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O deslocamento inaugural de Laços de família

The displacement inaugural of Laços de família

Resumo

Este ensaio apresenta uma leitura do espaço da mulher nos contos “Amor” e “Os laços de família”, da coletânea Laços de família (1960), de Clarice Lispector. A partir da ideia de aula inaugural, proposta por Silviano Santiago, analisa-se o deslocamento da mulher para fora da família como uma marca original dessa obra. Tomando como base o conceito de heterotopia, de Michel Foucault, identifica-se a fuga da protagonista como um questionamento da opressão patriarcal. Nos dois contos, temos a mulher em busca de uma heterotopia de sua liberdade.

Palavras-chave:
conto contemporâneo; espaço feminino; deslocamento; Clarice Lispector

Abstract

This essay presents a reading of women’s place in the tales “Amor” and “Os laços de família”, from the collection Laços de família (1960), by Clarice Lispector. Taking the inaugural lecture idea as a starting point, proposed by Silviano Santiago, it is analyzed the displacement of women outside the family as an original mark of this masterpiece. Based on the concept of heterotopia, by Michel Foucault, the escape of the protagonist is identified as a patriarchal oppression questioning. In both stories, we have a woman in search of a heterotopia of her freedom.

Key words:
feminine contemporary tale; feminine space; displacement; Clarice Lispector

A relevância da obra Laços de família (1960), de Clarice Lispector, para a literatura brasileira é inquestionável. Depois de 50 anos, esse livro continua a nos assustar com sua meticulosa forma de abordar o desconforto da mulher no espaço da família. A densidade psicológica dessas pequenas narrativas merece um olhar atento, pois a personagem feminina nos surpreende, quando, inusitadamente, atravessa uma crise pessoal e deixa transparecer seu sombrio descontentamento social. Tal fórmula faz parte da originalidade da escritora que inovou a linguagem literária ao produzir um texto que como um rio “inaugura o seu próprio curso para, como a serpente uróboro, desaguar na nascente” (Santiago, 2004SANTIAGO, Silviano (2004). “A aula inaugural de Clarice Lispector”. In: _____. O cosmopolitismo do pobre: crítica literária e crítica cultural. Belo Horizonte: Editora da UFMG., p. 233).

Nesse universo de experimentação, merece destaque a forma como a mulher, aos poucos, mostra seus perversos sentimentos, como seu avesso e não como algo que veio de fora. Esse mal está presente de forma visceral e é parte constituinte de seus enredos. Ele pode ser identificado pela presença do cruel e do negativo que passa a fazer parte do universo de personagens descontentes com sua jornada doméstica. Assim, sua forma original de deslocar a mulher do espaço da família está traduzida pelo seu desconforto consigo e com o mundo a sua volta.

Assim, defendemos, neste ensaio, que há um estilo inaugural na forma como a mulher se desloca para fora da casa em Laços de família, pois ela passa a ter sombrios pressentimentos de que seu universo particular foi rompido. Além disso, à medida que perde a confiança em si e em suas crenças, a personagem feminina vai revelando um sinistro universo psicológico que reforça a experiência nauseante de se reconhecer presa a famílias aparentemente felizes.

Com isso, a partir de desconforto pessoal, suas personagens tentam romper com o universo familiar por meio de trajetórias subjetivas por espaços desconhecidos. Para Michel Foucault, as fugas espaciais ou psicológicas podem ser vistas como buscas de heterotopias, isso é, espaços de deslocamentos e “estão ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis” (Foucault, 2009, p. 415). Nessa coletânea de contos de Lispector, após o encontro com o inusitado, a mulher passa a experimentar essas heterotopias que nos surpreendem por ser narradas com “minúcias” e “detalhes” de acontecimentos que trazem a fissura das verdades (cf. Santiago, 2004SANTIAGO, Silviano (2004). “A aula inaugural de Clarice Lispector”. In: _____. O cosmopolitismo do pobre: crítica literária e crítica cultural. Belo Horizonte: Editora da UFMG., p. 237).

Em Laços de família, o desconforto e a insatisfação rompem com o universo pessoal da mulher e mostram o lugar de suturação da identidade feminina, sufocada pelas fronteiras da casa. Para melhor situar nossa argumentação, analisamos o deslocamento da personagem feminina nos contos “Amor” e “Os laços de família”, investigando os estranhos sentimentos que ela desenvolve após se perder em nauseantes travessias psicológicas.

Longe de casa, as protagonistas desses contos, Ana e Catarina, respectivamente, passam por um profundo questionamento pessoal. Tais narrativas privilegiam o bonde e o carro como metáforas de naus que transportam essas mulheres para outras dimensões espaciais. No primeiro: “Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar” (Lispector, 1994LISPECTOR, Clarice (1994). Laços de família. 26. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves., p. 29). No segundo: “A mulher e a mãe acomodaram-se no táxi que as levariam à estação” (id., p. 117).

Esse deslocamento fora do espaço da casa possibilita à mulher ver sua família de outro lugar. Ana volta das compras num bonde em Santa Teresa, enquanto Catarina vai levar a mãe à estação de trem. Por estar fora do espaço familiar, elas passam a identificar pequenas coisas pessoais deixadas para trás em prol da felicidade da família. Além disso, o estilo e a técnica narrativa desses contos apresentam uma “consciência individual como limiar originário do relacionamento entre sujeito narrador e a realidade” (Nunes, 2005NUNES, Benedito (2005). O drama da linguagem - uma leitura de Clarice Lispector. 2. ed. São Paulo: Ática., p. 83). Dentro dessa perspectiva, entendemos que o narrador traça percursos turvos para personagens que diante do absurdo, do susto, perdem-se de si mesmas.

Com Ana e Catarina, observamos que esse deslocamento vai além do espacial, pois a perspectiva temporal fortalece a ideia de fragmentação identitária por que elas passam. Dessa forma, entendemos esse deslocamento como uma tentativa de a mulher se encontrar por meio de um movimento que também é “distância cultural, naquela que se representa como diferença, naquele ou naquilo que é estranho, no ‘outro’ distanciado e longínquo” (Louro, 2008LOURO, Guacira Lopes (2008). Um corpo estranho. Belo Horizonte: Autêntica., p. 13). Nesse caso, essas personagens se deslocam por um sonho longínquo de uma vida independente do cotidiano sufocante. Com tais afastamentos da família, identificamos as heterotopias de fugas dessas protagonistas, pois elas buscam outros “espaços de contraposicionamentos reais” (Foucault, 2009FOUCAULT, Michel (2009). “Outros espaços”. Conferência. In: FOUCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Manoel Barros da Motta (Org.). Trad. de Inês Autran Dourado Barbosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Fonte Universitária., p. 414).

Assim, ao se projetarem em uma viagem interior, reconhecemos que essas personagens se deslocam em busca de uma heterotopia. Tais viagens fazem parte do processo de construção de suas identidades. Assim, seus desejos contidos passam a ser projetados como outros espaços possíveis. A estranheza do Jardim Botânico, para Ana, e a tarde na praia, para Catarina, passam a ser vistas como “heterotopias de desvio”, pois são lugares de fuga. Tais “heterotopias supõem sempre um sistema de abertura e fechamento que, simultaneamente, as isola e as torna penetráveis” (id., p. 420). Nos dois contos, esse duplo movimento da protagonista para fora e para dentro de si está acompanhado de estranhos sentimentos.

Dessa forma, torna-se relevante analisarmos o quanto esse deslocamento tem de suturação e de rasuras de um sujeito de fronteiras (cf. Hall, 2000HALL, Stuart (2000). “Quem precisa da identidade?”. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença. Petrópolis: Vozes.). Nesse sentido, investigamos como as relações afetivas são descritas e como a desconstrução da aparente tranquilidade familiar é desfeita. Para isso, partimos dos pressupostos teóricos que nos ensinam que toda identidade é perene e fantasística, pois, por trás de uma identidade, há “discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicas” (id., p. 108).

No conto “Amor”, Ana passa por uma grande transformação quando volta das compras. Ela é sacudida pelo bonde e se depara com um ser estranho. No início, temos uma mulher tranquila consigo mesma. Todavia, nessa volta para casa, ela encontra-se inesperadamente com um cego. Esse choque a remete introspectivamente a questionamentos pessoais: “alguma coisa intranquila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles” (Lispector, 1994LISPECTOR, Clarice (1994). Laços de família. 26. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves., p. 32). Com a ideia de culpa, algo se quebrou para Ana. Seu mundo não é mais o mesmo. Ela passa a demonstrar uma consciência pesada, pois suas verdades foram rompidas.

Após esse choque inesperado, Ana não é mais a mesma, pois uma “sensação de náusea” passa a dominá-la (Nunes, 2005NUNES, Benedito (2005). O drama da linguagem - uma leitura de Clarice Lispector. 2. ed. São Paulo: Ática., p. 85). Assim, o encontro com o desconhecido proporciona-lhe uma viagem íntima por seus desencontros interiores. Algo aconteceu com Ana, já que ela “vê-se expulsa de seu regulado cotidiano” (Rosenbaum, 2006ROSENBAUM, Yudith (2006). Metamorfoses do mal: uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Edusp., p. 89). Com isso, o narrador não podia deixar de anunciar “o mal estava feito” (Lispector, 1994LISPECTOR, Clarice (1994). Laços de família. 26. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves., p. 33). Essa simples narrativa torna-se um sofisticado jogo de tensão conflitiva, extensa e profunda para a mulher no seio da família.

Vale lembrar que “o acontecimento em Clarice transforma o personagem, fortalecendo o indivíduo” (Santiago, 2004SANTIAGO, Silviano (2004). “A aula inaugural de Clarice Lispector”. In: _____. O cosmopolitismo do pobre: crítica literária e crítica cultural. Belo Horizonte: Editora da UFMG., p. 237). O encontro com o cego passa a exigir de Ana um olhar mais hostil para sua vida. Esse malestar se desdobra em uma angústia íntima que “através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca” (Lispector, 1994LISPECTOR, Clarice (1994). Laços de família. 26. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves., p. 34). A visão nauseante da família aos poucos vai dominando os estranhos sentimentos dessa protagonista.

Assustada consigo, ela passa do ponto de descida do bonde e se perde no trajeto pelo sombrio anoitecer do Jardim Botânico. Esse passeio pela heterotopia do jardim ressalta o quanto ela se desencontrou internamente: “procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto” (id., p. 34-5). Longe de casa, essa mu-lher passa por uma experiência própria que a projeta por um universo solitário: “Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim” (id., p. 35).

Ao se perder, Ana se projeta dentro de uma heterotopia de fuga. Essa travessia pelo sombrio “vem qualificada pela náusea, que precipita a mulher num estado de alheamento” (Nunes, 2005NUNES, Benedito (2005). O drama da linguagem - uma leitura de Clarice Lispector. 2. ed. São Paulo: Ática., p. 86). Com essa mudança de rumo, Ana vivencia sentimentos mais extremos quando pensa “que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe a garganta como se ela estivesse grávida e abandonada” (Lispector, 1994LISPECTOR, Clarice (1994). Laços de família. 26. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves., p. 36). Fora da família, Ana se encontra nesse outro espaço de reflexão e de encontro consigo mesma.

O mal ronda o universo de Ana: “um cego me levou ao pior de mim mesma” (id., p. 39). Ao se deparar com esse ser indesejável, ela foi arremessada para fora de si, visto que “o ser monstruoso oferece uma ideia de fuga. Ele é um convite a exploração de novos caminhos” (Cohen, 2000COHEN, Jeffrey Jerome (2000). “A cultura dos monstros: sete teses”. In: COHEN, Jeffrey Jerome. Pedagogia dos monstros - os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica., p. 31). A simples presença de um cego a leva a trafegar pelo mais profano de si. Com essa metáfora, observamos que Ana enxerga no cego algo que ela mesma carrega: a cegueira. Além de proporcionar a vontade de fuga, essa experiência ressalta que por trás da aparência de Ana, há uma pulsante perversidade que “incorpora o fora e o além do locus social, mas se origina no dentro (id., p. 32).

Situado em uma zona sombria, o cego representa algo de si que Ana não queria encontrar e do qual esteve sempre fugindo. Diante do seu incômodo, a consciência de que não é mais a mesma vem à tona, “Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava” (Lispector, 1994LISPECTOR, Clarice (1994). Laços de família. 26. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves., p. 38). Assim, ao destacar uma mulher que se transforma no processo de deslocamento, esse conto mostra que “o sujeito que viaja é, ele próprio, dividido, fragmentado e cambiante” (Louro, 2008LOURO, Guacira Lopes (2008). Um corpo estranho. Belo Horizonte: Autêntica., p. 13). Ao optar por uma dona de casa que leva um susto na volta para casa e passa por uma travessia nauseante, Lispector valoriza a movimentação espacial como metáfora do incômodo feminino.

Tal condição de reconhecimento desse desconforto mostra o quanto a literatura de Lispector é filosófica quando denuncia o mal perene que a família representa para a mulher independente. Ana, aos poucos, reconhece seus estranhos sentimentos na penumbra do anoitecer no Jardim Botânico: “estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas” (Lispector, 1994, p. 36).

Para Benedito Nunes, o desfecho desse conto “deixa-nos entrever que o conflito apenas apaziguou, voltando à latência de onde emergia” (Nunes, 2005, p. 86). Assim, o deslocamento de Ana fora da família nos mostra a trajetória de uma heroína em crise com o casamento, pois trazia um incômodo por viver uma aparente felicidade. Contudo, depois de um susto, ela fica dividida e sua perene paz esconde uma estranha vontade de fuga.

Seguindo essa mesma trilha do inusitado, Catarina, de “Os laços de família”, também se afasta da família para enxergar o quanto a tranquilidade de sua casa era assustadora. Ela passa por dois deslocamentos. No primeiro, no trajeto para a estação de trem, percebe o quanto está distante da tradição de sua mãe. Assim como Ana, Catarina também passa por um susto depois de uma “freada súbita”, quando se aproxima da mãe, mesmo assim “procura remediar a catástrofe” (Lispector, 1994LISPECTOR, Clarice (1994). Laços de família. 26. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves., p. 119).

Ao ser jogada contra o corpo da mãe, algo se rompia no trajeto de Catarina: “Depois do choque no táxi e depois de se ajeitarem, não tinham o que falar” (id., p. 119-20). Depois desse choque, Catarina toma consciência do quanto não gosta da mãe: “o peso da responsabilidade deu-lhe à boca um gosto de sangue. Não, não se podia dizer que amava sua mãe. Sua mãe lhe doía, era isso” (id., p. 120). A mãe lhe parece um ser estranho e distante, pois como um ser indesejável, torna-se uma representação monstruosa que Catarina não quer reconhecer como sua alteridade (cf. Cohen, 2000COHEN, Jeffrey Jerome (2000). “A cultura dos monstros: sete teses”. In: COHEN, Jeffrey Jerome. Pedagogia dos monstros - os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica., p. 34).

Tal rejeição familiar é muito importante para entendermos o espaço nauseante da família de Clarice Lispector. No meio do silêncio das duas personagens do conto “Os laços de família”, está a culpa da falta de amor. Após ter consciência de algo perdido na relação entre as duas, Catarina reconhece o quanto se esqueceu de amar sua mãe, pois nunca se sentiu protegida por ela. Nesse processo de culpa, ela tenta se justificar cobrando em pensamentos uma postura mais humana: “Parecia-lhe que deveriam um dia ter dito assim: “sou tua mãe, Catarina. E ela ter respondido: e eu sou tua filha” (Lispector, 1994, p. 121).

Tais insinuações levam Catarina a reconhecer seus sentimentos negativos em relação à mãe: “de tal modo haviam-se disposto as coisas que o amor doloroso lhe pareceu a felicidade” (id., p. 122). Entre a culpa de não amar a mãe e a consciência de si, Catarina opta por seguir seu caminho com mais astúcia. Diferentemente de Ana que guarda segredo de sua descoberta inusitada, Catarina não esconde seu lado egoísta. Depois de se reconhecer como uma mulher fria, ela tenta “subir mais um degrau misterioso nos seus dias”, pois queria aproveitar aquele momento e “parecia disposta a usufruir da largueza do mundo inteiro” (id., p. 123).

Vivendo em um mundo controlado e vigiado pela mãe e pelo marido, o susto lhe provoca uma sensação de liberdade. Essa condição fica mais explícita quando ouve pela primeira vez o filho lhe chamar “mamãe” e ela “inesperadamente riu de fato para o menino” (id., p. 124). Após esse reencontro consigo, ela e o filho saem para passear e, à medida que se distanciam do marido, “perdiam a perspectiva familiar” (id., p. 125). Essa fuga de casa denuncia o espaço opressor da família como anuncia o narrador: “Quem sabe se sua mulher estava fugindo com o filho da sala de luz bem regulada, dos móveis bem escolhidos, das cortinas e dos quadros?” (id., p. 126). Nesse movimento ambíguo e maternal, há a busca de uma heterotopia longe de casa.

Assim, em Laços de família, o duplo deslocamento de Ana e de Cataria, para fora da família e de refúgio em si, mostra-nos uma preocupação da autora em construir o espaço feminino como um local de resistência, pois destaca lugares heterotópicos como algo efetivamente localizável para a mulher. Esse processo de deslocamento entre espaços reais e heterotópicos não é simples para as duas protagonistas, pois “não há um lugar de chegar, não há um destino pré-fixado, o que interessa é o movimento e as mudanças que se dão ao longo do trajeto” (Louro, 2008LOURO, Guacira Lopes (2008). Um corpo estranho. Belo Horizonte: Autêntica., p. 13). Nos dois casos, elas se mostram modificadas e já não podem ser as mesmas após identificarem seus incômodos familiares.

No duplo deslocamento da viagem-refúgio de Ana e de Catarina, também podemos apontar algumas performances de gênero. Refugiadas, elas deslocam-se para analisar e avaliar suas escolhas pessoais. Com a vantagem de descrever densamente donas de casa, passando por um profundo questionamento existencial, essa obra traz questões de gênero incorporadas subjetivamente às suas opções estéticas, uma vez que o espaço artístico “recria e transforma, produzindo cortes e intervalos entre corpo, trajeto biográfico-social, posições de gênero, traços subjetivos e figurações textuais” (Richard, 2002RICHARD, Nelly (2002). Intervenções críticas. Trad. Rômulo Monte Alto. Belo Horizonte: UFMG., p. 161).

Além desse sofisticado jogo estético que não deixa as questões de gênero de fora, os deslocamentos sociais e psicológicos de Ana e Catarina apresentam um duplo sentido: o do reconhecimento do mal como um avesso pulsante da mulher e o do espaço familiar como um lugar nauseante. Como uma heterotopia oposta à da família aconchegante, temos, em “Amor”, o Jardim Botânico, como uma pulsão selvagem de Ana, e em “Os laços de família”, a estação de trem, como um lugar de transitoriedade.

Dessa forma, podemos afirmar que, após o encontro inusitado com algo monstruoso em si, a mulher não é mais a mesma, já que uma maldade pulsante foi revelada como uma saída para seus dias sufocantes. Essa perversidade guardada até então a sete chaves passa a ser explorada “como caminho inevitável para quem nega a forma do mundo pela dificuldade em se comunicar com ele” (Rosenbaum, 2006ROSENBAUM, Yudith (2006). Metamorfoses do mal: uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Edusp., p. 48). Por isso, as protagonistas desses contos não conseguem extirpar seus demônios e passam a escondê-los assustadas, com medo de que, a qualquer momento, descubram a pulsão do mal nelas.

Com tais aspectos, esses dois contos nos mostram o quanto a ficção de Lispector funda uma tradição de questionamento do espaço da família ao denunciar a maldade pulsante da mulher como parte integrante dessa dimensão espacial, na qual “o espanto da personagem diante do acontecimento” nos remete ao “subsequente arrepio ou grito” (Santiago, 2004SANTIAGO, Silviano (2004). “A aula inaugural de Clarice Lispector”. In: _____. O cosmopolitismo do pobre: crítica literária e crítica cultural. Belo Horizonte: Editora da UFMG., p. 236). Visto assim, a assunção do improvável que sustenta a trajetória de Ana e Catarina traz a “irrupção perturbadora de forças tanáticas quase incognoscíveis, que desafiam a própria linguagem que as representa” (id., p. 176).

Voltando ao deslocamento espacial, podemos afirmar que o estado de trânsito dessas personagens ressalta a importância da heterotopia como um lugar para a fragmentação da identidade feminina. Nas últimas cenas de cada conto analisado, identificamos que as duas personagens não são mais as mesmas: Ana se arruma “sem nenhum mundo no coração” (Lispector, 1994LISPECTOR, Clarice (1994). Laços de família. 26. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves., p. 41), enquanto Catarina “conseguia tomar seus momentos - sozinha” (id., p. 127). Essa forma de refúgio psicológico demonstra que tais personagens trazem também uma dimensão filosófica na qual tempo e espaço narrativo se fundem, pois apresentam uma nova concepção: “a do tempo atomizado e, concomitantemente, espacializado” (Santiago, 2004SANTIAGO, Silviano (2004). “A aula inaugural de Clarice Lispector”. In: _____. O cosmopolitismo do pobre: crítica literária e crítica cultural. Belo Horizonte: Editora da UFMG., p. 233).

Assim, esse repúdio do espaço sufocante da família pode ser visto como uma resistência feminina. Em Laços de família, Clarice Lispector projeta por meio dos deslocamentos íntimos, uma mulher questionando seu destino. Com esses movimentos, identificamos uma representação da identidade feminina feita por meio de um olhar artístico que expõe os resíduos e as rupturas com a tradição herdada de forma suplementar (Richard, 2002RICHARD, Nelly (2002). Intervenções críticas. Trad. Rômulo Monte Alto. Belo Horizonte: UFMG., p. 167).

Ao denunciar uma identidade feminina em construção, para além daquela família, esses textos ficcionais nos fazem pensar na “fragilidade e condição eternamente provisória da identidade” (Bauman, 2005BAUMAN, Zygmunt (2005). Identidade. Entrevista a Benedetto Vecchi. Trad. Carlos A. Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar., p. 22). Nesse caso, o movimento psicológico, que Ana e Catarina fazem em busca de si, pode ser visto como a procura de outro pertencimento identitário. Pelo visto, elas despertam em si um dos incômodos da pós-modernidade, a “crise do pertencimento”, na qual o sujeito transpõe a brecha “entre o ‘deve’ e o ‘é’ e ergue a realidade ao nível dos padrões estabelecidos pela ideia” (id., p. 26). Dentro do analisado neste artigo, a crise dessas donas de casa ressalta a diferença, uma vez que “as identidades são construídas por meio da diferença e não fora dela” (Hall, 2000HALL, Stuart (2000). “Quem precisa da identidade?”. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença. Petrópolis: Vozes., p. 110).

Conforme esta argumentação, as diversas metáforas dos deslocamentos femininos questionam o espaço da família e a identidade feminina tradicional, pois reconhecem que, por trás das aparências, há um pulsante universo perverso controlado por essa mulher. Ao se voltarem para si e descobrirem esse mundo sombrio, elas estão deslocadas de si mesmas. Tal opção pode ser vista como parte de sua condição de personagem em trânsito, aquela que não tem uma adequação ao meio social (Louro, 2008LOURO, Guacira Lopes (2008). Um corpo estranho. Belo Horizonte: Autêntica., p. 19).

Assim, tais representações deixam o texto literário mais ambíguo, esteticamente, pelos diferentes sentidos do deslocamento. Portanto, esse outro espaço, fora da família, pode ser visto como uma marca do imaginário ficcional de Lispector. Suas protagonistas percebem que as fronteiras entre elas e o estranho, que pode ser o cego, a mãe, o marido ou o filho, são muito tênues. Como seres monstruosos, esses estranhos revelam uma parcialidade e uma contiguidade que ressaltam a existência de encontros e desencontros entre essas identidades (Cohen, 2000COHEN, Jeffrey Jerome (2000). “A cultura dos monstros: sete teses”. In: COHEN, Jeffrey Jerome. Pedagogia dos monstros - os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica., p. 53).

Dessa forma, destacamos os deslocamentos de Ana e Catarina como identidades marcadas pela heterotopia da não coerência, pois são mulheres em trânsito que “recusam a fixidez e a definição das fronteiras, e assumem a inconstância, a transição e a posição ‘entre’ identidades como intensificadoras do desejo” (Louro, 2008LOURO, Guacira Lopes (2008). Um corpo estranho. Belo Horizonte: Autêntica., p. 21-2). Portanto, podemos sintetizar que a principal contribuição dessa poética inaugural de Lispector está no duplo movimento de suas protagonistas, pois, à medida que se deslocam por estranhas experiências internas, reconhecem seu lado sombrio. Esse mergulhar em si é a maior heterotopia feminina de Laços de família, pois a mulher é atraída para fora dela mesma. Essa condição de fuga as corrói e as sulca, como nos ensina Michel Foucault (2009FOUCAULT, Michel (2009). “Outros espaços”. Conferência. In: FOUCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Manoel Barros da Motta (Org.). Trad. de Inês Autran Dourado Barbosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Fonte Universitária., p. 414).

Retomando a importância dessa obra para a literatura contemporânea, podemos destacar que ela pode ser vista como uma antecessora dos contos que fazem crítica à família patriarcal. Sua fina ironia nos salta aos olhos pelo jeito mordaz de desconstrução da felicidade feminina. Por exemplo, essa técnica narrativa está presente na coletânea O calor das coisas (1980), de Nélida Piñon, e A noite escura e mais eu (1995), de Lygia Fagundes Telles, entre tantas outras. Tais obras trazem uma aproximação com as mulheres enclausuradas de Laços de família. Nélida Piñon brinca com a tradição fundada por Lispector ao destacar a paródia do casamento perfeito no conto “I love my husband”. Já Lygia Fagundes Telles explora uma mórbida narrativa da mãe culpada pelo suicídio da filha em “Uma branca sombra pálida”. Esses dois contos questionam as fronteiras da família ao destacar as falsas aparências com um casamento de fachada e a hipocrisia de uma mãe, que não aceita o namoro homossexual da filha, respectivamente. Por serem satíricos e reforçarem o deslocamento espacial como uma saída para o questionamento da identidade feminina, eles apresentam uma dívida com os clássicos textos de Laços de família.

Assim, a aula inaugural de Clarice Lispector pode ser vista como um exercício estético de uma nova experiência que “é manifestação de proximidade e distância do objeto de cuidado, de misto de vigilância e afeto, de diligência e abandono, de inquietação e paz” (Santiago, 2004SANTIAGO, Silviano (2004). “A aula inaugural de Clarice Lispector”. In: _____. O cosmopolitismo do pobre: crítica literária e crítica cultural. Belo Horizonte: Editora da UFMG., p. 240). Destacando o universo sombrio de suas personagens, a autora explora a heterotopia espacial como uma forma de questionamento do espaço familiar. Como visto, as fissuras irônicas do seu texto não deixam os significados parados e reforçam o desconforto feminino por meio de um duplo movimento da personagem que rejeita o espaço social à medida que vai perdendo a inocência.

Referências bibliográficas

  • BAUMAN, Zygmunt (2005). Identidade. Entrevista a Benedetto Vecchi. Trad. Carlos A. Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
  • COHEN, Jeffrey Jerome (2000). “A cultura dos monstros: sete teses”. In: COHEN, Jeffrey Jerome. Pedagogia dos monstros - os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica.
  • FOUCAULT, Michel (2009). “Outros espaços”. Conferência. In: FOUCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Manoel Barros da Motta (Org.). Trad. de Inês Autran Dourado Barbosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Fonte Universitária.
  • HALL, Stuart (2000). “Quem precisa da identidade?”. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença. Petrópolis: Vozes.
  • LISPECTOR, Clarice (1994). Laços de família. 26. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
  • LOURO, Guacira Lopes (2008). Um corpo estranho. Belo Horizonte: Autêntica.
  • NUNES, Benedito (2005). O drama da linguagem - uma leitura de Clarice Lispector. 2. ed. São Paulo: Ática.
  • RICHARD, Nelly (2002). Intervenções críticas. Trad. Rômulo Monte Alto. Belo Horizonte: UFMG.
  • ROSENBAUM, Yudith (2006). Metamorfoses do mal: uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Edusp.
  • SANTIAGO, Silviano (2004). “A aula inaugural de Clarice Lispector”. In: _____. O cosmopolitismo do pobre: crítica literária e crítica cultural. Belo Horizonte: Editora da UFMG.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2011

Histórico

  • Recebido
    Out 2010
  • Aceito
    Jan 2011
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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