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Apresentação

EM FOCO: PESQUISA SOCIOLÓGICA E METODOLOGIA QUALITATIVA

Apresentação

Cláudia Pereira Vianna; Maria da Graça Jacintho Setton

O ingresso em um programa de pós-graduação é vivido pela grande maioria de alunas e alunos como um ritual de passagem. No sentido utilizado por Van Gennep,1 1 . Arnold Van Gennep, Les rites de passage. Paris: Mouton, 1968. passar por um processo seletivo, em um conceituado locus de produção de conhecimento em educação, significa adentrar quase magicamente em um espaço privilegiado. No entanto, sabemos que a tensão é constante, pois o sentimento imediato de pertencimento convive com contínuas cobranças ao longo do período de formação.

Desse modo, se a experiência em um programa de pós-graduação caracteriza-se por um lado pela riqueza de informações, crescimento e amadurecimento intelectuais; por outro, vem acompanhada também de inseguranças e angústias. É um momento da vida que demanda muita dedicação e disciplina. É com sacrifícios que essa trajetória é vencida e cabe a nós, docentes, recepcionar esses ingressantes da melhor maneira possível, oferecendo atividades e incentivos para um aperfeiçoamento acadêmico mais proveitoso.

A Linha de Pesquisa em Sociologia da Educação, do programa de Pós-Graduação em Educação da FEUSP, vem tentando fazer isso. Criada há apenas dois anos, tem como foco central a perspectiva sociológica no acolhimento de projetos, seguindo a tradição da Faculdade de Educação da USP de oferecer uma formação especializada em diferentes áreas como a Filosofia, a História e a Psicologia da Educação.

Desde seu nascimento, a área firmou o compromisso de promover uma gama intensa de oportunidades de formação. Ora oferecendo cursos teóricos, ora organizando grupos de estudos e pesquisa, tem a intenção de propiciar encontros com profissionais renomados na pesquisa em ciências sociais, sem perder, no entanto, o foco da nossa área principal de interesse: a educação.

Não obstante, seria possível ensinar nosso ofício unicamente pela transmissão oral, ou como se diz, pela teoria?2 2 . Fazemos nossas as inquietações de Patrick Champagne e colaboradores (P. Champagne et.al. Iniciação à prática sociológica. Petrópolis: Vozes, 1996). Como deveria ser a tarefa de ensinar sociologia, seus métodos e resultados, de forma a favorecer a aquisição real da prática de pesquisa sociológica?3 3 . Cremos que na atual conjuntura de nossos Programas de Pós-Graduação, com o estabelecimento de um tempo muito curto para o amadurecimento intelectual, estas preocupações tornam-se ainda mais relevantes. Segundo os autores, somente o fazer propicia a construção da prática de pesquisa. A prática efetiva e as reflexões dela decorrentes possibilitam formar um sociólogo. Não discordando, mas complementando esta observação, cremos que é preciso criar também um ambiente propício ao aprendizado de iniciantes e também à continuidade do aprimoramento de pesquisadoras e pesquisadores ao longo de suas atividades na área da Educação.

É nesse contexto que os artigos e a entrevista, ora publicados nesta seção, ganham relevo, pois atendem a um projeto pedagógico de formação idealizado pela área de Sociologia da Educação e que tem como decorrência a ampliação do diálogo com temáticas e contribuições de pesquisadores já tarimbados, responsáveis por essa formação. Produto de encontros e discussões realizados no seminário Questões Teórico-Metodológicas da Pesquisa Qualitativa em Educação, realizado ao longo do segundo semestre de 2003, estas reflexões buscam contribuir para a divulgação de nossas preocupações pedagógicas. Objetivamos, assim, possibilitar a ampliação de um espaço diversificado de reflexões e divulgação de pesquisas que favoreça o debate sobre a pesquisa em educação.

Sabemos que o material que ora está sendo disponibilizado vem somar-se a uma série de outras publicações que se debruçam sobre a problemática teórico-metodológica de investigação. No entanto, os textos aqui apresentados registram um esforço concentrado da nossa área para estimular um espaço de formação contínua. Nosso interesseéoferecer elementos para que estudantes de pós-graduação possam construir um habitus, um modus operandi para a pesquisa. Ou seja, um senso prático e crítico, uma responsabilidade profissional acompanhada de engajamento e uma real aproximação do verdadeiro artesanato que o trabalho de investigação sociológica implica a partir do diálogo com pesquisadoras e pesquisadores que aqui apresentam suas trajetórias e reflexões.

Embora as reflexões ora publicadas tenham sido resultado do empenho em oferecer um material propício a investigadoras e investigadores em formação, sabemos também o quanto essas discussões são relevantes e pertinentes para um espectro amplo e variado de pesquisadores na área das Ciências Humanas, especialmente da área da Educação. Estimulando o debate e despertando inquietações, as contribuições dos autores trazem um importante ponto de referência para o amadurecimento e a consolidação do estatuto científico das pesquisas que se utilizam do método qualitativo, que, como veremos, é o ponto central dos artigos desta seção.

A tradição reflexiva da sociologia desde Weber nos apóia quando afirmamos que só a partir de uma constante vigilância epistemológica é possível produzir boas pesquisas e conseqüentemente uma boa produção do conhecimento. Neste sentido, com um formato variado, esta seção EM FOCO apresenta duas produções bastante distintas. Primeiramente, o artigo da professora Heloisa Martins é uma estimulante narrativa sobre a arte de costurar questões práticas e teóricas na investigação sociológica. Familiarizando-nos com a produção teórico-metodológica norte-americana e européia, revela como é possível fazer uma boa reflexão sociológica a partir da leitura e apreciação atenta dos clássicos. A autora defende o uso das metodologias qualitativas e dialoga com seus críticos, adentrando temas sensíveis como os aspectos éticos relativos à polêmica entre objetividade e cientificidade e ao distanciamento entre sujeito e objeto, peculiares a este tipo de metodologia. Apresentando uma ampla literatura sobre o tema, faz uso de referencial teórico obrigatório e enfrenta questões problemáticas sobre a difícil tarefa de formar profissionais competentes. Trata-se de uma excelente contribuição para as discussões sobre o modus operandi das investigações científicas na área da Sociologia e ciências afins.

O artigo "Comprender y hacerse comprender: como reforzar la legitimidad interna y externa de los estudios cualitativos", de Agnès van Zanten, põe em discussão um tema pouco abordado pelos novos investigadores em processo de formação, ou seja, a ilusão da facilidade dos procedimentos das pesquisas de caráter qualitativo.

Na primeira parte do texto, a autora seleciona algumas estratégias comuns do trabalho de investigação qualitativa (entrevista, observação) e problematiza o fazer teórico-metodológico do investigador propondo uma reflexão sobre suas escolhas. Na linha bastante conhecida dos estudos clássicos sobre o tema, defende uma estreita e necessária vigilância epistemológica na prática de pesquisa. Na segunda parte, ao dialogar com críticos das pesquisas qualitativas, a autora suscita uma discussão ainda mais interessante ao defender explicitamente o estatuto científico dos resultados dessas pesquisas. Como bem aponta Van Zanten, o que vemos com freqüência é a utilização das idéias propostas pelos realizadores e não propriamente os resultados das pesquisas desenvolvidas por eles. Para ela, é necessário repensar a credibilidade das interpretações apresentadas e o grau de generalização possível dos resultados das pesquisas de caráter mais circunstanciado para que possamos transformar a legitimidade externa, geralmente vista como ideológica, em uma legitimidade científica. Neste caso específico, a autora reforça o argumento da arte de explicitar a dialética entre a singularidade de uma situação e suas relações com a estrutura social.

A entrevista de Bernard Lahire, embora não trate especificamente de questões de método, possibilita-nos um conhecimento informal sobre pesquisa em educação, especialmente sobre aquelas desenvolvidas por este estudioso, hoje referência nas investigações sobre Educação nos Meios Populares. Ao abranger temas e tópicos de sua obra e da sociologia contemporânea, Lahire nos ajuda a ter acesso a uma visão particular sobre a produção de nossa área. Comentando sobre sua formação e sobre os temas de pesquisa por ele escolhidos, apresenta-nos um ponto de vista sobre autores clássicos e contemporâneos da sociologia da educação. Atualmente envolvido com a reflexão sobre o lazer e o consumo cultural, ele demonstra ser um legítimo representante da sociologia francesa da atualidade e um discípulo de Pierre Bourdieu, ao problematizar temas centrais da obra deste autor como o conceito de habitus.

Entendemos, portanto, que a entrevista e os demais artigos constituem-se em excelente fonte de diálogo com questões teórico-metodológicas trazidas por pesquisadoras e pesquisadores talentosos e não poderíamos deixar de agradecer à comissão editorial da revista EDUCAÇÃO E PESQUISA por ter aberto espaço para a publicação deste material, bem como aos colegas da área, importantes co-responsáveis por estas iniciativas.

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    . Arnold Van Gennep,
    Les rites de passage. Paris: Mouton, 1968.
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    . Fazemos nossas as inquietações de Patrick Champagne e colaboradores (P. Champagne et.al.
    Iniciação à prática sociológica. Petrópolis: Vozes, 1996).
  • 3
    . Cremos que na atual conjuntura de nossos Programas de Pós-Graduação, com o estabelecimento de um tempo muito curto para o amadurecimento intelectual, estas preocupações tornam-se ainda mais relevantes.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Out 2004
    • Data do Fascículo
      Ago 2004
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