Acessibilidade / Reportar erro

Episódios de vômitos em recém-nascidos como consequência de membrana duodenal: relatos de dois casos

RESUMO

Episódios de vômito em recém-nascidos são extremamente comuns e frequentemente atribuídos a refluxo gastresofágico. Os sintomas de vômito, no entanto, podem ser causados por outras complicações. Neste relato, apresentamos dois casos: um lactente masculino, com 1 mês de idade, e um feminino, com 2 meses, ambos apresentando episódios de vômitos que levaram à desnutrição. Alguns pediatras costumam atribuir o diagnóstico de refluxo gastresofágico a recém-nascidos que estão vomitando; mas parcela da população tem outras causas que levam a sintomas semelhantes. O pediatra deve estar atento aos sinais clínicos de perda de peso, desidratação e desnutrição, para investigar outras causas de vômitos.

Descritores:
Membrana duodenal; Refluxo gastroesofágico; Desnutrição; Crianças

ABSTRACT

Vomiting episodes in newborns are extremely common and often attributed to gastroesophageal reflux. The symptoms of vomiting, however, may be caused by other complications. In this report, we present two cases of a 1-month-old male and a 2-month-old female, both presenting vomiting episodes that led to malnutrition. Some pediatricians often attribute the diagnosis of gastroesophageal reflux to newborns that are vomiting; however, there is a portion of the population that has other causes that lead to similar symptoms. The pediatrician should be alert to the clinical signs of weight loss, dehydration and malnutrition to investigate other causes of vomiting.

Keywords:
Duodenal membrane; Gastroesophageal reflux; Malnutrition; Child

INTRODUÇÃO

Episódios de vômito em recém-nascidos são extremamente comuns e frequentemente atribuídos a refluxo gastresofágico (RGE), um processo fisiológico causado pela passagem do conteúdo gástrico para dentro do esôfago.(11. Shields TM, Lightdale JR. Vomiting in children. Pediatr Rev. 2018;39(7):342-58. Review.)O vômito, no entanto, é esporádico e pode ser causado por outras complicações. A maioria dos erros inatos do metabolismo aparecem precocemente no período neonatal, com vômito e baixo ganho de peso.(22. Pomeranz AJ, Sabni S, Busey SL, Kliegman RM. Pediatric decision-making strategies. In: Albert JP, Sabnis S, Sharon LB, Robert MK, editors. Pediatric decision-baking strategies. 2nd ed. Philadelphia: Elsevier; 2016. p. 78-83.)

É importante avaliar quando um caso de vômito tem impacto significativo sobre a saúde e o estado nutricional do recém-nascido. A ocorrência de vômitos com perda de peso rápida, nas primeiras semanas de vida, deve levar à hipótese de anormalidade anatômica do trato digestivo. Polidrâmnio no pré-natal, detectado na ultrassonografia morfológica, pode ser indicativo de obstrução intestinal fetal.(11. Shields TM, Lightdale JR. Vomiting in children. Pediatr Rev. 2018;39(7):342-58. Review.)

Neste relato, os autores trazem os casos de um menino de 1 mês de idade e de uma menina de 2 meses. Ambos apresentavam episódios de vômitos que levaram à desnutrição. Inicialmente, pensou-se que poderia ser RGE. Após exame mais detalhado, o diagnóstico diferencial mostrou membrana duodenal. O caso do menino necessitou intervenção cirúrgica.

RELATO DE CASO

Caso 1

Um lactente do sexo masculino, com 1 mês de idade, foi levado à nossa instituição devido a vômitos recorrentes desde o nascimento e desnutrição aparente. O paciente aparentava mal estado geral, com muito baixo peso. Vômito bilioso era o único sintoma, mas o choro indicava dor intensa.

Alguns dias antes, o paciente estivera em outro hospital, onde foram relatados perda de peso excessiva e os episódios de vômito. Inicialmente, o diagnóstico foi RGE. Foi decidido que ele seria amamentado com mais frequência, complementando com fórmula, porém os vômitos aumentaram. O abdômen estava distendido e sensível à palpação. Estenose hipertrófica de piloro foi sugerida como diagnóstico diferencial.

Foi realizada ultrassonografia (US) abdominal em nosso hospital ( Figuras 1 a 3 ), a qual excluiu estenose pilórica ou outras lesões no abdômen. Foi detectada membrana duodenal: havia uma obstrução na segunda porção do duodeno com dilatação em direção cefálica.

Figura 1
Ultrassonografia com transdutor linear de frequência evidenciando distensão do antro gástrico (A) e bulbo duodenal (B). A membrana duodenal reduz o lúmen da segunda porção do duodeno (setas)
Figura 2
Ultrassonografia com transdutor linear de frequência evidenciando distensão do bulbo duodenal, (B) com afunilamento abrupto na segunda porção do duodeno (setas), correspondendo ao local da membrana duodenal
Figura 3
Ultrassonografia com transdutor linear de frequência evidenciando distensão do a bulbo duodenal com afunilamento abrupto na segunda porção do duodeno (setas), correspondendo ao local da membrana duodenal

A criança estava intensamente desnutrida e foi internada na unidade de terapia intensiva (UTI). A seguir, foi submetida à cirurgia abdominal. Foi realizada excisão total da membrana. O pós-operatório transcorreu sem intercorrências, exceto candidíase perineal causada pelos antibióticos. A criança recebeu alta no 20º dia de pós-operatório. Permanecia bem após 1 ano de seguimento.

Caso 2

Lactente do sexo feminino, com 2 meses, internada na UTI pediátrica do Hospital Municipal Dr. Moysés Deutsch, em São Paulo (SP), Brasil durante 28 dias, com história de nascimento a termo, Apgar 9/10, peso ao nascer 3.260g e sem complicações durante a gestação. Os relatos eram de dificuldade para mamar e vômitos biliosos frequentes desde o nascimento, baixo ganho de peso e tendo apresentado icterícia neonatal (bilirrubina total de 17) com fototerapia por 1 dia. Como a perda de peso progrediu, e os episódios de vômito pioraram, foi admitida no hospital, apresentando desidratação e exames laboratoriais que mostraram alcalose metabólica hipoclorêmica e hiponatremia. Após a estabilização clínica, foi feita cirurgia pediátrica por laparotomia exploratória, com diagnóstico realizado durante a cirurgia. Os achados foram: bandas duodenais de Ladd, rotação intestinal e membrana duodenal obstruindo a luz do órgão. Esses achados não foram observados no ultrassom. Na cirurgia, foram realizadas lise das bandas de Ladd, anastomose duodeno-duodenal e apendicectomia tática devido a uma obstrução da segunda porção duodenal.

No pós-operatório, a bebê apresentou vômito e hipoglicemia persistente (dextro e glicose sérica diferindo no momento da hipoglicemia), necessitando de altas concentrações de glicose e hidrocortisona (25mg/2). No terceiro e no oitavo dias pós-operatórios, a paciente apresentou evisceração, com necessidade de reintrodução das alças intestinais. Com a piora do quadro clínico, a antibioticoterapia (vancomicina e meropenen) foi prorrogada. No 11º dia de pós-operatório, evoluiu para choque séptico por fungo (com crescimento de Candida albicans em hemocultura de cateter central de inserção periférica - PICC), necessitando de drogas vasoativas e ventilação mecânica. Dois dias depois, a condição da paciente melhorou, e ela foi extubada. Recebeu transfusão de concentrado de hemácias e evoluiu com edema palpebral, crepitação e dispneia, necessitando de reintubação em função de piora bilateral das imagens radiológicas, tendo lesão pulmonar aguda associada à transfusão (TRALI) como causa provável.

A paciente teve alta após 3 meses de hospitalização.

DISCUSSÃO

A obstrução duodenal congênita é uma causa comum de obstrução intestinal em recém-nascidos.(33. Kliegman R, Stanton B, St Geme J, Schor N. Nelsons textbook of pediatrics. In: Bales C, Liacouras C, editors. Intestinal atresia, stenosis, and malrotation. 20th ed. Philadelphia: WB Saunders; 2015. p. 1800-1.)Esse defeito é causado por uma alteração na canalização do duodeno que ocorre entre a oitava e a décima semanas de gestação. A obstrução duodenal congênita ocorre em cerca de um em 2.500 a 10 mil nascidos vivos (quase metade de todos os casos de obstrução intestinal neonatal). Outros estudos mostram que a incidência é cerca de um em 5.000 a 10 mil nascidos vivos, e quase 50% são associados a outras malformações.(44. Mustafawi AR, Hassan ME. Congenital duodenal obstruction in children: a decade's experience. Eur J Pediatr Surg. 2008;18(2):93-7

5. Millar A, Rode H, Cywes S. Duodenal and intesnal atresia and stenosis. In: Holcomb G, Murphy JP, Peter SS. Holcomb and Ashcraft's pediatric surgery. 4th ed. Philadelphia: WB Saunders; 2005. p. 416-34.
-66. Aguayo P, Ostlie D. Duodenal and intesnal atresia and stenosis. In: Holcomb GW, Murphy JP, Peter SD. Holcomb and Ashcraft's pediatric surgery. 5th ed. Philadelphia: WB Saunders; 2010. p. 400-5.)Os diagnósticos diferenciais para vômitos em recém-nascidos são infecção, malformações e doenças metabólicas.

A taxa de mortalidade foi de 6% a 58%, mas, em estudos recentes, a taxa de sobrevida pós-operatória inicial melhorou de 60% para 90%. Mais de 50% das crianças têm outras anomalias, como cardiopatias (20%), má rotação (20%), síndrome de Down (30%) e outras. A sobrevida dos neonatos melhorou devido aos avanços em manejo cirúrgico, medicina intensiva e suporte nutricional pós-operatório.(33. Kliegman R, Stanton B, St Geme J, Schor N. Nelsons textbook of pediatrics. In: Bales C, Liacouras C, editors. Intestinal atresia, stenosis, and malrotation. 20th ed. Philadelphia: WB Saunders; 2015. p. 1800-1.,77. Kumar P, Kumar C, Pandey PR, Sarin YK. Congenital duodenal obstruction in neonates: over 13 years' experience from a single centre. J Neonatal Surg. 2016;5(4):50.)Nosso paciente do sexo masculino não apresentava outras malformações.

Essas obstruções podem ser classificadas como completas ou parciais, e as causas são classificadas como intrínsecas (atresia e membrana duodenal) ou extrínsecas (má rotação com banda de Ladd e pâncreas anular). Também são classificadas de acordo com os tipos de membrana duodenal: membrana intacta que pode causar obstrução total e membrana perfurada que leva à obstrução parcial (2% dos casos). A membrana geralmente está localizada na segunda porção do duodeno, próxima à ampola de Vater.(77. Kumar P, Kumar C, Pandey PR, Sarin YK. Congenital duodenal obstruction in neonates: over 13 years' experience from a single centre. J Neonatal Surg. 2016;5(4):50.

8. Escobar MA, Ladd AP, Grosfeld JL, West KW, Rescorla FJ, Scherer LR 3rd, et al. Duodenal atresia and stenosis: long-term follow-up over 30 years. J Pediatr Surg. 2004;39(6):867-71; discussion -71.
-99. Rattan KN, Singh J, Dalal P. Neonatal duodenal obstruction: a 15-year experience. J Neonatal Surg. 2016;5(2):13.)

Há muitas manifestações clínicas relacionadas ao tipo de obstrução, como náuseas, vômitos e perda de peso. Quando a criança tem uma obstrução parcial, é difícil fazer o diagnóstico. No caso do paciente do sexo masculino, as fezes não tinham acolia, sugerindo obstrução parcial. Quando o diagnóstico é tardio, o paciente pode evoluir com desnutrição, desidratação e desequilíbrio hidroeletrolítico. Um estudo mostrou como apresentações mais comuns, vômito (100% dos casos – não bilioso em 19% e bilioso em 81%), distensão epigástrica em 70% e desidratação em 22% dos neonatos. Em casos graves, choque está presente em quase 19% das crianças. Este estudo mostrou que 37% dos recém-nascidos apresentam sintomas após 10 dias de vida.(77. Kumar P, Kumar C, Pandey PR, Sarin YK. Congenital duodenal obstruction in neonates: over 13 years' experience from a single centre. J Neonatal Surg. 2016;5(4):50.

8. Escobar MA, Ladd AP, Grosfeld JL, West KW, Rescorla FJ, Scherer LR 3rd, et al. Duodenal atresia and stenosis: long-term follow-up over 30 years. J Pediatr Surg. 2004;39(6):867-71; discussion -71.
-99. Rattan KN, Singh J, Dalal P. Neonatal duodenal obstruction: a 15-year experience. J Neonatal Surg. 2016;5(2):13.)

Existe a possibilidade de diagnóstico pré-natal, e a intervenção endoscópica poderia ser uma opção.(88. Escobar MA, Ladd AP, Grosfeld JL, West KW, Rescorla FJ, Scherer LR 3rd, et al. Duodenal atresia and stenosis: long-term follow-up over 30 years. J Pediatr Surg. 2004;39(6):867-71; discussion -71.)

Os pediatras devem considerar os diagnósticos diferenciais em caso de vômitos, principalmente quando o paciente não ganha peso, como nestes casos.

CONCLUSÃO

Alguns pediatras com frequência atribuem o diagnóstico de refluxo gastresofágico a recém-nascidos com vômitos; no entanto, há uma porcentagem dessa população que tem outras causas que levam a sintomas semelhantes. Os pediatras devem estar alertas aos sinais clínicos de perda de peso, desidratação e desnutrição para investigar outras causas de vômitos.

REFERENCES

  • 1
    Shields TM, Lightdale JR. Vomiting in children. Pediatr Rev. 2018;39(7):342-58. Review.
  • 2
    Pomeranz AJ, Sabni S, Busey SL, Kliegman RM. Pediatric decision-making strategies. In: Albert JP, Sabnis S, Sharon LB, Robert MK, editors. Pediatric decision-baking strategies. 2nd ed. Philadelphia: Elsevier; 2016. p. 78-83.
  • 3
    Kliegman R, Stanton B, St Geme J, Schor N. Nelsons textbook of pediatrics. In: Bales C, Liacouras C, editors. Intestinal atresia, stenosis, and malrotation. 20th ed. Philadelphia: WB Saunders; 2015. p. 1800-1.
  • 4
    Mustafawi AR, Hassan ME. Congenital duodenal obstruction in children: a decade's experience. Eur J Pediatr Surg. 2008;18(2):93-7
  • 5
    Millar A, Rode H, Cywes S. Duodenal and intesnal atresia and stenosis. In: Holcomb G, Murphy JP, Peter SS. Holcomb and Ashcraft's pediatric surgery. 4th ed. Philadelphia: WB Saunders; 2005. p. 416-34.
  • 6
    Aguayo P, Ostlie D. Duodenal and intesnal atresia and stenosis. In: Holcomb GW, Murphy JP, Peter SD. Holcomb and Ashcraft's pediatric surgery. 5th ed. Philadelphia: WB Saunders; 2010. p. 400-5.
  • 7
    Kumar P, Kumar C, Pandey PR, Sarin YK. Congenital duodenal obstruction in neonates: over 13 years' experience from a single centre. J Neonatal Surg. 2016;5(4):50.
  • 8
    Escobar MA, Ladd AP, Grosfeld JL, West KW, Rescorla FJ, Scherer LR 3rd, et al. Duodenal atresia and stenosis: long-term follow-up over 30 years. J Pediatr Surg. 2004;39(6):867-71; discussion -71.
  • 9
    Rattan KN, Singh J, Dalal P. Neonatal duodenal obstruction: a 15-year experience. J Neonatal Surg. 2016;5(2):13.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    20 Jun 2018
  • Aceito
    02 Ago 2020
Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein Avenida Albert Einstein, 627/701 , 05651-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 2151 0904 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@einstein.br