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Púrpura trombocitopênica idiopática em paciente com situs inversus totalis: relato de caso e revisão da literatura

RESUMO

Situs inversus totalis é uma anormalidade congênita autossômica recessiva rara em que os órgãos mediastinais e abdominais encontram-se em posição espelhada em relação à topografia habitual. A literatura relata alguns casos de concomitância do situs inversus totalis com outras condições: anomalias espinhais, malformações cardíacas e doenças hematológicas, como púrpura trombocitopênica idiopática, que é uma doença autoimune com plaquetopenia, devido à destruição dos trombócitos ou supressão da sua produção. Esse artigo teve o objetivo de relatar coexistência de situs inversus totalis e púrpura trombocitopênica idiopática.

Descritores:
Situs inversus; Púrpura trombocitopênica; Contagem de plaquetas; Exoma; Doenças hematológicas

ABSTRACT

Situs inversus totalis is a rare recessive autosomal congenital abnormality in which the mediastinal and abdominal organs are in a mirrored position when compared to the usual topography. The literature reports some cases of situs inversus totalis and concomitant conditions: spinal abnormalities, cardiac malformations and hematological diseases, such as idiopathic thrombocytopenic purpura, which is an autoimmune disease that causes thrombocytopenia due to platelet destruction or suppression of its production. This article aimed to report the coexistence of situs inversus totalis and idiopathic thrombocytopenic purpura.

Keywords:
Situs inversus; Purpura, thrombocytopenic; Platelet count; Exome; Hematologic diseases

INTRODUÇÃO

Situs inversus totalis (SIT) é uma anormalidade congênita autossômica recessiva rara em que todos os órgãos mediastinais e abdominais encontram-se em posição espelhada em relação à topografia habitual. Acredita-se que um defeito no braço longo (q) do cromossomo 14 é responsável por essa transposição dos órgãos. É uma condição compatível com a vida, que pode ser assintomática.(11. Gundogdu K, Altintoprak F, Uzunoğlu MY, Dikicier E, Zengin İ, Yağmurkaya O. Coexisting Situs Inversus Totalis and Immune Thrombocytopenic Purpura. Case Rep Surg. 2016;2016:8605673.) A incidência é estimada em 1/8.000 a 1/25.000 em nascidos vivos.(22. Wu W, Z, W, Liu J, Jia W. VACTER syndrome with situs inversus totalis: case report and a new syndrome. Medicine (Baltimore). 2017;96(25):e7260.) Anormalidades no SIT podem ser reconhecidas, primeiro, usando radiografia ou ultrassonografia, sendo a tomografia computadorizada o exame preferido para o diagnóstico definitivo de SIT.(33. Wilhelm A, Holbert JM. Situs Inversus Imaging [Internet]. Medscape: New York (NY); 2018 [cited 2018 Out 17]. Available from: https://emedicine.medscape.com/article/413679-overview
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) Há relatos já existentes que expõem a concomitância do SIT com uma diversidade de outras anomalias genéticas identificadas no sequenciamento completo do exoma.(44. Zhang W, Li D, Wei S, Guo T, Wang J, Luo H, et al. Whole-exome sequencing identifies a novel CCDC151 mutation, c.325G>T (p.E109X), in a patient with primary ciliary dyskinesia and situs inversus. J Human Genetics. 2019; 64(3):249-52. Erratum in: J Hum Genet. 2019;64(8):829.)

Púrpura trombocitopênica idiopática (PTI) é um distúrbio hematológico autoimune caracterizado por plaquetopenia devido à destruição dos trombócitos ou supressão de sua produção, por meio de uma reação imune contra autoantígenos na membrana das plaquetas.(55. Flores-Chang BS, Arias-Morales CE, Wadskier FG, Gupta S, Stoicea N. Immune thrombocytopenic purpura secondary to cytomegalovirus infection: a case report. Front Med (Lausanne). 2015;2:79.) O quadro clínico pode apresentar-se como situações críticas, com sangramento cutâneo e mucoso até hemorragias volumosas, o que torna o diagnóstico rápido e a intervenção terapêutica obrigatórios.(66. Onisâi M, Vlădăreanu AM, Spînu A, Găman M, Bumbea H. Idiopathic thrombocytopenic purpura (ITP) – new era for an old disease. Rom J Intern Med. 2019;13. pii: /j/rjim.ahead-of-print/rjim-2019-0014/rjim-2019-0014.xml) Estima-se que sua incidência seja de 1,6 a 2,7 casos por 100 mil pessoas/ano, e a prevalência de 9,5 a 23,6 casos por 100 mil pessoas, com predominância no sexo feminino.(77. Abrahamson PE, Hall SA, Feudjo-Tepie M, Mitrani-Gold FS, Logie J. The incidence of idiopathic thrombocytopenic purpura among adults: a population-based study and literature review. Eur J Haematol. 2009;83(2):83-9.)

O objetivo é relatar caso de paciente com coexistência de duas condições raras: situs inversus totalis e púrpura trombocitopênica idiopática.

Para revisão bibliográfica do tema, foi consultada a base de dados PubMed, compreendendo o período de 1975 a 2017. Os descritores e termos Medical Subject Headings (MeSH) utilizados na busca foram: “purpura”, “situs inversus totalis”, “situs inversusANDpurpura”, “situs inversusANDscoliosis”, “situs inversusANDwhole exome sequencing”.

RELATO DE CASO

Paciente do sexo masculino, 19 anos, com SIT identificado acidentalmente em exames de imagem, relatou quadros de cefaleia intensa na região frontal e occipital com fotopsia e perda dos sentidos, sangramento genital e gengival, presença de sangue vivo nas fezes e urina, e achados de exame de rotina de linfopenia e plaquetopenia. Outras queixas referidas foram dispneia em repouso com melhora espontânea, dor e inchaço na região lombar. Como antecedente pessoal, relatou hérnia umbilical, operada na infância, mas com recidiva. Era tabagista (120 maços-ano) e sedentário.

Como exames complementares, na investigação, foram realizados hemograma e exames de imagem. Com os resultados de hemogramas seriados demonstrando plaquetopenia (valor mínimo de 64.000/μL), associados ao quadro clínico do paciente, foi feito o diagnóstico de púrpura trombocitopênica idiopática, o qual é clínico e laboratorial. A tomografia computadorizada (TC) de abdome total (Figuras 1 e 2) evidenciou inversão da posição das estruturas abdominais e torácicas, confirmando SIT. A ressonância magnética de coluna lombossacral mostrou escoliose lombar de convexidade para direita no decúbito, deformidade congênita no arco posterior de L5 e S1 (afilamento e deformidade), e edema do ligamento espinhoso de L4/L5. Na radiografia de coluna total (Figura 3), foi evidenciada escoliose toracolombar sigmoide com componente torácico à esquerda e lombar à direita, alteração morfológica da interapofisária esquerda em L5/S1, e sinais de fusão incompleta do arco posterior de L5. Na TC de coluna lombossacral, o laudo mostrou escoliose lombar de convexidade para direita no decúbito e deformidade congênita do arco posterior de L5 e S1 à esquerda, com lise do istmo de L5 (Figura 4).

Figura 1
Tomografia computadorizada de abdome total em corte coronal mostrando os órgãos abdominais em posição espelhada em relação à topografia habitual
Figura 2
Tomografia computadorizada de abdome total em corte transversal evidenciando os órgãos abdominais em posição espelhada em relação à topografia habitual
Figura 3
Radiografia panorâmica de coluna total evidenciando escoliose toracolombar sigmoide e dextrocardia
Figura 4
Reconstrução tridimensional evidenciando alteração morfológica da interapofisária esquerda em L5/S1 (seta vermelha aponta fusão incompleta do arco posterior de L5)

Na condução do caso, ao realizar hemogramas seriados posteriormente, o paciente apresentava variação do nível das plaquetas (64.000/μL até os valores da faixa de normalidade). Por ser um caso de plaquetopenia leve que tendia a um curso benigno, optou-se por conduta expectante, com consultas mensais com o médico hematologista, bem como realização mensal de hemograma com contagem de plaquetas.

Em busca de alterações genéticas de SIT, foi realizado sequenciamento completo do exoma. Nenhuma variante de alteração de sequência que seja suficiente para um diagnóstico molecular de SIT foi detectada. Adicionalmente, duas variantes genéticas foram identificadas: a variante c.580G>A (p. Glu194Lys) no gene FAS em heterozigose, e a variante c.123_124insCGCGAACGCCAGGCTCGCCGCC p.(Ala42Argfs*31) no gene ADAMTS2 foi em heterozigose.

DISCUSSÃO

Encontramos na literatura outros quatro casos de PTI(11. Gundogdu K, Altintoprak F, Uzunoğlu MY, Dikicier E, Zengin İ, Yağmurkaya O. Coexisting Situs Inversus Totalis and Immune Thrombocytopenic Purpura. Case Rep Surg. 2016;2016:8605673.33. Wilhelm A, Holbert JM. Situs Inversus Imaging [Internet]. Medscape: New York (NY); 2018 [cited 2018 Out 17]. Available from: https://emedicine.medscape.com/article/413679-overview
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,88. Yodonawa S, Goto Y, Ogawa I, Yoshida S, Itoh H, Nozaki R, et al. Laparoscopic splenectomy for idiopathic thrombocytopenic purpura in a woman with situs inversus. Report of a Case. Surg Today. 2010;40(12):1176-8.) concomitante ao SIT. Portanto, este relato de caso demonstra associação rara: coexistência de SIT, PTI e anomalias espinhais. A causalidade e os mecanismos destas associações são desconhecidos, e devem ser realizados estudos subsequentes.

Existem estudos sobre sequenciamento completo do exoma em pacientes com discinesia ciliar primária e situs inversus,(44. Zhang W, Li D, Wei S, Guo T, Wang J, Luo H, et al. Whole-exome sequencing identifies a novel CCDC151 mutation, c.325G>T (p.E109X), in a patient with primary ciliary dyskinesia and situs inversus. J Human Genetics. 2019; 64(3):249-52. Erratum in: J Hum Genet. 2019;64(8):829.,99. Olcese C, Patel MP, Shoemark A, Kiviluoto S, Legendre M, Williams HJ, Vaughan CK, Hayward J, Goldenberg A, Emes RD, Munye MM, Dyer L, Cahill T, Bevillard J, Gehrig C, Guipponi M, Chantot S, Duquesnoy P, Thomas L, Jeanson L, Copin B, Tamalet A, Thauvin-Robinet C, Papon JF, Garin A, Pin I, Vera G, Aurora P, Fassad MR, Jenkins L, Boustred C, Cullup T, Dixon M, Onoufriadis A, Bush A, Chung EM, Antonarakis SE, Loebinger MR, Wilson R, Armengot M, Escudier E, Hogg C; UK10K Rare Group, Amselem S, Sun Z, Bartoloni L, Blouin JL, Mitchison HM. X-linked primary ciliary dyskinesia due to mutations in the cytoplasmic axonemal dynein assembly factor PIH1D3. Nat Commun. 2017;8:14279.) mas não encontramos na literatura pesquisas que relacionem esse estudo genético em pacientes exclusivamente com SIT. Esse exame possui taxa de conclusão diagnóstica de 30 a 38%. Não foi encontrada mutação associada à SIT já descrita. Algumas razões para os casos negativos/inconclusivos incluem: variante patogênica em heterozigose simples em gene recessivo, ausência de identificação de variantes em genes associados ao fenótipo/doença, variantes de significado incerto detectadas em genes associados ao fenótipo/doença, variante detectada que pode ser deletéria em gene que não está associado ao momento com doença em humanos.

Em relação às variantes genéticas encontradas, as variantes patológicas em heterozigose no gene FAS estão associadas à síndrome linfoproliferativa autoimune (ALPS - autoimmune lymphoproliferative syndrome) tipo IA, de herança autossômica, dominante, que cursa com linfadenopatia não maligna, hepatoesplenomegalia, citopenias autoimunes (trombocitopenia, anemia hemolítica e neutropenia), o que poderia coincidir o PTI sendo manifestação autoimune do ALPS. Porém, a variante genética do gene FAS identificada no exoma do paciente possui significado incerto, isto é, não se pode dizer, com base nos dados atuais, se é uma mutação benigna ou maligna, dado que ela já foi catalogada em pacientes controles saudáveis, e em pacientes com patologia clínica compatível com a mutação. Assim, são necessários mais estudos sobre o genoma humano para reclassificar essa variante como causadora ou não de doença.

Variantes patogênicas em heterozigose composta ou homozigose no gene ADAMTS2 estão associadas à síndrome Ehlers-Danlos, tipo dermatoparaxis, de herança autossômica recessiva, caracterizada por atraso do desenvolvimento motor, baixa estatura, membros curtos, fragilidade capilar, hérnia umbilical/inguinal, sangramento gengival. Como a doença associada a esse gene é recessiva e somente uma variante em heterozigose foi detectada, este resultado é interpretado somente como status de portador, e não de afetado. Porém, como o sequenciamento do exoma possui limitações, é incerto se o paciente possui heterogeneidade composta, não sendo possível descartar patogenicidade. Assim, a hérnia umbilical e o sangramento gengival podem ter sido causada por essa síndrome.

REFERENCES

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    05 Abr 2019
  • Aceito
    28 Ago 2019
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