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Leitura de Retrato calado, de Luiz Roberto Salinas Fortes: aproximações benjaminianas

A Reading of Retrato calado, by Luiz Roberto Salinas Fortes: Benjaminian Approaches

Lectura de Retrato calado, de Luiz Roberto Salinas Fortes: miradas benjaminianas

Resumo

O artigo propõe uma leitura da obra testemunhal Retrato calado, de Luiz Roberto Salinas Fortes, sobrevivente de prisões e torturas durante a ditadura militar brasileira. Recorre-se, como referenciais teóricos, a conceitos de Walter Benjamin relacionados ao tema da memória, bem como a textos de comentadores do campo de estudos da literatura de testemunho. A análise aborda tanto aspectos relacionados ao contexto histórico da obra, quanto questões relativas à elaboração formal do livro. Assim, pretende-se tratar das motivações políticas e subjetivas para a escrita, assim como das escolhas estéticas que orientam a narrativa, composta por relatos autobiográficos e oníricos, fragmentos de cartas e trechos de diários pessoais.

Palavras-chave:
ditadura brasileira; literatura de testemunho; Walter Benjamin

Abstract

This article proposes a reading of the testimonial book Retrato calado, by Luiz Roberto Salinas Fortes, a survivor of imprisonment and torture during the Brazilian military dictatorship. As theoretical references, we rely on Walter Benjamin's writings on the theme of memory, as well as texts by commentators on testimonial narratives. The analysis addresses both aspects related to the historical context of the book, as well as issues related to its formal structure. Thus, we intend to address the political and subjective motivations for its writing, as well as the aesthetic choices that guide the narrative, which is formed by autobiographical excerpts and reports of dreams, fragments of letters and excerpts from personal diaries.

Keywords:
Brazilian dictatorship; Testimonial narratives; Walter Benjamin

Resumen

El artículo propone una lectura de la obra testimonial Retrato calado, de Luiz Roberto Salinas Fortes, sobreviviente de prisiones y torturas durante la dictadura militar brasileña. Como referencias teóricas, utilizamos conceptos de Walter Benjamin relacionados con el tema de la memoria, así como textos de críticos de las narrativas testimoniales. El análisis aborda tanto los aspectos relacionados con el contexto histórico del libro, como los temas relacionados con su elaboración formal. Por lo tanto, tenemos la intención de abordar las motivaciones políticas y subjetivas de la escritura, así como las elecciones estéticas que guían la narración, que consiste en relatos autobiográficos y oníricos, fragmentos de cartas y extractos de diarios personales.

Palabras-clave:
dictadura brasileña; narrativas testimoniales; Walter Benjamin

Testemunho

O livro autobiográfico Retrato calado, do filósofo Luiz Roberto Salinas Fortes, publicado postumamente em 1988, trata das sucessivas prisões e sessões de tortura às quais o autor, perseguido pela Ditadura Militar brasileira, foi submetido durante a década de 1970, em São Paulo. O texto é composto tanto por relatos autobiográficos quanto por relatos oníricos; tanto por fragmentos de cartas enviadas a amigos quanto por trechos de diários pessoais.

A “literatura de testemunho”, tradição na qual poderíamos incluir o livro de Salinas, pode ser entendida como um conjunto de obras literárias cujos autores tenham vivenciado ou presenciado os chamadas “eventos ou experiências-limite”: internação em campos de concentração nazistas ou nos gulags soviéticos, prisão e perseguição política por governos ditatoriais, tortura etc. Partindo-se de aspectos relacionados ao gênero, no entanto, torna-se mais difícil delimitar o campo, uma vez que as obras da literatura de testemunho não se restringem a relatos autobiográficos ou a registros históricos dos eventos, mas podem compreender também cartas, diários, poemas ou romances. Nesse sentido, a crítica literária Catherine Coquio argumenta que o testemunho deve ser visto menos como um gênero do que como um “ato” literário que atravessa uma multiplicidade de gêneros (Coquio, 2015COQUIO, Catherine (2015). La littérature en suspens. Écritures de la Shoah: le témoignage et les œuvres. Paris: L’Arachnéen., p. 192-195).

Algumas dessas obras, em nome do estabelecimento de um relato fiel à realidade, prezam por um rigor exegético na reconstrução dos acontecimentos vividos, apesar do caráter em geral traumático dos eventos narrados; em outras obras, os conteúdos históricos e autobiográficos tendem a ser apresentados de maneira restrita, fragmentária ou figurada, muitas vezes em decorrência justamente da dificuldade de representação das experiências traumáticas ou do distanciamento temporal em relação aos acontecimentos. Sendo assim, é comum, na literatura de testemunho, a utilização de recursos estéticos para a leitura do passado, como observa Márcio Seligmann-Silva:

A memória da Shoah - e a literatura de testemunho de um modo geral - desconstrói a historiografia tradicional (e também os tradicionais gêneros literários) ao incorporar elementos antes reservados à “ficção”. A leitura estética do passado é necessária, pois opõe-se à “musealização” do ocorrido: ela está vinculada a uma modalidade da memória que quer manter o passado ativo no presente (Seligmann-Silva, 2003aSELIGMANN-SILVA, Márcio (2003a). Apresentação da questão: a literatura do trauma. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org.). História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas: Editora da Unicamp., p. 57).

Por isso, ainda de acordo com Seligmann-Silva (2000SELIGMANN-SILVA, Márcio (2000). A história como trauma. In: NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org.). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta.), é ingênuo pretender que se descarte por completo qualquer recurso à “figuração” nesse tipo de literatura. Tal posição se baseia numa crença equivocada “na possibilidade de uma distinção rigorosa entre discurso histórico e a representação da imaginação e, portanto, acredita numa língua pura, absoluta, direta - que se confundiria ela mesma com o evento” (Seligmann-Silva, 2000SELIGMANN-SILVA, Márcio (2000). A história como trauma. In: NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org.). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta., p. 89). O livro de Salinas, cuja narrativa é por vezes entrecortada por relatos oníricos, transcrições de cartas ou reminiscências autobiográficas, deve ser entendido justamente a partir da percepção da inexistência de uma “língua pura”, e da necessidade de uma busca perene por certa “forma de dizer”.

Na apresentação da obra, a amiga e colega de departamento Marilena Chaui conta que na ocasião da defesa de tese de Salinas, em 1974, pouco tempo depois de uma de suas prisões, o autor não foi capaz de responder oralmente às arguições da banca examinadora. Faltava-lhe a voz, como explica Chaui:

Quantas vezes ouvi Salinas tropeçar na frase iniciada, tateando palavras, perder o fio da meada e, não podendo alcançar meus ouvidos, tentar alcançar-me os olhos, lançando-me um olhar, misto de pasmo e agonia, fazendo-me adivinhar que a teia da tortura prendia-lhe a voz e voltava-lhe os olhos para cenas invisíveis aos meus. Quantas vezes pedi-lhe que me dissesse por que, escritor de clareza incomparável, falar se lhe tornara tão penoso (Chaui, 1988CHAUI, Marilena (1988). Apresentação. In: FORTES, Luiz Roberto Salinas. Retrato calado. São Paulo: Marco Zero ., p. VI-VII).

A escrita se tornara para Salinas, portanto, seu único recurso de expressão, como afirma o próprio autor em trecho de Retrato calado:

eles [os torturadores] quase tinham conseguido me quebrar, restando-me agora, como único recurso, como último antídoto e contraveneno, a metralhadora de escrever, o alinhamento das palavras, o arado sobre a folha branca, a inscrição como resposta. É aqui, neste exato momento, que se trava a luta. Cada traço inscrito é um tiro, é um golpe, il n’y a de bombe que le livre, cada linha é lança, gume, faca que penetra na carne dura do inimigo vário. Plural... Hoje, a paisagem é outra, mas as grades, ainda as trago comigo, plantadas duramente na memória. Busco reencontrar o prazer do texto na prometedora primavera parisiense que vai brilhando com um sol forte em cima das pessoas. A cidade inteira possuída por espírito novo, ensaiando timidamente os primeiros passos de um novo ritmo que só parece esperar pelo momento adequado de explodir (Fortes, 1988FORTES, Luiz Roberto Salinas (1998). Retrato calado. São Paulo: Marco Zero ., p. 102).

Nesse trecho, Salinas trata do trauma da prisão e da tortura, revelado por meio da imagem das “grades” ainda cravadas na memória. No entanto, o “espírito novo” que o autor diz perceber durante seu exílio em Paris parece haver fornecido a ele o “novo ritmo” de que necessitava para narrar suas experiências - apesar das “grades” ainda “plantadas duramente na memória”. Tal “espírito” revela-se, por exemplo, nas obras artísticas com que se deparou na França, muitas das quais inacessíveis no Brasil devido à censura imposta pelo regime ditatorial.

Numa das cartas que compõem o livro, datada de outubro de 1977, Salinas redige a um amigo brasileiro uma espécie de crítica de um filme que acabara de assistir em Paris. Trata-se de O fundo do ar é vermelho (O Fundo..., 1977O FUNDO do Ar é Vermelho (1977). Direção de Chris Marker. França: Iskra. Título original: Le fond de l’air est rouge. Documentário. (240 min.)) do documentarista francês Chris Marker.1 1 Chris Marker (1921-2012) foi um dos mais inovadores e influentes documentaristas do século XX. Conhecido como um mestre da montagem cinematográfica, foi um dos pioneiros do cinéma vérité e do filme-ensaio. Na década de 1970, colaborou com importantes documentaristas latino-americanos, como Patricio Guzmán, realizador de La batalla de Chile (1975). Marker dirigiu, também, dois documentários sobre a ditadura brasileira, ainda pouco conhecidos no país: On vous parle du Brésil: tortures (1969) e On vous parle du Brésil: Carlos Marighela (1970) (Suppia e Milward, 2007). Salinas se impressionara muito com as inovações estéticas e narrativas do documentário e lamentava ao amigo a possibilidade de que o filme jamais fosse exibido no Brasil.2 2 A previsão de Salinas se sustentou por muito tempo: o filme só seria oficialmente lançado no Brasil quase três décadas depois, no dia 28 de setembro de 2005, em sessão do Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro. Para Salinas, tratava-se de “cinema ‘histórico’, no sentido mais forte possível do termo. E nunca o gênero histórico terá, talvez, conseguido tamanha virulência” (Fortes, 1988FORTES, Luiz Roberto Salinas (1998). Retrato calado. São Paulo: Marco Zero ., p. 91). O autor elogia a forma de narração do documentário, que se sustenta “sem a mediação-deformação do narrador-historiador” (Fortes, 1988FORTES, Luiz Roberto Salinas (1998). Retrato calado. São Paulo: Marco Zero ., p. 91), uma vez que não há um narrador único, “onisciente”, como nos documentários históricos tradicionais: a narração é “polifônica”; Salinas argumenta que se trata de um filme “militante também, no sentido em que, de repente, o espectador sente de maneira intensa o trabalho do cinegrafista e de cada um dos participantes na elaboração do espetáculo” (Fortes, 1988FORTES, Luiz Roberto Salinas (1998). Retrato calado. São Paulo: Marco Zero ., p. 91). Para Salinas, o filme “histórico-militante” se distancia de um simples documento histórico porque apresenta múltiplos patamares expressivos, retratados por meio do “confronto permanente do texto falado por protagonistas diferentes e o jogo incessante de imagens que se superpõem, que se neutralizam num comentário em que é possível distinguir vários patamares expressivos” (Fortes, 1988FORTES, Luiz Roberto Salinas (1998). Retrato calado. São Paulo: Marco Zero ., p. 92). O autor destaca como trunfo narrativo do documentário o fato de que a sucessão de imagens de “grandes acontecimentos” é interrompida pelo “debate vivo” entre os personagens (Fortes, 1988FORTES, Luiz Roberto Salinas (1998). Retrato calado. São Paulo: Marco Zero ., p. 93). Aqui, é interessante notar que Antonio Candido, que assina o prefácio de Retrato calado, tem uma percepção semelhante em relação à perspectiva do tempo histórico adotada por Salinas no livro: para o crítico, o texto é certeiro justamente “porque nele a dimensão do indivíduo e o panorama do momento se fundem graças ao poder da escrita” (Candido, 1988CANDIDO, Antonio (1998). Prefácio. In: FORTES, Luiz Roberto Salinas. Retrato calado. São Paulo: Marco Zero., p. XIII).

Salinas parece ter sido capaz, assim como Marker, de opor-se à percepção da história como sucessão homogênea, lógica e linear de grandes acontecimentos. Os cortes narrativos, característicos da obra do cineasta, também são recorrentes no livro de Salinas e são elementos centrais na construção da narrativa, como argumenta a socióloga Irene Cardoso num comentário a Retrato calado:

Como reconstruir o tempo, como interromper o tempo da repetição, delírio do tempo? Como inscrever as experiências que não têm registro, que “teórica e oficialmente nunca existiram” e “residem no território da ficção”? Entrecortada pelas questões, a narrativa vai se construindo a partir mesmo dos cortes - que outro modo? - da vida censurada, do corte bem fundo, bem no fundo (Cardoso, 1998CARDOSO, Irene (1998). Os silêncios da narrativa. Tempo Social, São Paulo, n. 1. v. 10, p. 9-17. Disponível em: Disponível em: http://www.revistas.usp.br/ts/article/view/86697/89718 . Acesso em: 10 dez. 2019.
http://www.revistas.usp.br/ts/article/vi...
, p. 14).

O testemunho de Salinas é elaborado na medida em que o autor é capaz de assimilar outras temporalidades a partir do contato com novas experiências artísticas - como as do cinema de Marker -, de modo a incorporar aquelas percepções particulares do tempo histórico à narrativa de sua própria experiência de vida.

Rememoração

Num dos fragmentos do livro Passagens de Walter Benjamin, há a transcrição de um trecho de carta de Max Horkheimer, datada de 16 de março de 1937. Nessa carta, Horkheimer comenta a percepção de Benjamin de que o passado seria uma experiência “inacabada”:

A afirmação do inacabamento é idealista se nela não está contido o acabamento. A injustiça passada aconteceu e está consumada, acabada. As vítimas de assassinato foram assassinadas de fato... Se levarmos o inacabamento a sério, teremos que acreditar no Juízo Final (Benjamin, 2006BENJAMIN, Walter (2006). Passagens. Tradução de Irene Aron e Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: UFMG; Imprensa Oficial de São Paulo., p. 513).

Horkheimer visa, em linhas gerais, uma crítica a certo conteúdo teológico presente na posição de Benjamin. Ainda naquele fragmento, o autor de Passagens transcreve a réplica enviada a seu colega: o recurso à teologia - cuja presença Benjamin reconhece - justificar-se-ia pelo fato de que:

a história não é apenas uma ciência, mas igualmente uma forma de rememoração. O que a ciência “estabeleceu”, pode ser modificado pela rememoração. Esta pode transformar o inacabado (a felicidade) em algo acabado, e o acabado (o sofrimento) em algo inacabado. Isto é teologia; na rememoração, porém, fazemos uma experiência que nos proíbe de conceber a história como fundamentalmente ateológica, embora tampouco nos seja permitido tentar escrevê-la com conceitos imediatamente teológicos (Benjamin, 2006BENJAMIN, Walter (2006). Passagens. Tradução de Irene Aron e Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: UFMG; Imprensa Oficial de São Paulo., p. 513).

No fragmento citado, de 1937, Benjamin se referia à possibilidade de se “modificar”, por meio da rememoração (Eingedenken, no original alemão), o que a historiografia tradicional3 3 Benjamin tinha como alvo, em Teses, o Historicismo alemão, para o qual, como explica Seligmann-Silva, “a consciência temporal (seja ela do passado, do presente ou do futuro) deve ser sempre histórica, descartando assim a memória individual. Contra o Historicismo, Benjamin afirmou a força do trabalho da memória” (Seligmann-Silva, 2003b, p. 389). De acordo com Georg Otte, o Historicismo, fruto do Positivismo do século XIX, “peca justamente pelo seu positivismo, ou seja, pelo fato de não levar em conta a posição do historiador enquanto sujeito de um determinado presente e de não considerar este presente como parte integrante da história”, enquanto a rememoração “possibilita o encontro entre o sujeito e o objeto da história” (Otte, 1996, p. 213). Ao longo de Teses, fica também evidente o distanciamento de Benjamin tanto em relação ao “evolucionismo” socialdemocrata quanto ao “etapismo” do marxismo de orientação soviética (Löwy, 2005, p. 33). tende a decretar como fato imutável. Três anos depois, na sétima das Teses sobre o conceito de história, seu último texto, o filósofo afirmaria:

Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo (Benjamin, 1994BENJAMIN, Walter (1994). Sobre o conceito da história. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense., p. 225).

Assim como a exigência de se modificar a história no fragmento de Passagens, a tarefa de “escovar a história a contrapelo” objetiva aqui um posicionamento radical: um contraponto à historiografia enquanto relato cientificamente imposto e imutável. Assim, à luz do último texto de Benjamin, poderíamos conceber a rememoração como instrumento para a elaboração do que o filósofo consideraria uma perspectiva materialista adequada, aquela que se afirmaria como expressão da “tradição dos oprimidos” à qual Benjamin se refere na oitava tese:

A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; com isso, nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo (Benjamin, 1994BENJAMIN, Walter (1994). Sobre o conceito da história. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense., p. 226).

Tendo em vista a ação política objetivada por Benjamin (a luta contra o fascismo), seria possível, a partir da reabilitação da tradição dos oprimidos, construir um conceito de história correspondente à conjuntura política vigente naquele contexto (o “estado de exceção” tornado regra geral pelo nazismo); construir, portanto, um conceito de história que tornasse evidente a urgência de uma ação política radical (a criação de um “verdadeiro estado de exceção”) contra a barbárie instaurada.

O historiado italiano Enzo Traverso, atento leitor de Benjamin, chama a atenção para a percepção de que, na atualidade, “tudo se passa como se a lembrança das vítimas não pudesse coexistir com aquela de seus combates, de suas conquistas e de suas derrotas” (Traverso, 2011TRAVERSO, Enzo (2011). L’Histoire comme champ de bataille. Paris: La Découverte., p. 265). Em Benjamin, o exercício da rememoração objetiva, justamente, cumpre essa dupla tarefa: efetivar o dever de memória em relação às vítimas da história e, ao mesmo tempo, reabilitar os vencidos em sua condição de sujeitos históricos, de modo que as possibilidades abertas pelas lutas do passado reapareçam como inspiração para uma nova aposta na transformação do presente.

A literatura, assim como a teologia em certa medida, apresenta-nos a possibilidade do recurso à representação da imaginação, o que pode justamente manter “aberto” o passado cujo acabamento a historiografia tradicional pretende decretar. Assim, a literatura de testemunho, em especial, demonstra que não se faz necessário crer no Juízo Final - como afirmou Horkheimer na carta à Benjamin - para que se cumpra a tarefa da rememoração. Em contraponto à lógica hegemônica do esquecimento, relatos como o de Salinas e filmes como o de Marker afirmam a tradição dos oprimidos através da inauguração de novas perspectivas críticas para a elaboração do passado.

Apesar do tom extremamente crítico adotado por Marker em relação à condição da esquerda política no final da década de 1970, Salinas não percebia em O fundo do ar é vermelho um caráter pessimista: “a lição principal é bastante lúcida e nos encoraja, apesar de tudo, apesar do acúmulo de derrotas sucessivas” (Fortes, 1988FORTES, Luiz Roberto Salinas (1998). Retrato calado. São Paulo: Marco Zero ., p. 92-93). A percepção de Salinas sobre a obra de Marker remete-nos, neste contexto, à figura do anjo da história, da nona das Teses de Walter Benjamin:

Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso (Benjamin, 1994BENJAMIN, Walter (1994). Sobre o conceito da história. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense., p. 226).

Poderíamos afirmar que, ao voltar-se para as ruínas do passado, o anjo de Benjamin talvez esteja justamente ocupando-se da tarefa da rememoração: a de relembrar as lutas do passado, e de reabilitá-las como inspiração para a transformação do presente. Salinas parece perceber na perspectiva histórica adotada por Marker em sua obra cinematográfica esse mesmo esforço, no qual se inspira para a escrita de seu próprio testemunho.

Imagem dialética

As ressonâncias benjaminianas na obra de Chris Marker - e, de certa forma, por extensão no livro de Salinas - não devem ser percebidas como simples casualidades. Em 1999, numa entrevista ao jornal Libération, o documentarista comentou o seguinte sobre um trabalho intitulado Immemory, que acabara de terminar:

[Meu trabalho é] de alguma forma como o projeto que Walter Benjamin empreendeu em seu livro Passagens: procura ater-se aos detalhes, às coisas ínfimas que os historiadores costumam desdenhar, e chegar, através de seu entrelaçamento, ao retrato de uma era (Marker, 1999 apudFairfax, 2012FAIRFAX, Daniel (2012). Montage as resonance: Chris Marker and the dialectical image. Senses of Cinema, n. 64. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/2vDUZHc Acesso em: 10 dez. 2019.
https://bit.ly/2vDUZHc...
).

Essa leitura da obra de Benjamin parece desdobrar-se nos filmes do cineasta francês, como argumenta Fairfax (2012FAIRFAX, Daniel (2012). Montage as resonance: Chris Marker and the dialectical image. Senses of Cinema, n. 64. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/2vDUZHc Acesso em: 10 dez. 2019.
https://bit.ly/2vDUZHc...
), na medida em que suas obras estabelecem algo como uma elaboração estética do conceito de “imagem dialética”, tal como desenvolvido por Benjamin no livro Passagens:

Não é que o passado lança sua luz sobre o presente ou que o presente lança sua luz sobre o passado; mas a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação. Em outras palavras: a imagem é a dialética na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal e contínua, a relação do ocorrido com o agora é dialética - não é uma progressão, e sim uma imagem, que salta. - Somente as imagens dialéticas são imagens autênticas (isto é: não-arcaicas), e o lugar onde as encontramos é a linguagem (Benjamin, 2006BENJAMIN, Walter (2006). Passagens. Tradução de Irene Aron e Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: UFMG; Imprensa Oficial de São Paulo., p. 504).

Obras como a de Marker, comprometidas com a crítica materialista da realidade e capazes de explorar as potencialidades narrativas e estéticas próprias do cinema, são um meio privilegiado para a criação de imagens dialéticas tais como as imaginou Benjamin, num esforço de construção de uma adequada “apresentação materialista da história” (Benjamin, 2006BENJAMIN, Walter (2006). Passagens. Tradução de Irene Aron e Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: UFMG; Imprensa Oficial de São Paulo., p. 518). Por sua vez, por meio de uma espécie de “montagem” análoga à técnica cinematográfica de Marker,4 4 No prefácio a uma versão do script de O fundo do ar é vermelho, publicada na França em 1978, Chris Marker afirma que seu principal objetivo na montagem do filme foi “devolver [...] a polifonia à história”, em contraponto à “monofonia triunfante” (Marker, 1978 apud Fairfax, 2012). o texto de Salinas é capaz de interromper o fluxo do “tempo vazio e homogêneo” - expressão utilizada por Benjamin, em Teses, para caracterizar a temporalidade da historiografia tradicional (Benjamin, 1994BENJAMIN, Walter (1994). Sobre o conceito da história. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense., p. 229); contrapondo-se à “ficção oficial” do regime ditatorial, a obra do escritor brasileiro estabelece uma “configuração saturada de tensões” (Benjamin, 1994BENJAMIN, Walter (1994). Sobre o conceito da história. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense., p. 231): configura-se uma imagem dialética composta por relatos autobiográficos, cartas e trechos de diários; uma composição de fragmentos que narram prisões, sessões de tortura e experiências de luta.

A narrativa de Salinas confronta, como pretendia Benjamin por meio de sua concepção da história, a apologética do progresso - ou aquela do “milagre econômico brasileiro” - alardeada pelo regime militar:

A passagem pelos subterrâneos do regime, o contato com o avesso do milagre eram, nestas condições, a ocasião para um aprendizado tão importante quanto inútil, pelo menos durante muitos anos. Mas, de qualquer maneira, experiência decisiva no interior da selvagem fenomenologia. Guinada. Depois dela, depois de termos ingressado no espaço da ficção oficial, passávamos para outra figura do espírito, para o delírio em cujos breus parecem comprometidas as fronteiras entre o imaginário e o real. Tudo teria sido então pura ficção? Tudo ficará por isso mesmo? A dor que continua doendo até hoje e que vai acabar por me matar se irrealiza, transmuda-se em simples “ocorrência” equívoca, suscetível a uma infinidade de interpretações, de versões das mais arbitrárias, embora a dor que vai me matar continue doendo, bem presente no meu corpo, ferida aberta latejando na memória. Daí a necessidade do registro rigoroso da experiência, da sua descrição, da constituição do material fenomenológico, da sua transcrição literária (Fortes, 1988FORTES, Luiz Roberto Salinas (1998). Retrato calado. São Paulo: Marco Zero ., p. 29).

Salinas foi capaz de encontrar, por meio da tarefa da rememoração empreendida em sua narrativa, a voz que tantas vezes lhe faltara: voz cortante, “faca que penetra na carne dura do inimigo” (Fortes, 1988FORTES, Luiz Roberto Salinas (1998). Retrato calado. São Paulo: Marco Zero ., p. 102).

Referências

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  • TRAVERSO, Enzo (2011). L’Histoire comme champ de bataille. Paris: La Découverte.
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    Chris Marker (1921-2012) foi um dos mais inovadores e influentes documentaristas do século XX. Conhecido como um mestre da montagem cinematográfica, foi um dos pioneiros do cinéma vérité e do filme-ensaio. Na década de 1970, colaborou com importantes documentaristas latino-americanos, como Patricio Guzmán, realizador de La batalla de Chile (1975). Marker dirigiu, também, dois documentários sobre a ditadura brasileira, ainda pouco conhecidos no país: On vous parle du Brésil: tortures (1969) e On vous parle du Brésil: Carlos Marighela (1970) (Suppia e Milward, 2007SUPPIA, Alfredo; MILWARD, Julia (2012). Chris Marker: o discreto artesão do tempo e da memória foi também um gênio da humildade. Ciência e cultura, São Paulo, v. 64, n. 4, p. 58-60, out-dez. Disponível em: Disponível em: http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v64n4/a22v64n4.pdf . Acesso em: 10 dez. 2019.
    http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v6...
    ).
  • 2
    A previsão de Salinas se sustentou por muito tempo: o filme só seria oficialmente lançado no Brasil quase três décadas depois, no dia 28 de setembro de 2005, em sessão do Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro.
  • 3
    Benjamin tinha como alvo, em Teses, o Historicismo alemão, para o qual, como explica Seligmann-Silva, “a consciência temporal (seja ela do passado, do presente ou do futuro) deve ser sempre histórica, descartando assim a memória individual. Contra o Historicismo, Benjamin afirmou a força do trabalho da memória” (Seligmann-Silva, 2003bSELIGMANN-SILVA, Márcio (2003b). Catástrofe, história e memória em Walter Benjamin e Chris Marker: a escritura da memória. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas: Editora da Unicamp ., p. 389). De acordo com Georg Otte, o Historicismo, fruto do Positivismo do século XIX, “peca justamente pelo seu positivismo, ou seja, pelo fato de não levar em conta a posição do historiador enquanto sujeito de um determinado presente e de não considerar este presente como parte integrante da história”, enquanto a rememoração “possibilita o encontro entre o sujeito e o objeto da história” (Otte, 1996OTTE, Georg (1996). Rememoração e citação em Walter Benjamin. Revista de Estudos de Literatura, Belo Horizonte, v. 4, p. 211-224. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3dWDnrw . Acesso em: 10 dez. 2019.
    https://bit.ly/3dWDnrw...
    , p. 213). Ao longo de Teses, fica também evidente o distanciamento de Benjamin tanto em relação ao “evolucionismo” socialdemocrata quanto ao “etapismo” do marxismo de orientação soviética (Löwy, 2005LÖWY, Michael (2005). Walter Benjamin: aviso de incêndio - Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo., p. 33).
  • 4
    No prefácio a uma versão do script de O fundo do ar é vermelho, publicada na França em 1978, Chris Marker afirma que seu principal objetivo na montagem do filme foi “devolver [...] a polifonia à história”, em contraponto à “monofonia triunfante” (Marker, 1978 apud Fairfax, 2012FAIRFAX, Daniel (2012). Montage as resonance: Chris Marker and the dialectical image. Senses of Cinema, n. 64. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/2vDUZHc Acesso em: 10 dez. 2019.
    https://bit.ly/2vDUZHc...
    ).
  • 5
    Organizadoras: Rita Olivieri-Godet e Mireille Garcia
  • 6
    Editora de Seção: Paula Dutra

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    30 Jul 2019
  • Aceito
    06 Fev 2020
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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