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Bernardo Kucinski - A nova ordem. São Paulo: Alameda, 2019

Kucinski, Bernardo. A nova ordem. São Paulo: Alameda, 2019

Várias regiões do mundo têm, nos últimos anos, passado por um processo de fragmentação política e deslegitimação das instituições em todos os poderes que integram o Estado. Há um movimento contrário aos avanços implantados pelo Estado democrático de direito na segunda metade do século XX e início do XXI. O paradigma do Estado democrático de direito se preocupou com a execução de direitos sociais a partir de uma correlação entre público e privado, na qual princípios como os de igualdade, liberdade e dignidade da pessoa humana constituem a base desse Estado. No caso do Brasil, isso ocorreu a partir de uma Assembleia Constituinte de caráter participativo na segunda metade da década de 1980, na passagem do regime ditatorial para o regime democrático.

A partir dos anos 2000, sobretudo com a eleição de um presidente da República progressista em 2002, ex-integrante da classe operária, o Brasil passou a vivenciar muitas conquistas nas áreas de desenvolvimento social, econômico e cultural. Em poucos anos, uma democracia recém-formada passou a fazer parte das principais economias do mundo. O que talvez não tenhamos percebido, tanto no Brasil como no caso de outros países, é que muitas das forças reacionárias e antidemocráticas se articulavam para reestabelecer a ordem das elites, para reforçar as desigualdades sociais e econômicas, para retomar a violência, a censura e o medo como políticas de Estado. Tudo com o intuito de colocar novamente no cenário político de muitos países um regime de governo patriarcal e imperialista.

O romance A nova ordem, de Bernardo Kucinski (2019KUCINSKI, Bernardo. A nova ordem. São Paulo: Alameda, 2019.), tenta exatamente dar conta desse movimento de retomada do poder por forças antidemocráticas. Essa obra capta na realidade, sobretudo na brasileira, as novas formas de dominação política e econômica. O movimento político representado agora não é mais aquele de K.: relato de uma busca (Kucinski, 2016KUCINSKI, Bernardo. K.: relato de uma busca. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.), no qual se colocavam tanques nas ruas, fechava-se o Congresso, perseguiam-se e assassinavam-se opositores políticos, censuravam-se os meios de comunicação, prendiam-se e exilavam-se artistas e intelectuais. As forças políticas usurpadoras do poder, no Brasil, adotavam a desumanidade, a tortura e a violência como práticas institucionalizadas. Ou seja, essas medidas eram defendidas como políticas de Estado.

Atualmente, é praticamente inconcebível adotar essas mesmas formas de intervenção estatal na maioria dos países como o Brasil. Assim, surgem novos parâmetros de legitimação das práticas e de interesses dessa classe dominante, as quais não têm nenhum compromisso com o Estado democrático de direito. Ocorre, então, uma reconfiguração das formas de dominação. É justamente essa nova face do autoritarismo que é representada em tom caricato no romance A nova ordem, de Kucinski (2019KUCINSKI, Bernardo. A nova ordem. São Paulo: Alameda, 2019.). Tomando como ponto de partida a realidade brasileira, a narrativa pouco a pouco revela as manobras e as intenções do regime político instaurado naquele contexto. Cada decreto-lei desse regime, apresentado em nota de rodapé ao longo da narrativa, nos faz oscilar entre sensações de comicidade e de angústia. O aspecto cômico é resultado das medidas tomadas pelo governo, as quais, em princípio, seriam impensáveis por qualquer cidadão médio, mas que nesse novo autoritarismo representam exatamente a maneira grosseira de pensar e reestruturar as relações humanas. É a visão de mundo das forças políticas que se colocam como agentes desse autoritarismo ressignificado na contemporaneidade.

Em K.: relato de uma busca (Kucinski, 2016KUCINSKI, Bernardo. K.: relato de uma busca. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.), a relação passado-presente é usada para dar algum sentido a determinadas histórias individuais e coletivas, ressignificando as experiências do passado (memórias) a partir das imagens projetadas no presente. Em A nova ordem (Kucinski, 2019KUCINSKI, Bernardo. A nova ordem. São Paulo: Alameda, 2019.), o presente denuncia um passado mal resolvido. Aqui, as experiências humanas passadas não parecem ter sensibilizado suficientemente as ações humanas presentes. É revelado aí um problema de representação do passado, na medida em que essa narrativa parece demonstrar que as disputas discursivas anteriores não foram tão exitosas do ponto de vista racional e humanitário.

Em A nova ordem (Kucinski, 2019KUCINSKI, Bernardo. A nova ordem. São Paulo: Alameda, 2019.), as relações humanas e seus sentidos são construídos a partir da forma como cada Édito é moldurado naquela sociedade. O regime estabelece decretos que mexem nas estruturas sociais daquele contexto, como o Édito que extingue disciplinas, restringe outras e acaba com os programas de acesso à universidade. Há uma passagem significativa, logo no início do romance, em que ocorre o assassinato dos professores universitários, atitude que podemos interpretar como uma analogia ao apagamento e ao silenciamento do pensamento crítico. A violência não é só física, mas também simbólica, representa a imposição de um pensamento único dominante e a negação da pluralidade de ideias. Nessa sociedade, não é possível pensar, produzir ou criar. O decreto que proíbe a produção, venda e circulação de obras contrárias às ideias do regime instaurado também é um bom exemplo disso.

As imposições autoritárias desse regime reestruturam todas as relações entre os personagens, o tempo e o espaço. Angelino, por exemplo, que foi engenheiro, tornou-se catador e mal consegue um trocado para o café da manhã, o prato feito e a pinga, mas mantém uma relação afetiva e intelectual com os livros. Ariovaldo e seu projeto para impedir a difusão dos utopistas é outro exemplo de ressignificação da ação humana. A partir de algum rigor científico, Ariovaldo procura construir um método extrajudicial para barrar qualquer ascensão de um possível movimento utopístico. Nesse método, a ideia de inimigo interno faz-se presente. O medo, o suplício, a tortura, a violência, todas essas são etapas essenciais para que o protocolo de interrogatório criado pelo personagem alcance o sucesso. Ariovaldo conquista sucessivas promoções dentro do regime.

Todas as relações humanas são ressignificadas na medida em que o regime edita os decretos. As cooperativas são fechadas. Órgãos como o Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério dos Direitos Humanos e a Secretaria Nacional da Cidadania são extintos. Há uma invalidação discursiva e o esvaziamento de sentido de documentos importantes como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o Estatuto do Desarmamento. Há perseguição e extermínio de diferentes grupos marginalizados. Por exemplo, o General Lindoso Fagundes cria uma espécie de campo de concentração para mendigos. O objetivo é claro: eliminar as minorias indesejáveis. Na Nova Ordem, há a intenção de adequar a sociedade a um modelo de produção agroindustrial primitivo.

Não interessa a esse regime político manter nem difundir a produção científica ou industrial. A economia é baseada unicamente nos interesses do agronegócio, a partir de uma relação de subalternidade e exploração das maiores camadas da população, além do total desinteresse pela preservação e manutenção das riquezas naturais. A Nova Ordem procura manter um tom de legalidade, mascarando o funcionamento das instituições. Ariovaldo, a serviço do regime, modula o pensamento da população, cria programas para filtrar o pensamento crítico, buscando introduzir nos indivíduos um espírito conformista e acrítico. Qualquer sinal de rebeldia, contrariedade ou inconformidade deve ser violentamente combatido. A atuação autoritária desse regime leva aquela sociedade à paralisia.

Kucinski, por meio de recursos literários e estéticos, constrói uma realidade dura, alienada e irracional, muito próxima a nós. É uma crítica contundente a uma democracia que talvez não tenha conseguido solidificar os ideais do Estado democrático de direito nas raízes da estrutura social. Essa obra literária reflete os ideais políticos e econômicos das forças obscurantistas e atrasadas. O Brasil não é o único exemplo a vivenciar esse cenário. A violência estatal apresentada no romance é um reflexo da própria violência estrutural e da desigualdade social no Brasil e em muitos outros países da América Latina e do mundo, fatores que influenciam na dinâmica da organização político-social.

As práticas discriminatórias cotidianas, a exclusão de alguns grupos ao acesso à cultura, à informação, ao conhecimento, ao lazer, etc. e, consequentemente, a marginalização das minorias, todo um conjunto de práticas traduz a formação imperialista e patriarcal brasileira, a qual é desenhada no romance a partir do presente. O autoritarismo velado e o contínuo desejo de dominação das elites econômicas são trazidos para o texto literário a partir dos atuais movimentos das estruturas de poder. Embora o romance faça uma leitura do cenário brasileiro, é importante ressaltar que são muitas as aproximações entre regimes autoritários em diferentes países de diferentes continentes.

A escolha de um inimigo, o anseio de dominar a vida econômica e social, a violência como ferramenta que garante determinada estrutura política, todas essas são características que definem o regime autoritário instaurado na Nova Ordem. São, ainda, pontos que aproximam diferentes autoritarismos ao longo da história. A aliança entre forças militares, econômicas e políticas em prol de um projeto de poder é um fato vivido não só no romance, mas no próprio desenvolvimento histórico de muitos países. A opressão, a censura e a violência fazem parte tanto da realidade ficcional quanto da realidade histórica de muitas sociedades.

Por isso, embora façamos uma relação quase que imediata entre essa narrativa literária e a situação política brasileira dos últimos anos, talvez desde 2013, o romance pode significativamente dizer respeito também à Polônia, à Hungria, a Israel, à Turquia ou aos Estados Unidos. O autoritarismo apresenta algumas semelhanças que podemos identificar em qualquer um desses países que têm aspectos da democracia questionados. Todos eles têm em alguma medida uma investidura autoritária e antidemocrática similar em muitos pontos.

O ensaio O fascismo eterno, de Umberto Eco (2006ECO, Umberto (2006). O fascismo eterno. In: ECO, Umberto. Cinco escritos morais. Tradução de Eliana Aguiar. 7. ed. Rio de Janeiro: Record.), trata de algumas dessas marcas autoritárias presentes na Nova Ordem que se referem também às circunstâncias históricas de muitos países que sofreram com golpes de Estado, ditaduras, fascismo ou nazismo. Hoje, podemos facilmente identificar muitos desses elementos no Brasil, na Hungria, na Polônia, etc. A irracionalidade que atinge Ariovaldo no romance é comum nos agentes e nos simpatizantes de regimes autoritários. A indiferença e a inumanidade são a base dessa irracionalidade. Há, consequentemente, uma constante legitimação da violência e do ódio para que se alcance a dominação nos diferentes âmbitos da vida. Todas essas questões são levantadas no romance A nova ordem, de Kucinski (2019KUCINSKI, Bernardo. A nova ordem. São Paulo: Alameda, 2019.).

Essa obra tem um sentido prático muito explícito usando das ferramentas estéticas e estilísticas da literatura a fim de questionar os limites impostos pelo imediatismo da realidade. O autor reúne um conjunto de elementos complexos da sociedade e busca dar um sentido racional e humanístico para algo que não é justificável nem facilmente compreensível. A nova ordem antecipa muitas das reflexões sobre o movimento contínuo das relações sociais, políticas, históricas e também psicológicas. Esse romance adentra as margens entre o compreensível e o incompreensível do presente. Deixa como possibilidade a projeção de sentidos, a qual é possível a partir da vivência do leitor. Dessa forma, o livro tem a intenção de compor esse conjunto de elementos que diz respeito a experiência de mundo de cada indivíduo.

Referências

  • ECO, Umberto (2006). O fascismo eterno. In: ECO, Umberto. Cinco escritos morais. Tradução de Eliana Aguiar. 7. ed. Rio de Janeiro: Record.
  • KUCINSKI, Bernardo. A nova ordem. São Paulo: Alameda, 2019.
  • KUCINSKI, Bernardo. K.: relato de uma busca. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
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    Editor de seção: Milton Colonetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    25 Jul 2019
  • Aceito
    23 Jan 2020
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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