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Academias de letras e escritoras: barreiras e mudanças no século XX e um caso em Minas Gerais

Academies of letters and female writers: barriers and changes in the 20th century and the case of Minas Gerais, Brazil

Las academias de letras y las escritoras: barreras y cambios en el siglo XX y un caso en Minas Gerais, Brasil

Resumo

Neste trabalho, após uma breve história das mulheres nas academias de letras no Brasil e fora dele, passamos a discutir a entrada tardia das escritoras nesses espaços de legitimação e consagração, de maneira especial desde a segunda metade do século XX. A discussão focaliza a centenária e prestigiosa Academia Mineira de Letras (AML), instituição que salvaguarda os documentos examinados e aqui apresentados. O acervo pesquisado é o da AML, em Belo Horizonte (MG), principalmente os discursos de posse e de recepção das escritoras mineiras que ali têm cadeiras. São destacados alguns elementos importantes do perfil dessas escritoras, assim como aspectos discursivos dos registros dessas personagens históricas, sobretudo as palavras do intelectual Eduardo Frieiro na posse de Maria José de Queiroz, em 1973.

Palavras-chave
Academia Mineira de Letras; academias de letras; escritoras brasileiras; feminismos

Abstract

In this work, after a brief history of women in academies, of letters in Brazil and abroad, we discuss the late entry of female writers into these spaces of legitimation and consecration, especially since the second half of the 20th century. The discussion focuses on the centenary and prestigious Academia Mineira de Letras, at Minas Gerais, Brazil, an institution that safeguards the documents examined and highlighted used as archives in this article. The researched collection is that of the AML, in Belo Horizonte, in particular the speeches of inauguration and reception of writers who have chairs there (in this academy). Some important elements of the profiles of these writers are highlighted, as well as discursive aspects of the records of these historical characters, in particular the words of the writer Eduardo Frieiro in reception of the female writer Maria José de Queiroz, in 1973.

Keywords:
Academy of Letters of Minas Gerais; academies of letters; Brazilian writers; feminisms

Resumen

En este trabajo, además de una brevísima historia de las mujeres en las academias literarias, tanto en Brasil cuanto en otros países, vamos a discutir la entrada retrasada de las escritoras en estos espacios de legitimación y consagración, especialmente desde la segunda mitad del siglo XX. La discusión focaliza la centenaria y prestigiosa Academia Mineira de Letras — en Minas Gerais, Brasil —, institución responsable por la guardia de los documentos aquí examinados y destacados. El acervo investigado es el de la AML, en la ciudad de Belo Horizonte, especialmente los discursos escritos en las ceremonias de llegada de las escritoras mineiras que ahí tienen lugar. Se destacan también elementos importantes de los perfiles de esas mujeres, además de los aspectos discursivos de los registros de tales personajes históricas, especialmente las palabras del intelectual brasileño Eduardo Frieiro, responsable por la recepción de la escritora Maria José de Queiroz en la AML, en el año de 1973.

Palabras clave:
Academia Mineira de Letras; academias de letras; escritoras brasileñas; feminismos

CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE ACADEMIAS DE LETRAS

As academias de letras existem em muitos países, às vezes há séculos. No Brasil, elas têm inspiração na Academia Francesa (2023ACADÉMIE FRANÇAISE. Portal. Academia Francesa de Letras. Disponível em: academie-francaise.fr. Acesso em: 3 abr. 2023.
academie-francaise.fr...
), fundada em 1635. Nossa Academia Brasileira de Letras (ABL, 2023ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS (ABL). Portal. Academia Brasileira de Letras. Disponível em: https://www.academia.org.br/. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://www.academia.org.br/...
) teve sua fundação em novembro de 1896, já na República, depois de tratativas sobre sua existência sob a égide do Estado ou não. É desde então uma instituição privada, mas não sem uma relação notável com políticas públicas. Neste artigo, nosso foco é a Academia Mineira de Letras (AML, 2023aACADEMIA MINEIRA DE LETRAS. Portal. Academia Mineira de Letras. Disponível em: https://academiamineiradeletras.org.br/. Acesso em: 3 abr. 2023a.
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), fundada em 25 de dezembro de 1909, isto é, pouco depois da ABL, por um grupo de escritores e intelectuais na cidade de Juiz de Fora, então polo importante do estado de Minas Gerais, próximo à capital federal, o Rio de Janeiro (RJ), em diálogo constante com o que lá acontecia, e distante centenas de quilômetros da neonata capital, Belo Horizonte (cidade planejada fundada em 1897).

A AML nasceu “mineira”, sem menção ao âmbito municipal, como nasciam outras. Considera-se que tinha, portanto, ambição menos local. Estão entre seus 12 fundadores, todos homens: Machado Sobrinho, Belmiro Braga, Dilermando Cruz, Amanajós de Araújo, entre outros expoentes das letras à época, que na sequência “elegeram mais dezoito intelectuais espalhados por todo o Estado e representativos do que de melhor existia entre a elite acadêmica de Minas Gerais”, conforme consta do site da instituição (Academia Mineira de Letras, 2023ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS. Revistas. Academia Mineira de Letras. Disponível em: https://academiamineiradeletras.org.br/revistas/. Acesso em: 3 abr. 2023b.
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). Sua missão era, de maneira especial, cultuar, defender e sustentar a “pureza da língua”, além da “produção intelectual na sua plenitude e variedade”, objetivos comuns a todas as academias desse tipo.

Foi em 1915 que a sede da AML se transferiu para Belo Horizonte, sendo uma das finalidades dessa mudança estabelecer maior proximidade com o poder centralizado na capital do estado. A instituição só terá uma primeira sede própria em 1943, em endereço no centro da cidade. Apenas em 1987, depois de longa articulação com o poder público, ela passou a ocupar, em regime de comodato, o Palacete Borges da Costa, onde ainda está, também em área central e, pode-se dizer, nobre. Trata-se de um casarão com ótimas instalações, tombado, restaurado e que faz parte do circuito turístico da capital mineira, embora se possa dizer que é ainda pouco conhecido da população geral.

A AML é integrada por 40 membros, assim como a ABL e mesmo a Academia Francesa. Todos são eleitos colegiadamente, em processo aberto, em tese, a qualquer cidadão brasileiro. As 40 cadeiras têm um fundador homenageado, um patrono e os membros que efetivamente as ocuparam ao longo das décadas. A questão que nos move aqui é a ocupação dessas cadeiras por escritoras mineiras, ao longo de mais de um século de existência da AML. O resultado de uma interpelação nesse sentido é óbvio: foram poucas, no entanto parece-nos importante propor uma observação temporal que nos permita constatar possíveis mudanças específicas do caso, que caminham juntamente com mudanças sociais mais gerais, especialmente em relação à participação feminina nas redes intelectuais do país e, em nosso recorte, do estado de Minas Gerais.

Tal como a ABL ou a AML, as academias são, além de agremiações seletivas que zelam pela língua do país (entenda-se, a variante culta) e cultivam a intelectualidade de forma mais elitizada, um dos espaços de consagração nas artes literárias. Não o único, mas um dos mais institucionalizados e mesmo reconhecidos, mesmo entre a população mais ampla. Ser imortal de uma academia de letras costuma ser algo divulgado pela imprensa, cobiçado por alguns escritores, que têm uma espécie de coroamento e reconhecimento de suas carreiras quando são eleitos pelos pares. Isso não é, como também sabemos, o objetivo de todo escritor ou intelectual, mas parte deles, sim, mira a ocupação de uma dessas cadeiras e os rituais com o fardão, quando o há, como um dos propósitos da vida artística e profissional.

A ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS E AS ESCRITORAS

A existência de mulheres entre os membros das academias é historicamente vedada, e isso só começou a mudar no século XX, antes até no Brasil do que na Academia Francesa, por exemplo. É de se destacar um episódio famoso na fundação da ABL, a nomeação do marido da bem-sucedida escritora Júlia Lopes de Almeida no lugar da esposa, que teria feito jus à vaga e foi ardorosa articuladora da fundação da instituição (Fanini, 2009FANINI, Michele A. (2009). Júlia Lopes de Almeida: entre o salão literário e a antessala da Academia Brasileira de Letras. Estudos de Sociologia, v. 14, n. 27, p. 317-338. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/estudos/article/view/1941. Acesso em: 26 jul. 2022.
https://periodicos.fclar.unesp.br/estudo...
). É possível dizer, portanto, que desde a fundação de nossa ABL as mulheres são excluídas, nesse caso muito deliberadamente, desse espaço de consagração. Há, em todos os casos, regras explícitas a esse respeito, aos poucos alteradas, século XX adentro, quando se tornou imperativo que as mulheres pudessem ocupar também espaços reconhecidos como escritoras. É o caso da AML.

Na história dessa academia, uma das que existem em Minas Gerais, e pode-se dizer a principal, verificamos que, entre os 40 patronos, figuram duas mulheres, ambas escritoras do século XVIII: Bárbara Heliodora e Beatriz Brandão. O fato de as patronesses das cadeiras serem mulheres não condiciona que os sucessores o sejam. Efetivamente, nenhuma das duas cadeiras foi sucedida por outras escritoras, ao longo dos mais de cem anos da instituição. A primeira escritora a ocupar efetivamente um lugar na AML — a cadeira 26, cujo patrono é Evaristo da Veiga — foi a poeta, tradutora, crítica e professora Henriqueta Lisboa (Lambari, 1901–Belo Horizonte, 1985), no ano de 19631 1 Ver informações em: Cronologia (2023). Neste trabalho, não vamos nos ater às biobibliografias das escritoras citadas, pondo foco no panorama do que acontece a elas em relação a essa instituição. Há no Brasil inúmeros trabalhos sobre Henriqueta Lisboa, Alaíde Lisboa e muitas outras acadêmicas. . Daí em diante, outras mulheres foram eleitas para a AML, em ordem de chegada: Maria José de Queiroz, em 1968; Lacyr Annunziata Schettino, em 1986; Alaíde Lisboa, em 1995; Elisabeth Fernandes Rennó de Castro, em 2004; Yeda Prates Bernis, em 2007BERNIS, Yeda Prates (2007). Discurso de posse. Recepção de Murilo Badaró. Revista da Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte, n. 44, p. 7-10.; Carmen Schneider Guimarães, em 2012; Antonieta Cunha, em 2022; e Maria Esther Maciel, também em 2022. Nos dias que correm, estão em atividade efetiva na instituição as escritoras Yeda Prates Bernis (nascida em 1926), Antonieta Cunha (nascida em 1939), Elisabeth Rennó (1930), Maria José de Queiroz (1936) e Maria Esther Maciel (nascida em 1963). A única delas que chegou à presidência da AML foi Elisabeth Rennó, de 2016 a 2019. O fato foi timidamente divulgado pela imprensa mineira à época, sem passar despercebida a questão de gênero aí implicada, como apontou a própria eleita, em seu discurso de posse como presidenta, em 2016:

Cento e sete anos após a sua fundação a Academia Mineira de Letras comemora a primeira ascensão feminina à sua Presidência, motivo ímpar para que me orgulhe.

O valor do trabalho intelectual da mulher persiste na conotação de um mister conquistado ao abrir clareiras na densidade dos alfabetos masculinos. Fruto de um esforço e ousadia, ultrapassa as fronteiras da discriminação e alça seu voo libertário (Rennó, 2016RENNÓ, Elizabeth (2016). Ascendendo à presidência. Discurso de posse proferido em 19 de junho de 2016. Revista da Academia Mineira de Letras, v. 75., p. 27).

Anos antes, a escritora Lacyr Schettino, terceira a ocupar uma cadeira na AML, homenageou Henriqueta Lisboa, também pelo feito de abrir a trilha às escritoras nesse espaço de consagração. Em seu texto, Schettino (1986SCHETTINO, Lacyr (1986). Posse na cadeira 26. Revista da Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte.) menciona a ausência de um “feminismo engagé” na poesia da predecessora, preferindo destacar a luta pelos direitos humanos e o pioneirismo de Lisboa, de maneira geral.

Conforme os registros da AML, caso em foco neste trabalho, em uma conta simples, podemos verificar que são, então, ao longo de mais de um século de história, 91 homens e nove mulheres (exceto os patronos e as patronesses) os/as ocupantes das 40 cadeiras da instituição. A questão vai muito além dos números. Levando-se em consideração as discussões contemporâneas sobre a mulher e sua atuação intelectual e social, pode-se dizer que o que ocorre na AML (e em tantos outros espaços de poder e prestígio) também ocorre em suas congêneres, em várias partes do país e do mundo, pari passu com mudanças — lentas — que vêm sendo discutidas em toda parte, não sem esforço das próprias mulheres em defesa de sua atuação e de seu reconhecimento.

VISUALIZANDO DADOS, PENSANDO MOVIMENTOS

A fim de obter uma análise mais detida da evolução do reconhecimento de escritoras nesse tipo de espaço de consagração e legitimação, usamos as informações públicas da própria AML na construção de um gráfico que ajuda a visualizar a ocupação feminina das cadeiras ao longo do tempo (Gráfico 1), permitindo pensar sobre a condição das escritoras em relação a esse tipo de participação no espaço público. Vejamos como se organiza a AML: como já mencionado, as cadeiras 24 e 38 têm duas escritoras como patronesses, respectivamente, Bárbara Heliodora e Beatriz Brandão, ambas atuantes no século XVIII. O fato tem relevo, de modo especial, por serem as únicas duas representantes do sexo feminino2 2 Uma discussão urgente e premente diz respeito à ocupação das academias por pessoas trans, que vêm se destacando tanto no debate quanto na própria literatura, ocupando com vigor a cena literária nacional e mesmo mundial. Em Belo Horizonte, há uma Academia Transliterária (ver em Academia Transliterária de Letras, 2023). A complexificação do debate é evidente e ultrapassa questões de gênero de feição binarista. É interessante mencionar também que o primeiro escritor indígena a ocupar uma cadeira da AML é o renomado Ailton Krenak, que publica por um dos maiores grupos editoriais do país, a multinacional Companhia das Letras/Penguin. Krenak foi indicado e eleito em 2022 e tomou posse em 3 de março de 2023, com texto de recepção da escritora Maria Esther Maciel, a ser publicado na longeva revista da própria AML. Nenhuma escritora negra tomou posse de uma das cadeiras ainda. , embora não tenham efetivamente ocupado cadeiras em uma instituição ainda inexistente. Se as excluirmos da análise por razões objetivas, teremos duas escritoras a menos em nossa contagem, o que não é proporcionalmente desprezível. Neste trabalho, optamos por considerá-las, já que chegaram à situação prestigiosa e legitimadora de serem escolhidas como patronesses de uma academia que ocupa posição de relevo entre as academias brasileiras.

Gráfico 1.
Proporção de escritores e escritoras ocupantes de cadeiras na Academia Mineira de Letras (AML), 1909–2022.

As demais escritoras, representadas pela cor mais forte do Gráfico 1, são todas sucessoras de outros ocupantes das cadeiras (não há nenhuma fundadora), depois de 1963, quando a poeta e tradutora Henriqueta Lisboa, ensejada por um contexto sociocultural já minimamente favorável, ao menos às mulheres brancas socioeconomicamente privilegiadas, desbravou esse caminho e o abriu a outras mulheres. É importante mencionar que isso ocorreu na articulação política e intelectual com os escritores que ali atuavam, além de toda uma rede externa à própria instituição. Ao longo de décadas, esparsamente, as mulheres ocuparam as cadeiras da AML nessas posições, nos eixos de quantidade × cadeira, sem desprezar o fato de que são 60 anos desde a posse da primeira escritora e a chegada de outras, o que, embora ocorra, tem ritmo lento.

Vejamos, nominalmente, no Quadro 1, quem são as ocupantes da AML, desde Henriqueta Lisboa, por número da cadeira, excetuando-se as patronesses, e a data de sua posse, o que nos permite refletir sobre a cadência em que elas vêm chegando a esse espaço.

Quadro 1.
Escritoras que ocupam cadeiras na Academia Mineira de Letras.

Para além dos números e das correspondências entre cadeiras e ocupantes, é possível flagrar aí a cadência com que algumas escritoras alcançaram o espaço acadêmico em foco, com maior intensidade nos anos 1960 e, claramente, a grandes intervalos, na maior parte do tempo. Depois da virada do milênio, houve uma movimentação intensa, já que em apenas duas décadas elas passaram a tomar posse em intervalos às vezes menores. Isso talvez nos dê um indício para pensar o futuro, no século XXI.

A fim de que este estudo recolhesse mais elementos para nosso conhecimento e nossa reflexão, tivemos a oportunidade, por meio do acordo técnico-científico firmado em 2020 entre a AML e o Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG), de examinar discursos de posse e de recepção de parte das escritoras acadêmicas, além de textos por elas escritos para eventos como congressos. Isto é, nosso trabalho valeu-se do acervo documental salvaguardado e tratado pela AML, que tem função museal e arquivística importante.

O ritual de posse de todo acadêmico ou acadêmica prevê um discurso de quem chega e outro de quem acolhe o escritor ou a escritora eleito/a. Desse modo, foi possível ler os documentos de: Henriqueta Lisboa, datiloscrito de 1969LISBOA, Henriqueta (1969). Poesia, minha profissão de fé. datiloscrito. para um evento fora do estado; Elisabeth Rennó, em sua posse como presidenta da AML, em 2016; Murilo Badaró (2007BADARÓ, Murilo (2007). Emoções transformadas em versos. Revista da Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte, n. 44, p. 7-10.) recepcionando Elisabeth Rennó; e Maria José de Queiroz (posse datada de 1973), recebida por Eduardo Frieiro, no mesmo ano3 3 Todos os documentos podem ser acessados graças à digitalização disponível no site da AML, especialmente os que estão publicados na centenária Revista da Academia Mineira de Letras. Agradecemos Agradecemos à bolsista de iniciação científica Camila Oliveira (Cefet-MG), por extensão ao programa de bolsas do Cefet-MG e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Também à equipe da AML, especialmente à bibliotecária Soraia Lara, a verificação fundamental dos dados, assim como à diretora Inês Rabelo e ao presidente da casa Rogério Faria Tavares, a imensa e sincera abertura ao diálogo, à pesquisa e aos ares da cidade. Também ao grupo de estudos Mulheres na Edição, com as colegas Renata Moreira e Maria do Rosário Alves Pereira. Especial agradecimento à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais, o financiamento do projeto APQ 0002118, e ao Cefet-MG, no apoio ao Acordo TC com a AML, tornando-a espaço institucional de pesquisa, formação e debate. . De todos esses textos, sobretudo alguns que passaremos aqui, o que mais toca nas questões da mulher no meio literário e na academia é o de Eduardo Frieiro, intelectual fundamental para as letras mineiras e brasileiras. É no texto dele que vamos nos deter, portanto, especialmente com o objetivo de iluminar as questões que ele percebia e sobre as quais tratava ao receber a colega escritora, na primeira metade dos anos 1970.

“O QUE MAIS, MEU DEUS?”: DISCURSOS DE POSSE E DE RECEPÇÃO

Antes de exibir trechos de discursos de posse e de recepção das acadêmicas mineiras, especialmente o de Eduardo Frieiro sobre Maria José de Queiroz, é fundamental externar que mesmo uma visada distraída desses textos e diálogos expõe o privilégio de todas essas (poucas) mulheres em relação à ocupação desse espaço legitimado e legitimador, no caso da AML, mas também de espaços na sociedade. Em todos os casos, são mulheres brancas, da elite de Minas Gerais, filhas ou parentes próximas de outros intelectuais, sobretudo de políticos e juristas com amplo trânsito social e intelectual.

Nos documentos do acervo da AML analisados, os autores e as autoras agradecem a dezenas de pessoas, citando-as nominalmente, fazendo questão de aludir a nomes que, não raro, são de famílias tradicionais e conhecidas, nomes de ruas e monumentos da capital mineira até hoje. São citados também outros escritores, professores universitários, além do relato de viagens internacionais para estudos e aperfeiçoamentos (geralmente aos Estados Unidos ou a uma pequena parte da Europa), poliglossia, bolsas e financiamentos, assim como agradecimentos a maridos incentivadores ou, no mínimo, que permitem ou autorizam que as escritoras produzam seus livros e tomem assento em uma academia de letras.

Há documentos em que as questões de gênero são menos salientes, a exemplo do discurso de José Carlos Lisboa de Oliveira, filho caçula de Alaíde Lisboa, acadêmica, irmã de Henriqueta Lisboa, quando do centenário da mãe, já em 2004. Na página 25 do texto, diz ele sobre os tempos passados e a emergência da grande escritora que foi Alaíde: “Homem competente era obrigação, mulher culta e estudiosa era raridade” (Oliveira, 2004OLIVEIRA, José Carlos Lisboa de (2004). Centenário de evocações e felicidade. Revista da Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte, ano 82, v. 33., p. 25); ou ainda sobre uma reclamação que o pai, intelectual e professor, teria feito sobre Alaíde Lisboa, em dado momento da vida, depois de ela ser mãe de vários filhos: “Casei-me com uma intelectual e agora tenho uma esposa doméstica” (Oliveira, 2004OLIVEIRA, José Carlos Lisboa de (2004). Centenário de evocações e felicidade. Revista da Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte, ano 82, v. 33., p. 26). Ao que parece, tal comentário teria despertado Alaíde para uma situação que ela tratou logo de reverter. Mais adiante, sobre a atuação múltipla da mãe, o mesmo José Carlos diz, dirigindo-se a ela:

Você que realiza três, quatro tarefas ao mesmo tempo, escreveu, deu aulas, palestras, conferências, seminários, criou metodologias e desenvolveu didáticas para cursos desde pré-primário e primário até cursos universitários e de pós-graduação, teve atividades administrativas e de diretoria, fez concursos para: professora, livre docente e catedrática, professor emérito, foi líder sindical e vereadora, empresária ex-sócia de editora, jornalista, ensaísta, crítica literária, publicou cerca de 30 livros, participa de Associações e Academias, quantas homenagens medalhas e placas recebidas, o que mais meu Deus? (Oliveira, 2004OLIVEIRA, José Carlos Lisboa de (2004). Centenário de evocações e felicidade. Revista da Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte, ano 82, v. 33., p. 26).

Em outro discurso, o da escritora Lacyr Schettino em recepção a Alaíde Lisboa, lemos:

A Academia Mineira de Letras, que tem como modelo estrutural a sua congênere francesa, abre hoje suas portas para acolher mais uma consócia. Lembramos, porém, que antes que a Academia Francesa de Letras recebesse a notável romancista Marguerite Yourcenar, a primeira mulher que se agregou àquela sociedade cultural, já esta nobre casa de Alphonsus de Guimaraens abrigava uma poeta de renome internacional: Henriqueta Lisboa, irmã da eminente Escritora que vem hoje fruir de nosso convívio: Professora Doutora Alaíde Lisboa de Oliveira, a quem devemos a honra e a alegria de receber (Schettino, 1995 apud Oliveira, 1995OLIVEIRA, Alaíde Lisboa (1995). Posse na Academia Mineira de Letras. Saudação de recepção proferida por Lacyr Schettino., p. 15).

No discurso de posse da pioneira Henriqueta Lisboa, a poesia e o processo criativo são o mote central, sem incursão explícita nas questões femininas (eventualmente feministas) no campo literário. Já no texto em que Murilo Badaró (2007BADARÓ, Murilo (2007). Emoções transformadas em versos. Revista da Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte, n. 44, p. 7-10.) saúda a escritora Yeda Prates Bernis, é possível flagrar, além das menções a políticos e intelectuais conhecidos e influentes, uma situação na ABL que o escritor espelha na vinda de Yeda Bernis. Trata-se da eleição da escritora Dinah Silveira de Queiroz, articulada com outros escritores e intelectuais, em detrimento da candidatura do político Gustavo Capanema. Para a chegada de Bernis à AML, são citados como articuladores, por exemplo, os eminentes intelectuais Vivaldi Moreira e a professora e crítica Ângela Vaz Leão. Para o caso de Dinah Silveira em relação a Capanema, no Rio de Janeiro, diz Badaró (2007BADARÓ, Murilo (2007). Emoções transformadas em versos. Revista da Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte, n. 44, p. 7-10., p. 7):

Não era o momento de sua entrada na Academia. Aquele instante era destinado a uma mulher e os articuladores de sua candidatura não souberam avaliar corretamente a situação. A vez era de Dinah Silveira de Queiroz. Em qualquer outra oportunidade, Capanema seria sufragado por unanimidade. Naquela, não. E foi o que aconteceu, apesar de minhas advertências a Abgar. Infelizmente, Capanema carregou esta mágoa para o túmulo.

“ATÉ ALCANÇAR A CONSAGRAÇÃO”: EDUARDO FRIEIRO RECEBE MARIA JOSÉ DE QUEIROZ

Conforme anunciado, no entanto, poremos foco no discurso de Eduardo Frieiro, investido estava de recepcionar na AML a escritora Maria José de Queiroz, em 1973. As redes sociais e hereditárias que permitiam que o caminho trilhado por uma mulher, nesse nível de reconhecimento e consagração, fosse menos atravancado estavam explícitas na fala de Frieiro, como se pode verificar no seguinte trecho: “‘É a sobrinha do Prof. Amaro Xisto de Queiroz’, disseram-me na Secretaria. ‘Sé é Queiroz, é bom’, respondi” (Frieiro, 1973FRIEIRO, Eduardo (1973). Recepção de Eduardo Frieiro à oração de posse de Maria José de Queiroz, em 26 de outubro de 1968. Revista da Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte. 81 p., p. 58). Além disso, de todos os documentos examinados, depreende-se algo que nos interessa: Frieiro toca, por exemplo, no pioneirismo da AML ao aceitar mulheres e na história dessa barreira as escritoras, mas não sem defender as instituições da acusação de misoginia. Vejamos então:

A Academia Mineira de Letras, a exemplo da Academia Brasileira e de quase todas as outras das províncias, não queria mulheres em seu quadro acadêmico. É uma tradição que procede da Academia Francesa, a qual não as admite desde a sua fundação no século XVII. Por misoginia? Não, pois não é misógino o grande instituto que em sua existência, desde o início, sofreu a influência das damas mais ilustres que mantinham salões literários ou se valiam de seu prestígio mundano na sociedade aristocrática de outras épocas (Frieiro, 1973FRIEIRO, Eduardo (1973). Recepção de Eduardo Frieiro à oração de posse de Maria José de Queiroz, em 26 de outubro de 1968. Revista da Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte. 81 p., p. 71).

Fica patente a defesa das academias que não podiam aceitar mulheres, embora as admirassem de longe, do lado de fora, melhor dizendo, ou a admissão da mudança dos tempos e das mentalidades, com o consequente acesso da mulher “à vida prática”, votando, sendo votada, trabalhando (na zona urbana ou rural), tudo como signo de uma modernidade que ainda não chegava às academias nem ao convívio dos confrades literatos. Concordava Frieiro (1973FRIEIRO, Eduardo (1973). Recepção de Eduardo Frieiro à oração de posse de Maria José de Queiroz, em 26 de outubro de 1968. Revista da Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte. 81 p.) que tal fosse “injustificado preconceito” e “tradição que há muito não tem razão de ser”, conforme as linhas a seguir:

Mudaram os tempos. A cidade contemporânea gerou em todo o mundo uma mentalidade nova, que teve entre seus aspectos interessantes o de tornar possível o acesso da mulher à vida prática, nas lutas ásperas da existência, em livre competição com o homem. A mulher vota, no Brasil, do mesmo modo que em outros países adiantados. Vota e é votada para qualquer função eletiva. Trabalha no campo. Trabalha na cidade. Ocupa funções e entrega-se a tarefas até há pouco consideradas privativas do outro sexo. As Marias Candelárias enchem as repartições públicas. Mas a mulher, por injustificado preconceito, é excluída da honra de pertencer aos quadros dos mais importantes cenáculos de altas letras. Apego a uma tradição que há muito não tem razão de ser (Frieiro, 1973FRIEIRO, Eduardo (1973). Recepção de Eduardo Frieiro à oração de posse de Maria José de Queiroz, em 26 de outubro de 1968. Revista da Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte. 81 p., p. 71-72).

Nos excertos subsequentes, flagramos o reconhecimento de Henriqueta Lisboa como uma escritora de “excelsas qualidades”, elemento que faz que se quebre a “velha tradição”, num ato de “coragem” da AML. Uma página antes, no mesmo documento, Frieiro (1973FRIEIRO, Eduardo (1973). Recepção de Eduardo Frieiro à oração de posse de Maria José de Queiroz, em 26 de outubro de 1968. Revista da Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte. 81 p.) menciona uma publicação do jornalista Cícero Sandroni, no Correio da Manhã, sobre o projeto da deputada brasileira Lígia Doutel de Andrade, figura que merece melhor exame. Na ocasião, ela apresentava à Câmara dos Deputados um documento que propunha que “qualquer sociedade civil, associação ou fundação só poderá ser declarada de utilidade pública se apresentar estatutos sem qualquer discriminação de sexo, raça ou religião” (Frieiro, 1973FRIEIRO, Eduardo (1973). Recepção de Eduardo Frieiro à oração de posse de Maria José de Queiroz, em 26 de outubro de 1968. Revista da Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte. 81 p., p. 79). O projeto já estava aprovado na comissão de justiça da câmara federal e traria impactos financeiros às academias, especialmente à ABL, caso não houvesse mudanças nos estatutos. Subvenções, apoios e aportes estariam dificultados, senão vedados, no caso da manutenção ou persistência das restrições existentes dessas associações ou fundações. Antes ainda disso, ao que consta:

A Academia Mineira de Letras, não faz muito, teve a coragem de romper com o carrancismo da recusa de assento à mulher. Quebrou a velha tradição e trouxe para a nossa companhia Henriqueta Lisboa, grande poeta, figura de escritora justamente admirada em todo o país pelas excelsas qualidades de suas criações literárias (Frieiro, 1973FRIEIRO, Eduardo (1973). Recepção de Eduardo Frieiro à oração de posse de Maria José de Queiroz, em 26 de outubro de 1968. Revista da Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte. 81 p., p. 80).

O reconhecido intelectual mineiro trata ainda, em seu discurso de recepção a Maria José de Queiroz, dos prêmios e da edição de livros que as escritoras vinham alcançando em outros países, de maneira a tecer uma analogia com o caso da AML. Mencionando o Prêmio Nobel, até hoje o mais importante e visível galardão literário do mundo, ele diz: “Não contentes de competir com os homens na carreira das letras, as mulheres ainda lhes arrebatam, não raramente, os melhores prêmios literários” (Frieiro, 1973FRIEIRO, Eduardo (1973). Recepção de Eduardo Frieiro à oração de posse de Maria José de Queiroz, em 26 de outubro de 1968. Revista da Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte. 81 p., p. 75). De outro lado, antes de chegar aos prêmios, era necessário alcançar a publicação dos livros. Nesse sentido, afirma Frieiro (1973) sobre a escritora estadunidense Gertrude Stein:

Durante muito essa escritora só escreveu para si mesma, pois os seus manuscritos eram rejeitados invariavelmente pelos editores. Ela própria fazia, às vezes, imprimir alguns de seus livros e publicava em pequenas revistas literárias poemas que os moços e os letrados superfinos estimavam muito, e graças a esses poemas alcançou a celebridade (Frieiro, 1973FRIEIRO, Eduardo (1973). Recepção de Eduardo Frieiro à oração de posse de Maria José de Queiroz, em 26 de outubro de 1968. Revista da Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte. 81 p., p. 76-77)

Diante da exposição dessas facetas tão desafiadoras, senão impeditivas, podemos pensar que Frieiro (e outros confrades, eventualmente) admite os obstáculos impostos às mulheres, especialmente a elas, em relação ao reconhecimento intelectual. Vale dizer que tais obstáculos podem ser flagrados antes mesmo da publicação de um livro, isto é, no estorvamento e mesmo impedimento de sua escrita, tanto quanto depois, se o livro existe, em seu reconhecimento, em sua circulação e na sustentação de uma memória sobre ele e sua autora. É lapidar, no que tange a uma mentalidade com a qual queremos crer que Frieiro (1973FRIEIRO, Eduardo (1973). Recepção de Eduardo Frieiro à oração de posse de Maria José de Queiroz, em 26 de outubro de 1968. Revista da Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte. 81 p.) não concordava, o seguinte trecho de seu discurso (desagradável só de estar aí, em tom anedótico, na recepção de uma colega):

Já se foi o tempo em que certo maldizente de espírito dizia que a mulher que se entregava às letras cometia dois erros: aumentava o número de maus escritores e diminuía o número das mulheres. Epigramas como este, e mais ulcerantes que este, escorriam do bico da pena de satíricos e flageladores (Frieiro, 1973FRIEIRO, Eduardo (1973). Recepção de Eduardo Frieiro à oração de posse de Maria José de Queiroz, em 26 de outubro de 1968. Revista da Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte. 81 p., p. 72).

Mais adiante, o escritor mineiro passa a ponderar sobre o papel de escritores e escritoras na cena a ele contemporânea, embora guardando certa retaguarda às mulheres no campo literário. A figura da escritora habita o futuro, no que ele não errou, e talvez possamos dizer que ainda se passariam décadas até a percepção mais geral de que isso se efetivasse.

No excerto a seguir, é de se destacar a mudança de papel entre mulheres e homens, num sentido que poderíamos chamar de feminização (Vergès, 2021VERGÈS, Françoise (2021). Um feminismo decolonial. Trad. Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo. São Paulo: Ubu.). Ou seja, Frieiro (1973FRIEIRO, Eduardo (1973). Recepção de Eduardo Frieiro à oração de posse de Maria José de Queiroz, em 26 de outubro de 1968. Revista da Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte. 81 p.) vê uma cena em que a própria atividade literária, ao mudar de mãos, perde valor e passa a ser um território não disputado pelos varões. Bordar almofadas, fazer crochê e escrever, assim, em pé de igualdade, sendo atividades femininas, afastam os homens e os levam a atividades mais dignas e adiantadas.

É certo que os homens são ainda os melhores poetas, os melhores ensaístas, os melhores narradores. Mas também não se contesta que as escritoras tomam muito ao sério a sua arte, e não é improvável que os nomes literários mais importantes do futuro pertençam ao sexo fraco. Uma cousa já é certa: nos Estados Unidos e em outras partes onde se lê muito, as mulheres lêem mais que os homens. E o gosto de ler prende-se naturalmente ao gosto de escrever. […]

Quem nos diz que, num futuro próximo, não será deixada exclusivamente às mulheres toda atividade literária? Aos homens incumbiriam tarefas mais graves, mais árduas, mais construtivas. Se tal vier a suceder, o homem que nessa época porvindoura fizer literatura — poeta eternamente incompreendido — será considerado como um exemplar de humanidade retardada. Compor versos parecerá então ocupação tão pouco varonil como nos parece hoje o bordar almofadas ou fazer crochê (Frieiro, 1973FRIEIRO, Eduardo (1973). Recepção de Eduardo Frieiro à oração de posse de Maria José de Queiroz, em 26 de outubro de 1968. Revista da Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte. 81 p., p. 77-78)

A missão do escritor, naquela ocasião, era recepcionar uma escritora que tomava posse na destacada AML. Maria José de Queiroz era (e é), então, uma grande especialista em literatura latino-americana, tradutora, conhecedora da literatura de outras escritoras no Brasil e fora dele, especialmente hispânicas, “a mais jovem catedrática universitária do País” (Frieiro, 1973FRIEIRO, Eduardo (1973). Recepção de Eduardo Frieiro à oração de posse de Maria José de Queiroz, em 26 de outubro de 1968. Revista da Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte. 81 p., p. 60) (tinha menos de 30 anos). Frieiro (1973, p. 59) faz-nos um convite: “Imagine-se uma jovem professora, uma brasileirinha muito bonita, exprimindo-se fluentemente num espanhol irrepreensível”. Um delírio? Uma excentricidade? A fim de ajustá-la à cena, menciona um “celebrado grupo de poetas femininos, que se destacou na América Latina” (Frieiro, 1973FRIEIRO, Eduardo (1973). Recepção de Eduardo Frieiro à oração de posse de Maria José de Queiroz, em 26 de outubro de 1968. Revista da Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte. 81 p., p. 61), associando o tão propalado romantismo atribuído às mulheres a uma atitude inédita e ousada para a época. Como exemplo, cita a poeta Gilka Machado, detratada publicamente por escritores, estes mesmos já esquecidos, enquanto ela se mantém minimamente em circulação. O tom paternal, e mesmo superior, pode, em todo caso, ser flagrado no excerto a seguir, parte inicial da recepção de Frieiro (1973FRIEIRO, Eduardo (1973). Recepção de Eduardo Frieiro à oração de posse de Maria José de Queiroz, em 26 de outubro de 1968. Revista da Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte. 81 p., p. 57) a Queiroz:

Minha alegria é comparável à de um pai que viu a filha crescer, tornar-se adulta, amadurecer o siso, ornar o espírito, alargar o conhecimento e usar com brilho o talento com que a dotou generosamente a natureza, até alcançar a consagração que agora a vincula ao mais prestigioso cenáculo de escritores de Minas Gerais.

A despeito, portanto, de um desejo de modernidade que se traduzia também na aceitação das mulheres na cena literária (só países ditos atrasados resistiam a isso), ganhando prêmios e ocupando cadeiras em espaços de consagração como as academias, é possível flagrar um discurso ainda oscilante, por vezes contraditório, que desliza entre o abrir e o fechar portas para intelectuais mulheres que trabalhavam incansavelmente, a ponto de serem invisíveis apenas por uma explícita deliberação do outro (o outro masculino, mas também feminino, representado pela existência das mulheres de atitude conservadora, peça importante para o atravancamento social e intelectual de todas). Ainda assim, escreveu Maria José de Queiroz, em seu discurso de posse, lido antes da fala de Eduardo Frieiro: “Impossível reconhecer-me sem recorrer ao outro que me contempla e certifica da existência” (Queiroz, 1973QUEIROZ, Maria José de (1973). Cadeira nº 40. Oração de posse; recepção de Eduardo Frieiro, em 26 de outubro de 1968. Revista da Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte. 81 p., p. 13). Retórica de quem ocupa firmemente um espaço, polidez confraternal ou timidez de pioneira?

CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE ESCREVER E BORDAR

As mulheres que escreviam estavam, como hoje sabemos, em todos os lugares, em suas casas, tendo ou não quartos próprios. As mulheres que escreviam e publicavam existiam em bem menor número. As mulheres que escreviam, publicavam e eram socialmente reconhecidas, de maneira especial que chegavam a ocupar espaços institucionalizados e legitimadores, eram raridade. Ao que parece, dado que somos mais da metade da população mundial e brasileira, elas continuam raríssimas, embora o número de acadêmicas possa ter crescido ao longo das últimas seis ou sete décadas, desde quando foi objetivamente possível mudar regras que as tornassem ocupantes desses espaços.

Como as academias são agremiações, coletivos de escritores com determinado objetivo, sobretudo de distinção, é possível pensar nelas como parte e até pontas de redes intelectuais que, afinal, materializam ideários e discursos alinhados a seu tempo, para o sim e para o não, numa direção ou em outras, sendo impossível pensar nos escritores ali empossados apenas do ponto de vista individual, isto é, como autores de obras e biografias que se sustentam em méritos pessoais. Há toda uma rede de (im)possibilidades, (des)autorizações, (in)visibilizações e influências que os levam ali, ensejam suas eleições e seus sucessos — e as escritoras estão mais afetadas pelos prefixos entre parênteses. Esses caminhos podem ser pensados também nas histórias das editoras, dos livros (De Diego, 2020DE DIEGO, José Luís (2020). Projetos editoriais e redes intelectuais na América Latina. Trad. Ana Elisa Ribeiro e Sérgio Karam. Belo Horizonte: Moinhos/Contafios.) e, como aqui fizemos, das academias.

Para Eduardo Frieiro (1973FRIEIRO, Eduardo (1973). Recepção de Eduardo Frieiro à oração de posse de Maria José de Queiroz, em 26 de outubro de 1968. Revista da Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte. 81 p.), as escritoras premiadas e reconhecidas estavam no futuro. Ele dizia isso no início dos anos 1970, ao receber uma colega na AML. No entanto, para garantir a superioridade ou a exclusividade dos homens, o próprio valor da literatura sofreria mudanças que empurrariam os homens para outros espaços onde o poder lhes fosse reservado. Bordar almofadas, fazer crochê e escrever, afinal, não seriam atividades para homens.

Estamos na segunda década dos anos 2000 e podemos nos perguntar: esse futuro é agora? Finalmente chegou? Ao que parece, há muito mais mulheres escrevendo e publicando, ganhando os melhores prêmios e ocupando espaços de consagração, mas o ritmo das academias talvez continue lento, o que nos leva a considerar que talvez sejam das instituições mais conservadoras e refratárias à mudança social que as cerca4 4 Enquanto revisávamos este artigo, a escritora Marilene Felinto (2022) publicou no jornal Folha de S.Paulo um texto opinativo e veemente sobre o anacronismo da Academia Brasileira de Letras e a replicação da exclusão social. A discussão está na pauta do dia. . O caminho está trafegável, mas não tão livremente, ainda. As academias vão revendo-se e abrindo-se, mas a passos excessivamente cautelosos. Disse Maria José de Queiroz, em seu discurso de posse, citando Mário de Andrade: “Não há temas esgotados; há homens esgotados diante de certos temas” (Queiroz, 1973QUEIROZ, Maria José de (1973). Cadeira nº 40. Oração de posse; recepção de Eduardo Frieiro, em 26 de outubro de 1968. Revista da Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte. 81 p., p. 39). Nosso tema ainda está longe de se esgotar, assim como nossas possibilidades, imediatas e futuras.

Referências

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  • ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS (1973). Cadeira nº 40, oração de posse de Maria José de Queiroz; recepção de Eduardo Frieiro, em 26 de outubro de 1968. Revista da Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte.
  • ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS. Portal Academia Mineira de Letras. Disponível em: https://academiamineiradeletras.org.br/ Acesso em: 3 abr. 2023a.
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  • FELINTO, Marilene (2022). ABL, anacrônica e cheia de escritores medíocres, reproduz exclusão brasileira. Folha de S.Paulo Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marilene-felinto/2022/07/academia-sem-vergonha.shtml Acesso em: 3 abr. 2023.
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  • LISBOA, Henriqueta (1969). Poesia, minha profissão de fé datiloscrito.
  • OLIVEIRA, Alaíde Lisboa (1995). Posse na Academia Mineira de Letras Saudação de recepção proferida por Lacyr Schettino.
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  • VERGÈS, Françoise (2021). Um feminismo decolonial Trad. Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo. São Paulo: Ubu.
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    Ver informações em: Cronologia (2023CRONOLOGIA. Henriqueta Lisboa. Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/henriquetalisboa/midia/cronolo.htm. Acesso em: 3 abr. 2023.
    http://www.letras.ufmg.br/henriquetalisb...
    ). Neste trabalho, não vamos nos ater às biobibliografias das escritoras citadas, pondo foco no panorama do que acontece a elas em relação a essa instituição. Há no Brasil inúmeros trabalhos sobre Henriqueta Lisboa, Alaíde Lisboa e muitas outras acadêmicas.
  • 2
    Uma discussão urgente e premente diz respeito à ocupação das academias por pessoas trans, que vêm se destacando tanto no debate quanto na própria literatura, ocupando com vigor a cena literária nacional e mesmo mundial. Em Belo Horizonte, há uma Academia Transliterária (ver em Academia Transliterária de Letras, 2023). A complexificação do debate é evidente e ultrapassa questões de gênero de feição binarista. É interessante mencionar também que o primeiro escritor indígena a ocupar uma cadeira da AML é o renomado Ailton Krenak, que publica por um dos maiores grupos editoriais do país, a multinacional Companhia das Letras/Penguin. Krenak foi indicado e eleito em 2022 e tomou posse em 3 de março de 2023, com texto de recepção da escritora Maria Esther Maciel, a ser publicado na longeva revista da própria AML. Nenhuma escritora negra tomou posse de uma das cadeiras ainda.
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    Todos os documentos podem ser acessados graças à digitalização disponível no site da AML, especialmente os que estão publicados na centenária Revista da Academia Mineira de Letras. Agradecemos Agradecemos à bolsista de iniciação científica Camila Oliveira (Cefet-MG), por extensão ao programa de bolsas do Cefet-MG e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Também à equipe da AML, especialmente à bibliotecária Soraia Lara, a verificação fundamental dos dados, assim como à diretora Inês Rabelo e ao presidente da casa Rogério Faria Tavares, a imensa e sincera abertura ao diálogo, à pesquisa e aos ares da cidade. Também ao grupo de estudos Mulheres na Edição, com as colegas Renata Moreira e Maria do Rosário Alves Pereira. Especial agradecimento à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais, o financiamento do projeto APQ 0002118, e ao Cefet-MG, no apoio ao Acordo TC com a AML, tornando-a espaço institucional de pesquisa, formação e debate.
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    Enquanto revisávamos este artigo, a escritora Marilene Felinto (2022FELINTO, Marilene (2022). ABL, anacrônica e cheia de escritores medíocres, reproduz exclusão brasileira. Folha de S.Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marilene-felinto/2022/07/academia-sem-vergonha.shtml. Acesso em: 3 abr. 2023.
    https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ma...
    ) publicou no jornal Folha de S.Paulo um texto opinativo e veemente sobre o anacronismo da Academia Brasileira de Letras e a replicação da exclusão social. A discussão está na pauta do dia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    31 Jul 2022
  • Aceito
    13 Mar 2023
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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