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AS LINHAS QUE TECEM O APRENDER E O ENSINAR EM CIÊNCIAS

THE LINES THAT WEAVE LEARNING AND TEACHING SCIENCES

LOS HILOS QUE TEJEN EL APRENDER Y EL ENSEÑAR EN LAS CIENCIAS

RESUMO:

Este ensaio busca pensar a aprendizagem, no ensino de ciências. Esse campo, que pouco se disponibiliza a outras leituras, é influenciado por um ensino que se envolveu nas linhas de um pensamento nascido com a ciência moderna, chamado, aqui, ciência de Estado ou régia, que o conduzem por meio do método cientificista e torna a aprendizagem recognitiva. Contudo, algo se desprende do recognitivo e da ciência de Estado e, envolvido com outro tipo de ciência, aqui chamada de Nômade, faz o pensamento experimentar as multiplicidades, singularidades no processo de aprender. Diante disso, este ensaio tenta dar destaque a um modo de aprendizagem que é percorrida por uma linha ziguezagueante, que fomenta uma estranha variação no ensinar e no aprender. Essa linha, por sua natureza movente produz um campo problemático disparado pelos acontecimentos, encontros, signos que sinalizam uma mobilidade sensitiva, produtora de afetos no ensino de ciências.

Palavras-chave:
Aprender; Educação em Ciências; Deleuze; Ciência Régia; Ciência Nômade.

ABSTRACT:

This essay aims to think about learning in science teaching. This field, often closed to different readings, is influenced by teaching methods developed in lines of thinking born with modern science, that we call here State or Imperial Science. It leads science teaching through scientific methods and produces recognition learning. However, something evolves from the recognizable and Imperial Science and, involved with another type of science that we call here Nomad Science, makes the thought experience multiplicities, singularities, in the learning process. With this process in mind, this essay attempts to highlight a learning mode that is traversed by a zigzag line, which fosters a strange variation in teaching and learning. This line, by its moving nature, produces a problematic field triggered by events, encounters, signs that signal a sensitive mobility, producer of affections in Science teaching.

Keywords:
Learning; Science Education; Deleuze; Imperial Science; Nomadic Science.

RESUMEN:

Este ensayo tiene el objetivo de pensar el aprendizaje en la enseñanza de las ciencias. Este campo, que poco se dispone a otras lecturas, es influenciado por una enseñanza que se desarrolló bajo las líneas de pensamiento que nasció con la ciencia moderna, llamada aquí de Ciencia Imperial, que le conduce por medio del método cientificista y torna el aprendizaje recognitivo. Entretanto, algo se despliega del recognitivo y de la ciencia Imperial y, envuelto en otro tipo de ciencia, aquí llamado Ciencia Nómada, hace con que el pensamiento experimente las multiplicidades, singularidades en el proceso de aprender. Frente a eso, este ensayo intenta destacar un modo de aprendizaje que es recorrido por un hilo zigzagueante, que fomenta una rara variación en el enseñar y el aprender. Ese hilo, por su naturaleza moviente, produce un campo problemático disparado por los acontecimientos, encuentros, signos que señalan una movilidad sensitiva, productora de afectos en la enseñanza de las ciencias.

Palabras clave:
Aprender; Educación en las Ciencias; Deleuze; Ciencia Imperial; Ciencia Nómada.

PROÊMIO

O processo de aprender é mobilizado por duas linhas: uma que está atrelada aos dispositivos que têm “normalizado” um modo de aprendizagem fortemente influenciada pelo pensamento estatal cientificista. E outra, produzida pelos movimentos nômades que escapam da esquemática normativa da linha estatal e fazem o pensamento entrar em variação. Portanto, essas duas linhas não são duais, mas coexistentes. Na linha estatal, a atividade científica, construída dentro de um determinado padrão de raciocínio, isto é, do método científico, preza pela objetividade, neutralidade, vem, ao longo do tempo, “produzindo” a ideia de que a aprendizagem para corresponder a essa lógica racionalista também deve ser construída a partir dos métodos cientificistas. Contudo, algo escapa e cria a linha nômade que coloca o aprender mobilizado pelas relações, fluxos, vazamentos produzidos pelos acontecimentos, encontros, signos e suas composições.

Portanto a linha nômade amplia o processo de aprendizagem para além da jurisdição do controle do pensamento cientificista da linha estatal, ou seja, mesmo que a aprendizagem esteja relacionada a uma estrutura condicionada por regras, estabelecidas, pelo modo influente do pensamento dogmático no ensino, ela está exposta “à possibilidade de uma reviravolta instantânea que pode projetar tudo para fora dos eixos” (ORLANDI, 2014ORLANDI, L. O. Um gosto pelos encontros. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas). São Paulo. 2014., p. 03), porque os encontros, os acontecimentos, os signos estão carregados de multiplicidades, singularidades e remetem aos mais diversos tipos de conexões que mobilizam os pensamentos e projetam o aprender a um processo inventivo.

Mas, em que circunstâncias é possível a linha nômade mobilizar-se, em uma aula de ciências? Podemos encontrar pistas interessantes por meio da Filosofia de Gilles Deleuze, e naqueles que ele influenciou, que nos permite dizer que não há dúvidas que o pensamento cientificista da linha estatal “seduziu” a escola e fez dela seu terreno mais profícuo, principalmente no Ensino de Ciências, no que diz respeito à ideia de aprender e ensinar, e produziu uma “educação que se constitui como poderoso instrumento de controle [...] tendo como um dos seus mitos fundadores [...] Platão, e por isso, estatal” (GALLO, 2013GALLO, S. Educação Menor: Produção e Heterotopias no espaço escola. In: Educação Menor: Conceitos e Experimentações. Grupo Transversal. Curitiba: Prismas. 2013., p. 79) e recognitiva. Como recognição platônica, o ensino e a aprendizagem trilham nas linhas duras de uma educação massificadora, homogênea, sem mobilidade, planificada e controlada. Contudo, é possível pensar que mesmo tendo grande influência de um pensamento que tende a suprimi-la a estados recognitivos - o ensinar se constitui numa recognição na medida em que, ao longo de sua jornada docente, o professor aplica “aquilo que já sabe”, sempre da mesma maneira aprisionado às formas construídas antecipadamente por meio de programas, parâmetros, normas; e a aprendizagem passa a ser um estado meramente de reprodução e memorização de dados, que coloca o processo ensino e aprendizagem tomados “em uma perspectiva científica [...] sobre como ensinar e como avaliar o aprendizado de cada aluno. A questão é que este controle sobre o aprendizado, através do ensino, leva a uma homogeneização: o objetivo é que todos aprendam as mesmas coisas, da mesma maneira” (GALLO, 2012GALLO, S. As múltiplas dimensões do aprender... Congresso de Educação Básica: Aprendizagem e Currículo 2012. Disponível em http://www.pmf.sc.gov.br
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, p. 02) - nada se pode prever sobre os acontecimentos e a ebulição de singularidades que daí resultam.

As conexões que se estabelecem e os efeitos que resultam dos encontros a que o aluno está propenso em uma aula instalam a aprendizagem em uma linha móvel, e diz respeito aos fluxos, às sensações, aos signos. Esses movimentos que parecem quase sempre negligenciados pela linha dura do pensamento dogmático, se transversalizam com ele e produzem uma dinâmica entre essas duas linhas. Desta, forma, questiona-se: como mobilizar uma ideia de aprender para além dos aparatos objetivistas e racionalistas? Esta questão, portanto, mobiliza o campo problemático das discussões que se apresentam no texto. Destacando que o ensino de ciências, ao cair e permanecer nas linhas segmentares do pensamento régio, perde a descontinuidade, ou melhor, planifica-se e mantém uma ligação constante e perene com os estados recognitivos e negligencia a invenção, o problemático, as singularidades que proliferam no interior do espaço da sala de aula e marcam o processo de aprendizagem pelos seus cortes, fissuras, dobras e traçados.

Neste contexto, a escrita é mobilizada por uma cartografia, tomando como referencial bibliográfico a Filosofia da Diferença de Gilles Deleuze e Félix Guattari, assim como conexão e agenciamento com comentadores e autores da área do ensino de ciências. Nesta cartografia traçam-se as coordenadas intensivas sobre a qual se podem evidenciar as multiplicidades, as sensações, as relações compositivas das linhas (duras, flexíveis e de fuga) que “arrancam uma geografia dos afectos” (AMORIM, 2010AMORIM, S. C. de. Uma ideia de Cartografia. Campinas. São Paulo: {s.n.}. 2010.), para pensar a aprendizagem, sobretudo, no ensino de ciências e das aulas de ciências. Esse traçado cartográfico do processo da aprendizagem chamo invenção. Desta forma, essa cartografia não funciona como um método, não é definida “como um procedimento ou mesmo como um plano de composição. Sendo assim, há um trabalho pelas aberturas, pelos meios, pelas zonas, pelos movimentos, pelas linhas de desejos e de conexões” (BRITO, CHAVES, 2017BRITO, M. dos R. de; CHAVES S. N. Cartografia... uma política de escrita. In: Rev. Polis e Psique; 7(1): 167 - 180. 2017), que possibilitam uma experimentação com todas essas forças, construindo uma espécie de traçado, desenho, mapa entrelaçados nas multiplicidades “em um campo de virtualidades que está sempre aberto, que compõem pelas variedades de agenciamentos” (op. cit. p. 168) que podem criar uma linha em que se possa empreender voos para pensar uma aprendizagem desapartada de uma educação como um campo restrito.

Dito isso, esta pesquisa tenta percorrer tais linhas, não com o intuito de gerar mais um conceito sobre aprendizagem, disso já estamos saturados, mas que a escrita que foi aqui produzida deixe sentir um modo outro sobre a aprendizagem, nem melhor nem pior, mas outro.

A primeira parte do texto pontua a linha segmentar que coloca o aprender nos padrões modernos da ciência, destacando como o pensamento cria um tipo de ciência, a ciência de Estado, e como esse pensamento acabou influenciando a educação e orienta a ideia de aprendizagem, no ensino de ciências, por um pensamento régio, que fixa a ideia de aprender em códigos, normas, princípios, parâmetros, representações. Na segunda parte esboça-se uma linha móvel, marcada por um tipo de ciência, a Nômade, que mobiliza um pensamento afetado pelas sensações sempre à espreita dos acontecimentos em que prolífera a invenção em sala de aula.

1. A LINHA ESTATAL, O ENSINO DE CIÊNCIAS E UMA IDEIA DE APRENDIZAGEM

1.1 Da Ciência régia como força estatal

Segundo Deleuze (1997DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Trad. Peter Pal Pelbart. v. 5. Rio de Janeiro: Ed 34. 1997.) Ciência régia1 1 Conceito discutido e pensado a partir do livro Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia - vol. 5- principalmente as discussões que Gilles Deleuze e Felix Guattari fazem no primeiro capítulo - 1227 - TRATADO DE NOMADOLOGIA: A MÁQUINA DE GUERRA. ou de Estado é um discurso organizado de forma linear, que reconhece uma tendência de buscar a verdade ou um reconhecimento da verdade por adequação ao dado que, nesta Ciência, acontece por meio do que é chamado de conhecimento científico. O conhecimento científico é construído por meio de um método, que preza pela apuração e constatação dos fatos, pela experimentação, observação, estudos dos dados, repetição mecânica. O método experimental do conhecimento científico, por meio de leis e de um sistema matemático de quantificação busca explicar racionalmente aquilo que se pode observar da/na natureza.

A metodologia científica, portanto, só leva em consideração a explicação de fatos, fenômenos, conceitos a partir de provas concretas e se caracteriza como uma antítese do senso comum subjetivo, portanto, o pensamento da ciência régia nasceu na modernidade que marca por um “tipo de padrão de racionalidade e de conhecimento que oferece ao homem a possibilidade de ser visto como senhor de si e da natureza” (BRITO, 2012BRITO, M. dos R. de. Dialogando com Gilles Deleuze e Félix Guattari sobre a ideia de subjetividade desterritorializada. In: alegrar n. 09 - jun/2012. Disponível em: http://www.alegrar.com.br.
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, p. 03). Essa soberania racional da Ciência régia ou de Estado, segundo Stengers (2002STENGERS, I. A invenção das ciências modernas. São Paulo: Editora 34. 2002., p. 91), começa com Galileu, pois seu modelo imporá um “novo tipo de verdade”, isto é, a possibilidade de afirmar se isto ou aquilo foi construído dentro de um minucioso e objetivo padrão de experimentações que preza pela descrição fidedigna dos fatos e é, por isso, autoritário e dominador.

Para Stengers (2002), o dispositivo experimental faz calar, tudo aquilo que se opõe a ele, construindo uma “verdade” com força suficiente para representar o fenômeno. Desta forma, há uma “moral” envolta pela Ciência Régia que busca uma causa que seja digna de explicar, que carregue em si a justificativa de seu efeito (STENGERS, 2002STENGERS, I. A invenção das ciências modernas. São Paulo: Editora 34. 2002.). Além disso, há uma moral porque pretende a correção, a certeza, a verdade indubitável, contudo, essa suposta verdade que ela carrega em sua proposição gira a favor de quem? Para quem? Que forças estão em jogo no aparato dessa força moral? Essa “verdade” se consolida pela prática que as atividades experimentais mantêm com os elementos de formalização da ciência de Estado que dão ao método científico confiabilidade em construir ideias que representem um fenômeno. Por exemplo:

O Plano Inclinado põe em cena um movimento bem conhecido, aquele dos corpos que caem. Ele não ‘faz assistir’ esse movimento dos corpos, mas o determina em sua nova singularidade: é o movimento que, doravante, é identificado como capaz de ‘dizer’ como ele deve ser descrito, capaz de impor [...] como testemunha fidedigna [...] a possibilidade de fazer um fenômeno testemunhar de formas novas, inéditas [tal movimento] (STENGERS, 2002STENGERS, I. A invenção das ciências modernas. São Paulo: Editora 34. 2002., p. 140, grifo meu).

Um fenômeno, que não tinha nenhum dado que o descrevesse, visto antes como uma simples ficção, doravante, é construído dentro de bases sólidas de cálculos, de conceitos, testado e, que não dá possibilidade para a dúvida, para a contestação. Por isso, o pensamento régio está lá onde está o poder de provar, o poder de calar, o poder de impor, o poder de criar uma situação de teste em que o que se põe em jogo é o poder máximo de representar. O pensamento régio da ciência de Estado faz da “descoberta” de Galileu, portanto, um amontoado de normas, de técnicas, toda uma “retórica que se apodera do acontecimento e consagra o poder da redução e é, por isso, que a biologia molecular reduziu a hereditariedade à transmissão de uma informação codificada na molécula de DNA” (STENGERS, 2002STENGERS, I. A invenção das ciências modernas. São Paulo: Editora 34. 2002., p. 141 - grifo nosso). A redução científica enquadra um acontecimento e o transforma em dados matematizados, teorias, leis e fatos; voltarei a esse ponto mais adiante.

Para Deleuze (1997DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Trad. Peter Pal Pelbart. v. 5. Rio de Janeiro: Ed 34. 1997.), a ciência de Estado, por meio do conhecimento científico, régio, não para de impor sua forma de soberania, de apropriação, para fixar, sedentarizar, regrar, impor limite. Seu modelo é teoremático, diz Deleuze (1997)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Trad. Peter Pal Pelbart. v. 5. Rio de Janeiro: Ed 34. 1997., visto que esta ciência constrói afirmações que manifestam uma verdade tida como confiável, posto que pode ser comprovada pela atividade experimental. Legitimada, transforma para agir e controlar aquilo que burbilhona, que mantém com as forças do fora uma relação em movimento, agitação. Esse modelo experimental em que a ciência régia é construída é requerido para assegurar a paz, o desejo e a felicidade de um mundo apaziguado, comprovado e testado. O saber do pensamento régio é físico, e constitui, por suas explicações, e por suas hipóteses, uma natureza, um reconhecimento, um fundamento, pois, abusivo em si, disso carece sempre, porque seu modelo se alimenta da formalização (SERRES 2003SERRES, M. O nascimento da física no texto de Lucrécio: correntes e turbulências. São Paulo: Editora UNESP. 2003., p.164).2 2 Deleuze refere Michel Serres, em seu livro O nascimento da física nos textos de Lucrécio: correntes e turbulências, como sendo o primeiro autor a detectar um gênero de ciências fora do sentido régio ou legal estabelecido pela História, que Deleuze chamará de ciência nômade. Portanto, a formalização do pensamento régio é “fortificada pelo saber dos sábios [...], pela ciência instruída dos instrutores, pela estrutura de divisões [...]” (SERRES, p. 171), quer a dominação, quer eliminar o acidental, o acaso, e, não há outro método para isto que não seja pelo método científico. A cientificidade acalma, apazigua, adéqua.

Nesta perspectiva, o “irracional” é aquilo que não pode ser explicado posto que é carregado de crenças, demasiadas subjetividades, vaga fora dos trilhos desviando o pensamento da direção única, da lógica, da razão, não é bem visto. Para o pensamento régio, as paixões, as sensações devem ser extirpadas, pois atrapalham o pensamento lógico e desarranja, consequentemente, o comportamento lógico, racional e metodológico. Tal perspectiva de ciência, opera num “campo de forças e, como tal, a dinâmica e a importância social de seus atores influenciam no que eles podem ou não fazer” (FERREIRA, 2010, p. 268). Portanto, também como um discurso, a ciência de Estado se define na perpetuação ou conservação nas diferentes espécies de poder. A sua preocupação é conservar, dominar, pois “a soberania só reina sobre aquilo que é capaz de interiorizar, apropriar-se”, segundo Deleuze (1997DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Trad. Peter Pal Pelbart. v. 5. Rio de Janeiro: Ed 34. 1997., p. 23).

1.2. Do aprender sob um ensino de Estado

Esse discurso migra para a educação e suas práticas quando seus modos modelam a ideia de ensinar e aprender em consonância, com a ideia de progresso, de melhoria, numa ordem sucessiva e cronológica. Isso significa que “a criança bem como o adulto, são entendidos através de suas formas ou estruturas específicas de conhecer” (KASTRUP, 2000KASTRUP, V. O devir-criança e a cognição contemporânea. In: Psicologia: Reflexão e crítica. p. 373-382. 2000., p. 373 e 374). Então, a produção de conhecimento, na ciência de Estado, tem como pressuposto básico a competência de conhecer os “conceitos de número, de velocidade e de causalidade”. Sem essas competências, a aprendizagem é lida como deficitária e “infantilizada”.3 3 A cognição Infantil, segundo Kastrup (2000), é tomada pelas teorias do desenvolvimento em “categorias negativas como: inexistência de pensamento, ausência de função simbólica, irreversibilidade de formas, inteligência pré-operatória, pré-lógica, etc.” (p. 374)

É possível que esse postulado régio tenha ganhado destaque na educação em ciências por volta de 1950, como apontam as pesquisas de Nascimento et al (2010NASCIMENTO, F. et al. O ensino de Ciências no Brasil: história, formação de professores e desafios atuais. In: Revista HISTEDBR. n. 39, p. 225-249. Set- 2010.) e Krasilchik (2000KRASILCHIK, M. Reformas e Realidade: o caso do ensino de ciências. São Paulo em Perspectivas, v. 14, n. 1, 2000.). Assim, “a partir dos anos de 1950, as políticas científicas e tecnológicas passaram por um intenso processo de institucionalização, tendo em vista o crescimento e o progresso do país” (NASCIMENTO et al, 2010NASCIMENTO, F. et al. O ensino de Ciências no Brasil: história, formação de professores e desafios atuais. In: Revista HISTEDBR. n. 39, p. 225-249. Set- 2010., p. 226). Com isso, começa uma corrida para propor reformas educativas, como parte de políticas públicas,4 4 O auto destaca diversas iniciativas para o ensino de Ciências para a sua melhoria, como um programa oficial para o ensino de Ciências estabelecido pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC); a descentralização das decisões curriculares do MEC pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDBEN, 4024/61); A formação de um grupo de professores para a construção de material didático e experimentais no Instituto Brasileiro de Educação Ciência e Cultura (IBECC) da Universidade de São Paulo. para formação de alunos-cientistas. Assim, o ensino de ciências passa a ser considerado um elemento importante para, em um curto período de tempo, preparar trabalhadores qualificados, para a construção de um país que começa sua corrida para o desenvolvimento científico-tecnológico.

As reformas instituídas como propostas para o processo de mudança didático-pedagógica têm forte tendência de instituir, dentro do processo de ensino e de aprendizagem, “o papel centralizador do Estado para a emissão de normas e regulamentos” (KRASILCHIK, 2000KRASILCHIK, M. Reformas e Realidade: o caso do ensino de ciências. São Paulo em Perspectivas, v. 14, n. 1, 2000., p. 85). Políticas didáticas autoritárias têm consequências profundas, pois, o ensino de ciências passa a ser um processo deliberadamente mecanicista, com o objetivo de formar elites, por meio de programas rígidos com a concepção de ciência neutra. Assim, a aprendizagem passa a ser um processo puramente reprodutivo de aulas prático-experimentais, tendo os laboratórios como lócus para a realização de atividades. Isso ainda parece ponderar na atualidade em algumas instituições escolares, inclusive, algumas escolas usam como propaganda e venda da educação, enfatizando a escola e sua estrutura contendo laboratórios de ciências, como sinal de uma educação melhor. Não queremos enveredar pelos caminhos que tratam sobre a problemática do uso do laboratório nas aulas de ciências, mas apenas chamar a atenção sobre o fato que leva a pensar que sem a experimentação em laboratório não é possível ensinar ciências, ou que com esse aparato o ensino será de melhor qualidade. O que se pode dizer, para o momento, sobre isso é que a escola, o ensino atual de ciências, não conseguiu ainda os objetivos a que se propôs para a educação científica. Por quê? Talvez por negligenciar aquilo que escapa aos seus códigos e leis, talvez porque é um ensino que ainda permanece amarrado à retórica da Ciência de Estado/régia.

Por meio da aplicabilidade do método científico para ensinar, a Ciência de Estado, influencia um Ensino de Estado e conduz uma aula por meio de dispositivos instrumentais, como a observação cuidadosa de fenômenos e a neutralidade. Uma aula pelo ensino de Estado produz o pensamento de que a natureza tem suas próprias leis, que cabe ao homem descobrir. Há uma efetiva separação entre a natureza e a cultura, há também uma verdade já dada. Os parâmetros, as normas, as estratégias desenvolvidas dentro do ensino de ciências levam em consideração a metódica racional do pensamento régio para que a criança ou o adulto pensem como cientista. Esse postulado régio ganha contornos mais abrangentes, pois, segundo Auler e Delizoicov (2001AULER, D.; DELIZOICOV, D. Alfabetização científico-tecnológica para quê? In: Revista Ensaio - Pesquisa em Educação em Ciências, v. 03, n.1- Jun. 2001), a ciência, na escola, ainda é pensada como salvadora da humanidade, isso acaba tendo efeito sobre o modo como se pensa a aprendizagem, isto é, é necessário desenvolver habilidades científicas e o pensamento metódico nos alunos.

Estudos, pesquisas e discussões (NARDI, 2005NARDI, R. A Área de ensino de ciências no Brasil: fatores que determinam sua constituição e suas características segundo pesquisadores brasileiros. Bauru. Tese (Livre Docência). Universidade Estadual Paulista/UNESP - Faculdade de Ciências. 2005.; SOARES 2014, FAGUNDES, 2007FAGUNDES, S. M. K. Experimentação nas aulas de Ciências: um meio para a formação da autonomia? In: GALIAZZI, M. do C. et al. Construtivismo curricular em rede na educação em ciências: uma porta de pesquisa na sala de aula. Ijuí, Ed. Unijuí, p. 317-336. 2007., GONÇALVES e GALIAZZI, 2004GONÇALVES, F. P.; GALIAZZI, M. do C.. A natureza das atividades experimentais no ensino de ciências: um programa de pesquisa educativa nos cursos de licenciatura. In: MORAES, R.; MANCUSO, R. (org.). Educação em ciências: produção de currículos e formação de professores. Ijuí, Ed. Unijuí , p.237-252. 2004.; CACHAPUZ et al 2011CACHAPUZ, A; GIL-PEREZ, D; CARVALHO, A. M. P. de; PRAIA, J; VILCHES, A. A necessária renovação no ensino de ciências. Cortez Editora, 2005.; DELIZOICOV, ANGOTTI, PERNAMBUCO, 2003DELIZOICOV, D.; ANGOTTI, J. A.; PERNAMBUCO, M. M. Ensino de Ciências: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2002.) apresentam uma revisão dessa configuração régia ou cientificista do ensino de ciências e, muito do que se tem discutido sobre as transformações que a educação escolar necessita, passa pela superação de desafios cujos saberes e práticas, tradicionalmente estabelecidos e disseminados dão sinais de equívocos e esgotamento. Desta forma, quando o ensino de ciências, oferece aos seus alunos/professores apenas uma literatura técnica do objeto, sendo o aprender memorização, resultado de um ensinar que se agarra a uma ação docente mecânica e técnica, os procedimentos metodológicos desse ensino, como os experimentos ou as atividades experimentais de laboratório, por exemplo, embora sejam consideradas ferramentas metodológicas importantes para o ensino e a aprendizagem científica, estão enfrentando sistemáticas críticas, justamente, por serem usadas como recurso de ensino do método científico e, consequentemente, sem possibilidade de resultado para a aprendizagem científica (FAGUNDES 2007FAGUNDES, S. M. K. Experimentação nas aulas de Ciências: um meio para a formação da autonomia? In: GALIAZZI, M. do C. et al. Construtivismo curricular em rede na educação em ciências: uma porta de pesquisa na sala de aula. Ijuí, Ed. Unijuí, p. 317-336. 2007.; GONÇALVES e GALIAZZI 2006). A crítica incide, justamente, na perspectiva cientificista que coloca a aprendizagem científica como o resultado de habilidades e competências técnicas.

Fagundes (2007FAGUNDES, S. M. K. Experimentação nas aulas de Ciências: um meio para a formação da autonomia? In: GALIAZZI, M. do C. et al. Construtivismo curricular em rede na educação em ciências: uma porta de pesquisa na sala de aula. Ijuí, Ed. Unijuí, p. 317-336. 2007.) se esforça para mostrar as atividades experimentais, por exemplo, como um meio eficaz para o que se deseja aprender ou formar no ensino de ciências. Tenta mostrar a eficácia da experimentação, como um recurso para a reflexão, a ação e a argumentação do que foi feito, entendendo os alunos como peças ativas dessa engrenagem, responsáveis pelo seu rendimento e desenvolvimento, ou seja, é importante que o professor saiba que a sala de aula é um local de construção do conhecimento. Ao servir como meio do método científico ou como comprovação de uma teoria, pura e simplesmente, a experimentação está a serviço da memorização, tradicionalmente empregada nas salas de aula. Dentro de tais padrões, a experimentação se mantém presa como um procedimento apenas objetivo, neutro, de confirmação de hipóteses, legitimando a ideia de conhecimento verdadeiro, acabado, destituindo os alunos do erro, desmobilizando a criticidade e a tomada de decisão.

Voltemos então ao “caso Galileu” para pensar como essa metódica racional da ciência influencia a formalização de discursos cientificistas que acabam ressoando no ensino e na aprendizagem. Pois bem, como discutimos anteriormente foi o “caso Galileu” o marco no qual a ciência régia finca sua bandeira no território da razão. Em outras palavras foi a “descoberta” (Nômade) de Galileu, sua elaboração abstrata, fictícia5 5 Para Stengers (2002), a ficção é a elaboração abstrata dada por um autor sobre um fato ou fenômeno. sob o signo do acontecimento, que o fez criar, inventar, o movimento de queda dos corpos, que lhe deu o nome de pai da ciência Moderna, além de suas elaborações técnicas. Ou seja, no “momento em que Galileu entrega à posteridade da ciência o movimento uniformemente acelerado” (STENGERS, 2002, p. 99), sua ficção ganha poder, o poder de calar, de provar a partir de uma racionalidade que é capaz de medir, numerar. Então, para Stengers, “o mundo fictício proposto por Galileu, não é mais o mundo que Galileu sabe como questionar, mas é um mundo que ninguém pode questionar de um modo outro que o dele” (idem). O dispositivo experimental abstraiu todas as multiplicidades que fizeram Galileu “virar-se” para pensar o movimento de queda dos corpos. E abstração não é uma ‘maneira abstrata de ver as coisas’. Não tem nada de psicológico ou de metodológico. Ela diz respeito à captura.

O método científico cria o padrão científico sobre o qual a Ciência de Estado legitima seu discurso, na escola, na família, na sociedade, isto é, ela nasce da possibilidade de um pensamento ser representado pela adequação, segmentaridade, comprovado “pelos fatos”, daí seu regimento. O “caso Galileu” instituiu o advento do método científico como o único capaz de ‘salvar os fenômenos’ dos sentidos, de um tipo de “ciência” com estatuto de “verdade” e objetividade, retirando qualquer coisa carregada de subjetividade.

Tudo isso acaba gerando consequências para o aluno e o professor porque a tendência tecnicista cria para o professor o “importante” papel de executor das tarefas e programas determinados nos livros, nos manuais didáticos, isto é, para ser professor de ciências é suficiente ter o controle sobre determinadas teorias para repassar para os alunos e como usar determinados materiais nas aulas ou nos laboratórios; e o aluno memorizador como se o aprender estivesse única e exclusivamente ligado às palavras ditas pelo professor em uma aula. O aprender está, efetivamente, ligado ao saber fazer, ao saber aplicar os conceitos da ciência. O aprender passa a ser uma simples passagem, em que se sai do não saber para o saber da ciência.

Na mesma linha de pensamento Krasilchik (2000KRASILCHIK, M. Reformas e Realidade: o caso do ensino de ciências. São Paulo em Perspectivas, v. 14, n. 1, 2000.), debate sobre esse tema e mostra as problemáticas e as complexas situações que têm chegado até o ensino de ciências, por meio desse ensino que chamamos aqui, ensino de Estado. A autora mostra que três momentos foram essenciais para a institucionalização de tal ensino: a Guerra Fria, a Guerra Tecnológica e a Globalização. Em função de fatores políticos, econômicos e sociais, esses momentos resultaram, por sua vez, em transformações das políticas educacionais. No Brasil, aliado a esses momentos, outros acontecimentos6 6 A autora descreve alguns acontecimentos como: necessidade de uma ciência autóctone, durante e pós-guerra, para se tornar autossuficiente industrialmente; a mudança do papel da escola em função das mudanças políticas vividas no país; o período da ditadura militar que exigia a formação de mão de obra trabalhadora para o desenvolvimento econômico do país. também serão decisivos, na vida da sociedade, pois “em nome de uma demanda de investigadores para impulsionar o progresso da ciência e da tecnologia nacionais, (...) era preciso desenvolver o pensamento crítico por meio do método científico (...)” (KRASILCHIK, 2000KRASILCHIK, M. Reformas e Realidade: o caso do ensino de ciências. São Paulo em Perspectivas, v. 14, n. 1, 2000. p. 86-87), para produzir indivíduos-cientistas, alunos-cientistas para a tomada de decisões, com bases em informações e dados científicos.

A Ciência de Estado, neutra, objetiva e com ânsia de conquista da natureza, ordem e progresso, cria para si um papel social importante, pois as “melhorias sociais somente seriam alcançadas se fosse respeitada a autonomia da ciência” (ECHEVERRÍA, 1995; GONZÁLEZ et al., 1996 apud NASCIMENTO et al., 2000, p. 226). Ou seja, o otimismo com relação aos benefícios que a ciência pode trazer para o desenvolvimento da sociedade e o bem-estar das pessoas outorga a técnica científica como um conhecimento inegável. Portanto, mesmo que seus códigos, leis, normas e principalmente seu método sejam determinados por um sistema de sinais puramente matemáticos sobre o qual a maioria da sociedade não tem acesso anulando-a de qualquer decisão sobre o progresso da ciência, é inegável que a ciência tenha um papel importante pelos avanços técnicos que proporciona para a sociedade. Portanto, a predição que a sociedade disponibiliza à ciência, pela “enxurrada de informações precisas, diversões assépticas idiotiza as pessoas ao mesmo tempo” (HOKHEIMER; ADORNO, 1947HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. 1947. Disponível em: http://www.antivalor.vilabol.uol.com.br
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, p. 03). O que se quer dizer com isso? A ciência vestida de um processo emancipador é também convertida em seu contrário.

O cinema retrata constantemente como o desenvolvimento científico - e o método científico - toma forma de dominação, por esse mito salvacionista no contexto social e sua efetiva produção na escola; um exemplo é o lançamento do Sputnik ao espaço mostrado no filme Céu de Outubro,7 7 Baseado no romance de Homer H. Hickam Jr. e dirigido por Joe Johnston e roteiro adaptado de Lewis Colick (1999). um fato inédito, acontecido em meados de 1957, mostra o personagem (um aluno do “ginasial”) em uma busca desenfreada para fazer um foguete funcionar, e assim ser reconhecido como um “cientista” pela comunidade onde vivia. O filme marca o que seria o início de uma nova “era” para a sociedade, a era tecnológica. A tecnologia, então, nasce com a promessa de melhoria, de avanço, e envolvida por um saber essencialmente singular - de fórmulas e cálculos - dentro de uma dinâmica exaustiva de experimentações, o que fará do aluno-cientista do filme um membro respeitado de sua comunidade e mostra como uma pessoa cientificamente educada, “exaustivamente” dedicada pode mudar os rumos de sua vida.

A ciência e a tecnologia entraram no espaço escolar, vertiginosamente, por meio daquilo que trazem como desenvolvimento e evolução para a sociedade, fazendo do laboratório, das atividades experimentais e sua funcionalidade, espaços propícios de construção para o conhecimento científico, pois:

O conhecimento científico assumia um caráter universalista, visto que, em seu processo de hegemonizar-se como uma única referência para a explicação do real, a ciência procurava levar os sujeitos a substituir crenças religiosas, determinadas práticas cotidianas e as ideias de senso comum por uma nova crença, a crença na objetividade (MACEDO, 2004MACEDO, E. Ciência tecnologia e desenvolvimento: uma visão cultural do currículo de ciências. In: LOPES, A. C; e MACEDO. E. (org.). Currículo de Ciências em debate. Campinas: Papirus, p. 119-153, 2004., p.121).

Portanto, o ensino de Estado herda de sua matriarca a visão empirista e institui aos estudantes o método científico, que ao chegar pronto, cumulativo, regular, linear, mecanizado, acaba caindo nas malhas da reprodução; sem vida é fortemente influenciado pela ideia de objetividade, resoluções e compartimentalização num plano de articulação, práticas, formas etc., que acabam fatalmente conduzindo o ensino de ciências para tratar o conhecimento científico envolto em uma malha teórica que separa o sujeito do objeto de aprendizagem (RAMOS, 2012RAMOS, M. N. C. Por um ensino e uma aprendizagem da criação, ou da problematização, ou da... As linhas e as experiências docentes de professoras de ciências. Belém. Universidade Federal do Pará. 2012. 105 p. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências e Matemáticas). Instituto de Educação Matemática e Científica. Universidade Federal do Pará UFPA,. 2012.).

Pensamos que o método por que a ciência de Estado subordina o pensamento é para captar os movimentos da contingência que a transformam num sistema fechado. Para Michel Serres (2003SERRES, M. O nascimento da física no texto de Lucrécio: correntes e turbulências. São Paulo: Editora UNESP. 2003.), ela só pode acontecer na clausura: “é por isso que a física é feita em recinto fechado. O laboratório e todo o sistema fechado protegem das turbulências” (SERRES, 2003SERRES, M. O nascimento da física no texto de Lucrécio: correntes e turbulências. São Paulo: Editora UNESP. 2003., p. 106). O autor chama atenção para a criatividade e a invenção que envolve o processo de construção do conhecimento na ciência e nos aproxima de Bachelard (1996BACHELAR, G. A formação do Espírito científico: contribuições para uma psicanálise do conhecimento. Rio de Janeiro: Contraponto. 1996.) para o qual o conhecimento científico, ao considerar apenas a razão quantitativa dos resultados, descarta as paixões para “obrigar o homem a fazer abstração das grandezas comuns, de suas próprias grandezas; obriga-o a pensar também as grandezas em sua relatividade com o método de medida; enfim, a tornar claramente discursivo aquilo que surge na mais imediata das intuições” (BACHELAR, 1996BACHELAR, G. A formação do Espírito científico: contribuições para uma psicanálise do conhecimento. Rio de Janeiro: Contraponto. 1996., p. 260). Portanto, esse modelo cientificista no ensino de Estado, negligencia tudo aquilo que escapa dos seus manuais, práticas e métodos e tende a tratar a aprendizagem em ciências, como o ponto final ou o ponto de chegada do conhecimento científico, ou seja, está ligado ao modo como o aluno “internaliza” os conceitos, elabora as ideias e reproduz o que foi transmitido pelo professor.

Assim, esse discurso que não aceita um fenômeno, uma teoria, um conceito se este não for tratado, testado e comprovado pelo método científico, dissemina-se e tende a influenciar nas mais diversas áreas, por meio daquilo que só é tido como verdadeiro se estiver dentro de padrão de verificação. Na educação, as teorias de aprendizagem são ornamentadas por discursos que auxiliam a ideia de aprender, que estudam a memória, a cognição e seus procedimentos. Muitas dessas teorias, efetivamente, psicológicas, entram na escola como sendo a solução para as mazelas do ensino e orienta por meio de modelos e métodos como se aprende e se tem sucesso. O ensino de ciências é povoado por esses discursos. Sobre essa questão desenvolveremos a seguir alguns fragmentos sobre a ideia de aprendizagem, principalmente a corrente construtivista piagetiana que nos parece a que mais tem influência no ensino de ciências (MATTHEWS, 2000MATTHEWS, M. Construtivismo e o ensino de ciências: uma avaliação. In: Caderno Catarinense do Ensino de Física. v. 17, n.3, p. 270-294. Dez, 2000.; CARVALHO, 1983CARVALHO, A. M. P. de. O Construtivismo e o Ensino de Ciências. R. Fac. de Ed., 9(1/2); p. 55-77. 1983., DRIVER, 1999DRIVER, R. et al. Construindo conhecimento científico na sala de aula. In: Química Nova na Escola. n. 09, maio, 1999.).

1.3. Teoria Construtivista da Aprendizagem: algumas notas no ensino de ciências

Como disse antes, a ideia de aprendizagem e ensino não deixam de compor uma formalidade, inspirada pelo modelo da ciência de Estado. Pois, ao se colocar a aprendizagem atrelada a uma racionalidade instrumental, esta entra no campo do pensamento régio. Então, a captura da ciência de Estado se faz presente pelas teorias da aprendizagem influenciadas pela psicologia. A psicologia se torna uma ciência de Estado, trabalha para a manutenção do Estado, migrando fortemente para o campo da educação e efetivamente para o ensino de ciências.

A intenção deste fragmento de ideia não é escavar as especificidades dessa teoria, a digressão que se propõe vem com o único objetivo de facilitar o entendimento sobre o afastamento de determinadas questões para pensar uma aprendizagem em ciências movimentada pelos fluxos, acontecimentos a que um aluno pode estar propenso em uma aula.

A teoria cognitivista explica o processo da aprendizagem a partir dos processos cognitivos: a cognição, o ato de conhecer, ou seja, como o ser humano conhece o mundo e a si mesmo (seu self) em mútua dependência. Desenvolveu-se numa tentativa de investigar os processos mentais do ser humano, tais como a percepção, o processamento de informação e a compreensão de forma científica, ou seja, “envolve o tipo de generalizações sobre a aprendizagem que podem ser aplicadas a pessoas reais em situações escolares, estando associada a funções de conhecimento e compreensão que dão significados às situações” (BIGGE, 1977BIGGE, M. L. Teorias da Aprendizagem para professores. São Paulo: EPU. 1977., p. 206). Baseia-se, portanto, na ideia de que não podemos aprender ou ter conhecimento de uma realidade objetiva ou externa diretamente, sem as relações construídas entre os esquemas cognitivos e as experiências vividas. Por isso, podemos chamá-la, inspiradas por muitos autores principalmente (VIGOTSKI, 2007; PIAGET 1975PIAGET, J. O nascimento da Inteligência na Criança. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar. 1975., 1976PIAGET, J. A equilibração das estruturas cognitivas: Problema Central do Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1976, 1977PIAGET, J. A Psicologia da Inteligência. Rio de Janeiro: Zahar. 1977., 1986; GIUSTA, 2013GIUSTA, A. da S. Concepções de Aprendizagem e Práticas Pedagógicas. In: Educação em Revista. v. 29, n.01. p. 17-36. Mar, 2013.; LA TRAILE; OLIVEIRA; DANTAS 1992; MATTHEWS, 2000MATTHEWS, M. Construtivismo e o ensino de ciências: uma avaliação. In: Caderno Catarinense do Ensino de Física. v. 17, n.3, p. 270-294. Dez, 2000.; MORTMER 1996; PELUZZARI et al, 2002; MOREIRA, 2010; DRIVER, 1999DRIVER, R. et al. Construindo conhecimento científico na sala de aula. In: Química Nova na Escola. n. 09, maio, 1999.; AUSUBEL, 1980), como Teoria Cognitivo-Construtivista.

Portanto, os cognitivistas8 8 No decorrer do texto, usaremos apenas a expressão construtivismo, construtivista. defendem a aprendizagem como uma construção, que: a) é indispensável à integração com a cultura, isto é, as experiências que constituem os indivíduos no processo de construção de conhecimento; b) ocorre quando há uma relação significativa entre a nova e a velha informação presente na estrutura cognitiva e seu principal problema e estudar como um indivíduo constrói suas estruturas cognitivas para a aquisição de conhecimentos. Para Matthews (2000MATTHEWS, M. Construtivismo e o ensino de ciências: uma avaliação. In: Caderno Catarinense do Ensino de Física. v. 17, n.3, p. 270-294. Dez, 2000.) esse perfil epistemológico do construtivismo é apresentado como uma teoria da ciência, pois dialoga com a natureza da ciência, que se manifesta na frequência com que noções de emancipação e tomada de poder ocorrem nesta literatura, portanto, parece a que mais influencia no ensino de ciências.

Segundo Matthews (2000MATTHEWS, M. Construtivismo e o ensino de ciências: uma avaliação. In: Caderno Catarinense do Ensino de Física. v. 17, n.3, p. 270-294. Dez, 2000.), existem três tradições construtivistas: o construtivismo educacional, o construtivismo filosófico e o construtivismo sociológico. Interessando, para o momento, apenas o primeiro. O construtivismo educacional divide-se em construtivismo pessoal, que têm suas origens em Jean Piaget; e o construtivismo social, influenciado pelos estudos de Lev Vigotski. Interessando para o momento apenas as ideias que constituem o primeiro.

1.3.1. O conceito de aprendizagem em Jean Piaget

Para Piaget a aprendizagem é uma construção pessoal, isso é o mesmo que dizer que o homem é sujeito de conhecimento. Essa construção é operada pelos sistemas simbólicos de que o sujeito dispõe, para produzir e usar representações mentais internalizadas em experiências anteriores, que permite criar formas de pensamento, para representar os objetos. Assim para Piaget (1976apudGIUSTA, 2013GIUSTA, A. da S. Concepções de Aprendizagem e Práticas Pedagógicas. In: Educação em Revista. v. 29, n.01. p. 17-36. Mar, 2013., p. 28) “o conhecimento não procede nem da experiência única dos objetos nem de uma programação inata pré-formada no sujeito, mas de construções sucessivas com elaborações constantes de estruturas novas”.

Piaget se apropria do conceito de adaptação dos seres vivos para representar sua psicologia. Para Piaget (1977)PIAGET, J. A Psicologia da Inteligência. Rio de Janeiro: Zahar. 1977., assim como a adaptação biológica é “um equilíbrio entre as atuações do organismo sobre o meio e as atuações inversas” (PIAGET, 1977PIAGET, J. A Psicologia da Inteligência. Rio de Janeiro: Zahar. 1977., p. 18) assim também, a construção dos esquemas cognitivos dos indivíduos acontece por meio do “equilíbrio, dos intercâmbios entre o sujeito e o objeto” (PIAGET, 1977PIAGET, J. A Psicologia da Inteligência. Rio de Janeiro: Zahar. 1977., p. 19) e vice-versa, em construções sucessivas. Para este autor, a ação do organismo sobre o objeto é chamada de assimilação mental, ou seja, é a incorporação do objeto aos esquemas de conduta ou atos ou ações do organismo sobre o objeto, “esses esquemas nada mais são do que esboços das atividades suscetíveis de serem repetidos ativamente [...]. (PIAGET, 1977PIAGET, J. A Psicologia da Inteligência. Rio de Janeiro: Zahar. 1977., p. 19).

Como dito acima, para Piaget, a adaptação é o equilíbrio entre ação do organismo sobre o meio e vice-versa. A ação do meio sobre o organismo, na adaptação biológica, segundo Piaget é chamada acomodação e acontece quando o organismo modifica o ciclo assimilador ao acomodar o organismo, às sempre constantes pressões do ambiente. Na adaptação psicológica, portanto, a pressão do objeto sobre o organismo “culmina sempre, não numa submissão passiva, mas em simples modificação das atividades que recai sobre ela” (PIAGET, 1977PIAGET, J. A Psicologia da Inteligência. Rio de Janeiro: Zahar. 1977., p. 19). A adaptação psicológica é o equilíbrio entre assimilação e acomodação, ou seja, a incorporação dos objetos a um esquema e a sua constante modificação. Essas construções sucessivas produzem conhecimento quando a relação sujeito-objeto forma um todo. A aprendizagem acontece por conflitos que desafiam estruturas primevas assimiladas nas experiências sobre as quais o desenvolvimento cognitivo acontece. Assim, o sujeito se constitui com o meio em uma totalidade, sendo, portanto, passível de desequilíbrio em função das perturbações desse meio em ciclos sucessivos (PIAGET, 1976PIAGET, J. A equilibração das estruturas cognitivas: Problema Central do Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1976).

O termo construtivismo, assim, por meio da adaptação biológica, ganha poder de interpretação, uma vez que, na literalidade da palavra, coloca a construção do conhecimento em relação direta com as funções adaptativas pessoais e individuais, pois, “toda relação entre um ser vivo e seu meio apresenta esse caráter específico: o primeiro em vez de estar submetido passivamente ao segundo, modifica-o impondo-lhe certa estrutura própria” (PIAGET, 1977PIAGET, J. A Psicologia da Inteligência. Rio de Janeiro: Zahar. 1977., p. 19) ao longo da vida. Este pressuposto piagetiano, se baseia no fato de que o indivíduo, quando “vê” desafiados seus esquemas cognitivos - desequilíbrio - incorpora elementos novos do meio exterior às suas estruturas cognitivas - assimilação - num processo de acomodação do velho aos novos elementos incorporados que manteria em equilíbrio o funcionamento cognitivo. Portanto, a assimilação/acomodação é imprescindível para manter o equilíbrio cognitivo, mais ainda, para melhorar o equilíbrio, ou mais ainda para a formação de um novo equilíbrio que seria o ponto de partida para um melhoramento sucessivo das estruturas cognitivas - equilibração majorante. Assim assimilação/acomodação “elevaria” o nível cognitivo a um patamar mais e mais abrangente. Essa melhora abrangente das estruturas cognitivas só é possível por meio de uma função de organização, que segundo Piaget (1975PIAGET, J. O nascimento da Inteligência na Criança. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar. 1975.), integra uma nova estrutura a outra pré-existente.

Como a educação, e principalmente a educação em ciências se articula na concepção piagetiana de aprendizagem? O conceito de adaptação evolutiva defendida por Piaget, só é válida quando os novos conhecimentos assimilados são acomodados na estrutura cognitiva construindo conhecimentos melhores, ou mais bem elaborados cognitivamente (PIAGET, 1975PIAGET, J. O nascimento da Inteligência na Criança. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar. 1975.). Podemos pensar, a partir disso, que para haver a aprendizagem é preciso envolver o aluno num processo de mudança conceitual fornecendo “às crianças, experiências físicas que induzam ao conflito cognitivo e, assim, encorajam os aprendizes a desenvolver novos esquemas de conhecimento que são mais bem adaptados à experiência” (DRIVER, 1999DRIVER, R. et al. Construindo conhecimento científico na sala de aula. In: Química Nova na Escola. n. 09, maio, 1999., p. 33). A educação, naquilo que trata como o “mais humano” é tomado, aqui, ao saber compreender as estruturas cognitivas do aluno para dominar as formas didáticas e metodológicas para a condução do aprender.

O conflito consiste em colocar as ideias assimiladas do aluno em questionamento, por meio de intervenções do professor, como por exemplo: “o que você quer dizer com isso? Por que você diz isso? Como é que isso se encaixa no que acabamos de dizer? Poderia me dar um exemplo? Como você chegou a isso?” (DRIVER, 1999DRIVER, R. et al. Construindo conhecimento científico na sala de aula. In: Química Nova na Escola. n. 09, maio, 1999., p. 33). Esse conflito alimentado pelo professor estimula a uma solução, por meio da reflexão e se engajando na busca de evidências para as afirmativas que darão consistência ou acomodação ao que está sendo posto em discussão. Desta forma, mudança conceitual, ultrapassa a construção de conhecimentos pessoais ou sociais. Aprender ciências, segundo Driver (1999DRIVER, R. et al. Construindo conhecimento científico na sala de aula. In: Química Nova na Escola. n. 09, maio, 1999.), está além disso, pois, quem “aprende precisa ter acesso não apenas às experiências físicas, mas também aos conceitos e modelos da ciência convencional” (DRIVER, 1999DRIVER, R. et al. Construindo conhecimento científico na sala de aula. In: Química Nova na Escola. n. 09, maio, 1999., p. 34). Para essa autora, as crianças não vão construir conceitos como peso, calor, temperatura etc., por exemplo, uma vez que, estes conceitos já são construções realizadas pelo raciocínio científico em teorias explícitas, experimentadas e testadas à luz das evidências. É justamente aí que reside, portanto, o desafio nesta abordagem: propiciar ao aprendiz uma apropriação desse raciocínio e operar em seus domínios. Portanto, ainda segundo a autora, aprender ciências é ter acesso aos modelos e conceitos e códigos da ciência convencional.

Esta concepção leva em conta o fato de que aprender ciências envolve a iniciação dos estudantes em uma nova maneira de pensar e explicar o mundo natural em uma socialização das práticas da comunidade científica e suas formas particulares de pensar e ver o mundo. O aluno deve entrar num processo de “enculturação” das práticas científicas e do método cientifico para que no processo de aprendizagem científica o aluno seja capaz de perceber aquilo que o coloca em conflito com suas ideias prévias. Não se espera, contudo, com a enculturação científica na aprendizagem em ciências, um abandono dos conceitos prévios pelas teorias científicas, por meio do ensino de ciências, mas “estar articulado de modo consciente sobre o que constitui as teorias” (DRIVER, 1999DRIVER, R. et al. Construindo conhecimento científico na sala de aula. In: Química Nova na Escola. n. 09, maio, 1999., p. 36) - construindo o primado da educação para a cidadania: a tomada de decisão. Assim, para a autora, ao estar alfabetizado cientificamente, não se espera que aluno diga: ‘vesti essa blusa de lã porque ela é um bom isolante térmico e impede que meu corpo ceda calor para o ambiente’, mas que, ao contrário diga: ‘vesti essa lã porque ela é quente e eu estou com frio’. Uma pessoa cientificamente alfabetizada, nessa perspectiva, não precisa ter uma linguagem científica com seus pares, mas entender o processo de regulação térmica ao qual o corpo está sujeito.

Contudo, o modelo de mudança conceitual, aqui apresentado por Driver, vem sofrendo críticas no que se refere aos aspectos do construtivismo e das estratégias de ensino para mudança conceitual e buscam “construir um modelo alternativo para compreender as concepções dos estudantes dentro de um esquema geral que permita relacioná-las e ao mesmo tempo diferenciá-las dos conceitos científicos apreendidos na escola: a noção de perfil conceitual” (MORTIMER, 1996MORTIMER, E. F. Construtivismo, mudança conceitual e ensino de ciências: para onde vamos? Investigações em Ensino de Ciências, Porto Alegre, v. 1, n. 1, p. 20-39, 1996. Disponível em: http://www.if.ufrgs.br.
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, p. 20). O foco do perfil conceitual é tentar compreender quais as representações que um aluno faz de um conceito científico, seja por meio dos conhecimentos prévios, seja por meio do conhecimento científico. Com efeito, as diferentes interpretações, na aprendizagem científica, estariam relacionadas por componentes como:

[...] o realismo, que é basicamente o pensamento de senso comum; o empirismo, que ultrapassa a realidade imediata através do uso de instrumentos de medida, mas que ainda não dá conta das relações racionais; o racionalismo clássico, em que os conceitos passam a fazer parte de uma rede de relações racionais; o racionalismo moderno, em que as noções simples da ciência clássica se tornam complexas e partes de uma rede mais ampla de conceitos; e também um racionalismo contemporâneo, ainda em desenvolvimento, que englobaria os avanços mais recentes da ciência.

Neste modelo, portanto, cada pensamento é apresentado a partir das representações que uma pessoa tem, nas diferentes experiências com o objeto. A concepção de perfil conceitual, desta maneira leva em consideração as ideias de Bachelard sobre Perfil Epistemológico que “mostrou que uma única doutrina filosófica não é suficiente para descrever todas as diferentes formas de pensar quando se tenta expor e explicar um simples conceito” (MORTIMER, 1996MORTIMER, E. F. Construtivismo, mudança conceitual e ensino de ciências: para onde vamos? Investigações em Ensino de Ciências, Porto Alegre, v. 1, n. 1, p. 20-39, 1996. Disponível em: http://www.if.ufrgs.br.
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, p. 29). O perfil conceitual, nesta perspectiva, leva em consideração as concepções e representações que possibilitam a convivência entre os saberes populares e os científicos.

De certa maneira, não se pode pensar outra coisa a não ser que, com a “modernidade, nasceu a pedagogia que deseja ser vista como ciência, como formação humana que tende a controlar racionalmente as complexas e muitas modalidades educacionais que ativam o próprio processo” (MARQUES; FIGUEIREDO; GALLO, 2013MARQUES, D.; FIGUEIREDO, G.; GALLO, S. A função pedagógica do educador - Apontamentos Sobre Multiplicidade e Diferença. In: Educação Menor: Conceitos e Experimentações. Grupo Transversal. Curitiba: Prismas . 2013., p. 31) educacional e, por isso, no decorrer de sua história a educação tende a promover métodos, possivelmente, com o intuito de produzir a ideia de que há uma evolução, melhoria das práticas pedagógicas na transição do que era antigo ou tradicional para o que é novo ou moderno. Quantas vezes a escola não induziu o professor a abraçar tais métodos como um “livro mágico de receitas” para aprendizagem? Isso, portanto, deve ser analisado com mais critério. Podemos pensar que uma teoria que leva em consideração que a aprendizagem acontece em um processo sociocultural, passadas de geração em geração e, ao mesmo tempo, defende a ideia de que o conhecimento não pode ser transmitido e sim construído se mostra, no mínimo, contraditória. Ou quando valoriza ao mesmo tempo em que negligencia os conhecimentos prévios em detrimento dos científicos. Ou ainda, o que pode ser determinado, num modelo de construção de conhecimento, como novo, como velho? Ou melhor, quem determina o que é novo ou velho no processo de aprendizagem? Talvez seja preciso movimentar questões como estas para problematizar se a aprendizagem que tais teorias esperam, anseiam, realmente é possível. No ensino de ciências, influenciado pelo cientificismo, isso é ainda mais problemático, visto que o conhecimento científico ou uma teoria científica é construído dentro de rigoroso padrão de métodos e normas, o método científico, e por isso, é distanciado da experiência e das concepções prévias. Como se entra em uma cultura tão asséptica? Que noções um aluno pode ter de conceitos como gene, átomo, dentro de tal perspectiva? Como se espera do aluno uma tomada de decisão se o seu pensamento está “comprometido” com seus esquemas cognitivos, e que tais esquemas se “comprometem”, por sua vez, com um pensamento racional, régio? De certo, o que se preza nesta teoria é que conceitos não podem ser construídos, mas definidos. Será que uma pessoa vai deixar de existir, deixar de viver se não souber explicar um fenômeno científico, dentro dos padrões cientificistas? Aprender, nesses pressupostos, nos parece uma maneira de querer a determinação de um bom método, uma receita, ideias bem articuladas para aprendizagem e se coloca, como já vimos, sob os efeitos da ciência de Estado e produz uma aprendizagem meramente reprodutora, mecanicista, que tende a direcionar a aprendizagem, mesmo com todos os esforços, a uma esquemática racional, pura e simplesmente.

2. A LINHA NÔMADE: O QUE VAZA?

2.1. Da ciência nômade e a sua condição de pensar

Para Deleuze (1997DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Trad. Peter Pal Pelbart. v. 5. Rio de Janeiro: Ed 34. 1997.), ciência ou o pensamento nômade trata-se de um “gênero, ou um tratamento da ciência, que parece muito difícil de classificar, e cuja história é até difícil de seguir” (DELEUZE, 1997DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Trad. Peter Pal Pelbart. v. 5. Rio de Janeiro: Ed 34. 1997., p. 24). Ela apresenta-se dentro de um modelo, mas um modelo cujas características se divorciam da acepção costumeira de uso.9 9 Deleuze (1997) usa o termo modelo, mas como o próprio autor diz, foge de uma significação costureira, isto é, a palavra modelo nada tem de receita, prescrição, guia, mas os modos sobre o qual o pensamento da ciência que ele chama nômade opera. Esse modelo tem por característica: o fluxo, pois, é hidráulico; o devir,10 10 Para Deleuze (2004), o pensamento se faz sempre por questões que ele pode movimentar, e “enquanto andamos à volta dessas questões há devires que operam em silêncio, que são quase imperceptíveis [...], que são orientações, direções, entradas e saídas” (p. 12), que nada tem a ver com imitação, assimilação, mas uma dupla captura, uma mistura entre dois “mundos” - o pensamento e as questões por ele movimentadas - que não tem nada a ver um com outro. Em Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (vol. 4), Deleuze e Guattari oferecem uma interessante leitura sobre o conceito. pois, acontece em meio heterogêneo; é turbilhonar, pois, o seu espaço é aberto; e por último, tal modelo é problemático, por metamorfoses, criações, acontecimentos. Isso significa que no pensamento nômade, “as figuras só são consideradas em função das afecções que lhe acontecem (...). Há aí toda sorte de deformações, transmutações, passagem ao limite, operações onde cada figura designa um ‘acontecimento’, muito mais que uma essência” (DELEUZE, 1997DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Trad. Peter Pal Pelbart. v. 5. Rio de Janeiro: Ed 34. 1997., p. 25). Portanto, o pensar nômade instala-se nas singularidades do acontecimento, que acontece por meio daquilo que um objeto pode emitir como problema para movimentar o pensamento.

Nada, no pensamento nômade, está dado em uma “caixinha cognitiva” e sobre o qual se entra em concordância com o que já está estabelecido. No nomadismo pensar não é um ato natural. Pensar, no nomadismo, por meio dos acontecimentos é tornar o pensamento a quase-causa do que se produz em nós, o que mostra todo o esplendor impessoal e pré-individual que algo ou alguma coisa desperta, é “uma espécie de salto no próprio lugar de todo o corpo que troca sua vontade orgânica por uma vontade espiritual, que quer agora não exatamente o que acontece, mas alguma coisa no que acontece” (DELEUZE, 2009DELEUZE, G. Lógica do Sentido. 5ª ed. Trad. Luiz Roberto Salinas Forte. São Paulo: Perspectiva. 2009., p. 152). É toda uma “poética de viver”, pois, não há como explicar as relações que se estabelecem quando algo ou alguma coisa dá ao pensamento o que pensar ou ao corpo o que sentir e experimentar.

Desta forma, o pensamento nômade nada cria, nada movimenta sem sua carga de provocação, de força com os encontros e com os signos. De onde vem essa carga? Das forças moventes do fora que estão em conexão com o pensamento. No nomadismo o pensamento não tem nada de interior (partindo da ideia psicologista, marcado por estruturas e esquematismos), nada tem a pensar sobre si mesmo, sobre ideias representacionais de uma verdade, essencialidades. Ele é os acontecimentos, os encontros a que se está sujeito. Isso dispara como um alerta quando Deleuze (1992DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34. 1992., p. 103) coloca que “o pensar não é nem um fio estendido entre o sujeito e o objeto, nem a revolução de um em torno do outro” (DELEUZE, Idem), mas acontece pelos efeitos de um sobre o outro. Pensar a toda sorte de encontros é pensar as coisas e os seres em relação e essa relação em variação com a contingência, com o acaso.

O meio nômade funciona como resistência, ou seja, é irredutível a qualquer tipo de dominação, soberania, fissurando o espaço estriado de um aparelho de Estado que corre em torno de um território delimitado ou centralizado nas grandes linhas de um modelo majoritário que é estabelecido pela lógica da evidência. Seu espaço, portanto, é liso, é o que vaza, é o que se amplia do plano estriado e consiste de linhas conectáveis o tempo todo, de vetores nas quais as singularidades se distribuem, no qual há sempre uma corrente graças à qual os fluxos arrastam sempre para “mais ali”, e “ali” e ir novamente, para onde o poder da ciência de Estado ainda não chegou. Portanto, a ciência nômade é, por natureza, conquistadora, ocupa território, sem, contudo, apropriar-se dele, sem preenchê-lo.

2.2. Das conexões nômades e o território da educação

É preciso ter certo compromisso com um pensamento que não supõe mais um sujeito constituído em si mesmo, como sempre foi exigência das clássicas ideias de aprendizagem que sempre buscaram “um plano de análise, de onde se pudesse compreender e conduzir o exame das estruturas da consciência” (DELEUZE, 2001DELEUZE, G. Empirismo e Subjetividade: ensaio sobre a natureza humana segundo Hume. São Paulo: Editora 34. 2001., p. 94). Escapar a isso só um pensamento compromissado com a heterogeneidade com a multiplicidade. A aprendizagem, nas linhas nômades, quer a libertação das multiplicidades negligenciadas na educação em ciências, a despeito da universalização, sedentarização, que a educação, como um campo minado pela ideia moderna de conhecimento, colocou a aprendizagem, a saber, como a capacidade que uma pessoa tem em corresponder ao entendimento sobre o objeto por meio de seus esquemas cognitivos, pura e simplesmente, e o professor um mediador, ativador desse processo. Aliás, essa sempre foi a esquemática educacional, colocar o professor (suas práticas) e o aluno (seus esquemas cognitivos) como núcleo, centro do processo de aprender. A educação, o território da educação, da escola está cheio de princípios que tentam recodificar aquilo que não “pára de se descodificar no horizonte” (sic), (DELEUZE, 2006DELEUZE, G. Diferença e Repetição. 2ª ed. Trad. Roberto Machado; Luiz Orlandi. Rio de Janeiro: Graal. 2006., p. 320). Os parâmetros, os contratos, as metas educacionais são máquinas de codificações que sempre trataram a aprendizagem senão como um modelo, mas por meio de modelos, convenções que determinam um fundamento ao sujeito sob normas do que seja o de reproduzir um “bom pensamento”.

2.3. Do nomadismo como condição da aprendizagem

Pensamos que o processo de aprendizagem desenha suas linhas pelo nomadismo. Há uma vitalidade nômade, que faz da aprendizagem uma potência positiva, indefinida, insuspeita, inventiva que evoca modos de vida singular, ao aprendiz e mesmo ao professor no processo educativo, “que não são mais aprisionadas na individualidade fixa do Ser [...] nem nos limites sedentários do sujeito [...] alguma coisa que não é individual nem pessoal e que, entretanto, é singular” (ULPIANO, 2013ULPIANO, C. Gilles Deleuze: a grande aventura do pensamento. Rio de Janeiro: Fumenac Livros. 2013., p. 97) e que faz uma aula de ciências entrar em variação. Variação porque o “não senso e o sentido não estão mais numa oposição simples, mas copresentes um no outro em outro discurso” (ULPIANO 2013ULPIANO, C. Gilles Deleuze: a grande aventura do pensamento. Rio de Janeiro: Fumenac Livros. 2013., p. 97) que podemos chamar de “experimentar de outra forma” um conteúdo de ciências, por exemplo.

Nos modos inventivos nômades, o pensamento não diz respeito a uma realidade objetiva,11 11 Segundo Ulpiano (2013, p. 153 e 154) a realidade objetiva ou formal é um modo de pensar a ideia ou se referir a qualquer coisa representada por aquilo o que ela denota ou a representação de qualquer coisa com a ideia que se tem dela. Por exemplo, a Ideia de triângulo é o modo de pensamento que representa o triângulo. já não está em um plano de análise, exclusivamente, como foi posto acima. O pensamento inventivo se constitui com o dado, e se constitui dessa maneira na medida em que o dado “é o fluxo do sensível, uma coleção de impressões, imagens” (DELEUZE, 2001DELEUZE, G. Empirismo e Subjetividade: ensaio sobre a natureza humana segundo Hume. São Paulo: Editora 34. 2001., p. 95) que o possibilitam viver uma vida de maneira distinta da que estava acostumado. Desta forma, o pensamento não age mais sobre alguma coisa, a potência do pensamento não está mais na ação sobre o objeto, mas nas singularidades, nas multiplicidades que afetam e por isso “não representa nada [...] e diz das relações entre a intensidade e a forma que, de algum modo, vai associar-se ao problema das ideias que seria como as variações da forma, as intensidades da forma, sua ecceidade” (ULPIANO, 2013ULPIANO, C. Gilles Deleuze: a grande aventura do pensamento. Rio de Janeiro: Fumenac Livros. 2013., p. 154, grifo nosso). Portanto, a representação sobre alguma coisa (atual/extensões) não diz nada ao pensamento se não entrar em relação com as singularidades, as multiplicidades (virtual/intensivas) que a fazem entrar em variação (longitude), sob o conjunto dos afectos e, portanto, seus graus de potência (latitude). Todas essas relações que no pensamento inventivo se estabelecem dizem respeito às condições do acontecimento (efetuação/contra-efetuação) e são inerentes ao nômade.

Podemos dizer, então, que em uma aula de ciências, o atual concerne ao virtual, ou seja, aquilo que se atualiza, a saber, as informações, os conteúdos científicos, funcionam apenas em relação a um virtual, isto é, as singularidades, as multiplicidades. Em outras palavras, as informações, os conteúdos se abrem para a experimentação com um campo problemático trazido pelos encontros, pelos signos e colocam aprendiz e professor em variação por aquilo que tem o poder de afetar, sem isso, todas as informações ditas correm o risco de ficar no vazio. Isso tudo nos força a dizer: pensar já não se faz de um a outro ponto em linha reta, como se convencionou com o pensamento da tradição, mas na movimentação do pensamento a linha se curva, se atravessa, se dobra, se desdobra, sempre numa relação de forças.

Assim podemos dizer, primeiramente, que a aprendizagem está em relação, conexão com o que afeta. Porque, a aprendizagem não acontece do nada, ela é inseparável daquilo que pode ser movimentado como problema. Com isso, a aprendizagem se contrapõe radicalmente à ideia de que pensar é um ato natural, transcendente, ou seja, que a ideia é algo que está além do pensamento, que a definição das coisas já está produzida, cabendo apenas ao sujeito reproduzir, contemplar, “aprender carrega consigo uma violência, um adestramento diverso daquele que caracteriza o saber” (LA SALVIA, 2015LA SALVIA, A. L. A extração de problemas de uma pedagogia do conceito. Campinas: [s.n]. 2015., p.74) e que está sempre voltado primeiro para uma inteligência que é operada pela plena posse de uma solução ideal ao problema.

Por concernir ao problemático a aprendizagem na linha nômade, em segundo lugar, não é contemplativa, porque as coisas, os objetos não estão para serem encontrados, achados, mas criados, inventados. Aprender “é penetrar no universal das relações que constitui a Ideia e nas singularidades que lhes correspondem” (DELEUZE, 2006DELEUZE, G. Diferença e Repetição. 2ª ed. Trad. Roberto Machado; Luiz Orlandi. Rio de Janeiro: Graal. 2006., p. 237), e não tem um fio, repito mais vez, esticado entre o saber e o aprender. É necessário que o aluno entre em relação com o ensino de ciências, que seu próprio corpo singular entre em relação com processos de aprender.

Essa “experimentação implica sair do perímetro delimitado pelo sistema de organização para se aventurar no e com o desconhecido, incorporando as vicissitudes do percurso, tomando para si a instabilidade do mundo, operando com o não controle, com a indeterminação” (GODOY, 2013GODOY, A. Transkafka: uma experimentação. In: Educação Menor: Conceitos e Experimentações. Grupo Transversal. Curitiba: Prismas . 2013. p. 133), portanto, a experimentação, as relações, a mistura dos corpos, os encontros, por sua natureza involuntária e problemática, trazem para a aprendizagem uma indeterminação, no sentido de que não se sabe como alguém aprende, posto que aprender envolve a exploração dos pontos singulares do problema, ou melhor, envolve conjurar os pontos notáveis do aluno com os pontos singulares do campo problemático disparado em seu pensamento. No ensino de ciências, no território da sala de aula, as informações, os conteúdos, as definições criadas pelo conhecimento científico sobre o que uma criança deve saber sobre ciências (ciência régia) podem ser experimentados de outra maneira, de várias maneiras (ciência régia ou nômade). Como esse território da ciência maior ou de Estado pode ser fissurado nessas experimentações menores ou nômades em uma aula de ciências? Tudo parte da abertura a um campo coletivo de forças, exploração, experimentação com as multiplicidades, as singularidades, os afectos que escapam ao controle e que fomentam modos de se lidar com o problema, portanto, não há um modelo que se possa seguir.

Finalmente, por relacionar-se a uma experimentação fomentada por um campo problemático a aprendizagem concerne ao plano de imanência que é o que “dá do que significa pensar, fazer uso do pensamento, se orientar no pensamento” (DELEUZE; GUATTARI, 1992DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34. 1992., p. 47), o pensamento é imanente, mas, imanente a quê? O plano de imanência dá o que pensar porque nele existem elementos que possibilitam compor com os encontros, ou seja, o plano de imanência dá a possibilidade de experimentar o problema. É o corte, na multiplicidade caótica que é um acontecimento, de onde saltam as singularidades, que possibilitam criar, inventar. É essa a possibilidade que faz a aprendizagem no ensino de ciências “ponto de coincidência, de acumulação, de condensação de seus próprios componentes” (DELEUZE, 1992DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34. 1992., p. 28). Portanto, a experimentação com o problema permite recolher esses elementos e inventar modos de fomentar o problema movimentado.

Podemos dizer que o que mobiliza a aprendizagem é menos a resposta a um problema, do que uma maneira de juntar elementos para enfrentar o problema. Assim o problema faz da aprendizagem uma heterogeneidade, um incorporal e não podemos mais dizer outra coisa da aprendizagem que não seja: invenção, ou melhor, não há mais lugar para um sujeito ou modo de pensar sem o qual não se invoque também uma competência inventiva.

ALGUMAS PALAVRAS...

O método científico fortifica o padrão científico sobre o qual a Ciência de Estado legitima seu discurso, seja na escola, na família, na sociedade. Portanto, a ciência de Estado nasce da possibilidade de um pensamento representado pela adequação, segmentaridade, comprovado “pelos fatos”, o “caso Galileu” nos mostrou como a ideia de modernidade instituiu o advento do método científico como o único capaz de “salvar o pensamento” dos sentidos, das sensações, dos afectos, de um tipo de pensamentos em estatuto de “verdade”, não apenas porque é carregado de subjetividades, mas porque se desvincula da grande linha de adequação da Ciência de Estado.

Falar que a aprendizagem também corre por linhas nômades é considerar uma aula como acontecimento a despeito de que o acontecimento “produz-se no caos, em uma multiplicidade caótica” (DELEUZE, 1991DELEUZE, G. A dobra: Leibniz e o barroco. Campinas, SP: Papirus. 1991., 132), que colocam em variação conceitos, nomes, fórmulas, movimentando, tirando da passividade de responder dentro das determinações científicas. Essas variações movimentadas pelas forças que possibilitam, em tais encontros, uma experimentação com um problema não “é constituído na interioridade, como se dependesse de um sujeito cognoscente” (BRITO, 2015BRITO, M. dos R. de. A educação por vias da diferença. In: Entre as linhas da educação e da diferença. São Paulo: Livraria da Física. 2015., p. 39), mas experimentação involuntária, indeterminada, no sentido de que não há uma “natural” vontade para pensar e construir uma resposta. Portanto, podemos dizer que o leitmotiv do pensamento é seu caráter acontecimental. Todas as informações, dados, conceitos vistos em uma aula poderiam “vagar no nada” a não ser pelas composições singulares e intensivas que movimentaram modos inventivos. Portanto, o que caracteriza uma aula como acontecimento, “com efeito, é menos a ausência de determinações que a velocidade infinita com qual elas se esboçam e se apagam) ” DELEUZE, 1992DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34. 1992., p. 53). Nessas circunstâncias, uma aula vale mais pelas suas composições intensivas do que pelas suas estruturas. Posto que as intensidades imprimem uma velocidade, um movimento em tais estruturas. Assim, podemos dizer que a aprendizagem diz respeito a um modo inventivo de lidar com uma questão. Podemos dizer que não há aprendizagem sem perdas dos objetivismos produzidos em uma aula.

Quando se disse anteriormente que tudo isso pertence a uma nova poética de viver, era disso que se queria falar. Mas mais ainda, pois este modo de vida como invenção, não tem apenas relação com os acontecimentos, com as suas forças, multiplicidades, singularidades, intensidades, mas, também aos seus movimentos, são eles que arrastam sempre um “pouco mais adiante” que faz passar, fluir, todas as formas de codificação da ciência de Estado. A aprendizagem como invenção é pensada nessa mobilidade intensiva, possui uma “subjetividade móvel, desterritorializada [...] promovendo linhas de fugas aos modos de sujeição e imposição daqueles que desejam uma vida reativa e sem força, fincada pela representação” (BRITO, 2015BRITO, M. dos R. de. A educação por vias da diferença. In: Entre as linhas da educação e da diferença. São Paulo: Livraria da Física. 2015., p. 329, 330). Esses estados inventivos são empreendimentos dolorosos. Dolorosos no sentido de que “em nossos regimes, os nômades são infelizes” (DELEUZE, 2006bDELEUZE, G. A Ilha deserta: e outros textos. São Paulo, 2ª reimp: Iluminuras. 2006b., p. 327), e este mesmo regime colocou o corpo docente dentro de um plano intelectual: professor ensina. Sair desse plano, fazer o movimento nem sempre é fácil.

Portanto, se existir um método para aprender ciências, ele é móvel, é um “sistema aberto, lugar ou a sede de uma troca de fluxos: nele eles entram, dele eles saem [...]. Esse método é uma estratégia e não mais um contrato, uma tática e não mais um pacto, um jogo mortal e não mais um coito” (DELEUZE, 2006bDELEUZE, G. A Ilha deserta: e outros textos. São Paulo, 2ª reimp: Iluminuras. 2006b. p. 192). É nessa perspectiva que a aprendizagem pela experiência inventiva, no meio heterogêneo move-se. Uma aula, mesmo que programada, treinada, está dentro de um campo marcado por forças que liberam fluxos, que explodem em linhas de fugas. Como diz Amorim (2011AMORIM, A. C. R. Deleuze e a Educação. In: Coleção Filósofos e a Educação: Paulus Editora. 2011.), talvez seja preciso “ir atrás daquilo que parece tão organizado perspectivamente, tão esquadrinhado para que se encontre o comum, o repetido extravasar desta repetição desse comum para encontrar o inédito do banal, o inédito do comum na repetição da representação uma possibilidade da diferença”. Isto tudo, supõe alunos e professores vivenciando a ação do aprender e do ensinar nas fissuras, nos devires, no acaso, tudo o que necessariamente não tem uma importância imediata.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Conceito discutido e pensado a partir do livro Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia - vol. 5- principalmente as discussões que Gilles Deleuze e Felix Guattari fazem no primeiro capítulo - 1227 - TRATADO DE NOMADOLOGIA: A MÁQUINA DE GUERRA.
  • 2
    Deleuze refere Michel Serres, em seu livro O nascimento da física nos textos de Lucrécio: correntes e turbulências, como sendo o primeiro autor a detectar um gênero de ciências fora do sentido régio ou legal estabelecido pela História, que Deleuze chamará de ciência nômade.
  • 3
    A cognição Infantil, segundo Kastrup (2000), é tomada pelas teorias do desenvolvimento em “categorias negativas como: inexistência de pensamento, ausência de função simbólica, irreversibilidade de formas, inteligência pré-operatória, pré-lógica, etc.” (p. 374)
  • 4
    O auto destaca diversas iniciativas para o ensino de Ciências para a sua melhoria, como um programa oficial para o ensino de Ciências estabelecido pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC); a descentralização das decisões curriculares do MEC pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDBEN, 4024/61); A formação de um grupo de professores para a construção de material didático e experimentais no Instituto Brasileiro de Educação Ciência e Cultura (IBECC) da Universidade de São Paulo.
  • 5
    Para Stengers (2002), a ficção é a elaboração abstrata dada por um autor sobre um fato ou fenômeno.
  • 6
    A autora descreve alguns acontecimentos como: necessidade de uma ciência autóctone, durante e pós-guerra, para se tornar autossuficiente industrialmente; a mudança do papel da escola em função das mudanças políticas vividas no país; o período da ditadura militar que exigia a formação de mão de obra trabalhadora para o desenvolvimento econômico do país.
  • 7
    Baseado no romance de Homer H. Hickam Jr. e dirigido por Joe Johnston e roteiro adaptado de Lewis Colick (1999).
  • 8
    No decorrer do texto, usaremos apenas a expressão construtivismo, construtivista.
  • 9
    Deleuze (1997) usa o termo modelo, mas como o próprio autor diz, foge de uma significação costureira, isto é, a palavra modelo nada tem de receita, prescrição, guia, mas os modos sobre o qual o pensamento da ciência que ele chama nômade opera.
  • 10
    Para Deleuze (2004), o pensamento se faz sempre por questões que ele pode movimentar, e “enquanto andamos à volta dessas questões há devires que operam em silêncio, que são quase imperceptíveis [...], que são orientações, direções, entradas e saídas” (p. 12), que nada tem a ver com imitação, assimilação, mas uma dupla captura, uma mistura entre dois “mundos” - o pensamento e as questões por ele movimentadas - que não tem nada a ver um com outro. Em Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (vol. 4), Deleuze e Guattari oferecem uma interessante leitura sobre o conceito.
  • 11
    Segundo Ulpiano (2013, p. 153 e 154) a realidade objetiva ou formal é um modo de pensar a ideia ou se referir a qualquer coisa representada por aquilo o que ela denota ou a representação de qualquer coisa com a ideia que se tem dela. Por exemplo, a Ideia de triângulo é o modo de pensamento que representa o triângulo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    20 Jun 2016
  • Aceito
    22 Nov 2017
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