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O caráter traumático da sexualidade

O caráter traumático da sexualidade1 Nota

Heitor O'Dwyer de Macedo

Todos vocês, sem exceção, daqueles que começaram este ano seus estudos de Psicologia aos que os terminam no final deste ano, estarão em pleno apogeu profissional no próximo milênio.

No último século, a reflexão sobre a relação terapêutica transformou-se de maneira radical e, com ela, o lugar do psicólogo no universo de saúde mental. Em todos os lugares do primeiro mundo o psicólogo já compartilha com os médicos a responsabilidade e o poder de decisão nas orientações do trabalho institucional. Por outro lado, no nível dos consultórios privados a prática dos psicólogos afirmou-se e recebeu o reconhecimento das autoridades de tutela. Isso foi conseqüência de um imenso trabalho tanto teórico quanto político que cada geração tem de retomar por sua conta. Neste trabalho, a psicanálise teve um papel preponderante, reconhecendo nos psicólogos os agentes capazes de responder às exigências transferenciais do encontro com o inconsciente, reafirmando, com Freud, o caráter não médico da prática da psicanálise.

É evidente que este estado de coisas é de uma exigência máxima. Tanto mais quando se vive no Brasil, onde as questões sociais, o estado das instituições de saúde mental e o lugar dos psicólogos neste mesmo universo de saúde mental requer um trabalho de grande tenacidade.

Sou um psicanalista que vive faz trinta anos em Paris. É na perspectiva de poder ajudá-los a refletir sobre estas questões, a partir da minha experiência, que os convido a dividir comigo hoje um certo número de interrogações.

Vocês sabem que a grande descoberta de Freud, o inconsciente, é solidária do reconhecimento da sexualidade infantil. O escândalo de uma tal afirmação para o pensamento é sempre atual e, vez por outra, podemos ler aqui e ali as reações violentas dos bedéis do pensamento que gostariam de impedir que tais questões existissem na nossa cultura. Não menos estranha é a posição adotada por certos psicanalistas ou psicólogos que fazem como se a questão da sexualidade e suas conseqüências para o humano fossem de uma grande simplicidade. Foi por isto que pensei trazer para vocês uma descrição daquilo que ocorre no mundo psíquico de um bebê para que a sua sexualidade seja harmoniosamente integrada à sua realidade interna. E a importância do meio ambiente para que tal integração se faça.

Um bebê é amamentado. A mãe lhe dá o seio. Este seio, ao mesmo tempo que lhe dispensa alimento, é aquilo que o excita e aplaca esta excitação. Sobre a experiência de amamentação espraia-se uma experiência sexual - esta é a descoberta freudiana. O seio é, ao mesmo tempo, fornecedor de leite e prazer. Para Freud, este prazer é um prazer sexual. O seio é um objeto sexual, um objeto da pulsão sexual.

Agora vejam bem. O bebê tem dificuldade de reconhecer que o objeto da pulsão, o seio, pertence à mãe total, a que cuida dele. Se o bebê não quer perder nem uma nem outra destas experiências, para ele é difícil aceitar que ambas tem a mesma fonte, o mesmo suporte. A mãe em boa saúde psíquica não fica assustada com esta situação. Ela oferece o objeto da pulsão (o seio como objeto sexual) sem que isto estrague a sua existência enquanto mãe que cuida. Como esta questão se apresenta no espaço psíquico do bebê ?

Lembremos que na primeira experiência que o bebê tem do seio, o espaço do recém nascido não pode ser destinguido do espaço materno. Momento em que referir-se mesmo ao recém nascido é absurdo, de tal modo o espaço deste não pode se conceber sem referência ao espaço do entorno materno (uma mãe em boa saúde psíquica acolhe e deseja este período de indistinção). Se nós supomos que durante o tempo em que esta indistinção foi necessária, as coisas se desenrolaram da melhor maneira possível - quer dizer, com uma mãe capaz de responder às necessidades psíquicas do seu bebê e um meio ambiente (que nos inícios é inseparável do espaço materno) que não invadiu (ou invadiu muito pouco) o espaço do bebê - nós podemos, então, dar-nos conta do imenso trabalho psíquico ao qual o bebê é confrontado nesta situação que analisamos. Ele deve reconhecer que a mesma pessoa que ele ama de amor, o amor calmo, é aquela que ele ama de paixão (o amor passional). A ternura é anterior à pulsão (a observação é de Freud). O amor primário, este da época na qual o espaço psíquico do bebê e o espaço psíquico materno não são distintos, é impiedoso e sem culpa. Mas o momento de reconhecer como distintos o amor e o pulsional a ele intricado, é um momento muito mais complexo, muito mais rico. O momento no qual o bebê deve integrar o sexual em seu espaço psíquico, não é aquele do aparecimento do pulsional, que aparece desde que a criança vem ao mundo. O momento de que falamos é aquele em que ele deverá distinguir duas ordens de experiência. A experiência do amor e a experiência da sexualidade.

Cada uma destas experiências tem sua lógica própria e reclama, portanto, um espaço interno diferenciado. Se o pulsional, o sexual, está desde sempre presente, é a um certo momento em que se apresenta esta exigência de lhe fazer um espaço diferenciado. E se isto não é evidente, é porque pode ser aterrorizante. Se amar alguém é poder compartilhar uma experiência do silêncio (o amor calmo) e, se o som do gozo e o furor do orgasmo podem ser experiências de encontro vividas na mutualidade, isto não impede que o reconhecimento da paixão venha reorganizar completamente aquilo que representa para um bebê a sua relação com a mãe (o silêncio de que falo aqui, que integra o conjunto da experiência que o bebê tem com o seu corpo é, evidentemente, situado na linguagem).

Num primeiro tempo as exigências pulsionais possuem um caráter perseguidor. O seio que deve ser devorado sexualmente como coisa total, mais além e independentemente do bom alimento que ele pode produzir é um seio perseguidor. Ou seja, num primeiro tempo de reconhecimento desta distinção, entre p amor de amor e o amor pulsional, o sexual persegue o amor. E, como o amor de amor é o que organizou, até o momento do reconhecimento desta distinção, a relação entre o bebê e sua mãe, é justificado dizer, que no primeiro tempo de separação destes dois aspectos da relação à mãe, o pulsional, o sexual, persegue aquilo que o constitui e o cerne do psiquismo do bebê. A isto deve-se acrescentar a grande intensidade com a qual um bebê em boa saúde psíquica vive toda esta complexidade. Podemos, portanto, começar a ter uma idéia da enorme tarefa psíquica que é a sua nesta situação na qual reconhece a dimensão sexual de sua relação com a mãe.

Um bebê em boa saúde psíquica, que se permite de devorar com deleite sua mãe na fantasia, encontra, no mais além dessa experiência, uma situação no melhor dos casos dolorosos, aterrorizante a maior parte das vezes. O que aconteceu com a mãe de amor ? Para o bebê, esta mãe de amor está ou machucada (e esta é a melhor hipótese) ou aniquilada. Quanto mais intensa for a experiência de satisfação pulsional quanto maior é a probabilidade de aniquilar, de não mais encontrar, nem no seu espaço interno, nem na realidade, a mãe de amor. A este momento é possível que o bebê possa odiar a sexualidade, da mesma maneira que ele pode odiar a mãe de amor se ela o deixa sem possibilidade de descarga diante das exigências pulsionais.

O que aterroriza o bebê é a impossibilidade de reencontrar a necessidade interna dos cuidados maternos. Nestes momentos, no lugar da mãe de amor existe um vácuo, isto se considerarmos a crise que atravessa o bebê em boa saúde psíquica de seu ponto de vista. É muito importante que enquanto o bebê devora a sua mãe de paixão na fantasia, a mãe real fique calma. Da mesma maneira, é muito importante que ela acompanhe e permita ao bebê viver a experiência desta crise. A mãe deve sobreviver a ela. Deve ser dado ao bebê todo o tempo necessário para que ele compreenda que a mãe de amor voltará, que ela não foi aniquilada. Ele adquirirá esta confiança após ter atravessado esta crise inúmeras vezes. Cada travessia é diferente. Se uma mãe pode ficar muito feliz quando ela compreende que seu bebê pode viver uma intensa experiência sexual, esta mesma mãe pode não tolerar o imenso desamparo que invade o bebê quando ele não consegue reencontrar a mãe de amor, após ter devorado com paixão a mãe na fantasia. O intolerável neste desamparo, para a mãe, é que ela nada pode fazer para evitá-lo. Sobreviver como mãe, ficar calma, significa não se identificar com a fantasia devoradora do bebê, o que implica, evidentemente, que a mãe possa reconhecer a excitação pulsional, sexual e a satisfação orgástica como coisas boas. Ora, estas coisas, neste momento, trazem com elas o desamparo. O desamparo é inevitável. Ele é a primeira afirmação espetacular da autonomia absoluta do bebê em relação à mãe, mesmo que esta não seja a primeira experiência desta autonomia. Uma mãe que, pelas razões mais diversas, não permite a seu bebê de atravessar sozinho este desamparo ligado às necessidades internas de reencontrar a mãe de amor, compromete radicalmente para o bebê a solução dos processos de distinção e de separação entre a lógica de uma mãe de amor e a lógica de uma mãe de paixão.

Abro parêntese. Numa cura psicanalítica, quando estes parâmetros se reatualizam e que é requerido ao analista de acompanhar seu paciente num desamparo similar, já que se trata de respeitar este desamparo, podemos então, eticamente, dizer que a cura virá como uma mais valia do processo. Mas a maior parte do tempo, trata-se, primeiro, de curar as feridas ou as mutilações causadas pelo meio ambiente interno e externo do sujeito.

Voltemos ao nosso bebê. O que se passa nele durante este desamparo? O bebê está inquieto pelo desaparecimento da mãe de amor, da mãe dos cuidados. Ele quer fazer algo que pode fazer, mas não sabe o quê. Num primeiro tempo, a única coisa que lhe é acessível é a de atravessar este desamparo com a idéia que ele pode fazer alguma coisa. Lembremos que durante todo este tempo a mãe está calma. Quando a necessidade de uma mãe de cuidados, de uma mãe de amor reaparece e que a mãe real responde a esta necessidade, o bebê reencontra a mãe de amor e compreende que este encontro tem algo a ver com a idéia que ele tinha de poder fazer alguma coisa . Na medida que a crise se repete, e graças à mãe que ampara a situação, o bebê poderá de maneira mais ou menos clara reconhecer sua inquietação e realizar a idéia que ele possui. Esta idéia é a de recusar a mãe de amor na sua imaginação. Quanto mais o bebê deixa um lugar para a mãe de amor nas suas fantasias, mais vasta pode ser a experiência da paixão. E quanto mais vasta é a sua experiência da paixão, mais sua inquietação se transforma em culpa de ter reduzido a mãe na fantasia a um objeto susceptível de ser devorado com deleite. E quanto mais ele reconhece sua implicação nesta mudança de registro da mãe, mais ele reforça a experiência da mãe de amor na fantasia. E assim por diante, o bebê começa a constituir uma mãe de amor e uma mãe de paixão na fantasia. Ele tem cada vez menos necessidade do amparo real da mãe.

A partir desta crise que atravessa um bebê em boa saúde psíquica, a fim de distinguir o amor da sexualidade, podemos fazer um inventário de algumas dificuldades maiores encontradas na clínica quando, pelas razões as mais diversas, o sujeito não pode reconhecer em si a experiência simultânea destes dois aspectos de sua relação com a sua mãe, o amor e a sexualidade.

Uma primeira série de dificuldades reagrupa-se em torno da idealização da mãe de amor como uma defesa contra as exigências pulsionais. Esta série inclui toda a gama de neuroses. A impossibilidade da mãe de sustentar o bebê durante o seu desamparo, apesar do reconhecimento da necessidade da travessia desse estado, pode ter como conseqüência a idealização da mãe de amor. Segundo o postulado que rege os processos inconscientes, e que diz que todo prazer depende do desejo do Outro, o bebê interpreta a impossibilidade de a mãe de acompanhá-lo neste desamparo, como uma proibição de devorá-la na fantasia. Neste caso, ao invés produzir uma separação entre o espaço do amor e o espaço da sexualidade, cria-se uma dissociação.

Uma outra série de dificuldades se reagrupa em torno da idealização da pulsão. Isto é, quando a pulsão vem compensar as carências da mãe de cuidados, da mãe de amor. Nesta eventualidade, o orgasmo, que consiste em devorar a mãe na fantasia, é uma experiência de satisfação que revela a extensão da dor por não ser amado segundo as suas necessidades psíquicas. Aqui também há dissociação entre o espaço do amor e o espaço da sexualidade. Toda tentativa do sujeito de reconhecimento da sua necessidade de amor satisfeito é vivida como uma perseguição. A sexualidade é utilizada como uma defesa contra a dor deste amor que lhe foi negado, ao ponto de funcionar como um anestésico ao sofrimento psíquico. Esta série de dificuldades recobre o campo das perversões.

A problemática da psicose remete a um tempo anterior ao trabalho psíquico de distinção entre amor e sexualidade. Esta problemática concerne às dificuldades que encontrou o sujeito na sua relação com a mãe de amor, com a mãe de cuidados, e na época em que o espaço psíquico do bebê que foi, não se distinguia do espaço psíquico materno que o amparava e dele se ocupava.

Tentei apresentar de uma maneira clara, simples e sucinta, a diferença entre neurose, perversão e psicose, a partir deste momento crucial da vida de um sujeito humano, quando deverá distinguir dois tipos de experiências que vive com a mãe, a experiência de amor, a experiência da sexualidade. Espero ter possibilitado que compreendam a extensão do problema e como é apaixonante tentar pensá-lo segundo a abordagem psicanalítica. Caso contrário, não culpem a teoria, mas o que teria sido, nas circunstâncias, as minhas próprias limitações diante de uma proposta tão difícil. Espero, de toda forma, que isto seja apenas o início de um diálogo. A seguir e em outras ocasiões, poderão contar comigo, no que depender de mim, para que continuemos a refletir juntos nesta perspectiva.

Sobre o autor

Heitor O'Dwyer de Macedo é psicanalista, membro titular do IV Grupo, Sociedade de Psicanálise da França. Doutor em Psicologia Clínica e Psicopatologia, Universidade de Paris VII (Sorbonne), França. Endereço para correspondência: 13 rue Valette, 75005 Paris, França.

1 Para um aprofundamento do tema aqui abordado, o leitor poderá se referir a meu livro "De l'amour à la pensée", Paris: Harmattan, 1994.

  • Nota
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Maio 2001
    • Data do Fascículo
      Jun 1998
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