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Vinicius Portella Castro - Procedimentos de Arrigo Andrada. Rio de Janeiro: Edição do autor, 2017

Castro, Vinicius Portella. - Procedimentos de Arrigo Andrada.Rio de Janeiro: Edição do autor, 2017

Procedimentos de Arrigo Andrada (2017), segundo romance do escritor brasiliense e doutor em Literatura Vinícius Portella Castro, lida com temas que raramente aparecem de modo crítico na nossa literatura: o lado material e oculto das tecnologias digitais, em especial da internet, e sua relação com o tema da (in)acessibilidade à informação. Se o primeiro romance do autor, Os sinais impossíveis (2010), retratava uma juventude consumidora de entretenimento conectada à internet, Procedimentos desloca o ponto de vista narrativo para as redes técnicas, discursivas e materiais que estão por trás do uso inocente de aparelhos.

O romance se passa numa época e num cenário bem apropriados aos seus temas: o ano de 2011, quando os smartphones começavam a inundar as lojas brasileiras, e a também “recente” cidade de Brasília. A trama acompanha as tentativas lúdicas do jovem Arrigo Andrada, pacato estudante de administração na Universidade de Brasília, de desenvolver o que chama de “procedimentos” para “otimizar” sua presença no mundo. Tratam-se de listas, gráficos, anotações, manuais, em suma, artifícios importados de um universo tecno-midiático - telejornais, filmes baixados na internet, videogames, estruturas burocráticas - que Arrigo tentará aplicar no cotidiano. À exemplo da nomeação dos capítulos do romance (“Arrigo e seus arredores”, “Arrigo e as festividades”, “Arrigo e o ensino superior”), os procedimentos de Arrigo são tags, palavras-chaves desgastadas, pescadas de modo desatento de meios de comunicação onipresentes. Tais capítulos também apontam para a estrutura do romance, que pode ser descrita como uma “ingenuidade épica”, encenando as peripécias de Arrigo com esses discursos.

No decorrer do romance, Arrigo encontra símbolos estranhos espalhados por Brasília e começa a cultivar a fantasia de poder ativá-los por meio dos seus procedimentos, como se ativasse um aplicativo de celular. Há portanto uma sobreposição entre mundo real e virtual, que marca o procedimento narrativo do romance como paranoico, conceito o qual poderia ser definido a partir de uma citação clássica do escritor norte-americano Thomas Pynchon, suprassumo do pós-modernismo literário: “Se existe algo reconfortante - religioso, se você preferir - a respeito da paranoia, existe também a antiparanoia, onde nada está conectado a nada, uma condição que muitos de nós não conseguem suportar por muito tempo” (Pynchon, 2006PYNCHON, Thomas. (2006). Gravity’s rainbow. New York: Penguin Books., p. 441).

No romance de Vinicius Portella, a paranoia vem na forma da obsessão de Arrigo tanto pela internet quanto pela materialidade dos dispositivos que permitem a conectividade ela própria: por mídias. Ao contrário do entendimento do senso comum para o termo “mídia”, que costumeiramente o confunde com seus “conteúdos”, o crítico literário e teórico da mídia Friedrich Kittler define-o a partir de sua materialidade: “[das mídias] só conseguimos apreender a fachada exterior, enquanto o interior do aparato permanece escondido sob sua capa, só possível de ser aberto por especialistas” (Kittler, 2010KITTLER, Friedrich. (2010). Optical media: Berlin lectures 1999. Cambridge: Polity Press., p. 29-31). Não à toa, Vilém Flusser (2011FLUSSER, Vilém. (2011). Filosofia da caixa-preta. São Paulo: Annablume.) chamava as mídias técnicas de “caixa-preta”. No romance, a Arrigo não é suficiente só utilizar ou consumir conteúdos midiáticos: sua obsessão é pelo que existe de oculto, escondido e enviesado nas mídias, como se operasse a partir da seguinte premissa: se estamos todos conectados, significa que podemos descobrir, de modo determinante e infalível, como nós figuramos no esquema geral do mundo.

Na trama, a própria cidade de Brasília se entrelaça à ideia de mídia. Comparada ao antigo game Sim City, em que o jogador constrói e administra cidades inteiras, Brasília não parece a Arrigo inteiramente real, mas sim um conjunto de concreto e metal instalado de modo confuso no cerrado. Menos uma cidade material que um signo. É como se Arrigo, andando sem rumo por Brasília, rodeasse seu significante sem nunca alcançar seu significado. Por outro lado, já os skatistas que Arrigo contempla em suas andanças, ao fazerem uso das curvas da cidade, conseguem “redimir a funcionalidade imediata desse espaço abandonado, transformando-o em outra coisa, num tipo bem distinto, bem mais aceitável, de interface” (Castro, 2017CASTRO, Vinicius Portella (2017). Procedimentos de Arrigo Andrada. Rio de Janeiro: Edição do Autor., p. 42).

Seja caminhando por Brasília, seja diante de uma selfie inocente ou de um passeio pelo Google Earth, Arrigo depara-se sempre com a dificuldade de encontrar informações relevantes sobre a rede tecno-midiática em que o século 21 englobou o mundo. Novamente voltamos a Friedrich Kittler: “Podemos sim conseguir o que queremos, mas não o que precisamos: informação sobre informação [...] [A divulgação] de informação técnica a respeito de informação técnica é proibida por lei” (Kittler, 2014KITTLER, Friedrich. (2014). No such agency. Theory, Culture & Society, London, 12 fev. Disponível em: Disponível em: https://www.theoryculturesociety.org/kittler-on-the-nsa/ . Acesso em: 9 jun. 2019.
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, s.p.). Kittler refere-se aí às grandes empresas que, ao nos convencerem de que hoje temos acesso a toda informação do mundo, contudo protegem as metainformações sobre si próprias e seu funcionamento através de patentes, procedimentos, códigos e algoritmos insondáveis. Quem quisesse, como Arrigo, descobrir como uma selfie inocente conecta sua vida cotidiana às redes técnicas do mundo precisaria incorrer em, diga-se, espionagem industrial.

O romance, portanto, entrelaça segredos industriais, códigos de computador e artefatos de interface user-friendly, que por sua vez tornam o mundo cada vez mais distante. Uma imagem pertinente para isso é a da gnose, o conhecimento absoluto, distante e mítico, concentrando todas as informações disponíveis ao mesmo tempo em que as tornam inacessíveis. Como se o mundo se tornasse caixa-preta.

Tornada ainda mais pertinente desde a implementação da internet à nível global e da disseminação de tecnologia digital barata, a imagem do mundo como gnose já foi bastante explorada por pensadores e escritores como Walter Benjamin (a linguagem das coisas, a noção de aura), Gershom Scholem, ao pensar a lenda do Golem judaico junto ao emergente computador digital, ou mesmo Kafka diante do ocultamento da lei por labirintos burocráticos. Procedimentos de Arrigo Andrada insere-se nessa tradição a partir de uma certa imaginação millenial, segundo a qual bastaria seguir os procedimentos corretos que os conteúdos ocultos se revelariam.

Ainda que o romance utilize-se de referências aos videogames como mais uma forma de apresentar o tema da tecnologia e da informação, há nele uma relação mais profunda entre literatura e videogames: o próprio termo “procedimentos” remete às “narrativas procedimentais”, conceito que costuma se referir às narrativas interativas dos jogos eletrônicos (Galera, 2010GALERA, Daniel. (2010). Virando o jogo. Serrote, São Paulo, n. 4, mar. Disponível em: Disponível em: https://www.revistaserrote.com.br/2011/06/virando-o-jogo/ . Acesso em: 9 jun. 2019.
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). Nelas, basta o jogador realizar certas ações na ordem correta que o mundo se alterará - ecoando o que diz o poeta, escritor e ensaísta Ben Lerner (e conectando a história da arte à da tecnologia):

As crianças, chegada a hora, tentarão aplicar os macetes [dos games] ao mundo fenomênico. Pressione para cima, para baixo, para cima, para baixo, esquerda, direita, esquerda, direita, a, b, a, para que saia o sol. Esquerda, esquerda, b, b, para manter-se aquecido (Lerner, 2015LERNER, Ben (2015). Ângulo de guinada. Tradução de Ellen Maria. São Paulo: E-galáxia. E-book., p. 22).

Além de tentar aplicar os comandos dos games no mundo fenomênico, Arrigo também mescla a textura visual dos jogos à própria textura narrativa do romance. Ao visitar um museu de Arte e Tecnologia, ele se identifica com um bonequinho pixelado num mapa de Brasília, representado da mesma forma pixelada que eram os jogos dos consoles antigos, por exemplo, o Super Nintendo e o Mega Drive.

Na pixel-art, os pixels - pontos de luz e cor que formam as imagens eletrônicas - não desaparecem, mas sim fazem parte da composição; são indícios, rastros eletrônicos da materialidade que processa informação em imagem, só que utilizados de forma artística. Isso não aponta, contudo, (apenas) para a nostalgia, mas também para novos caminhos expressivos: a identificação de Arrigo com o bonequinho pixelado no mapa de Brasília reflete a cartografia do romance, como se, de alguma maneira, Procedimentos de Arrigo Andrada houvesse sido escrito em 8 bits.

Para Kittler (2010KITTLER, Friedrich. (2010). Optical media: Berlin lectures 1999. Cambridge: Polity Press.), os pixels são uma imitação técnica da fisiologia da retina humana, que também é composta de partes que detectam luz e cor para formar imagens no cérebro. Portanto, as imagens técnicas revelam uma profunda relação entre a tecnologia e o corpo humano. A diferença é que, na produção de imagens técnicas, é preciso padronizar industrialmente a quantidade de pixels de modo a enganar a retina humana dos consumidores. A partir dessa manipulação industrial da visualidade, o mundo e a natureza são reduzidos a informação manipulável. Quando o mapa é confundido com o território, o mundo torna-se modelo de si próprio. Nas crianças, segundo o poema de Lerner, tais modelos são o mundo. Em Arrigo, tal sobreposição de modelos é criativamente confundida com o imperativo de que se é preciso estar informado.

O entrelaçamento entre gamificação, informação e discursos é levada às últimas consequências quando, na trama, Arrigo consegue finamente ativar os símbolos misteriosos e adquire o poder de controlar um Mapinguari, um gigantesco bicho-preguiça presente em lendas amazônicas como o guardião do Cerrado. Como num videogame, Arrigo utilizará o Mapinguari na luta contra um monstro feito de concreto, vigas e metais - materiais de construção originais da cidade de Brasília.

Contudo, ao fim da luta, nada é salvo, e resta apenas uma sensação de melancolia, tédio e desperdício de tempo. Talvez porque, como disse Lerner, aplicar procedimentos de videogames no mundo real é coisa de criança, não de adultos como Arrigo, apontando para um problema do nosso século hipermidiatizado. Ou talvez porque, como diz um índio que Arrigo encontra em determinada ocasião, “Brasília só tem cinquenta anos, você sabe, né. Essa terra tem outros nomes, muito mais antigos” (Castro, 2017CASTRO, Vinicius Portella (2017). Procedimentos de Arrigo Andrada. Rio de Janeiro: Edição do Autor., p. 163), nomes, portanto, hoje inacessíveis devido à brutal ocupação e urbanização do Cerrado pelo Estado brasileiro. Pode ser também porque as redes de informações que resultam na gnose técnica, caso acessadas, só remeteriam à materialidade da tecnologia, números mortos e placas de computador, não a uma realidade fenomenológica disponível aos sentidos humanos nem a um conhecimento absoluto.

Para Viktor Shklovsky, a literatura é um constante procedimento de estranhamento de uma realidade habitual, de modo a torná-la nova por meio do artifício literário (Shklovsky, 1991SHKLOVSKY, Viktor. (1991). Theory of prose. Champaign & London: Dalkey Archive Press., p. 9). Poderíamos dizer que o romance de Vinicius Portella nos “des-habitua” ao nosso mundo digital, fazendo da literatura uma espécie de tecnologia de visualidade que permite ver aspectos da contemporaneidade que, de tão próximos, estavam invisíveis.

Referências

  • CASTRO, Vinicius Portella (2017). Procedimentos de Arrigo Andrada. Rio de Janeiro: Edição do Autor.
  • FLUSSER, Vilém. (2011). Filosofia da caixa-preta. São Paulo: Annablume.
  • GALERA, Daniel. (2010). Virando o jogo. Serrote, São Paulo, n. 4, mar. Disponível em: Disponível em: https://www.revistaserrote.com.br/2011/06/virando-o-jogo/ Acesso em: 9 jun. 2019.
    » https://www.revistaserrote.com.br/2011/06/virando-o-jogo/
  • KITTLER, Friedrich. (2010). Optical media: Berlin lectures 1999. Cambridge: Polity Press.
  • KITTLER, Friedrich. (2014). No such agency. Theory, Culture & Society, London, 12 fev. Disponível em: Disponível em: https://www.theoryculturesociety.org/kittler-on-the-nsa/ Acesso em: 9 jun. 2019.
    » https://www.theoryculturesociety.org/kittler-on-the-nsa/
  • LERNER, Ben (2015). Ângulo de guinada. Tradução de Ellen Maria. São Paulo: E-galáxia. E-book.
  • PYNCHON, Thomas. (2006). Gravity’s rainbow. New York: Penguin Books.
  • SHKLOVSKY, Viktor. (1991). Theory of prose. Champaign & London: Dalkey Archive Press.
Editor de seção: Milton Colonetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    27 Jun 2019
  • Aceito
    28 Out 2019
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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