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Tratamento de conjuntivite lenhosa com soro heterólogo

RESUMO

A conjuntivite lenhosa é uma forma rara de conjuntivite bilateral crônica e recorrente, na qual há formação de membranas espessas na conjuntiva tarsal e em outras mucosas. Relatamos o caso de uma paciente de 55 anos com conjuntivite lenhosa bilateral, que obteve sucesso no tratamento com soro heterólogo em concentração de 50%. Não houve recorrência após um ano de seguimento e nem efeitos colaterais ao tratamento. Dessa forma, o uso de soro heterólogo a 50% poderia ser mais estudado para melhor avaliação de sua eficácia como opção de tratamento para a conjuntivite lenhosa.

Descritores:
Soro; Conjuntivite/terapia; Plasminogênio/deficiência

ABSTRACT

Ligneous conjunctivitis is a rare form of chronic and recurrent bilateral conjunctivitis, in which thick membranes develop on the tarsal conjunctiva and on other mucosae. We report the case of a 55-year old female patient with bilateral ligneous conjunctivitis who was successfully treated with 50% heterologous serum. There was no recurrence or side effects after one-year follow-up. We suggest the use of 50% heterologous serum should be further studied to better determine its efficacy as a treatment option for ligneous conjunctivitis.

Keywords:
Serum; Conjunctivitis/therapy; Plasminogen/deficiency

INTRODUÇÃO

A conjuntivite lenhosa é uma doença crônica que pode ser precipitada por traumas oculares ou cirurgias em pacientes com deficiência de plasminogênio tipo 1.(11. Schuster V, Seregard S. Ligneous conjunctivitis. Surv Ophthalmol. 2003; 48(4):369-88.,22. Schuster V, Hügle B, Tefs K. Plasminogen deficiency. J Thromb Haemost. 2007;5(12):2315-22.) A deficiência de plasminogênio tipo 1 ocorre em 16 casos a cada milhão de pessoas na população.(11. Schuster V, Seregard S. Ligneous conjunctivitis. Surv Ophthalmol. 2003; 48(4):369-88.) A lesão característica da conjuntivite lenhosa é a presença de pseudomembrana rica em fibrina na conjuntiva tarsal. Ambos os olhos são afetados em 51% dos casos, e complicações corneais que podem levar à cegueira ocorrem em 20 a 30% dos casos.(11. Schuster V, Seregard S. Ligneous conjunctivitis. Surv Ophthalmol. 2003; 48(4):369-88.) O tratamento para conjuntivite lenhosa é difícil e apenas parcialmente efetivo. Podem ser utilizados plasminogênio, heparina e ciclosporina A tópica.(33. Heidemann DG, Williams GA, Hartzer M, Ohanian A, Citron ME. Treatment of ligneous conjunctivitis with topical plasmin and topical plasminogen. Cornea. 2003;22(8):760-2.,44. Azad N, Zafar S, Khan A. Successful treatment of ligneous conjunctivitis with topical cyclosporine and heparin. J AAPOS. 2009;13(5):519-20.) Relatamos um caso de conjuntivite lenhosa com boa resposta ao uso de soro heterólogo a 50%.

RELATO DE CASO

Paciente do sexo feminino, 55 anos, refere quadro de conjuntivite sem melhora após uso de colírios lubrificantes, tobramicina 0,3% e retirada de pseudomembranas por 6 meses. Encaminhada ao serviço de oftalmologia da Universidade Federal de São Paulo, foi diagnosticada com conjuntivite lenhosa e constatada deficiência sistêmica de plasminogênio. No primeiro atendimento no serviço, apresentava hiperemia ocular e pseudomembranas espessas na conjuntiva tarsal de ambos os olhos (Figura 1).

Figura 1
Conjuntivite lenhosa com pseudomembranas em ambos os olhos

Iniciamos o tratamento com colírio de soro heterólogo a 50%, obtido pelo irmão, instilado a cada 3 horas durante 2 meses, com a melhora dos sintomas após esse período de tratamento (Figura 2).

Figura 2
Melhora do quadro ocular após o tratamento com soro heterólogo a 50%

O colírio de soro heterólogo foi descontinuado após 1 ano, e não houve a recorrência da conjuntivite neste período.

DISCUSSÃO

Pacientes com conjuntivite lenhosa apresentam deficiência de plasminogênio, necessário para a fibrinólise no processo de cicatrização.(55. Schäfer BM, Maier K, Eickhoff U, Todd RF, Kramer MD. Plasminogen activation in healing human wounds. Am J Pathol. 1994;144(6):1269-80.) Estudos genéticos foram realizados em 38 pacientes com conjuntivite lenhosa e revelaram diferentes mutações no gene do plasminogênio. A alteração genética mais comum foi no gene K19E, encontrada em 34% dos pacientes.(66. Tefs K, Gueorguieva M, Klammt J, Allen CM, Aktas D, Anlar FY, et al. Molecular and clinical spectrum of type I plasminogen deficiency: a series of 50 patients. Blood. 2006;108(9):3021-6.)

Como o plasminogênio é o principal fator responsável pela degradação da fibrina, sua deficiência leva ao acúmulo de material fibrinoso, que leva à formação de pseudomembranas nas superfícies de mucosas, como a conjuntiva tarsal. Não existe tratamento padrão, podendo ser realizada cirurgia, fibrinólise ou anticoagulação, e imunomodulação. Nos tratamentos cirúrgicos, devem ser evitados traumas adicionais, incluindo coagulação cuidadosa, para evitar depósito de fibrina. A administração de heparina previne a formação de fibrina e a recorrência de pseudomembranas.(77. Hiremath M, Elder J, Newall F, Mitchell S, Dyas R, Monagle P. Heparin in the long-term management of ligneous conjunctivitis: a case report and review of literature. Blood Coagul Fibrinolysis. 2011;22(7):606-9.,88. De Cock R, Ficker LA, Dart JG, Garner A, Wright P. Topical heparin in the treatment of ligneous conjunctivitis. Ophthalmology. 1995;102(11):1654-9.) A imunomodulação com uso de corticoides e ciclosporina pode ser usada no tratamento.(99. Azad N, Zafar S, Khan A. Successful treatment of ligneous conjunctivitis with topical cyclosporine and heparin. J AAPOS. 2009;13(5):519-20.)

A hipoplasminogenemia é uma doença sistêmica, podendo acometer outras mucosas do organismo, como do trato respiratório, gastrintestinal e geniturinário. A conjuntivite lenhosa é uma manifestação ocular rara em pacientes com hipoplasminemia. O diagnóstico precoce e o tratamento são importantes para prevenir danos permanentes à superfície ocular do paciente.

O soro heterólogo humano contém substâncias como fatores de crescimento, vitamina A, fibronectina, citocinas e plasminogênio, que podem ter ajudado na degradação das membranas de fibrina na conjuntiva tarsal da paciente, mas necessita de mais estudos.(1010. López-García JS, García-Lozano I, Rivas L, Martínez-Garchitorena J. [Use of autologous serum in ophthalmic practice]. Arch Soc Esp Oftalmol. 2007; 82(1):9-20. Review. Spanish.)

A maioria dos tratamentos locais para conjuntivite lenhosa não apresenta resultados desejados para a conjuntivite lenhosa:

  • O uso somente de hialuronidase (1,5mg/mL) ou em combinação com alfaquimotripsina (0,2mg/mL) pode ser feito para a digestão enzimáticas dos mucopolissacarídeos nas pseudomembranas.(99. Azad N, Zafar S, Khan A. Successful treatment of ligneous conjunctivitis with topical cyclosporine and heparin. J AAPOS. 2009;13(5):519-20.,1010. López-García JS, García-Lozano I, Rivas L, Martínez-Garchitorena J. [Use of autologous serum in ophthalmic practice]. Arch Soc Esp Oftalmol. 2007; 82(1):9-20. Review. Spanish.)

  • O tratamento local com corticoides e ciclosporina A 2% tópicos pode diminuir a recorrência das pseudomembranas após a excisão cirúrgica.(99. Azad N, Zafar S, Khan A. Successful treatment of ligneous conjunctivitis with topical cyclosporine and heparin. J AAPOS. 2009;13(5):519-20.,1010. López-García JS, García-Lozano I, Rivas L, Martínez-Garchitorena J. [Use of autologous serum in ophthalmic practice]. Arch Soc Esp Oftalmol. 2007; 82(1):9-20. Review. Spanish.)

  • Podemos utilizar a excisão cirúrgica da pseudomembrana com o uso de heparina tópica (1.000 ou 5.000 unidades/mL) juntamente de prednisolona 1% tópica.(1010. López-García JS, García-Lozano I, Rivas L, Martínez-Garchitorena J. [Use of autologous serum in ophthalmic practice]. Arch Soc Esp Oftalmol. 2007; 82(1):9-20. Review. Spanish.) A heparina acelera a atividade da antitrombina III, que inibe a formação de trombina, bloqueando a conversão de fibrinogênio em fibrina. A heparina também neutraliza o fator Xa, prevenindo a transformação de trombina em protrombina. O uso de corticoide reduz a inflamação conjuntival. A heparina tópica reduz a recorrência, comparada com a simples excisão cirúrgica.(1010. López-García JS, García-Lozano I, Rivas L, Martínez-Garchitorena J. [Use of autologous serum in ophthalmic practice]. Arch Soc Esp Oftalmol. 2007; 82(1):9-20. Review. Spanish.)

Já foi descrito o uso de plasminogênio tópico concentrado (1mg/mL) obtido de plasma, em forma de colírio, aplicado a cada 2 horas por 3 a 4 semanas, com bom resultado após 1 ano de tratamento.(1010. López-García JS, García-Lozano I, Rivas L, Martínez-Garchitorena J. [Use of autologous serum in ophthalmic practice]. Arch Soc Esp Oftalmol. 2007; 82(1):9-20. Review. Spanish.) O plasminogênio também pode ser infundido por cateter venoso profundo na forma de Lys-plasminogênio na dose de 180U/kg de peso/dia por 2 semanas, com doses regressivas de 180 a 125U/kg peso/dia, levando à melhora do quadro após 4 semanas de tratamento.(1010. López-García JS, García-Lozano I, Rivas L, Martínez-Garchitorena J. [Use of autologous serum in ophthalmic practice]. Arch Soc Esp Oftalmol. 2007; 82(1):9-20. Review. Spanish.) O tratamento sistêmico promove a melhora das pseudomembranas de outras mucosas acometidas.(1010. López-García JS, García-Lozano I, Rivas L, Martínez-Garchitorena J. [Use of autologous serum in ophthalmic practice]. Arch Soc Esp Oftalmol. 2007; 82(1):9-20. Review. Spanish.)

CONCLUSÃO

A conjuntivite lenhosa é uma doença crônica em pacientes com deficiência de plasminogênio tipo 1, de difícil controle e sem um tratamento completamente efetivo. Relatamos um caso de conjuntivite lenhosa com boa resposta ao uso de soro heterólogo com concentração de 50%. Não houve recorrência e nem efeitos colaterais após 1 ano de seguimento. O uso de soro heterólogo 50% deve ser avaliado como forma de tratamento alternativo para a conjuntivite lenhosa.

AGRADECIMENTOS

À professora Denise de Freitas.

REFERENCES

  • 1
    Schuster V, Seregard S. Ligneous conjunctivitis. Surv Ophthalmol. 2003; 48(4):369-88.
  • 2
    Schuster V, Hügle B, Tefs K. Plasminogen deficiency. J Thromb Haemost. 2007;5(12):2315-22.
  • 3
    Heidemann DG, Williams GA, Hartzer M, Ohanian A, Citron ME. Treatment of ligneous conjunctivitis with topical plasmin and topical plasminogen. Cornea. 2003;22(8):760-2.
  • 4
    Azad N, Zafar S, Khan A. Successful treatment of ligneous conjunctivitis with topical cyclosporine and heparin. J AAPOS. 2009;13(5):519-20.
  • 5
    Schäfer BM, Maier K, Eickhoff U, Todd RF, Kramer MD. Plasminogen activation in healing human wounds. Am J Pathol. 1994;144(6):1269-80.
  • 6
    Tefs K, Gueorguieva M, Klammt J, Allen CM, Aktas D, Anlar FY, et al. Molecular and clinical spectrum of type I plasminogen deficiency: a series of 50 patients. Blood. 2006;108(9):3021-6.
  • 7
    Hiremath M, Elder J, Newall F, Mitchell S, Dyas R, Monagle P. Heparin in the long-term management of ligneous conjunctivitis: a case report and review of literature. Blood Coagul Fibrinolysis. 2011;22(7):606-9.
  • 8
    De Cock R, Ficker LA, Dart JG, Garner A, Wright P. Topical heparin in the treatment of ligneous conjunctivitis. Ophthalmology. 1995;102(11):1654-9.
  • 9
    Azad N, Zafar S, Khan A. Successful treatment of ligneous conjunctivitis with topical cyclosporine and heparin. J AAPOS. 2009;13(5):519-20.
  • 10
    López-García JS, García-Lozano I, Rivas L, Martínez-Garchitorena J. [Use of autologous serum in ophthalmic practice]. Arch Soc Esp Oftalmol. 2007; 82(1):9-20. Review. Spanish.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jun 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    26 Jul 2018
  • Aceito
    20 Dez 2018
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