., p. 292)

A maioria das evidências acerca da circulação dos saberes teve por base a documentação oficial, materializada pelas correspondências entre os engenheiros e os responsáveis pelas obras de edificação na fronteira. Essas correspondências deixam entrever a existência de conhecimentos por parte de outros segmentos, geralmente compostos por analfabetos que auxiliaram nas construções. Isso ocorreu em junho de 1775, quando o já citado ajudante de engenheiro do Forte Príncipe da Beira anunciava ao mesmo governador Luiz de Albuquerque sobre o saber dos negros escravos, na arte de cobertura de edifícios:

Ainda não participei a V. Exa. de que para a cobertura destes edifícios não tenho usado nem julgo conveniente usar-se do junco ou sapé, e me tenho servido da palmeira que chamam olho de uacaba, pelos motivos seguintes, primeiramente o junco se não pode cortar senão no tempo de estar maduro, que é agora e {roscadas}, a qual se acha em abundância neste distrito, é cobertura muito asseada {riscada} limpa e dura muito, e os pretos já estão destros com esse trabalho {...}. (ARQUIVO DA CASA DE ÍNSUA, Arquivo dos Albuquerque. Doc. 5, 13/06/1775, pasta 72, citado por FREYRE, 1978FREYRE, Gilberto. Contribuição para uma sociologia da biografia: o exemplo de Luiz de Albuquerque, Governador de Mato Grosso, no fim do século XVIII. Cuiabá: Fundação Cultural de Mato Grosso, 1978., p. 296)

Em outro trecho, José Pinheiro de Lacerda deixou claro como os negros escravos erguiam suas casas, que, ao contrário das demais, não tinham qualquer abertura de janelas, o que pode ser remetido a influência das senzalas, pois, para evitar a fuga, essa construção só tinha uma abertura para entrada e saída dos escravos:

Na mesma noite de sábado para domingo de Páscoa me aquartelei nas casas que foram da preta Anna Moreira, suposto que as achei em muito mau estado por mal cobertas e escuras {riscadas} chover muito nelas e serem escuras por falta de janelas como costumam ser as casas que são dos pretos {riscadas} e o são de tal maneira que para poder escrever ponho-me debaixo de umas Laranjeiras ou debaixo do pequeno alpendre que tem à frente de tais casas {...}. (ARQUIVO DA CASA DE ÍNSUA, Arquivo dos Albuquerque. Doc. 1, pasta 72, 27/04/1775, citado por FREYRE, 1978FREYRE, Gilberto. Contribuição para uma sociologia da biografia: o exemplo de Luiz de Albuquerque, Governador de Mato Grosso, no fim do século XVIII. Cuiabá: Fundação Cultural de Mato Grosso, 1978., p. 287-288)

Trabalhos especializados, de carpinteiro, por exemplo, eram muito raros nessas fortificações e ficavam a cargo dos homens brancos, enquanto para os pretos escravos restavam os trabalhos pesados, como foi o caso da extração de pedras:

{...} todos os pretos que puderem se escusar destes trabalhos os destinarei para a pedreira, conforme V. Exa. me ordena, pois é sem dúvida muito útil o tirar-se a pedra antecipadamente e também ir-se traçando a fortificação, dando-se princípio à obra, ainda que sejam poucos os operários. (ARQUIVO DA CASA DE ÍNSUA, Arquivo dos Albuquerque. Doc. 8, 31/07/1775, pasta 72, citado por FREYRE, 1978FREYRE, Gilberto. Contribuição para uma sociologia da biografia: o exemplo de Luiz de Albuquerque, Governador de Mato Grosso, no fim do século XVIII. Cuiabá: Fundação Cultural de Mato Grosso, 1978., p. 299)

Em outro trecho, o mesmo ajudante de engenheiro reforçou ser o trabalho nas pedreiras mais afeito aos negros, e que havia gradação de capacidade entre eles:

{...} Indo eu a ver o trabalho da pedreira achei que entre os escravos oficiais de pedreiros, só um tinha algum jeito de facetar as pedras por onde devo inferir que só esse será bom oficial de alvenaria, e mais dois dos ditos poderão remediar, porém, o quarto entre eles não poderá ser de oficial desse oficio (riscadas) d'alvença porque não sabe emboçar {rebocar} uma parede, como se tem experimentado e por isso aqui trabalha em todo o serviço como qualquer outro escravo {...}. (ARQUIVO DA CASA DE ÍNSUA, Arquivo dos Albuquerque. Doc. 18, 14/01/1776, pasta 72, citado por FREYRE, 1978FREYRE, Gilberto. Contribuição para uma sociologia da biografia: o exemplo de Luiz de Albuquerque, Governador de Mato Grosso, no fim do século XVIII. Cuiabá: Fundação Cultural de Mato Grosso, 1978., p. 315)

Por inexistir qualquer formação específica até então, os ofícios eram aprendidos no ver fazer e no fazer fazendo. Nesse caso, a aptidão se colocava como um importante indicador dos trabalhos de ofício: {...} outro sujeito que me dizem fora enviado também por taipeiro, é muito melhor carpinteiro, e neste vai trabalhando, pois tenho esperança de ver a muralha deste baluarte no nível da campanha {sic} por esse tempo {riscadas} (ARQUIVO DA CASA DE ÍNSUA, Arquivo dos Albuquerque. Doc. 24, 10/12/1776, pasta 72, citado por FREYRE, 1978FREYRE, Gilberto. Contribuição para uma sociologia da biografia: o exemplo de Luiz de Albuquerque, Governador de Mato Grosso, no fim do século XVIII. Cuiabá: Fundação Cultural de Mato Grosso, 1978., p. 325).

A carência de carpinteiros se fez sentir no ano de 1776, ocasião em que o responsável pelos trabalhos de engenharia do Forte Príncipe da Beira, José Pinheiro de Lacerda, aclarou que à falta de profissionais se adicionava a questão das doenças, tão frequentes naquela região fronteiriça:

O trabalho de carpintaria vai com muito vagar pelos frequentes ataques de sezões que padecem os poucos oficiais que nela se acham, e em tenho em tal necessidade que mandei chamar um dos três que se ocupam nos engenhos, e de presente aqui trabalha enquanto não melhoram os doentes". (ARQUIVO DA CASA DE ÍNSUA, Arquivo dos Albuquerque. Doc. 18, 14/01/1776, pasta 72, citado por FREYRE, 1978FREYRE, Gilberto. Contribuição para uma sociologia da biografia: o exemplo de Luiz de Albuquerque, Governador de Mato Grosso, no fim do século XVIII. Cuiabá: Fundação Cultural de Mato Grosso, 1978., p. 314)

A região norte da capitania de Mato Grosso era considerada insalubre, visto a quantidade de mosquitos que incomodavam e picavam os trabalhadores, transmitindo-lhes doenças que, a nosso ver, seria a malária; mas naquele tempo era chamada de corrução. Em uma das cartas escritas pelo auxiliar de engenheiro do Forte Príncipe da Beira ao capitão-general Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres, existe uma passagem muito interessante, quando ele solicitou a compra de mosquiteiros para todos os trabalhadores, incluindo os negros escravos:

Poucos são os negros que passam com vontade ao serviço da pedreira pela quantidade de mosquitos que lá se acha todo ano, que não deixando-os sossegar de noite, também ao inabilitam e deve inabilitá-los para trabalharem de dia, como devem, pois os enfraquece de forma que de dia não possam trabalhar como devem. Informado desta verdade, me resolvi dar mosquiteiro a todos os escravos que tenho nesse serviço. Por cujo motivo me parece conveniente que V. Exa. mande dar mosquiteiro aos sobreditos escravos, oficiais, pedreiros, visto o terem pedido ao tenente José Manoel Cardoso e ser uma pequena despesa que redunda em benefício do Real serviço. (ARQUIVO DA CASA DE ÍNSUA, Arquivo dos Albuquerque. Doc. 24, 10/12/1776, pasta 72, citado por FREYRE, 1978FREYRE, Gilberto. Contribuição para uma sociologia da biografia: o exemplo de Luiz de Albuquerque, Governador de Mato Grosso, no fim do século XVIII. Cuiabá: Fundação Cultural de Mato Grosso, 1978., p. 324)

A esperança desses engenheiros e mestres de obras era conseguir pessoas instruídas em ofício e educadas nas regras sociais, como foi o caso do filho do capitão Joaquim Lopes Poupino, que dominava princípios de matemática e desenho, além da língua latina:

Como o Capitão Joaquim Lopes Poupino me participa que nesta ocasião suplica e roga a V. Exa., para que se digne mandar assentar praça e destinar para o serviço desta fortificação a um único filho que tem 17 para 18 anos de idade, instruído na língua latina, com seus princípios de aritmética, e inclinado {riscada} com sua inclinação {riscadas} alguma propensão para o desenho; não posso deixar de julgar muito acertada essa sua determinação, e estima-la ao mesmo tempo, na consideração de que V.Exa., lhe há de conceder a graça que pretende. A idade e instrução do dito sujeito, aqui aplicado nesta fortificação debaixo dos olhos do pai, alguma coisa promete, e quando mais não seja suprirá as faltas {riscada} nas doenças dos mais. (ARQUIVO DA CASA DE ÍNSUA, Arquivo dos Albuquerque. Doc. 24, 10/12/1776, pasta 72, citado por FREYRE, 1978FREYRE, Gilberto. Contribuição para uma sociologia da biografia: o exemplo de Luiz de Albuquerque, Governador de Mato Grosso, no fim do século XVIII. Cuiabá: Fundação Cultural de Mato Grosso, 1978., p. 326)

Uma das pistas de que nos quartéis se estudavam matemática e geometria pode ser encontrada em uma correspondência do auxiliar de engenheiro do Forte Príncipe da Beira com o capitão-general, ocasião em que ele confessava estar adoentado e ter sido substituído pelo {...} cabo de esquadra Felix Botelho de Queiroz, enquanto eu retive molestado esteve postilando parte do primeiro livro de Euclides e são poucos dias que se vai instruindo na aritmética. (ARQUIVO DA CASA DE ÍNSUA, Arquivo dos Albuquerque. Doc. 17, 19/12/1775, pasta 72, citado por FREYRE, 1978FREYRE, Gilberto. Contribuição para uma sociologia da biografia: o exemplo de Luiz de Albuquerque, Governador de Mato Grosso, no fim do século XVIII. Cuiabá: Fundação Cultural de Mato Grosso, 1978., p. 312).

Analisando uma correspondência de Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres enviada à Coroa portuguesa, Freyre (1978FREYRE, Gilberto. Contribuição para uma sociologia da biografia: o exemplo de Luiz de Albuquerque, Governador de Mato Grosso, no fim do século XVIII. Cuiabá: Fundação Cultural de Mato Grosso, 1978., p. 315) revela como o nobre lusitano tratava a questão da edificação de fortificações em Vila Bela da Santíssima Trindade, fato este determinante na consolidação da fronteira com os territórios espanhóis. Nesse contexto, é possível apontar indícios e dimensões do processo educativo que se fazia mediante o estabelecimento de relações de saberes oriundos das práticas educativas culturais. Isso porque aqueles que trabalhavam utilizavam instrumentais apreendidos como benefício e garantia dos espaços de trabalho, de sobrevivência, luta e liberdade. E, por outro lado, observa-se o reconhecimento, a classificação ou desclassificação dos saberes dos negros por parte da autoridade lusitana, visto que eles dominavam o ofício.

Depreende-se também, nessa passagem, o uso de instrumentos de dominação através da autoridade do cargo e a divisão do trabalho, estratégias de que se serviu o governante no exercício do poder absoluto que lhe foi conferido pela Coroa portuguesa:

{...} o João Leme aqui tem servido de mestre desde o princípio destas obras até eu enviá-lo para a fatura dos engenhos. Em todo esse tempo tenho alcançado ter a três prerrogativas seguintes: não constantes quaisquer defeitos que se lhe poça notar que quanto a mim tudo se reduzem no ser as cores que tem a primeira prerrogativa que acho no dito carpinteiro é ser muito limpo de mãos, a segunda ser muito bom trabalhador e não carecer de olheiro e a terceira ser prático do país; em forma que no limitado tempo que se ausentou destas obras já por duas vezes careci dele; a primeira para extrair do mato uns pranchões para rodas de uns carrilhões e agora, novamente, o mandei ao mato para tirar uns paus necessários para a feitura das balizas que logo se devam colocar nos ângulos principais do edifício{...}. (ARQUIVO DE ÍNSUA, citado por FREYRE, 1978FREYRE, Gilberto. Contribuição para uma sociologia da biografia: o exemplo de Luiz de Albuquerque, Governador de Mato Grosso, no fim do século XVIII. Cuiabá: Fundação Cultural de Mato Grosso, 1978., p. 312)

Dessa maneira, para a execução dos trabalhos montavam-se verdadeiras "aulas práticas" de aprendizes no canteiro de obra, com a finalidade de instruir soldados, negros e homens livres pobres, todos os aprendizes durante os trabalhos de construção e edificação de fortes e de outras fortalezas. Na correspondência de Luiz de Albuquerque para o governo português, há evidências de um ensino não escolar obrigatório para os negros e até certo ponto, espontâneo e necessário aos soldados que auxiliavam na edificação daquelas obras fronteiriças:

Ontem principiaram a trabalhar os novos pedreiros, sendo o principal entre eles o Nogueira como mais perito {riscadas}, e na manhã de hoje acabaram de por as duas faces e ângulos da espalda na altura de 6 palmos, e de tarde foram encher o alicerce do flanco e a parte da cortina da parte do rio donde hão de trabalhar até se por de livre {...} O dito Nogueira é o único pedreiro que tem capacidade para (riscadas) melhor oficial que havia em Macapá e é o único que pode servir de mestre da obra se V. Ex a o houver por bem. (FREIRE, 1978, p. 324)

Por doença do patrício Antônio, estava suspenso o trabalho da parede e os pretos oficiais ocupados em lavrar pedra {riscadas} O patrício Antônio, que até agora com o seu trabalho fez do que se podia esperar, acho muito necessário enviá-lo à pedreira com uns poucos oficiais dos mais inferiores e aprendizes pretos, a fim de se lavrar pedra bastante, e também há de lavar a {riscada} ir incumbido de escolher a melhor pedra que houver para as Reais armas e inscrição da porta para se {riscada} que se deve executar com a maior brevidade conforme V.ª Ex.ª me ordena {...}. (FREIRE, 1978, p. 325)

A partir da leitura da documentação apontada, foi possível perceber, pelas narrativas contidas na correspondência administrativa trocada entre o governador da Capitania de Mato Grosso, o capitão-general Luiz de Albuquerque, e a Corte portuguesa, que o processo educativo estava a ser desencadeado por entre as diferentes categorias sociais responsáveis por erguer fortalezas ao longo dos rios Guaporé e Paraguai, guardiões naturais entre os domínios de Portugal e Espanha. Naturalmente, muitos deles aprendiam a se comunicar com o universo colonizador e a compreender e respeitar os códigos legais difíceis de ser lidos, mas passíveis de serem aprendidos pela imitação, pelo arremedo, pela repetição de gestos, modos e até de uso da língua. Tudo era captado e aprendido, pela repetição oral dos bandos e suas mensagens, pelos sermões, julgamentos e até mesmo pelas encenações de que participavam. E esse era um processo que se faria em muitas direções, configurando-se situações próprias da circulação e mistura de culturas.

Portanto, ao abordar a educação na América portuguesa, em especial a manifesta na capitania de Mato Grosso, na segunda metade do século XVIII, há de se romper as fronteiras da educação escolar e buscar também nas práticas educativas realizadas fora das escolas os saberes que foram constituídos na interação e na movimentação cotidiana da população lusitana, indígena, africana e aquelas advindas da miscigenação. Sobretudo, aquelas práticas educativas majoritariamente constituídas por indivíduos que, em sua maioria, encontravam-se alheias à herança cultural do Velho Mundo e vivendo na oralidade. Porém, tais práticas educativas eram manifestas pelos vínculos de sociabilidade e de dimensão culturais estabelecidos no envolvimento dos diferentes universos culturais que se entrecruzavam nessas territorialidades, fruto do legado dos colonizadores e dos colonizados.

REFERÊNCIAS

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  • MAGALHAES, Justino Pereira deTecendo nexos: história das instituições educativas. Bragança Paulista: Universitária São Francisco, 2004.
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  • SIQUEIRA, Elizabeth Madureira. História de Mato Grosso da Ancestralidade aos dias atuais. Cuiabá: Entrelinhas, 2002.
  • 1
    1 Andrê Burgière (1993BURGIÈRE, Andrê (Org.). Dicionário das Ciências Históricas. Tradução de Henrique de Araújo Mesquisata. Rio de Janeiro: Imago, 1993., p. 442-446), no Dicionário das Ciências Humanas, traz a seguinte acepção: "No vocabulário contemporâneo, as 'instituições' designam a constituição da República, ou mais tecnicamente, o conjunto de regras e de órgãos que fixam a organização de um setor da vida pública, ou mais amplamente, o conjunto das formas sociais fundadas pela lei ou pelo costume {...}".
  • 2
    2 "O termo 'dragão' - como designação de um tipo de soldado - terá aparecido em meados do século XVI para se referir aos membros do corpo de arcabuzeiros que combatiam a pé e se deslocavam a cavalo, criados em 1554 pelo marechal de França Carlos 1º de Cossé, conde de Brissac para servir no Exército do Piemonte. A origem do termo é, contudo, incerta, pensando-se que se pode referir aos supostos dragões contidos nos estandartes das tropas do conde de Brissac ou a uma espécie de arcabuz curto ou carabina usada pelas mesmas e que era então chamada "dragão". Também é referida ocasionalmente à hipótese de o termo se ter originado do fato de um soldado de infantaria a galope - com a sua casaca solta e a mecha a arder ao vento - se parecer com um dragão {...} Durante o período colonial, os dragões constituíram um dos mais prestigiados tipos de tropas no Brasil, desempenhando tanto missões militares de defesa externa como missões de segurança interna". Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Drag% (militar) >. Acesso em: 30 jan. 2013. Assim, a primeira tropa militar a entrar na Região Oeste do Brasil foi conduzida pelo capitão-general Rolim de Moura, no ano de 1748. Formada por uma Companhia de Dragões, o efetivo era responsável por guarnecer as novas fronteiras. Posteriormente, o Capitão-General Mello e Cáceres iniciou a defesa das fronteiras contra incursões externas, criando os Fortes de Coimbra, Corumbá, Cáceres, e, depois, o do Príncipe da Beira, estabelecendo, assim, postos defensivos que favoreceram a ocupação e a manutenção de nossos limites territoriais. Disponível em:< http://pt.wikipedia.org/wiki/Comando_Militar_do_Oeste>. Acesso em 30 jan. 2013.
  • 3
    3 A designação de "grupo de Cientistas" utilizada no presente texto, diz respeito aos homens de formação acadêmica e técnica, a exemplo de botânicos, engenheiros, cartógrafos, astrônomos, cirurgiões, matemáticos, desenhistas, geógrafos, além de altos funcionários eclesiásticos, civis e militares. Homens cultos, educados na Europa, geralmente originários das elites européias e brasileiras que chegaram às regiões mato-grossenses e se dedicaram aos estudos e à investigação cientifica e cultural. Muitos deles, não só ensinaram e repassaram seus conhecimentos técnico-científicos aos locais, mas também trocaram e assimilaram experiências do saber e fazer com as populações locais, composta de indígenas, africanos, mestiços e brancos pobres. Entre tantos se destacam alguns como: Alexandre Rodrigues Ferreira, Ricardo Franco de Almeida Serra, Francisco José de Lacerda e Almeida, Antonio Pires da Silva Pontes, Joaquim José Ferreira, Álvaro da Fonseca Zuzarte, Pe. José Manoel de Siqueira, Luiz D'Alincourt, Augusto Leverger, entre outros. (DOURADO, 2014DOURADO, Nileide Souza. Práticas Educativas Culturais e Escolarização na capitania de Mato Grosso (1748-1822). 267folhasTese (Doutoramento em Educação) - PPGE/UFMT, Cuiabá. 2014., p. 190-192).
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    4 O entendimento de "Fronteira" adotado diz respeito ao conceito elaborado por Sérgio Buarque de Holanda (1994, p. 12-13) "{...} entre paisagens, populações, hábitos, instituições, técnicas, até idiomas heterogêneos que aqui se defrontavam ora a esbater-se para deixar lugar à formação de produtos mistos ou simbióticos, ora a afirmar-se, ao menos enquanto não a superasse a vitória final dos elementos que se tivessem revelado mais ativos, mais robustos, ou melhor, equipados".
  • 5
    Tática: "{...} um cálculo que não pode contar com um próprio, nem, portanto, com uma fronteira que distingue o outro como totalidade visível. A tática só tem por lugar o do outro. Ela aí se insinua, fragmentariamente, sem apreendê-lo por inteiro, sem poder retê-lo à distância. Ela não dispõe de base onde capitalizar os seus proveitos, preparar suas expansões e assegurar uma independência em face das circunstancias. O 'próprio' é uma vitória do lugar sobre o tempo. Ao contrário, pelo fato de seu não-lugar, a tática depende do tempo, vigiando para 'captar no voo' possibilidades de ganho, não o guarda. Tem constantemente que jogar com os acontecimentos para transformá-los em 'ocasiões'. Sem cessar, o fraco deve tirar partido de forças que lhe são estranhas {...}" (CERTEAU, 1994, p. 46-47).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    28 Ago 2015
  • Aceito
    02 Abr 2016
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