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Benedito Antunes e Sérgio Vicente Motta (orgs.) - Machado de Assis e a crítica internacional. São Paulo: Ed. Unesp, 2009.

Antunes, Benedito; Motta, Sérgio Vicente. (orgs.) - Machado de Assis e a crítica internacional. São Paulo: Ed. Unesp, 2009.

A recepção à obra de Machado de Assis evidencia, de maneira emblemática, o potencial de sentido suscitado pelo texto literário. Como se depreende da pluralidade de teorias em vigor na contemporaneidade, esse potencial torna-se ainda mais veemente em virtude da ausência de uma referencialização teórica que assuma uma dimensão transcendental. Além de suscitar uma recepção crítica volumosa - que supera a marca dos 5.600 verbetes, “um número sem precedentes, quando se trata de autor brasileiro”, como Ubiratan Machado constata em Bibliografia machadiana 1959-2003 -, a obra do autor de Dom Casmurro engendra análises que, no seu conjunto, revelam uma multiplicidade hermenêutica.

Manifesta em leituras cujos referenciais teóricos alcançam da “Escola de Recife” à “Desconstrução”, essa difusão hermenêutica comporta grande diversidade tanto de aspectos e temas abordados, como de visões sobre um mesmo aspecto ou tema, e impõe, ainda, o confronto com perspectivas sociopolítica, histórica, cultural e teórica. Nesse processo, a escolha por determinada linha teórica pelo leitor contribui para a consolidação de uma referência para o texto. Essa referência gerencia um aspecto ambivalente, pois o diálogo entre teoria e texto pode restringir o sentido deste diante de inúmeras possibilidades e, ao mesmo tempo, pode proporcionar uma legibilidade capaz de renovar o sentido.

A complexidade desse quadro, em que sopesa um verdadeiro mosaico teórico, ganha novos matizes com a análise da recepção estrangeira à obra machadiana, como atesta o livro Machado de Assis e a crítica internacional - organizado por Benedito Antunes e Sérgio Vicente Motta , professores da Unesp -, que reúne trabalhos apresentados no Simpósio Internacional “Caminhos cruzados: Machado de Assis pela crítica mundial”, realizado em São Paulo no ano do centenário da morte do escritor. O livro contempla predominantemente ensaios de críticos estrangeiros como Amina di Munno, Élide Valarini Oliver, Jean-Michel Massa, Paul Dixon, Thomas Sträter, Todd Garth, entre outros. No âmbito da crítica nacional, Roberto Schwarz proferiu a palestra de abertura, que consta do livro, e Luiz Roncari foi o debatedor da mesa-redonda “Machado de Assis: predecessores e influências”, cujos comentários e questionamentos também foram reproduzidos.

Os organizadores esclarecem na apresentação ao livro que o simpósio pretendeu aprimorar o diálogo entre os especialistas estrangeiros e os nacionais, já que, “[a]o lado da produção mais conhecida [da crítica machadiana no exterior], porém, multiplicam-se trabalhos acadêmicos, dissertações, teses e artigos na maior parte dos países ocidentais, sugerindo que importantes abordagens estariam ocorrendo sem o correspondente diálogo com a crítica nacional”. Assim, o livro encerra o mérito de divulgar a crítica produzida fora do Brasil e, por consequência, fornece subsídios para se avaliar a relação entre a leitura da obra machadiana e as condições que a determinaram, relação que ilumina as diferenças entre a recepção brasileira e a recepção estrangeira.

Conforme Schwarz pondera em seu ensaio, “Martinha vs. Lucrecia”, o interesse da crítica mundial pela obra machadiana surge em meados do século passado, fato que cria uma “situação literária nova, com complicações ainda desconhecidas, sobre a qual vale a pena refletir”. Contudo, a representação da identidade nacional em Machado, tônica da recepção brasileira, não é esquadrinhada pela recepção internacional, uma vez que, como verificado por Schwarz, essa recepção não revela um apreço especial pelo Brasil e por nossa cultura.

Ao creditar à ousadia da forma narrativa a precisão com que o escritor dramatiza a tessitura social do país, Schwarz consagra Machado como um dos principais críticos da formação social brasileira. No ensaio que integra o livro ora resenhado, Schwarz compara uma importante linha da tradição ensaística brasileira, na qual está inserido, com a recepção estrangeira, e, assim, contorna “linhas de explicação contrárias”: “Para uma [a recepção estrangeira], o segredo do valor literário está na semelhança e na diferença, e sempre na proximidade, com os clássicos do cânon internacional, de cuja órbita o romancista faz parte. Para a outra, o segredo do valor está na fidelidade, digamos na fidelidade crítica e produtiva, às questões da literatura e da sociedade locais, que graças a Machado se beneficiaram de uma extraordinária desprovincianização”. Desse choque interpretativo sobressai uma espécie de querela entre o local e o universal, que distingue, portanto, duas explicações para o primor estético da obra machadiana.

A tensão entre o local e o universal perpassa também a crítica brasileira sobre Machado, que, em farta medida, perquiriu a inscrição da “cor local” nas narrativas do escritor. Entretanto, a preocupação com o contexto sociopolítico e histórico dessas narrativas não detém uma autoridade indubitável. Até mesmo porque essa contextualização aponta para referenciais distintos, pois, como é possível perceber no percurso traçado por tal crítica, há muitas divergências quanto à definição da identidade nacional na obra do autor. Esse percurso conta ainda com críticas que estão menos interessadas em verificar a presença da cultura brasileira na obra de Machado, ou seja, críticas que se desvinculam do critério nacionalístico.

Por ser uma crítica balizada pelo estudo de um autor que começa a ganhar certa notoriedade apenas a partir de meados do século passado, parece cedo para se propor uma caracterização mais completa da crítica internacional à obra machadiana. No entanto, os ensaios abarcados pelo livro Machado de Assis e a crítica internacional valem como uma amostra da crítica dedicada ao escritor no exterior. Conforme esses ensaios demonstram, trata-se de uma crítica que, via de regra, não discute a singularidade do lugar ocupado por Machado na literatura brasileira nem a representação da identidade nacional em sua obra. Ao preterir assuntos como esses, a recepção estrangeira contempla sobretudo estudos de cunho comparativo e estudos motivados por uma teoria, técnica literária e matéria filosófica específicas.

Apesar de não discutirem tais assuntos, os críticos não deixam de reconhecer que a realidade brasileira emerge das páginas machadianas. Mas a referência empírica suscita uma problematização bem aquém do que a acendida pela referencialidade advinda da biblioteca, instância com alcance universal que, nas palavras de K. David Jackson, é “povoad[a] de referências densas a literatura, história ou filosofia”. Em muitos dos ensaios, essa “biblioteca de referência”, na expressão de Jackson, é responsável por colocar o caráter nacional da obra machadiana em perspectiva.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Out 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Dec 2010
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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