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Da tolerância à caridade: sobre religião, laicidade e pluralismo na atualidade

From tolerance to charity: on religion, secularity and pluralism today

Resumo

As questões da (in)tolerância entre as religiões e da liberdade de crença e de pensamento não são novas para a história, ou melhor, não são exclusivas desta época. Basta lembrar, para os propósitos aqui arrolados, uma obra do período iluminista, o Tratado sobre a tolerância de Voltaire, que tratava precisamente disto. Em contrapartida, mesmo vivendo numa era de consolidação de fenômenos de secularização, como Gianni Vattimo entende ser a nossa – e que tem a ver com liberdade, celebração e respeito às diferenças –, ainda se vislumbra a intolerância para com diferentes crenças religiosas, e o não respeito, especialmente por parte de setores de religiões majoritárias como o cristianismo, ao princípio de laicidade do Estado. Em diálogo com o pensiero debole (pensamento fraco) de Vattimo, analisarei a proposta deste autor de migração da ideia de tolerância para a de caridade, como meio de mover-se para além de uma relação metafísica com a verdade nas religiões para a noção pouco comum às práticas e discursos religiosos de uma verdade kenótica, isto é, esvaziada de pretensões de correspondência e, por conseguinte, de imposição sobre outras.

Palavras-chave
tolerância religiosa; caridade; Vattimo; verdade

Abstract

The questions of (in)tolerance between religions and of freedom of religion and thought are not new to history, or rather are not exclusive of this era. We need only to remind, for the purposes of this text, a work of the Enlightenment period, the Treatise on Tolerance by Voltaire. On the other hand, even living in an age that some authors, like Gianni Vattimo, believe to be a time of consolidation of secularization phenomena – something that invloves freedom, celebration and respect for the difference –, it is still possible to see intolerance towards different religions, and no respect, especially from sectors of major religions such as Christianity, for the principle of a secular state. In dialogue with Vattimo’s pensiero debole (weak thought), I examine in this paper the proposal made by this author of a migration from the idea of tolerance to that of charity, as a means to move from a metaphysical relationship with the truth in religions to the unusual notion in religious practices and discourses of a kenotic truth, that is, a truth free from assumptions of correspondence and from the intention of imposing it to other kinds of truth.

Keywords
religious tolerance; charity; Vattimo; truth

Résumé

Les questions de l’(in)tolérance entre les religions, ainsi que de la liberté de croyance religieuse et de pensée, ne sont pas nouvelles pour l’histoire, ou plutôt ne sont pas propes de l’époque actuelle. Il suffit de rappeler une oeuvre de la période des Lumières, le Traité sur la tolérance de Voltaire. Par contre, même en vivant dans un âge que certains auteurs, comme Gianni Vattimo, croient être celui de la consolidation des phénomènes de sécularisation – ce qui a à voir avec la liberté, la célébration et le respect de la différence –, il est encore possible de témoigner l’intolérance à l’égard de différentes croyances religieuses et le manque de respect, en particulier de secteurs des grandes religions comme le christianisme, pour le principe de l’Etat laïque. En dialogue avec le pensiero debole (la pensée faible) de Vattimo, dans cet article je examine la proposition de cet auteur de migration de l’idée de tolérance à celle de charité, comme un moyen d’avancer d’une relation métaphysique avec la vérité dans les religions vers la notion inhabituelle dans les pratiques et les discours religieux d’une vérité kénotique, c’est à dire une vérité dépourvue de prétentions de correspondance et par conséquent d›imposition sur d›autres types de vérités.

Mots-clés
tolérance religieuse; charité; Vattimo; vérité

A questão que será tratada neste ensaio remonta a um clássico, o Tratado sobre a tolerância de Voltaire, publicado em 1763, num tempo emancipatório em que a tolerância estava atrelada ao princípio da liberdade religiosa e de opinião que filósofos como Locke e o próprio Voltaire tanto enfatizaram, numa Europa ainda marcada por conflitos e perseguições devidas a crenças e ideias. Por outro lado, numa época de consolidação de fenômenos de secularização,1 1 A secularização é entendida como o processo de emancipação dos seres humanos e suas sociedades da influência e ingerência da religião, que tem a ver com o que Weber chamou de “desencantamento do mundo”. Entretanto, segundo Berger e Zijderveld (2012: 3-4), “ao analisar o mundo contemporâneo, não é a secularização que se vê, mas sim uma enorme explosão de exaltados movimentos religiosos”, ou seja, não um “desencantamento”, e sim um “reencantamento” de parte do mundo, como é o caso do Islamismo da África do Norte ao sudeste da Ásia, bem como em sua diáspora ocidental, até os pentecostalismos na América Latina, que também se espalham mundo afora. A visão positiva que Gianni Vattimo, por exemplo, tem da secularização como processo contínuo e necessário talvez se deva mais ao seu contexto imediato, ou seja, o europeu, onde ele continua pujante, embora seja temerário dizer que os europeus deixaram de ser “religiosos” em sentido lato. como Gianni Vattimo entende ser a nossa, ainda se vislumbra a intolerância para com diferentes crenças religiosas, e o não respeito, especialmente por parte de setores de religiões majoritárias como o cristianismo, ao princípio de laicidade do Estado.

Nesse sentido, em conversação sobretudo com a visão de Voltaire sobre tolerância e, ao final, com o conceito de pensamento fraco de Vattimo, analisarei a proposta deste segundo autor, de migração da ideia de tolerância para a de caridade como meio de se mover para além de uma relação metafísica com a verdade nas religiões, para a noção, pouco comum às práticas direta ou indiretamente presentes nos discursos religiosos, de uma verdade kenótica, isto é, esvaziada de pretensões de correspondência e, por conseguinte, de imposição sobre outras formas ou cosmovisões da verdade. A ideia aqui não é propriamente fazer uma combinação entre as teorias de Voltaire e Vattimo, mas sim estabelecer um contraste entre um dos possíveis entendimentos fundantes2 2 Alguém pode indagar sobre a razão da escolha de Voltaire e não de pensadores mais fundantes neste tema, como os também iluministas Locke e Montaigne. A escolha de Voltaire deve-se tanto a uma questão de predileção teórica, quanto, como corolário, ao entendimento de que seu Tratado sobre a tolerância, mais que representar uma série de elucubrações filosóficas sobre a tolerância, parte de um caso concreto de intolerância religiosa na França do século XVIII para buscar sua sustentação histórico-contextual. Por isso o tratado se alinha melhor aos propósitos deste ensaio em particular. do conceito de tolerância, o de Voltaire, e o pensamento de Vattimo, visando a compreender por que e como, para este último, a caridade supera a tolerância em uma possível resposta à intermitente intolerância que se pode encontrar, mesmo em um contexto de grande pluralidade como é o da relação entre as religiões e religiosidades na atualidade.

Como apoio para este diálogo, me ocuparei, na segunda parte do artigo, da narrativa e análise de um caso ocorrido na cidade de Londrina, no Paraná, que resolvi chamar de caso da “Praça Islâmica”. Procurarei pensar a partir dele naquilo que, no mesmo tópico, chamo de “razões próprias da religião”, considerando sua presença na esfera pública e sua pluralidade em nossos dias. Trata-se, vale dizer, de um ensaio multidisciplinar, em que história, sociologia e filosofia da religião estão em diálogo.

1. Prelúdio à discussão: Voltaire e o conceito de tolerância

É conhecida a definição que Voltaire deu para “tolerância” em 1764 no Dicionário filosófico: “apanágio da humanidade”, dizia ele, ou seja, característica própria ou inerente ao ser humano. Afinal, raciocinava Voltaire (1978: 290)______. Tolerância. In: Os pensadores. Dicionário filosófico. Trad. Marilena Chauí. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 290-293., “somos todos cheios de fraquezas e de erros”; assim sendo, o caminho seria perdoar-nos mutuamente em relação às nossas tolices. Ora, se a tolerância é a “primeira lei da natureza”, por que a natureza humana reluta tanto em obedecer a ela, especialmente quando o que está em jogo é sua própria verdade ou convicção religiosa? Não seriam as religiões, em tese, as principais responsáveis por preconizar, de modo prático, essa lei perante seus fiéis? Aparente aporia, pois, paradoxalmente ou não, é a própria religião (no caso, o cristianismo) o vértice motivador de tal definição. A religião parece, nesse sentido, cumprir o papel de denúncia como de realização da natureza humana, promovendo, direta ou indiretamente, aquilo que ela própria condena.

A questão da tolerância surge em parte como instrumento político, também como resposta a um contexto pluralista incipiente na modernidade e, ao mesmo tempo, como uma espécie de “puxão de orelha” nos monoteísmos em geral, e em particular no cristianismo, por demonstrar uma conduta intolerante e visivelmente contraditória com relação à sabedoria de seu livro sagrado, que prega, por exemplo, o amor ao inimigo e o oferecer a outra face. Essa crítica aliada à defesa da tolerância acontece de modo incipiente no período Renascentista (o que inclui as contribuições do humanismo e da própria Reforma) e depois com o Iluminismo do século XVIII, sobretudo em filósofos como Espinoza, Locke e Voltaire. Detenhamo-nos, antes de avançar, na ideia de tolerância em Voltaire.

A obra mais contundente de Voltaire sobre a tolerância é sem dúvida seu Tratado sobre a tolerância. Nela o filósofo parte da narrativa de um assassinato ou execução sumária pela justiça de Toulouse, na França, no dia 9 de março de 1762, de um pai de família protestante chamado Jean Calas, algo que Voltaire considera “um dos mais singulares acontecimentos que merecem a atenção de nossa época e da posteridade” (Voltaire, 2006VOLTAIRE, F. A. Tratado sobre a tolerância. Trad. Antonio Geraldo da Silva. São Paulo: Escala Educacional, 2006.: 9). Sendo um caso particular, entre tantos outros ocorridos na França num período marcadamente intolerante de sua história, no qual, num passado não tão distante, haviam ocorrido episódios como o massacre da chamada “Noite de São Bartolomeu” em Paris, em agosto de 1572, qual seria a razão de tamanho espanto e interesse? O que haveria de tão especial e singular no caso de Calas?

Antes de responder a esta pergunta, prossigamos um pouco mais com o relato e as constatações preliminares de Voltaire. Jean Calas era um comerciante na região de Toulouse; convertera-se ao protestantismo num período de efervescência dessa religião na Europa, e de grande perseguição também aos novos convertidos, sobretudo em países majoritariamente católicos e recheados de fanáticos religiosos como era a França. Toda a vizinhança sabia ou suspeitava da opção confessional de Calas e sua família, e os tratava com desconfiança. Calas tinha esposa e filhos e, segundo relata Voltaire, sempre fora reconhecido por todos ao seu redor como “um bom pai”. Entretanto, um de seus filhos, chamado Marco Antônio, que era erudito mas tinha um espírito inquieto e sombrio, não tendo obtido sucesso no negócio profissional que pleiteava, nem tendo conseguido espaço para atuar como advogado, uma vez que necessitava de certificados de catolicidade, resolveu dar cabo à própria vida, suicidando-se uma noite após um jantar em família.

Durante o pranto e a dor vivenciada pelos pais, enquanto um amigo da família chamava médicos e a justiça, a vizinhança começou a se aglomerar perto da casa dos Calas. Sobre ela, Voltaire (2006: 11)VOLTAIRE, F. A. Tratado sobre a tolerância. Trad. Antonio Geraldo da Silva. São Paulo: Escala Educacional, 2006. relata: “Esse povo é supersticioso e fogoso; considera como monstros os irmãos que não são da mesma religião”. Até que um fanático em meio à multidão gritou que Calas havia sido responsável pelo enforcamento do próprio filho, e logo o boato que se espalhou pela cidade foi o de que aquele fora um caso de parricídio: o pai e a mãe haviam arquitetado a morte do filho supostamente porque este se recusara a se converter à religião protestante. O ponto de partida de Voltaire, além do caso emblemático de Calas, foi a própria onda de violência e intolerância que assolara a Europa nas guerras religiosas entre católicos e protestantes nos últimos dois séculos (XVI e XVII).

Voltaire apela para a ética proveniente do direito natural, o da tolerância, que para ele se resume na máxima negativa (muito semelhante à do “imperativo categórico” de Kant3 3 Para Kant, a questão do dever nos coloca em relação direta com uma lei ou princípio, que deve gerar uma ação proveniente da “própria vontade” e não da “vontade em geral”. Daí nasce o que ele chama de imperativo categórico: “Assim age de modo que a máxima de tua ação possa tornar-se uma lei universal” (Kant, 2010: 159). ): “Não faça o que não gostaria que lhe fizessem”. Se todos os homens de sua época, portanto, se orientassem por esse direito, jamais poderia haver ocasião em que um chegasse para outro e dissesse: “Creia naquilo que eu creio e no que você não pode crer ou morrerá” (Voltaire, 2006VOLTAIRE, F. A. Tratado sobre a tolerância. Trad. Antonio Geraldo da Silva. São Paulo: Escala Educacional, 2006.: 33). Na prática, porém, muitas vezes prevaleceu outro “direito”, o da intolerância. Esse direito Voltaire compara ao direito dos tigres, o qual, aplicado ao caso humano, se torna ainda mais bárbaro, pois “os tigres não dilaceram senão para comer, enquanto nós nos dilaceramos por causa de alguns parágrafos” (Voltaire, 2006VOLTAIRE, F. A. Tratado sobre a tolerância. Trad. Antonio Geraldo da Silva. São Paulo: Escala Educacional, 2006.: 33). Fica evidente, portanto, que a defesa da tolerância de Voltaire tem seu foco no monoteísmo, mormente o cristão, e se vale do espírito do direito natural que supostamente garantiria a todos, numa época de esclarecimento, a liberdade de crença, de religião e de opinião. Por isso ele questiona de modo quase apologético se a mais perigosa de todas as superstições não seria a “de odiar seu próximo por causa de suas opiniões” (Voltaire, 2006VOLTAIRE, F. A. Tratado sobre a tolerância. Trad. Antonio Geraldo da Silva. São Paulo: Escala Educacional, 2006.: 97).

Voltando ao espanto de Voltaire diante do caso Jean Calas e à singularidade que ele enxerga nessa história, pode-se dizer que eles têm uma dupla origem: (a) primeiro, o fato de a intolerância e o fanatismo religiosos ainda aparecerem com pujança numa sociedade supostamente esclarecida (ou em vias de esclarecimento), como ele entendia ser a sua; (b) segundo, o fato dessa violência partir de muitos dos que, como ele próprio, se diziam cristãos em sua época, os quais, ignorando os princípios basilares que regem sua religião, oprimiam, atacavam e até matavam em defesa de sua crença. Tanto no Tratado sobre a tolerância quanto no Dicionário filosófico, Voltaire parece se repetir em seu lamento e denúncia do cristianismo. No primeiro ele faz uma espécie de confissão: “Digo-o com horror, mas com verdade: somos nós, cristãos, somos os perseguidores, os algozes, os assassinos! E de quem? De nossos irmãos” (Voltaire, 2006VOLTAIRE, F. A. Tratado sobre a tolerância. Trad. Antonio Geraldo da Silva. São Paulo: Escala Educacional, 2006.: 52). Já no Dicionário filosófico, ele explora um dos paradoxos do cristianismo precisamente no que concerne à tolerância: “De todas as religiões, a cristã é, sem dúvida, a que deve inspirar mais tolerância, embora até aqui os cristãos tenham sido os mais intolerantes de todos os homens” (Voltaire, 1978______. Tolerância. In: Os pensadores. Dicionário filosófico. Trad. Marilena Chauí. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 290-293.: 291).

Isso conduz de volta à definição inicial de “tolerância”, esposada por Voltaire. Segundo ele, a tolerância como virtude funda-se em uma limitação humana: somos fracos e errôneos. Como poderíamos, então, não tolerar os erros ou as diferenças dos outros? Para André Comte-Sponville (1999: 129)COMTE-SPONVILLE, A. Tolerância. In: Pequeno tratado das grandes virtudes. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 123-135., a tolerância decorre também de uma fraqueza teórica, isto é, da “incapacidade em que estamos de alcançar o absoluto”. A pré-condição para a tolerância, assim, seria a mútua assunção de tal “fraqueza”, o que propiciaria idealmente relações cordiais, respeitosas e tolerantes. A questão é o que, num contexto de litígio e mútua afirmação de valores e crenças religiosas, levaria as pessoas a tal assunção e reconhecimento. Haveria limites para o uso da tolerância entre adeptos de crenças e convicções diametralmente opostas? Como preconizar respeito, diálogo e tolerância sem gerar o que Aldo Natale Terrin (2004: 340)TERRIN, A. N. A tolerância nas religiões do passado e do presente. In: Antropologia e horizontes do sagrado. Trad. Euclides Callone. São Paulo: Paulus, 2004, p. 334-352. chama de “vale tudo das identidades religiosas” num contexto pluralista?

A discussão parece estar longe de um ponto final – se é que se pode almejar tal coisa em se tratando de religião. Talvez seja de ajuda um princípio que os romanos usavam para assuntos de ofensa religiosa ou ofensa ao sagrado: “Compete exclusivamente aos deuses cuidar das ofensas feitas aos deuses” (apud Voltaire, 2006VOLTAIRE, F. A. Tratado sobre a tolerância. Trad. Antonio Geraldo da Silva. São Paulo: Escala Educacional, 2006.: 37).

2. Razões próprias da religião: o caso da “Praça Islâmica”

Gostaria de prosseguir utilizando a narrativa e a análise de um caso ocorrido na cidade de Londrina, no Paraná, no ano de 2011, como emblema para esta discussão, com a intenção de desenvolver uma reflexão sobre o que se denominará “razões próprias da religião”. Nesse sentido, o caso de Voltaire não precisa ser particularmente esclarecedor para este estudo de caso, dada a distância histórica e geográfica entre ambos e a particularidade e/ou complexidade inerente a cada um. A questão aqui não é, portanto, comparar os dois casos, mas destacar como a problemática da tolerância permanece, entre possíveis continuidades e rupturas, viva e atual neste tempo e em seus mais diferentes contextos. O que se segue é apenas mais um exemplo possível.

2.1. O polêmico caso da “Praça Islâmica” em Londrina

Em meados de junho de 2011, foi apresentado na Câmara Municipal de Londrina o Projeto de Lei 115/2011 – proposto pelo vereador Rony dos Santos Alves, e assinado pelos vereadores Joel Garcia, José Roque Neto, Ivo de Bassi, Jairo Tamura, Martiniano do Valle Neto e José Roberto Fortini –, sugerindo denominar “Praça Islâmica” uma área pública localizada na confluência entre duas avenidas da cidade, e autorizando a construção na referida área de um monumento em homenagem ao povo islâmico. O monumento seria construído com recursos da iniciativa privada e sob a supervisão das secretarias municipais de Cultura e Obras.Tal ideia, porém, não avançaria livre de polêmicas numa cidade majoritariamente católica e permeada, ainda que tacitamente, por certa “ética protestante” como Londrina.4 4 Ver sobre esta discussão o capítulo 1 de minha dissertação de mestrado (Menezes, 2009: 33-36).

No dia da votação do projeto, o secretário executivo do Conselho de Pastores de Londrina (CPEL) fez circular um e-mail entre vários líderes religiosos (evangélicos, em sua maioria) alertando para a urgência da questão para os cristãos da cidade. Em seu relato, o secretário, pastor auxiliar de uma das maiores igrejas evangélicas de Londrina, relatou que a diretoria do Conselho de Pastores havia se reunido com o vereador Rony Alves, autor principal do projeto, com o objetivo de alertá-lo quanto à intenção de privilegiar uma religião em detrimento das outras, e sugerindo uma revisão do projeto com o intuito de “amadurecer a proposta” (Simão, 2011SIMÃO, E. C. Urgente - CPEL [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por jonathan@ftsa.edu.br em 21 de junho de 2011.). O teor da mensagem, porém, parece revelar mais o desejo de veto que de amadurecimento da proposta.

Senão, vejamos. Com o anseio talvez de mexer com os ânimos daqueles líderes para a mobilização contra o projeto, o pastor-secretário aproveitou para anexar ao e-mail uma carta de um ex-aluno vereador Rony Alves, que supostamente havia sido endereçada a ele com o intuito de demovê-lo da ideia do projeto. Dizia a carta:

Bom dia Prof. Rony, já fui seu aluno no colégio Canadá há uns 18 anos (...) e também te conheço da igreja Metodista. Ouvi falar desse PL que denomina de Praça Islâmica a rotatória da Av. Santos Dumont x Av. JK. Qual não foi minha surpresa ao procurar no site da CML e ver que o projeto é de sua autoria. Não sei quais suas motivações para fazer tal gentileza com a comunidade islâmica, mas muito me intriga um cristão propor uma homenagem aos muçulmanos. Mas enquanto aqui eles são tratados a pão de ló, nos seus países de origem, os cristãos são perseguidos, presos e mortos. Não faz sentido um cristão contribuir para o projeto da Fraternidade Muçulmana, projeto global que visa à instauração de um estado islâmico mundial e a destruição do cristianismo, está a pleno vapor na Europa e Estados Unidos e crescendo cada vez mais no Brasil. Homenageando os islâmicos, você está colaborando para destruição da sua própria religião. Portanto, antes de dar continuidade a esse PL, peço encarecidamente que se informe um pouco sobre o assunto e reflita se é isso mesmo que a população de Londrina precisa... (Simão, 2011SIMÃO, E. C. Urgente - CPEL [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por jonathan@ftsa.edu.br em 21 de junho de 2011.).

Ao final da carta, o ex-aluno ainda apresentava uma lista de blogues aparentemente escritos e mantidos por cristãos, contendo várias notícias sobre a expansão islâmica pelo mundo, as atrocidades do fundamentalismo islâmico, a atualidade da Jihad, a perseguição e intolerância que pessoas declaradamente cristãs sofrem em países islâmicos, e assim por diante, para de alguma forma alertar e informar os cristãos quanto à necessidade de uma contraofensiva proselitista, sobretudo no ocidente europeu, onde o cristianismo ainda é majoritário entre os monoteísmos, mas vê sua hegemonia ameaçada a cada dia diante do secularismo e da diáspora islâmica. Vale ressaltar que o autor do e-mail endossou a carta, alegando que ela “sintetiza bem o sentimento do segmento cristão em Londrina” (Simão, 2011SIMÃO, E. C. Urgente - CPEL [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por jonathan@ftsa.edu.br em 21 de junho de 2011.).

Apesar de todo o alarde, o caso da “Praça Islâmica” foi aparentemente encerrado com a aprovação do Projeto de Lei 115/2011 com 14 votos a favor, 2 contra e 2 abstenções, e a promulgação da a lei em 20 de julho de 2011. O detalhe foi que um dos vereadores, o pastor evangélico Gerson Araújo (PSDB), não votou, e os dois que votaram contra também eram evangélicos: Eloir Valença (PT) e o (agora falecido) pastor Renato Lemes (PRB). O incômodo em relação à “Praça Islâmica” parece assim ter-se originado em dois pontos: (a) segundo o argumento de um dos pastores do CPEL, no fato de privilegiar uma religião em detrimento das outras; (b) segundo a carta do ex-aluno, no fato de um vereador cristão (membro da Igreja Metodista em Londrina) ter proposto um projeto de lei que, em sua súmula, homenageava uma religião “inimiga”.

Quanto a isto, algumas considerações gerais podem ser feitas:

a. De fato, em um país laico, democrático e de direito, não se deve privilegiar uma religião em detrimento de outras; espera-se a adoção de uma neutralidade positiva, “onde haja isenção por parte do Estado, tanto para entidades religiosas de amplo espectro como também para as não-religiosas” (Fonseca, 2011FONSECA, A. B. Relações e privilégios: Estado, secularização e diversidade religiosa no Brasil. Rio de Janeiro: Novos Diálogos, 2011.: 136). Isso em tese. Na prática, isso se torna uma utopia quando cerca de 87% dos brasileiros se declaram cristãos. É claro, isso não elimina o aspecto da diversidade e da pluralidade, mesmo interna às religiões, o que torna ainda mais complexa a tarefa de analisar o campo religioso no Brasil. Retomarei este aspecto no terceiro tópico.

b. Nesse sentido, o segmento cristão de Londrina não tem exatamente do que reclamar, pois em 1977, durante o primeiro mandato do prefeito Antônio Belinati, foi construído o chamado “Monumento à Bíblia” em homenagem às Escrituras Sagradas dos cristãos, fato ignorado pelos líderes religiosos que se opuseram ao projeto da “Praça Islâmica”. Quer dizer, o “Monumento à Bíblia” não é questionado; o crucifixo ou a imagem da Santa na parede de Escola Pública não são questionados; mas um símbolo dedicado ao Islã sofre repúdio? É um típico caso de inversão, em que religiosos (no caso, os evangélicos) que têm um “projeto de maioria” (ainda mais com o crescimento explosivo das últimas décadas no Brasil) se comportam como se ainda fossem “minoria” (ver Giumbelli, 2006GIUMBELLI, E. Minorias religiosas. In: As religiões no Brasil. Continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 229-247.: 234, 239).

c. Então, parece que Gianni Vattimo (2004: 123)______. Depois da cristandade: por um cristianismo não religioso. Trad. Cynthia Marques. São Paulo: Record, 2004. foi assertivo em sua crítica sobre o ocidente liberal ao defender que “o espaço leigo do liberalismo moderno é mais religioso do que o próprio liberalismo e o pensamento cristão estão dispostos a reconhecer”, até porque as ideias de pluralismo, liberdade de crença e opinião, e tolerância, como vimos, desenvolveram-se no seio de um ocidente ainda não totalmente emancipado da égide da cristandade; o mesmo vale para o Brasil e, pelo visto, para Londrina. Ou seja, o estado é laico si, pero no mucho companheiro!

d. A própria Câmara Municipal de Londrina há anos tem dado motivos para esse tipo de crítica. O princípio de laicidade e igualdade de religião é violado nessa casa todo início de uma nova sessão ordinária, quando o presidente abre os trabalhos dizendo: “Em nome de Deus, declaramos aberta a presente sessão” – se bem que esse “Deus” poderia ser Alá, Jesus, Krishna ou Buda. Porém, em seguida, tem sido costume que um/a vereador/a leia um texto da Bíblia em voz alta, e assim a sessão prossegue normalmente. Caso se respeitasse mesmo a laicidade do estado, ou não se faria uso dos recursos acima descritos, ou, por bom senso, deveria ser proposto um rodízio para que o Alcorão, a Torá, a Codificação Espírita de Allan Kardec, o Livro de Mórmon e assim por diante, também pudessem ser lidos. Ou seja, no espaço público de uma sociedade laica, ou se contempla e aceita outras representações de crença, ou não estamos em uma democracia de fato. Todavia, como bem lembra Emerson Giumbelli (2006: 231)GIUMBELLI, E. Minorias religiosas. In: As religiões no Brasil. Continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 229-247.:

O Estado moderno, mesmo quando abraça, mais ou menos declaradamente, mais ou menos extensivamente, os princípios laicizantes ou secularistas, não precisa recusar aos seus cidadãos o engajamento religioso. Basta-lhe encontrar os meios através dos quais consiga neutralizar esses engajamentos, de modo a efetivar a autonomia da máquina política e dos atos civis em relação aos assuntos religiosos. Daí exigências tais como ausência de vínculos materiais e simbólicos entre Estado e religiões e a supressão de toda referência religiosa nas áreas reguladas pela lei.

e. Por fim, por trás do intento de vetar a manifestação religiosa alheia, pode estar o “medo da diferença”, do estranho à “minha opinião”, “meus credos” e “meu lugar”, construindo-se “argumentações das mais diversas para tentar demonstrar que ‘o de sempre’ é o verdadeiro, o objetivo, o normal e o saudável”, enquanto aquilo que se apresenta “como novidade é na realidade uma tentativa de desorganização e ameaça à ordem” (Panotto, 2013PANOTTO, N. O medo à diferença. Revista Novos Diálogos.Disponível em: <www.novosdialogos.com>. Acesso em 4.11.2013.
www.novosdialogos.com...
). Ou ainda o que Vattimo chama de “violência metafísica” (2010, 2004, 1996), que preconiza a superioridade de uma “Verdade” sobre outras com a finalidade de prevalecer, dominar, controlar, e definir quem “é” e quem “não é”, quem está “dentro” e quem está (e deve permanecer) “fora”. O perigo é que, como disse Rubem Alves (2002: 150)ALVES, R. Filosofia da ciência. 13 ed. São Paulo: Loyola, 2002., “as certezas andam de mãos dadas com as fogueiras”. Aqui encontramos um dos entraves que, segundo Alexandre Brasil Fonseca (2011: 136)FONSECA, A. B. Relações e privilégios: Estado, secularização e diversidade religiosa no Brasil. Rio de Janeiro: Novos Diálogos, 2011., limitam a extensão da contribuição evangélica à democracia, que ele define como “o constante hábito de demonizar o outro”, concluindo que “mesmo sendo apontados elementos democráticos nesta prática (...), parece-nos necessária a existência de um maior respeito e convivência com o diferente para uma efetiva contribuição na esfera política”.

2.2. Sobre as “razões próprias” e a ambiguidade da religião

Parodiando o conhecido dito de Blaise Pascal, podemos dizer que a religião tem razões que a própria razão desconhece. Ela envolve o intelecto, é claro, mas menos o intelecto que o coração, e menos o coração que as entranhas. Um religioso vive por certos princípios, e na defesa apaixonada desses princípios os perde muitas vezes de vista, sendo capaz de afirmá-los como confissão, mas negá-los, consciente ou inconscientemente, como prática. As práticas religiosas, desse modo, nem sempre se coadunam com as teorias provenientes de uma determinada religião.

Nesse sentido, vale apelar para a afirmação de John Caputo de que “a religião é para os amantes, apaixonados pelo impossível, que fazem com que o restante de nós pareça vago”, o que ele completa dizendo que:

Na religião, o amor de Deus está exposto habitualmente ao perigo de confundir-se com a profissão de alguém ou o ego de alguém, ou o gênero de alguém, ou a política de alguém, ou a ética de alguém, ou o esquema metafísico favorito de alguém, ao qual este se sacrifica de maneira sistemática. Então, ao invés de fazer sacrifícios pelo amor de Deus, a religião se inclina a fazer um sacrifício do amor de Deus (Caputo, 2005______. Sobre la religión. Trad. espanhola Marta Gálvez. Madri: Tecnos, 2005.: 121, tradução minha).

Pode-se depreender desta fala de Caputo que toda forma de religião é um tipo de antroporfismo; fala-se do “amor de Deus”, da “vontade dos deuses”, do sacrifício “para Deus”, mas, no fim, o que isto significa? Como não atrelar as experiências e significações do sagrado com as paixões e idiossincrasias do humano, do profano, do mundano? Ademais, outra razão própria da religião é que, ao que parece, ela mexe não apenas com os gostos, preferências ou meras opiniões das pessoas, mas, em grande parte, com o “tudo ou nada” de sua existência. É isso que Caputo expressa no livro Truth (2013), onde ele reflete sobre a verdade e sua relação com a religião. Em suas próprias palavras:

Religião envolve nossas mais profundas convicções e mais apaixonadas crenças sobre nascimento e morte, doença e saúde, infância e velhice, amor e inimizade, guerra e paz, misericórdia e compaixão. Por essa razão é que pessoas religiosas são capazes de investir a vida toda trabalhando em favor dos pobres e dos doentes, dedicando-se às vítimas da AIDS na África, por exemplo, e também porque, em contrapartida, são igualmente capazes de incendiar um lugar colocando-o abaixo em um acesso de intolerância. A religião é irredutível tanto a um quanto ao outro e remover a raiva é remover a paixão; mas se você remover a paixão, remove também a religião. Conquanto haja religião, bem como paixão, a chance para a justiça sempre virá acompanhada do risco da injustiça (Caputo, 2013CAPUTO, J. D. Truth: philosophy in transit (eBook). London: Penguin, 2013.: 61, tradução minha).

É essa ambiguidade da religião que pode tornar artificial e até inútil o discurso sobre “paz” ou “tolerância” entre as religiões ou convicções semelhantes, caso não se reconheça que a violência, a guerra, a disputa, a intolerância, o ódio e a injustiça sempre fizeram parte da história das religiões em todo o mundo, tanto quanto diferentes práticas e preceitos sobre o amor, a tolerância, o respeito, a justiça, a equidade, a paz, e assim por diante. Não são os deuses que estão em guerra, mas os seus seguidores. Eliminar essa ambiguidade – parece-me que este é o ponto de Caputo – é o mesmo que remover a religião. Por essa razão, parte fundamental do discurso dos ateístas5 5 Como é o caso de Sam Harris em seu livro Carta a uma nação cristã(2007), e de Richard Dawkins em seu Deus, um delírio (2007). O segundo, já no prefácio de seu livro, convida os leitores, no espírito da música “Imagine”, de John Lennon, a imaginar um mundo sem religião e, consequentemente, sem guerras, ataques suicidas, cruzadas, massacres, perseguições, evangélicos televisivos extorquindo dinheiro de seus fiéis e assim por diante (Dawkins, 2007: 14). A descrença em Deus e o desejo de extirpação da religião da face da terra é o que diferencia esses “neoateus” dos chamados “sem religião”, por exemplo. Não se pode, dessa forma, colocar no mesmo bojo de análise os ateístas, os agnósticos e os sem religião (ver nota 6). converge na direção de que, se abolíssemos a religião do mundo, haveria menos guerras, menos violência, menos intolerância. A história contemporânea das religiões no Brasil, porém, parece seguir em outras direções, que reverberam tanto no desejo de mais religião,6 6 Como denuncia, por exemplo, o crescimento vertiginoso dos evangélicos no Brasil (segundo Censos do IBGE de 2000 e 2010): de cerca de 26 milhões (ou 15,4% da população) em 2000, para cerca de 42 milhões (ou 22,2% da população) em 2010. Ver IBGE <http://www.ibge.gov.br/home>. por um lado, quanto no anseio por menos religião, sem perder, porém, o elemento da transcendência.7 7 É o que aponta, por exemplo, Marcelo Ayres Camurça (2006: 45) ao comentar sobre o percentual de crescimento significativo da categoria dos “sem religião” já no Censo do ano 2000 (de 4,8% da população para 7,3% – sendo que em 2010 esse índice subiu para 8%). Para ele, “o percentual dos ‘sem religião’, mais que expressar um crescimento do indiferentismo religioso, revela a eclosão de uma ‘religião invisível’, (...) marcada pela desfiliação dos indivíduos das instituições religiosas e a opção destes por uma religiosidade própria, montada a partir de um ‘mercado religioso’”. Assim, a postura dos “sem religião” talvez parta do rechaço do dogma, do fundamentalismo e do legalismo das “grandes religiões” e, em contrapartida, da valorização das belezas e variedades contidas no sentimento religioso ou na espiritualidade. “Nisto se percebe”, defende Friedrich Nietzsche (2005: 93), “que os espíritos livres menos ponderados se chocam apenas com os dogmas, na realidade, e conhecem bem o encanto do sentimento religioso; é doloroso para eles perder este por causa daqueles”. Embora se encontrem em categorias diferentes, ambos os movimentos parecem partilhar do mesmo processo de reencantamento do mundo.

3. Tolerância, caridade e a ideia de pluralismo religioso

3.1. Pluralismo religioso: onde está e para onde vai?

Podemos iniciar este último tópico não somente perguntando onde está a tolerância no Brasil de “todos os credos”, mas, principalmente, com a provocadora aporia de Antônio Flávio Pierucci (2006: 49)PIERUCCI, A. F. Cadê nossa diversidade religiosa? Comentários ao texto de Marcelo Camurça. In: As religiões no Brasil. Continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 49-51.: “Cadê nossa badalada diversidade religiosa no Brasil? O gato comeu”. Badalada, afirma ele, referindo-se às teses mais variadas de intelectuais brasileiros que celebram nossa suposta diversidade religiosa. E a grande variedade de classificações (que a cada dia cresce mais) de religiões e religiosidades no Brasil, que se pode notar através dos Censos de 2000 e 2010, realmente dá a ideia de uma grande diversidade e pluralidade, o que nos tornaria um país multicolorido não apenas etnicamente, mas também religiosamente. Na prática, porém, a situação é bem mais complexa. Pierucci defende (2006: 49), um tanto categoricamente, que “basta o brasileiro parar um pouco e olhar à sua volta para quase só ver... cristãos” – referindo-se, é claro, à predominância numérica de católicos e evangélicos, que englobam cerca de 165 milhões de brasileiros. Para ele, o Censo de 2000 veio mostrar que a diversidade religiosa brasileira é “quase nada” e que nosso pluralismo religioso é “desmilinguido”.

Em sua crítica, Pierucci prossegue afirmando que fica difícil falar em pluralismo religioso no Brasil não só em função desses números, mas quando ainda encontramos aqui e acolá na sociedade espectros de prerrogativas do monoteísmo cristão. E ele completa:

Eu bem que gostaria de dar a todos a boa notícia sociológica de que no Brasil atual as pessoas de fato têm muito mais chances do que nunca de aderir às mais diferentes concepções do divino. Oxalá fosse mesmo verdade que no cotidiano das famílias, ao redor do mesmo almoço dominical, já fosse menos sustentável a leveza do conviver pós-tradicional de mãe católica reconvertida pela Renovação Carismática e filha jovem convertida ao Budismo ou à União do Vegetal – encontros culturais que fossem, sem medo, confrontos culturais, fatos novos e densos que desdobrassem no mundo da vida de muitos, mais aquilo que a sociologia contemporânea, pelo avesso, tem chamado de “destradicionalização”. Mas não, nossa diversidade religiosa ainda é balbuciante. Oxalá pudéssemos ouvi-la, em seus primeiros, pianíssimos acordes, dizer aos nossos corações que, calma, estamos apenas no começo de um longo processo de desfiliação geral que um dia há de dar, se aos deuses em luta isso aprouver, numa grande, maravilhosa dispersão (Pierucci, 2006PIERUCCI, A. F. Cadê nossa diversidade religiosa? Comentários ao texto de Marcelo Camurça. In: As religiões no Brasil. Continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 49-51.: 51).

Ao expor seu desejo, Pierucci revela que o pluralismo religioso, mais que um dado da realidade, pode ser concebido como uma ideologia. Essa é a tese de Peter Berger e Anton Zijderveld (2012)BERGER, P.; ZIJDERVELD, A. Em favor da dúvida. Como ter convicções sem se tornar um fanático. Trad. Cristina Yamagami. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012., que, diferentemente de outros pesquisadores (como Pierucci, 2006PIERUCCI, A. F. Cadê nossa diversidade religiosa? Comentários ao texto de Marcelo Camurça. In: As religiões no Brasil. Continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 49-51., e Fonseca, 2011FONSECA, A. B. Relações e privilégios: Estado, secularização e diversidade religiosa no Brasil. Rio de Janeiro: Novos Diálogos, 2011.) fazem uma diferenciação entre “pluralidade” e “pluralismo”. Para eles, a pluralidade (e não o pluralismo) é o que designa o dado da realidade, descrita como “a situação em que grupos humanos (étnicos, religiosos ou de outra forma diferenciados) convivem em condições de paz cívica e em interação social uns com os outros” (Berger e Zijderveld, 2012BERGER, P.; ZIJDERVELD, A. Em favor da dúvida. Como ter convicções sem se tornar um fanático. Trad. Cristina Yamagami. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.: 6). Os autores ainda chamam de “pluralização” o processo que conduz certas sociedades à pluralidade. Já o pluralismo é entendido como “a atitude, possivelmente expandida na forma de uma filosofia completa, que aceita tal realidade” (Berger e Zijderveld, 2012BERGER, P.; ZIJDERVELD, A. Em favor da dúvida. Como ter convicções sem se tornar um fanático. Trad. Cristina Yamagami. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.: 7).

A questão central aqui, contudo, é que as condições para que possamos efetivamente falar de “pluralismo religioso” no Brasil são ambíguas, controversas, precárias, e ainda se encontram num lento processo. Como observa Fonseca (2011: 39, grifo meu)FONSECA, A. B. Relações e privilégios: Estado, secularização e diversidade religiosa no Brasil. Rio de Janeiro: Novos Diálogos, 2011.:

Para podermos efetivamente falar em pluralismo em nosso contexto, é fundamental percebermos a existência de religiões não cristãs. Uma sociedade pode ter diversidade religiosa somente com as diferentes seitas protestantes, porém não é adequado pensarmos em pluralismo diante deste mesmo quadro.As disputas e os processos envolvendo o Espiritismo e a Umbanda desempenharam significativo papel no Brasil, os quais representaram importante passo na construção do pluralismo religioso. Por outro lado, a presença de uma maior amplitude de crenças, indo além das religiões mundiais e das não cristãs, é algo muito recente, restrito a certas comunidades que, aos poucos, vai se beneficiando e promovendo um ambiente realmente plural (...).

Ao que parece, tanto no caso da discussão e defesa da tolerância, como vimos no primeiro tópico, como na discussão mais contemporânea sobre o pluralismo, ainda nos vemos um tanto ou quanto atrelados, para não dizer reféns, do monoteísmo cristão. Ao mesmo tempo, pode-se depreender tanto da fala de Pierucci quanto da de Fonseca que, embora num país tão diverso em inúmeros sentidos como é o Brasil não se tenham reunido condições satisfatórias, em termos gerais, para o uso apropriado da expressão, parecem existir sinais, mesmo que isolados, de que se está caminhando para o pluralismo religioso. Para tanto, já aqui pensando na contribuição de autores como Gianni Vattimo, alguns passos mais ousados precisam ser dados, o que, para Vattimo, como veremos a seguir, tem a ver propriamente com a desconfiança de intelectuais, como ele mesmo, em relação aos sistemas de verdade que se impõem como incontestes no que diz respeito à leitura da realidade.

3.2. Da tolerância à caridade

Tratemos, assim, da transição da tolerância para a caridade, enunciada no título deste ensaio. No segundo capítulo do livro Adios a la verdad (2010) de Vattimo, uma ideia central e certamente polêmica abre a discussão que se destina ao campo da religião: somente um Deus relativista pode nos salvar! Mas o que viria a ser isto? Um Deus “relativista”, para Vattimo, seria um sinônimo de um Deus kenótico,8 8 Derivado de kenosis, palavra grega que designa o esvaziamento do poder ou da vontade de alguém em favor da de outrem. O uso desta palavra geralmente vem atrelado ao texto da carta de Paulo aos Filipenses, no capítulo 2, quando o apóstolo fala do movimento descendente do Cristo que, abandonando sua glória, se esvaziou do poder de sua divindade e humilhou-se, assumindo a forma humana. Na filosofia de Vattimo, kenosis é utilizada para se referir à humilhação, encarnação e humanização de Deus, ponto fundamental em sua teoria da secularização, que para ele brota exatamente do esvaziamento do falar de Deus a partir da metafísica. A partir de então, o chão da história em que Deus se encarnou torna-se o referente para se falar de Deus. isto é, um Deus que se esvazia de sua divindade e poder, e que se encarna neste ponto da história, para nós que vivemos no mundo da “globalização realizada”. Essa concepção reafirma o decreto da “morte de Deus” de Nietzsche (do Deus da metafísica, fundamento moral universal) e supostamente libera o falar de Deus a partir do que este nome significa para nós, que vivemos dentro de uma situação histórica dada. E isso Vattimo considera uma “libertação” proveniente da secularização: não somente para o filósofo ou para a sociedade democrática, mas para a igreja (e aqui ele obviamente está pensando no cristianismo), que faz parte e está no meio disso tudo. Isso é assim, pois, para Vattimo, ainda hoje a igreja cristã continua dando seu testemunho no mundo de modo normativo e absoluto, como sendo aquela autorizada a falar a verdade sobre Deus, a desvendar a natureza da vida mesma e a arbitrar sobre ela.

Para Vattimo, a superstição mais grave e perigosa de todas consiste em conceber a fé como “conhecimento objetivo”, pois é isso que dispõe uma fé (no caso, a cristã) contra outras com violência metafísica (totalitária?). Além disso, é isso que faz com que a igreja, em nome da natureza das coisas ou do homem, queira que toda a sociedade seja regida pelos princípios que ela professa, atentando contra princípios de liberdade como os do laicismo, da tolerância e da caridade (Vattimo, 2010VATTIMO, G. Adios a la verdad. Barcelona: Editorial Gedisa, 2010.: 70). Como contraponto a essa percepção é que Vattimo se apropria da ideia cristã da kenosis (cf. Paulo em Filipenses 2.5-11), para dizer que esta se coloca como destino da metafísica nos dias de hoje, ou seja, em seu esvaziamento. Segundo ele, esse esvaziamento pressupõe o rompimento da igualação entre Deus e a ordem do mundo real, ou da pretensão de adequar os pensamentos de Deus aos nossos pensamentos (sobre Deus, a natureza, o ser humano). Assim, ao invés do “Deus metafísico”, propõe-se a ideia de um “Deus relativista” ou “débil”, que já não pode assegurar, por vias objetivas ou propositivas, uma verdade universal, ou mesmo não admitir a diversidade doutrinária e/ou religiosa.

A kenosis e o “pensamento fraco”9 9 Pensamento fraco (pensiero debole), na concepção de Vattimo (2004: 30), “é o reconhecimento nietzschiano de que não podemos evitar que se fale em termos metafóricos, isto é, em termos que não são objetivos nem descritivos, que não espelham o estado de coisas”. Embora tenha trabalhado esta noção mais especificamente na obra que leva o mesmo nome (Il pensiero debole, 1983), ela irá reaparecer de forma expressa e diluída ao longo de toda a sua obra posterior conduzem também a outra dimensão importante na filosofia de Vattimo que é a da caridade. Segundo ele afirma, a revelação judaico-cristã consiste na afirmação de que Deus é amor e não violência, e de que este é um anúncio “escandaloso”, fora das possibilidades de conhecimento (e aplicabilidade) humanas, que somente poderiam vir de um “Deus encarnado” (Vattimo, 2010VATTIMO, G. Adios a la verdad. Barcelona: Editorial Gedisa, 2010.: 99). Assim, Vattimo nega-se a admitir que o pensamento fraco se resuma a uma espécie de pregação da ideia de tolerância apenas; o que ele tem em mente é um ideal de desenvolvimento da sociedade humana, a “redução progressiva de toda rigidez que nos opõe uns aos outros”, rumo à caridade. Pois a tolerância, por si só, concebe e convive bem com a existência de muros e barreiras entre as pessoas e suas crenças; já a caridade, segundo Vattimo, seria um “projeto de futuro”, que culminaia com a “progressiva eliminação dos muros: muro de Berlim, muro das leis naturais que são propostas contra a liberdade dos indivíduos, muro da lei de mercado”, e assim por diante (Vattimo, 2010VATTIMO, G. Adios a la verdad. Barcelona: Editorial Gedisa, 2010.: 93-94, tradução minha).

Depreende-se dessa leitura que a “tolerância realizada”, não a idealizada, tem sido incapaz de cumprir seu corolário. Apela-se, assim, à caridade (do grego do Novo Testamento, ágape, que traduz o amor altruísta ou divino), que não apenas encarna a fraqueza como, assim fazendo, (supõe-se) reduz progressivamente a ridigez e as fronteiras que opõem entre si religiosos de diferentes matizes. Dessa forma, a tese aqui pode ser a de que a consequência prática da tolerância (a maleabilidade própria da assunção de nossas fraquezas humanas), conforme esposada por Voltaire, é mais bem realizada pela noção, que Vattimo empresta da matriz judaico-cristã, de caridade.

Uma possível ambiguidade neste caso pode estar em como uma filosofia da religião que se quer pluralista, como a de Vattimo, pode ser combinada com o uso deliberado do princípio cristão de caridade – considerando aqui a própria crítica de Pierucci, como vimos anteriormente, sobre o pluralismo à brasileira, ainda cristão em sua maioria. Entrementes, a diferença crucial no caso de Vattimo é que a relação por ele estabelecida é de natureza conceitual e filosófica, e não religiosa. Ou seja, este empréstimo de uma noção cristã por parte de Vattimo tem uma finalidade filosófica e não apologética; ainda que, no campo pessoal, este filósofo se identifique com alguns dos “valores cristãos”, não se pode inferir que sua filosofia seja propriamente cristã, mas sim niilista,10 10 A base do niilismo de Vattimo, do ponto de vista nietzschiano/heideggeriano no qual ele afirma se colocar, consiste na “perda da crença em uma verdade objetiva em favor de uma perspectiva que concebe a verdade como efeito de poder” (Vattimo, 2004: 132), e que pode ser colocada como efeito da “morte de Deus” conforme esposada por Nietzsche. Essa posição fica mais clara em seu “adeus à verdade”, que será abordado no tópico seguinte. tendo como escopo teórico tanto a filosofia de Nietzsche quanto a de Heidegger.

3.3. Sobre o adeus à verdade

O “adeus à verdade” como correspondência, segundo Vattimo, é o início e a base da democracia e do pluralismo, pois onde há democracia não pode haver uma classe de detentores da “verdade verdadeira”, que exerçam o poder de forma direta ou indireta. Esse adeus ocorre, assim, a partir do reconhecimento de que a verdade não se encontra “lá fora”, mas é fruto da interpretação e construção, individual e comunitária, pelo consenso e o respeito à liberdade de cada um. Logo, o que “temos” não é a verdade, mas são as verdades particulares, isto é, que são não universalmente, mas localmente válidas e sempre passíveis de revisão. Na medida em que se reconhece isso, afirma ele, “muitos autoritarismos são desmascarados, enquanto pretensões de imposição de comportamentos não partilhados, em nome de alguma lei da natureza, essência do homem, tradição intocável, revelação divina” (Vattimo, 2010VATTIMO, G. Adios a la verdad. Barcelona: Editorial Gedisa, 2010.: 27, tradução minha).

Essa solução, porém, pode nos conduzir, como corolário, a um impasse ético, que pode ser resumido na seguinte aporia: no “adeus à verdade”, como reconhecer e denunciar a mentira nociva ao bem individual ou comum? Coadunar-se-á o adeus à verdade com a descarada mentira? Ou, indo adiante, sem o parâmetro da verdade, como é possível se definir e diferenciar coisas tais como “mentira” e “bem comum”? Se a verdade absoluta é “mais um perigo que um valor”, que valores ainda podem ser defendidos que não resultem no mesmo perigo ora rechaçado – o de absolutizar aquilo que é apenas particular? A resposta de Vattimo é uma solução aberta e provisória ao problema: se é possível que tal conflito não possa ser vencido pela pretensão de se chegar à verdade das coisas, uma vez que o resultado sempre será diferente da verdade mesma, resulta que não mais se busque a verdade universal, mas uma “verdade” comunitariamente válida para o grupo numa situação histórica dada.

No adeus à verdade suspende-se a pretensão a uma validade universal de pressupostos, e dá-se boas-vindas a “verdades particulares” com validade relativa e temporária. Assim, não se trata de um total abandono da tarefa de distinguir práticas ou discursos que sejam verdadeiros ou falsos, mas de reconhecer que “a diferença entre verdadeiro e falso é sempre uma diferença que surge de interpretações mais ou menos aceitáveis e compartilhadas”, como produto não do autoritarismo da visão de uns sobre outros, mas de consensos solidariamente possíveis. Não que o papel do diálogo seja, necessariamente, o de produzir consenso, nem que o do intelectual não possa ser o de persuadir seus pares de sua posição. A diferença, para Vattimo, está na palavra interpretação, de modo que: “A filosofia não é expressão da época, é uma interpretação que com certeza se esforça por ser persuasiva, mas que reconhece sua própria contingência, liberdade e riscos” (Vattimo, 2010VATTIMO, G. Adios a la verdad. Barcelona: Editorial Gedisa, 2010.: 61, tradução minha).

A filosofia que emerge, então, dessa reafirmação do pluralismo, é uma filosofia carente de princípios últimos ou, por assim dizer, pós-fundacionalista. Mas, se ela é niilista, débil de fundamentos e de uma origem, como pode falar racionalmente e/ou não descambar para um irracionalismo puro e simples do tipo “vale-tudo”? Na perspectiva de nosso autor, ela o faz a partir de “eleições responsáveis” ou pontos de partida explícitos (não neutros, nem universalizantes), que surgem de “imperativos” ditados não pelo olho de Deus subjacente a toda moral,mas pelo contexto e seus sujeitos concretos vivendo situações específicas.Vattimo parece propor, assim, a troca de uma ética universal (com imperativos categóricos) por uma ética situacional (com imperativos contextuais, forjados a partir de uma pertença comunitária). A isto ele chama de ética da finitude, isto é, “aquela que tenta se manter fiel ao descobrimento da situação, sempre insuperavelmente finita, da própria procedência, sem se esquecer das implicações pluralistas de tal descobrimento” (Vattimo, 2010VATTIMO, G. Adios a la verdad. Barcelona: Editorial Gedisa, 2010.: 10, tradução minha).

Mantendo-se o valor da procedência, isto significa que a herança cultural ou tradição não tem que ser desprezada. O que muda é o critério escolhido para o acordo sobre o que “vale” e o que “não vale” da herança, que é o do diálogo ou encontro entre éticas finitas que, reconhecendo-se como tais, não cederão facilmente à tentação de imposição da verdade de uma sobre a(s) outra(s). Ou seja, numa ética da finitude o outro não mais se vê coagido ao silêncio em nome de princípios, mas é respeitado em seu direito de fala/vida. “Respeito ao outro”, como define Vattimo (2010: 113, tradução minha)VATTIMO, G. Adios a la verdad. Barcelona: Editorial Gedisa, 2010., “é o reconhecimento da finitude que caracteriza a ambos e que exclui toda superação definitiva da opacidade que cada um leva consigo”. Isto lembra em muito a implicação direta que Voltaire apresenta para sua definição de tolerância, isto é, a do reconhecimento de nossa precariedade humana.

Desta feita, uma ética da finitude não abdica da racionalidade, mas reconhece a provisoriedade dos saberes e posições deles provenientes. Isto ajuda a manter longe a ilusão de se ver do lado da verdade e da pretensão de impô-la ao resto do mundo, favorecendo o pluralismo e/ou a diversidade.

Conclusão

O percurso aqui adotado começou com a ideia de tolerância, a partir de Voltaire, reconhecendo sua importância num mundo moderno e em vias de pluralização, mas também suas limitações, tanto do ponto de vista histórico – uma vez que a ideia aparece como uma espécie de concessão cristã ou de salvo-conduto para as “demais” manifestações religiosas emergentes – quanto do ponto de vista ético, perguntando-se sobre quais, afinal, são os limites da tolerância em relação, por exemplo, às atrocidades, injustiças e maldades cometidas pelos humanos, muitas vezes “em nome de Deus”. É possível, por exemplo, tolerar quem não tolera, quem mata, quem oprime, quem violenta? No discurso de Voltaire a tolerância aparece como antídoto à intolerância, obviamente, mas também como denúncia das crueldades que no seio e com a anuência da religião foram cometidas (e, infelizmente, ainda o são).

Observou-se, porém, que o corolário da tolerância segundo Voltaire – o perdão, a compaixão, a aceitação do outro ser humano tão cheio de falhas e limitações quanto eu – extrapola, enquanto “exigência”, os limites daquilo que até então conhecemos historicamente como “práticas realizadas” de tolerância.A percepção é que, considerando as “razões próprias” e as ambiguidades da religião, conforme analisadas no segundo item, as pessoas em suas crenças estão dispostas a tolerar, mas “até certo ponto”, ou seja, até o ponto em que, por exemplo, a tolerância não significa ter de negociar ou mesmo minimizar, em nome da convivência ou do bem comum, convicções “fortes” de fé. Daí a recorrência à ideia de John Caputo sobre a religião como sendo fruto não de um processo racional, mas um negócio feito “para os amantes”, que se entregam passionalmente à causa, custe o que custar.

Vivemos, porém, em um país democrático, em um Estado laico onde temos a garantia, por lei, de liberdade de expressão, ideologia, crença e culto, e assim por diante. Ou seja, a Constituição é o suporte legal para a diversidade. Mas, como vimos no caso da “Praça Islâmica”, mesmo com as miríades de religiões e religiosidades que compõem esse mosaico que é o campo religioso brasileiro, o suporte legal não é suficiente para formar cidadãos que, para além de seus credos particulares, devem se conscientizar do direito à diversidade, mesmo que ao redor, a depender de onde se está, se vejam apenas “cristãos”, como enfatizou Pierucci. A questão e o desafio do pluralismo ainda permanecem mesmo ali, pois as disputas e a intolerância existem mesmo internamente entre os diferentes grupos do segmento cristão. O cristianismo brasileiro é cada vez mais uma religião no plural, mas nem sempre pode ser visto como mais tolerante por isso. O contrário parece ser plausível nesse caso: quanto maior a pluralidade, maior a intolerância.

Portanto, como “garantir um espaço de legitimidade para expressões religiosas diversas” (Vattimo, 2004______. Depois da cristandade: por um cristianismo não religioso. Trad. Cynthia Marques. São Paulo: Record, 2004.: 125), e minimizar o risco, sempre iminente na religião, da intolerância? A proposta de Vattimo, embora utópica, ressoa como original e arrojada, pois faz uso de um princípio religioso de uma forma “não religiosa”, dando a entender que o antídoto contra os males provocados pela religião podem se encontrar não fora, mas dentro das próprias religiões. Basta observar o que elas mesmas pregam. No caso do cristianismo, objeto de estudo de Vattimo, isso se encontra na mensagem da caridade (amor altruísta) e na ideia de encarnação como “dissolução do sagrado enquanto violência” (Vattimo, 1996______. Creer que se cree. Buenos Aires: Editorial Paidós, 1996.: 37).

Dialogando com a teoria da violência do sagrado, de René Girard, Vattimo afirma que a encarnação do Cristo não resulta do desejo divino de saciar a própria ira proporcionando outra vítima – como ocorre nos mecanismos sacrificiais em várias religiões –, mas sim busca liquidar com o casamento entre a violência e a religião (Vattimo, 1996______. Creer que se cree. Buenos Aires: Editorial Paidós, 1996.: 36), ao menos como norte e possibilidade. O fim desse nefasto matrimônio ocorreu no que o próprio Girard chamou de triunfo da Cruz:

A vitória do Cristo nada tem a ver com a de um general vitorioso: em lugar de infligir sua violência aos outros, é o próprio Cristo que a sofre. (...) Longe de ser obtido pela violência, o triunfo da Cruz é o fruto de uma renúncia tão total que a violência pode se desencadear sobre o Cristo até ficar saciada, sem suspeitar de que, desencadeando-se, torna manifesto o que lhe interessa dissimular, sem suspeitar de que esse desencadeamento dessa vez vai se voltar contra ela, pois será registrado e representado fielmente nos relatos da Paixão (Girard, 2012GIRARD, R. Eu via Satanás cair como um relâmpago. Trad. Martha Gambini. São Paulo: Paz & Terra, 2012.: 200-201).

O triunfo da Cruz, nesse sentido, quando ocorrido e toda vez que reencenado na vida, tem contornos de fracasso. Assume-se que, para vencer a violência, é preciso não reagir com mais violência; é necessário, para fins mais nobres por assim dizer, abraçar a derrota. Observe-se que o sentido do uso da “cruz” é bem distinto, por exemplo, do espírito cruzado, de conquista de almas, de conversão do outro à “minha religião” ou “à verdade”.

A trajetória que conduz a religião da tolerância à caridade, portanto, é uma trajetória em que se mina o litígio entre adeptos de diferentes credos e convicções pela via do enfraquecimento voluntário, ou, nos termos de Zygmunt Bauman (2010: 179)BAUMAN, Z. Legisladores e intérpretes. Sobre modernidade, pós-modernidade e intelectuais. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2010., por uma “modéstia autoimposta, adotada e praticada por ‘todas as formas de vida’ ”.Trata-se, neste caso, de uma “paixão” de outra ordem, que põe termo aos ânimos acirrados das paixões fanáticas. Nesse aspecto, somente a caridade, retomando Vattimo, pode cumprir o corolário da tolerância conforme a entendia Voltaire, indo além da simples ideia de tolerância como o ato de suportar o diferente para, quem sabe, o ato de celebrar, aprender e amadurecer através das diferenças, religiosas ou não.

Notas

  • 1
    A secularização é entendida como o processo de emancipação dos seres humanos e suas sociedades da influência e ingerência da religião, que tem a ver com o que Weber chamou de “desencantamento do mundo”. Entretanto, segundo Berger e Zijderveld (2012: 3-4)BERGER, P.; ZIJDERVELD, A. Em favor da dúvida. Como ter convicções sem se tornar um fanático. Trad. Cristina Yamagami. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012., “ao analisar o mundo contemporâneo, não é a secularização que se vê, mas sim uma enorme explosão de exaltados movimentos religiosos”, ou seja, não um “desencantamento”, e sim um “reencantamento” de parte do mundo, como é o caso do Islamismo da África do Norte ao sudeste da Ásia, bem como em sua diáspora ocidental, até os pentecostalismos na América Latina, que também se espalham mundo afora. A visão positiva que Gianni Vattimo, por exemplo, tem da secularização como processo contínuo e necessário talvez se deva mais ao seu contexto imediato, ou seja, o europeu, onde ele continua pujante, embora seja temerário dizer que os europeus deixaram de ser “religiosos” em sentido lato.
  • 2
    Alguém pode indagar sobre a razão da escolha de Voltaire e não de pensadores mais fundantes neste tema, como os também iluministas Locke e Montaigne. A escolha de Voltaire deve-se tanto a uma questão de predileção teórica, quanto, como corolário, ao entendimento de que seu Tratado sobre a tolerância, mais que representar uma série de elucubrações filosóficas sobre a tolerância, parte de um caso concreto de intolerância religiosa na França do século XVIII para buscar sua sustentação histórico-contextual. Por isso o tratado se alinha melhor aos propósitos deste ensaio em particular.
  • 3
    Para Kant, a questão do dever nos coloca em relação direta com uma lei ou princípio, que deve gerar uma ação proveniente da “própria vontade” e não da “vontade em geral”. Daí nasce o que ele chama de imperativo categórico: “Assim age de modo que a máxima de tua ação possa tornar-se uma lei universal” (Kant, 2010KANT, I. A metafísica dos costumes. Trad. Edson Bini. São Paulo: Folha de São Paulo, 2010 (Coleção Folha: Livros que mudaram o mundo).: 159).
  • 4
    Ver sobre esta discussão o capítulo 1 de minha dissertação de mestrado (Menezes, 2009MENEZES, J. As metamorfoses do sagrado no protestantismo brasileiro: o caso da Igreja Presbiteriana Independente Filadélfia. Londrina (1972-2008). Dissertação (Mestrado em História Social). Londrina, UEL, 2009.: 33-36).
  • 5
    Como é o caso de Sam Harris em seu livro Carta a uma nação cristã(2007), e de Richard Dawkins em seu Deus, um delírio (2007). O segundo, já no prefácio de seu livro, convida os leitores, no espírito da música “Imagine”, de John Lennon, a imaginar um mundo sem religião e, consequentemente, sem guerras, ataques suicidas, cruzadas, massacres, perseguições, evangélicos televisivos extorquindo dinheiro de seus fiéis e assim por diante (Dawkins, 2007DAWKINS, R. Deus, um delírio. Trad. Fernanda Ravagnani. São Paulo: Cia das Letras, 2007.: 14). A descrença em Deus e o desejo de extirpação da religião da face da terra é o que diferencia esses “neoateus” dos chamados “sem religião”, por exemplo. Não se pode, dessa forma, colocar no mesmo bojo de análise os ateístas, os agnósticos e os sem religião (ver nota 6).
  • 6
    Como denuncia, por exemplo, o crescimento vertiginoso dos evangélicos no Brasil (segundo Censos do IBGE de 2000 e 2010): de cerca de 26 milhões (ou 15,4% da população) em 2000, para cerca de 42 milhões (ou 22,2% da população) em 2010. Ver IBGE <http://www.ibge.gov.br/home>.
  • 7
    É o que aponta, por exemplo, Marcelo Ayres Camurça (2006: 45)CAMURÇA, M. A. A realidade das religiões no Brasil no Censo do IBGE-2000. In: As religiões no Brasil. Continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 35-48. ao comentar sobre o percentual de crescimento significativo da categoria dos “sem religião” já no Censo do ano 2000 (de 4,8% da população para 7,3% – sendo que em 2010 esse índice subiu para 8%). Para ele, “o percentual dos ‘sem religião’, mais que expressar um crescimento do indiferentismo religioso, revela a eclosão de uma ‘religião invisível’, (...) marcada pela desfiliação dos indivíduos das instituições religiosas e a opção destes por uma religiosidade própria, montada a partir de um ‘mercado religioso’”. Assim, a postura dos “sem religião” talvez parta do rechaço do dogma, do fundamentalismo e do legalismo das “grandes religiões” e, em contrapartida, da valorização das belezas e variedades contidas no sentimento religioso ou na espiritualidade. “Nisto se percebe”, defende Friedrich Nietzsche (2005: 93)NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2005., “que os espíritos livres menos ponderados se chocam apenas com os dogmas, na realidade, e conhecem bem o encanto do sentimento religioso; é doloroso para eles perder este por causa daqueles”.
  • 8
    Derivado de kenosis, palavra grega que designa o esvaziamento do poder ou da vontade de alguém em favor da de outrem. O uso desta palavra geralmente vem atrelado ao texto da carta de Paulo aos Filipenses, no capítulo 2, quando o apóstolo fala do movimento descendente do Cristo que, abandonando sua glória, se esvaziou do poder de sua divindade e humilhou-se, assumindo a forma humana. Na filosofia de Vattimo, kenosis é utilizada para se referir à humilhação, encarnação e humanização de Deus, ponto fundamental em sua teoria da secularização, que para ele brota exatamente do esvaziamento do falar de Deus a partir da metafísica. A partir de então, o chão da história em que Deus se encarnou torna-se o referente para se falar de Deus.
  • 9
    Pensamento fraco (pensiero debole), na concepção de Vattimo (2004: 30)______. Depois da cristandade: por um cristianismo não religioso. Trad. Cynthia Marques. São Paulo: Record, 2004., “é o reconhecimento nietzschiano de que não podemos evitar que se fale em termos metafóricos, isto é, em termos que não são objetivos nem descritivos, que não espelham o estado de coisas”. Embora tenha trabalhado esta noção mais especificamente na obra que leva o mesmo nome (Il pensiero debole, 1983), ela irá reaparecer de forma expressa e diluída ao longo de toda a sua obra posterior
  • 10
    A base do niilismo de Vattimo, do ponto de vista nietzschiano/heideggeriano no qual ele afirma se colocar, consiste na “perda da crença em uma verdade objetiva em favor de uma perspectiva que concebe a verdade como efeito de poder” (Vattimo, 2004______. Depois da cristandade: por um cristianismo não religioso. Trad. Cynthia Marques. São Paulo: Record, 2004.: 132), e que pode ser colocada como efeito da “morte de Deus” conforme esposada por Nietzsche. Essa posição fica mais clara em seu “adeus à verdade”, que será abordado no tópico seguinte.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    03 Jan 2015
  • Aceito
    07 Abr 2015
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