Acessibilidade / Reportar erro

Associação entre hipocalcemia e rivaroxaban em distúrbios de coagulação: relato de caso

RESUMO

Descrevemos um paciente com hiperparatireoidismo terciário com história de três episódios de trombose venosa profunda e em uso de rivaroxabana. O paciente foi submetido a uma paratireoidectomia subtotal, desenvolvendo hematoma cervical com compressão das vias aéreas. Foi necessária descompressão cirúrgica de emergência. No nono dia de pós-operatório, os níveis séricos de cálcio iônico estavam baixos. O conhecimento da equipe médica sobre doenças preexistentes e de sua implicação no estado de coagulação é condição indispensável para a redução da morbimortalidade do procedimento cirúrgico. No entanto, não há relatos na literatura associando hipocalcemia com o uso da nova classe de anticoagulantes que atuam como inibidores do fator X (fator de Stuart-Prower), predispondo ao aumento do sangramento no pós-operatório imediato.

Rivaroxabana/efeitos adversos; Coagulação sanguínea; Hematoma; Paratireoidectomia

ABSTRACT

We describe a patient with tertiary hyperparathyroidism with history of three episodes of deep vein thrombosis and on rivaroxaban. The patient underwent a subtotal parathyroidectomy, developing cervical hematoma with airway compression. Therefore, emergency surgical decompression was necessary. Later, on the ninth postoperative day, the serum ionized calcium levels were low. Medical team knowledge about preexisting diseases and their implication in the coagulation state are essential conditions to reduce morbidity and mortality of surgeries. However, no reports were found in literature about the association of hypocalcemia with the use of the new class of anticoagulants, which act as factor X inhibitors (Stuart-Prower factor), predisposing to increased bleeding in the immediate postoperative period.

Rivaroxaban/adverse effects; Blood coagulation; Hematoma; Parathyroidectomy

INTRODUÇÃO

Rivaroxabana é um anticoagulante da nova classe de inibidores seletivos do fator X ativado, bastante usado na prevenção e no tratamento de eventos tromboembólicos, especificamente em pacientes com doenças cardiovasculares.11. Yates SG, Smith S, Tharpe W, Shen YM, Sarode R. Can an anti-Xa assay for low-molecular-weight heparin be used to assess the presence of rivaroxaban? Transfus Apher Sci. 2016;55(2):212-5. O emprego da rivaroxabana não exige monitorização da coagulação, pois esse medicamento tem propriedades farmacológicas previsíveis, como meia-vida curta e ação rápida, com perfil de segurança aprimorado, o que resulta no uso de uma dose fixa.11. Yates SG, Smith S, Tharpe W, Shen YM, Sarode R. Can an anti-Xa assay for low-molecular-weight heparin be used to assess the presence of rivaroxaban? Transfus Apher Sci. 2016;55(2):212-5. No entanto, em alguns quadros clínicos potencialmente graves, deve-se realizar uma análise da ação da rivaroxabana, mesmo que indiretamente, por meio da avaliação do tempo de protrombina ou da determinação da atividade do antifator Xa.11. Yates SG, Smith S, Tharpe W, Shen YM, Sarode R. Can an anti-Xa assay for low-molecular-weight heparin be used to assess the presence of rivaroxaban? Transfus Apher Sci. 2016;55(2):212-5. Entre esses quadros clínicos, destacam-se os pacientes com hiperparatiroidismo ou com doença renal em estágio 4 ou 5, pois constituem um grupo de alto risco para eventos trombóticos. O uso de anticoagulantes nessa categoria de pacientes não é incomum.

Os níveis séricos de anticoagulantes orais dependem diretamente da função renal. Consequentemente, uma redução do clearance renal pode afetar a eficácia e a segurança desses medicamentos. Os pacientes com doença renal crônica têm sua própria curva farmacocinética acima do limite de normalidade, o que deve ser levado em consideração ao se analisar o risco de hemorragia.11. Yates SG, Smith S, Tharpe W, Shen YM, Sarode R. Can an anti-Xa assay for low-molecular-weight heparin be used to assess the presence of rivaroxaban? Transfus Apher Sci. 2016;55(2):212-5. , 22. Fanikos J, Burnett AE, Mahan CE, Dobesh PP. Renal Function and Direct OralAnticoagulant Treatment for Venous Thromboembolism. Am J Med. 2017;130(10):1137-43. Review. Devido a esses fatores, a conduta clínica no tratamento com anticoagulantes em pacientes com doença renal crônica é um desafio médico.

Um termo de consentimento informado por escrito foi obtido do paciente.

RELATO DE CASO

Apresentamos um paciente de 51 anos, sexo masculino, com história de doença renal crônica em estágio 5, de etiologia indeterminada, em diálise desde 2003, com transplante intervivos e HLA/ABO-incompatível em 2014. Como complicação da patologia, o paciente apresentou dislipidemia, hiperuricemia, hipovitaminose D (17ng/mL), osteoporose com T-score de -5,9, calcificação extraesquelética com aterosclerose avançada, três eventos tromboembólicos venosos em membro inferior e hiperparatireoidismo terciário. Foi iniciado uso contínuo de rivaroxabana, na dose de 20mg ao dia, e de cinacalcete, na dose de 30mg ao dia. Como o paciente manteve intensa atividade osteoclástica, com níveis de paratormônio acima de 300pg/mL e cálcio iônico constantemente acima do limite máximo da normalidade (1,60mg/dL) 2 anos após o transplante, e com função renal já normalizada (creatinina 1,10mg/dL), a equipe decidiu pela excisão cirúrgica parcial das paratireoides. A rivaroxabana foi suspensa 48 horas antes do procedimento cirúrgico, e o antifator Xa foi dosado (0,004UI/mL). Depois disso, foi iniciada a transição da anticoagulação com heparina de baixo peso molecular por 6 dias. O procedimento foi realizado sem anormalidades e com critérios laboratoriais de excisão efetiva (paratormônio perioperatório 8pg/mL). Na terapia intensiva, o paciente evoluiu apenas com hipocalcemia assintomática, controlada com cálcio oral. No quinto dia pós-operatório, foi reiniciada a rivaroxabana 20mg ao dia, sem dose de ataque, seguindo-se a alta hospitalar. O paciente evoluiu bem. No entanto, tardiamente, no nono dia pós-operatório, o paciente apresentava cálcio iônico de 0,79mmol/L, apesar da reposição oral de cálcio (4,5g ao dia), calcitriol (2,25mg ao dia) e magnésio (3g ao dia), quando surgiram desconforto e dor incisional súbita, não associados a esforço físico nem à trauma local. Houve formação espontânea de extenso hematoma cervical, que evoluiu em 3 horas para compressão e desvio da traqueia, sendo necessária abordagem cirúrgica de emergência. No pós-operatório, o paciente foi transferido para a terapia intensiva, sendo iniciada a reposição endovenosa de cálcio e magnésio. A evolução do paciente foi boa, não exigindo novos procedimentos cirúrgicos. Foi escolhida correção da anticoagulação com heparina de baixo peso molecular até o 21odia pós-operatório, quando, e somente então, foi reiniciada a administração da rivaroxabana. Nenhum ajuste de dose é necessário em pacientes com disfunção renal leve ( clearance de creatinina − ClCr≤80-50 mL/minuto) ou moderada (ClCr <50-30mL/minuto). Alguns estudos clínicos de pacientes com insuficiência renal grave (ClCr <30-15 mL/minuto) indicam que os níveis plasmáticos aumentam significativamente nessa população de pacientes. Seu uso não é recomendado em pacientes com ClCr <15mL/minto.33. January CT, Wann LS, Calkins H, Chen LY, Cigarroa JE, Cleveland JC Jr, et al. 2019 AHA/ACC/HRS Focused Update of the 2014 AHA/ACC/HRS Guideline for the Management of Patients With Atrial Fibrillation. Circulation. 2019;140:e125-e151.

O paciente foi submetido a inúmeros exames propedêuticos para pesquisa de distúrbios de coagulação, incluindo proteínas C e S, mutações do gene da protrombina e do fator V de Leiden, homocisteína, inibidor do ativador do plasminogênio, atividade do fator VIII, teste de resistência da proteína C ativada, anticoagulante lúpico, antitrombina, anticardiolipina, antitrombina 3, antibeta-2-glicoproteína, dímero D, ferro, ferritina, outros elementos do hemograma total e exames comuns de coagulação. Todos os resultados se mostraram nos limites da normalidade.

DISCUSSÃO

O hiperparatireodismo secundário à doença renal crônica caracteriza-se pela elevação dos níveis de paratormônio, hiperplasia glandular e doença óssea com alto turnover de cálcio. De acordo com a Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN), cerca de 16% dos pacientes em diálise apresentam nível de paratormônio superior a 600pg/mL, mas 31% recebiam apenas calcitriol, 2% recebiam paracalcitol, e 4% recebiam cinacalcete. A paratireodectomia parcial ou total é recomendada pela SBN em pacientes pós-transplantados com doença renal crônica quando, após 1 ano de um transplante bem-sucedido, não tenha havido regressão dos níveis persistentes de paratormônio associados à hipercalcemia persistente.44. Custodio MR, Canziani MF, Moyses RA, Barreto FC, Neves CL, Oliveira RB, et al. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para o tratamento do hiperparatireoidismo secundário em pacientes com doença renal crônica. J Bras Nefrol. 2013;35(4):308-22. , 55. Sesso RC, Lopes AA, Thome FS, Lugon JR, Martins CT. Brazilian Chronic Dialysis Survey 2016. J Bras Nefrol. 2017;39(3):261-6.

A hipocalcemia como causa de hipocoagulabilidade já está bem documentada, e o nível de cálcio iônico deve ser ≥0,9mmol/L para preservar a função hemostática. A incidência de hipocalcemia pós-paratireoidectomia é ampla na literatura, chegando a 40%, e depende principalmente da extensão do período pós-paratireoidectomia, da extensão e tamanho do procedimento cirúrgico, da presença de um tumor ou hiperplasia glandular, da execução ou não de autoimplante da paratireoide, e da idade. Foi demonstrado que cálcio iônico abaixo de 1,05mmol/L é preditor de sintomatologia em 95% dos pacientes até o segundo dia pós-operatório, ocorrendo a normalização dos níveis séricos na primeira semana, com suplementação de cálcio oral e administração ou não de vitamina D. O delicado equilíbrio entre a condição pró-trombótica funcional e a fisiopatologia disfuncional da coagulação na doença renal crônica tornam a execução de procedimentos em pacientes que já tiveram complicações tromboembólicas ainda mais desafiadora do que nos que estão recebendo anticoagulantes orais.11. Yates SG, Smith S, Tharpe W, Shen YM, Sarode R. Can an anti-Xa assay for low-molecular-weight heparin be used to assess the presence of rivaroxaban? Transfus Apher Sci. 2016;55(2):212-5.

Estudos recentes demonstraram que pacientes com hiperparatireoidismo e doença renal crônical apresentam hipercoagulabilidade e hipofibrinólise, aumentando a incidência de fenômenos tromboembólicos. A tendência à hipercoagulabilidade na doença renal crônica poderia ser explicada pela natureza multifatorial da enfermidade, com redução dos anticoagulantes endógenos e da atividade fibrinolítica, aumentando os níveis de fatores pró-coagulantes pelo uso de eritropoietina, ao passo que o maior risco de sangramento pode ser por anemia e uremia. Portanto, a preocupação com a possibilidade de maior sangramento cirúrgico e o uso de tromboprofilaxia, incluindo a trombose da própria fístula arteriovenosa, deve ser uma constante na abordagem cirúrgica.66. Boas WW, Oliveira CB, Maximo TA, Trindade CA, Sousa AA. Thromboelastographic Profile of Patients with Hyperparathyroidism Secondary to Chronic Kidney Failure Submitted to Total Parathyroidectomy. Open Anesthesiol. 2013;3(8):363-6.

Recentemente, o uso da rivaroxabana foi estendido para além das indicações do procedimento, porque o medicamento é considerado seguro, com eficácia comparável à da heparina de baixo peso molecular e da varfarina, além de não necessitar de exames laboratoriais de controle. Seu uso não necessita de ajustes de dose para peso, idade ou sexo, e não apresenta interações com alimentos, o que melhora ainda mais sua absorção e biodisponibilidade quando administrado nas refeições. O medicamento tem meia-vida de apenas 5 a 9 horas em adultos, proporcionando anticoagulação rápida e de curta duração.11. Yates SG, Smith S, Tharpe W, Shen YM, Sarode R. Can an anti-Xa assay for low-molecular-weight heparin be used to assess the presence of rivaroxaban? Transfus Apher Sci. 2016;55(2):212-5. Ensaios clínicos de fase 3 demonstraram que, apesar das taxas de eficácia e segurança comparáveis ou até melhores do que as de heparina e varfarina, o risco de sangramento grave foi de 0,7% e 3,6%.77. Bansilal S, Bloomgarden Z, Halperin JL, Hellkamp AS, Lokhnygina Y, Patel MR, et al. Efficacy and safety of rivaroxaban in patients with diabetes and nonvalvular atrial fibrillation: the Rivaroxaban Once-daily, Oral, Direct Factor Xa Inhibition Compared with Vitamin K Antagonism for Prevention of Stroke and Embolism Trial in Atrial Fibrillation (ROCKET AF Trial). Am Heart J. 2015;170(4):675-82.e8.

8. Kakkar AK, Brenner B, Dahl OE, Eriksson BI, Mouret P, Muntz J, et al. Extended duration rivaroxaban versus short-term enoxaparin for the prevention of venous thromboembolism after total hip arthroplasty: a double-blind, randomised controlled trial. Lancet. 2008;372(9632):31-9.
- 99. Larsen TB, Skjøth F, Nielsen PB, Kjældgaard JN, Lip GY. Comparative effectiveness and safety of non-vitamin K antagonist oral anticoagulants and warfarin in patients with atrial fibrillation: propensity weighted nationwide cohort study. BMJ. 201616;353:i3189. Não obstante, os casos de sangramento são numerosos, e um estudo recente realizado na Suécia mostrou que, em um período de 2 anos, houve 84 casos de sangramento grave (70,2% intracranianos) associados ao uso da rivaroxabana e da apixabana. Esses pacientes foram tratados com complexo de protrombina, contudo, em apenas 69% dos casos, a hemostasia foi adequada, com taxa de mortalidade total de 32%.1010. Majeed A, Ågren A, Holmström M, Bruzelius M, Chaireti R, Odeberg J, et al. Management of rivaroxaban- or apixaban-associated major bleeding with prothrombin complex concentrates: a cohort study. Blood. 2017;130(15): 1706-12. Os exames laboratoriais convencionais para avaliação da coagulação mostravam alterações pequenas ou mínimas, não tendo utilidade clínica para o acompanhamento da ação farmacológica do medicamento.

CONCLUSÃO

Como a excisão da paratireoide ainda é um procedimento cirúrgico padrão, e a hipocalcemia é um evento secundário esperado, os médicos devem manter-se atentos a queixas clínicas e monitorar o cálcio sérico de pacientes em uso de rivaroxabana, devido ao possível risco de hemorragia no período pós-operatório.

REFERENCES

  • 1
    Yates SG, Smith S, Tharpe W, Shen YM, Sarode R. Can an anti-Xa assay for low-molecular-weight heparin be used to assess the presence of rivaroxaban? Transfus Apher Sci. 2016;55(2):212-5.
  • 2
    Fanikos J, Burnett AE, Mahan CE, Dobesh PP. Renal Function and Direct OralAnticoagulant Treatment for Venous Thromboembolism. Am J Med. 2017;130(10):1137-43. Review.
  • 3
    January CT, Wann LS, Calkins H, Chen LY, Cigarroa JE, Cleveland JC Jr, et al. 2019 AHA/ACC/HRS Focused Update of the 2014 AHA/ACC/HRS Guideline for the Management of Patients With Atrial Fibrillation. Circulation. 2019;140:e125-e151.
  • 4
    Custodio MR, Canziani MF, Moyses RA, Barreto FC, Neves CL, Oliveira RB, et al. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para o tratamento do hiperparatireoidismo secundário em pacientes com doença renal crônica. J Bras Nefrol. 2013;35(4):308-22.
  • 5
    Sesso RC, Lopes AA, Thome FS, Lugon JR, Martins CT. Brazilian Chronic Dialysis Survey 2016. J Bras Nefrol. 2017;39(3):261-6.
  • 6
    Boas WW, Oliveira CB, Maximo TA, Trindade CA, Sousa AA. Thromboelastographic Profile of Patients with Hyperparathyroidism Secondary to Chronic Kidney Failure Submitted to Total Parathyroidectomy. Open Anesthesiol. 2013;3(8):363-6.
  • 7
    Bansilal S, Bloomgarden Z, Halperin JL, Hellkamp AS, Lokhnygina Y, Patel MR, et al. Efficacy and safety of rivaroxaban in patients with diabetes and nonvalvular atrial fibrillation: the Rivaroxaban Once-daily, Oral, Direct Factor Xa Inhibition Compared with Vitamin K Antagonism for Prevention of Stroke and Embolism Trial in Atrial Fibrillation (ROCKET AF Trial). Am Heart J. 2015;170(4):675-82.e8.
  • 8
    Kakkar AK, Brenner B, Dahl OE, Eriksson BI, Mouret P, Muntz J, et al. Extended duration rivaroxaban versus short-term enoxaparin for the prevention of venous thromboembolism after total hip arthroplasty: a double-blind, randomised controlled trial. Lancet. 2008;372(9632):31-9.
  • 9
    Larsen TB, Skjøth F, Nielsen PB, Kjældgaard JN, Lip GY. Comparative effectiveness and safety of non-vitamin K antagonist oral anticoagulants and warfarin in patients with atrial fibrillation: propensity weighted nationwide cohort study. BMJ. 201616;353:i3189.
  • 10
    Majeed A, Ågren A, Holmström M, Bruzelius M, Chaireti R, Odeberg J, et al. Management of rivaroxaban- or apixaban-associated major bleeding with prothrombin complex concentrates: a cohort study. Blood. 2017;130(15): 1706-12.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    31 Out 2018
  • Aceito
    14 Out 2019
Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein Avenida Albert Einstein, 627/701 , 05651-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 2151 0904 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@einstein.br