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Criar para o tempo, tempo para o criar, para criar o tempo: uma revisitação da (ex) temporalidade na Recherche proustiana

To create for time; time for creation; to create the time: revisiting the (ex)temporality of Proustian Recherche

Resumos

Este artigo trata da relação entre temporalidade e criação na obra maior de Marcel Proust -- A la recherche du temps perdu -- com a intenção de discutir a extemporalidade como dimensão da existência e do processo de subjetivação.

Temporalidade; Subjetividade; Criação; Psicologia; Literatura; Proust


This work treats the relation between temporality and creation in Marcel Proust's masterpiece -- A la recherche du temps perdu -- and intends the discussion of the extemporality as dimension of the existence and of the process of subjectivation.

Temporality; Subjectivity; Creation; Psychologie; Literature; Proust


Criar para o tempo

Tempo para o criar

Para criar o tempo

Uma revisitação da (ex) temporalidade na Recherche proustiana1 1 Este artigo é parte substancialmente modificada da monografia apresentada ao laboratório "Psicanálise e Crítica Genética no manuscrito de A la Recherche du Temps Perdu de Marcel Proust", em agosto de 1997, sob a responsabilidade do Prof. Philippe Willemart, do Programa de Pós-Graduação em Língua e Literatura Francesa da Universidade de São Paulo. Uma versão simplificada foi apresentada na XVIII Semana de Psicologia da Universidade Federal do Ceará, em 27 de outubro de 2000.

José Celio Freire

Universidade Federal do Ceará

Resumo

Este artigo trata da relação entre temporalidade e criação na obra maior de Marcel Proust ¾ A la recherche du temps perdu ¾ com a intenção de discutir a extemporalidade como dimensão da existência e do processo de subjetivação.

Palavras-chave: Temporalidade, Subjetividade, Criação, Psicologia, Literatura, Proust.

Abstract

To create for time; time for creation; to create the time: Revisiting the (ex)temporality of Proustian Recherche

This work treats the relation between temporality and creation in Marcel Proust's masterpiece ¾ A la recherche du temps perdu ¾ and intends the discussion of the extemporality as dimension of the existence and of the process of subjectivation.

Key-words: Temporality, Subjectivity, Creation, Psychologie, Literature, Proust.

O extemporâneo na visada heideggeriana

A tradição privilegia o presente; a realidade, como presença plena, "é". Em Aristóteles (1952)2 2 "Il est donc clair que le temps n'est ni le mouvement, ni sans le mouvement" (Aritstóteles, p. 149). , o tempo é composto de inexistentes, mas é divisível; é derivado do movimento. "É portanto claro que o tempo não é nem movimento nem sem o movimento." (p. 149). O instante, por sua vez, é o divisor do tempo e o ligador do tempo, embora não lhe faça parte. "E se o instante mede o tempo, é enquanto que anterior e posterior (...) O instante é a continuidade do tempo (...) ele é o limite do tempo" (p. 151 e 157)3 3 " Et si l'instant mesure lê temps, c'est en tant qu'antérieur et postérieur (...) L'instant est la continuité du temps(...) il est la limite du temps." (Aristóteles, 1952, pp. 151 e 157). . Mas o que é, é desfeito pelo tempo. Ser plenamente é ser em repouso, logo o movimento é destruidor: "... pois o tempo é em si antes causa de destruição, já que é número do movimento e que o movimento desfaz o que é" (p. 155)4 4 "... car le temps est em soi plutôt cause de destruction, puisqu'il est nombre du mouvement et que le mouvement défait ce qui est" (Aristóteles, p. 155). .

Santo Agostinho (397/1987) passa da pesquisa do movimento ¾ a Física aristotélica ¾ para a alma (psicológica). Dá-se a distensão da alma, no presente composto, que é visão (atenção), memória e esperança (expectação), concomitantemente. "... o tempo não é outra coisa senão distensão (...) Seria para admirar que não fosse a da própria alma." (p. 226) O passado e o futuro coexistem no presente, e com o presente do presente. "É impróprio afirmar que os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras" (p. 222).

Em Kant (1781/1987), o tempo se inscreve na subjetividade transcendental, enquanto forma a priori da sensibilidade. Tempo e Espaço se correlacionam: a mobilidade e a dimensão espaciais pressupõem o tempo. A subjetividade transcendental, no entanto, se apóia no que não muda ¾ a substância é o que se mantém, o que permanece. "... o tempo (nada mais é) senão a condição subjetiva sob a qual podem ocorrer em nós todas as intuições.(...) a forma do sentido interno, isto é do intuir a nós mesmos e a nosso estado interno (...) condição formal a priori de todos os fenômenos em geral." (pp. 45-46) Coroa-se, assim, a metafísica da presença, onde uma subjetividade fundante e atemporal se a-presenta.

Bergson (1934), um crítico da tradição mas ainda fazendo parte dela, conceitua o tempo como duração (durée), puro devir. "...quando falamos do tempo, comumente, pensamos na medida da duração e não na duração mesma (...) a essência da duração está em fluir (...) na duração, vista como uma evolução criadora, há criação perpétua de possibilidade e não apenas de realidade." (p. 108, 110 e 113). Temos, assim, uma realidade móbil e temporal na qual "... não percebemos o tempo e o movimento, mas o esquema da mobilidade e da sucessão" (Silva, 1992, p.143). A temporalidade bergsoniana diz respeito ao campo da subjetividade e ao fluxo criativo de vivências. Todavia, é um tempo criativo que não permite quebras, persistindo, a contragosto, na plenitude da presença. Além disso, Bergson se oporá à idéia de um "nada", de uma falta, da negatividade da realidade.

Husserl (1959), em sua consciência (íntima) do tempo (imanente), trata de um tempo subjetivo, fenomenológico, onde um presente ex-tenso (estendido) ¾ antes-durante-depois ¾ se traduz em proto-impressões, retenções e protensões. Se antes fazia parte de um projeto fundacionista, que incluía a epokhé (redução fenomenológica), depois se associa ao campo da sensibilidade (do hilético) e destrói a esperança na fundamentação definitiva, pela "intuição" da não-presença. "Tratamos la realidad solamente en cuanto es realidad mentada, representada, intuída y conceptualmente pensada. Esto significa, con respecto al problema del tiempo, que nos interesam las `vivencias' del tiempo." (p. 55). Aproxima-se, assim, da afetação (do pathos) proporcionada pela obra de arte, por exemplo, abrindo caminho para a "diferença ontológica" heideggeriana.

Heidegger (1927/1996) oporá a um tempo vulgar (o da intratemporalidade) a temporalidade do dasein (ou extemporaneidade), enquanto facticidade, existência e decadência (queda). Esta temporalidade5 5 "La temporalité est desormais l'unité articulée de l'àvenir, de l'avoir-etê et du présenter, qui sont ainsi donnés à penser ensemble." (p. 129). (No capítulo dedicado a Heidegger: Temporalité, historialité, intra-tempralité. Heidegger et lê concept "vulgaire" de temps.) [A temporalidade é doravante a unidade articulada do porvir, do ter-sido e do apresentar-se, que são assim dados a pensar juntos]. incorpora tanto o porvir (possível) e o vigor de ter sido (fáctico), quanto a atualidade (situação fruto da abertura entre os dois primeiros momentos), que não podem ser confundidos com futuro, passado e presente. Heidegger (1927/1996) indica-nos: "Chamamos de temporalidade este fenômeno unificador do porvir que atualiza o vigor de ter sido" (Parte II, p. 120). O instante, em sua conformação acontecimental, é um conceito-chave, mas não uma unidade de tempo. O mesmo se pode dizer para antecipação e a repetição, que traduzem a assunção plena da mortalidade e da finitude. O intratemporal é relativo ao ôntico, ao cotidiano. Tem a ver com o tempo natural e o tempo histórico da cronologia, da cronometria, da cronografia e da cronosofia6 6 Em Ricoeur (1983): " Ainsi lê calcul et la mesure, valables pour les choses dones et maniables, viennent0ils s'appliquer surce temps datable, étendu et public. Lê calcul du temps astronomique et calendaire naît ainsi de la datation en fonction des occurrences de l'environnement." (p. 154). (Assim o cálculo e a medida, válidos para as coisas dadas e manipuláveis, vem se aplicar sobre este tempo `datável', estendido e público. O cálculo do tempo astronômico e do calendário nasce assim da datação em função das ocorrências do meio ambiente). (Nunes, 1992). O extemporâneo, diferentemente, é do domínio do ontológico, do extático7 7 "Il faut du même coup corriger l'idée de l'unité structurale du temps par celle de la difference de ses ekstases. (...) Le passage du futur au passe et au présent est à la fois unification et diversification." (Ricouer, 1983, p. 130). Comparar com nota 5, sobre a superação da noção de unidade. (ekstase) do ser fora de si, desenclausurado da subjetividade. O ser se coloca para além (ou aquém) dos entes.

Essa forma de pensar o tempo, não-linear, descontínua, no nosso entender se aproximaria do tempo proustiano da Recherche. Nela estariam implicadas a memória involuntária, as reminiscências e os esquecimentos, as repetições e os lapsos, as associações de impressões, afetos e idéias. O próprio Heidegger (1927/1996) assume em sua radicalidade esta relação entre recordar e esquecer: "(...) a recordação só é possível com base no esquecimento e não o contrário."(grifos do autor) (Parte II, p. 136). A fusão entre o passado, o presente e o futuro ocorreria num fluxo descontínuo, onde um acontecimento irruptivo encaminha o narrador para um ponto ou outro da rede emaranhada de lembranças, sensações e desejos. É quando, por exemplo, uma experiência presente de uma fantasia futura torna-se passado na interpretação. Dizendo com Proust (1989-1990):

Por isso não se deve temer no amor, como na vida habitual, tão-somente o futuro, mas também o passado, o qual não se realiza para nós muitas vezes senão depois do futuro, e não falamos apenas do passado que só se revela mais tarde, mas daquele que conservamos há muito tempo em nós e que de repente aprendemos a ler (p. 79).

É isto uma espécie de efeito pos-facto, como o que ocorre na situação analítica, quando o analisando ao resgatar uma situação passada e os sentimentos nela envolvidos, sob efeito de um retardamento, de uma postergação, "cria" o trauma. Figueiredo (1997) referirá o conceito freudiano de Nachträglichkeit ¾ posterioridade8 8 Em Heidegger vamos encontrar o equivalente Nachwirkene, segundo Ricoeur (1983, p. 141): "(...) le passe, qui n'est, qui n'est plus, a dês effects, exerce une influence, une action (Wirkung) sur le present. Cette action ultérieure (Nachwirkende) ¾ on dirait tardive ou après coup ¾ devrait étonner." [ o passado, que não é mais, tem efeitos, exerce uma influência, uma ação (Wirkung) sobre o presente. Esta ação ulterior (Nachwirkende) ¾ se diria tardia ou tarde demais ¾ deveria surpreender.] ¾ para o processo de constituição e reconstituição da experiência, seja ou não traumática, para fora da presentidade.

A partir do último Heidegger, o do ser como envio e retraimento, que se aproximou da metaforização poética quando sentiu os limites da linguagem filosófica, Derrida (1972/1991) irá trabalhar o conceito de différance. Diferir é, ao mesmo tempo, deixar marcas ¾ fazer a diferença ¾ , e adiar. Quanto à temporalidade, no agora presente o sentido permanece em aberto, retendo diferenças do "passado" e antecipando diferenças do "futuro". É a extratemporalidade, que se aproxima da criação de posteridades como a aludida logo acima. E Proust (1989/1990) volta a esclarecer-nos:

...diversas impressões bem-aventuradas, que tinham em comum a faculdade de serem sentidas simultaneamente no momento atual e no pretérito (...) o ser que em mim então gozava dessa impressão e lhe desfrutava o conteúdo extratemporal (...) fora do tempo.(...) o ser que me habitara naquele instante era extratemporal, por conseguinte alheio às vicissitudes do futuro. Tal ser nunca me aparecera, nunca se manifestara senão longe da ação, da satisfação imediata, senão quando o milagre de uma analogia me permitia escapar ao presente. Só ele tinha o poder de me fazer recobrar os dias escoados, o Tempo perdido, ante o qual se haviam malogrado os esforços da memória e da inteligência (p.152-3).

O tempo da diferença: a memória das impressões ou o involuntário dos signos

Kristeva (1994)9 9 A importância do sofrimento, da impressão e da memória na obra proustiana. e Deleuze (1987)10 10 A busca da essência na arte como unidade da diferença. têm posições diferentes quanto à importância da memória e da inteligência, das impressões e dos signos, na produção literária. Enquanto a primeira enfatiza o papel das sensações, da percepção e das "impressões" na construção da Recherche, colocando a inteligência em segundo plano, o segundo valoriza os signos, tornando-os a matéria-prima da obra, invertendo a relação entre a matéria (elemento da sensibilidade) e a obra-prima. Enquanto Kristeva sublinha o papel da associação (seja por semelhança, seja por contigüidade) de sensações, Deleuze tenta ultrapassar o associacionismo proustiano, sem desmerecê-lo, buscando o passado em si na "diferença interiorizada", na extratemporalidade das lembranças involuntárias.

Cada um, ao seu modo, privilegia o jogo das diferenças, a multiplicidade e a dimensão inconsciente no processo de constituição da escritura. Todavia, há um contraste inegável no tratamento dos signos. Para Kristeva há quase uma repulsa: Proust não se importaria com os signos, seus "hieróglifos" são as "impressões". Para Deleuze, um chamamento: a escrita proustiana busca desvelar a verdade contida nos signos. Signos vazios da mundanidade, onde o tempo se perde; signos mentirosos do amor e do tempo perdido; signos materiais da sensibilidade onde o tempo se redescobre; e, enfim, os signos da essência ideal na arte, onde o tempo redescoberto é o tempo puro.

Na nossa forma de pensar, o texto literário se produz no próprio ato da escritura, a partir da intromissão de elementos oriundos de pontos variados no tempo, que de forma extratemporânea se apresentam a nós na presentidade do escrever, e de não lugares do psiquismo, onde o inefável habita e só por artifícios do próprio desejo se dá à luz. Mas tal esforço se dá tanto pela via da lembrança como pela do esquecimento. O escritor, o artista, pela descontração, pela distensão, pela distração, pela desatenção, aprimora sua percepção, alarga-a e aprofunda-a, como diria Bergson (Silva, 1992, p. 146).

Escolhemos alguns excertos da Recherche que tratam particularmente a questão do tempo e procuramos confrontar alguns deles com os manuscritos proustianos, através das Esquisses publicadas na coleção Pléiade. Este trabalho demandaria mais tempo e esforço para uma crítica genética11 11 Modelo de crítica literária que pressupõe a relativa autonomia dos esboços de um manuscrito e um inconsciente do texto, permitindo uma leitura psicanalítica, o que é o caso em Philippe Willemart. A gênese do texto seria da ordem de variadas instâncias e sujeita ao acaso. digna desse nome. Contudo, nos limites deste artigo, tentaremos exemplificar uma leitura crítica que procura, pelo exame das omissões, das substituições e dos acréscimos, identificar o inconsciente do texto12 12 Conceito criado por Jean Bellemin-Noël, a partir de onde Philippe Willemart elaborará o de "inconsciente genético" em Universo da criação literária (1993). . Do prototexto13 13 Willemart (1993) nos esclarece a esse respeito: "Memória do texto, o prototexto reteve as diferentes combinações de personagens, suas características escolhidas e rejeitadas e, tal como uma fita magnética, não perdeu nenhuma das possibilidades transcritas no decorrer da escritura do conto. O texto publicado, morto para o autor, cortou as amarras que o atavam ao scriptor e a sua vida de desejos." (p. 45) ao texto definitivo porque o publicado, pode-se acompanhar um processo de criação literária onde, em Proust, o escritor dá lugar ao narrador, ao protagonista e, por fim, ao autor que assina a obra. Porém é o scriptor que nos interessa, aquele que trabalha sob a égide de seus desejos, e que no trabalho de criação transforma-se em leitor de si mesmo, em crítico de si mesmo, amputando, deslocando, denegando partes do texto primeiro, em sucessivas reformulações, até chegar ao texto final, àquele que o leitor convencional encontra pronto na edição finalizada da obra. Assim como os lapsos e os atos falhos funcionam para o analista como manifestações do inconsciente do analisando, as rasuras e os acréscimos encontrados na comparação entre os manuscritos e o texto final implicam o inconsciente da gênese do texto aos olhos do crítico literário.

O que abordávamos na primeira parte deste trabalho ¾ a questão da extemporaneidade em Proust ¾ pode ser exemplificada em algumas passagens da Recherche em que o narrador trata do tempo14 14 Usaremos o texto publicado na Plêiade, em 1989, bem como as Esquisses que o acompanham. A tradução brasileira é a da publicação da Editora Globo, o que implica tradutores diferentes para os sete volumes ¾ Mário Quintana (No caminho de Swann, À Sombra das raparigas em Flor, O Caminho de Guermantes e Sodoma e Gomorra), Manuel Bandeira e Lourdes Sousa de Alencar (A Prisioneira), Carlos Drummond de Andrade (A Fugitiva) e Lúcia Miguel Pereira (O Tempo Redescoberto). . Veremos isto em seguida. Depois tomaremos os manuscritos para um pequeno ensaio de crítica genética.

O tempo a-lógico da Recherche15 15 Proust (1989). Para a edição brasileira, Proust (1989-1990).

Uma passagem de Le côté de Guermantes (O caminho de Guermantes) nos interessaria mais de perto: "Ces années de ma première enfance ne sont plus en moi, elles me sont extérieures, je vien peux rien apprendre que, comme pour ce qui a eu lien avant notre naissance, par les récits des autres" (p.13)16 16 "Esses anos da minha primeira infância não mais estão em mim, são exteriores, deles nada posso tirar a não ser pelo que contam os outros, como se dá com as coisas que sucederam antes de nascermos" (Proust, 1989-1990, p.12). . Se o passado não está em nós, nós podemos recriá-lo no presente, com a ajuda dos depoimentos dos outros e, talvez, de processos que não habitam a nossa consciência.

Sodome et Gomorrhe (Sodoma e Gomorra), por sua vez, traz-nos esta afirmação: "J'ai dit deux temps; peut-être n'y eu a-t-il qu'un seul, non que celui de l'homme éveillé soit valable pour le dormeur, mais peut-être parce que l'autre vie, celle où on dort, n'est pas - dans sa partie profonde - soumise à la catégorie du temps" (p. 983)17 17 "Dois tempos, disse eu: talvez não haja mais que um só, não que o do homem desperto seja válido para o adormecido, mas talvez porque a outra vida, aquela em que se dorme, não esteja ¾ na sua parte profunda ¾ submetida à categoria do tempo" (Proust, 1989-1990, p. 365). . O tempo do inconsciente, o atemporal freudiano, aparece aqui, apesar das diferenças que se possa observar entre o conceito psicanalítico e o "inconsciente" proustiano.

Em Albertine disparue (A Fugitiva) Proust diz: "Le temps passe, et peu à peu tout ce qu'on disait par mensonge devient vrai ..."(p. 44). [O tempo passa, e pouco a pouco todas as nossas palavras mentirosas se tornam verdadeiras ..."(p. 46)]. Mais adiante: "Et ces moments du passé ne sont pas immobiles; ils gardent dans notre mémoire le mouvement qui les entraînait vers l'avenir, - vers un avenir devenu lui-même le passé, - nous y entraînant nous-même" (p. 70). [Os momentos do passado não são imóveis, guardam em nossa memória o movimento que os arrastava para o futuro, um futuro que também se tornou passado, arrastando-nos também a nós" (p.70)]. Noutro momento: "... pour la jalousie il n'est ni passé ni avenir et que ce qu'elle imagine est toujours le Présent."(p. 72) [... para o ciúme não há passado nem futuro, o que ele imagina é sempre o presente (p. 72)]. E mais: "Or à partir d'un certain âge nos amours, nos maîtresses sont filles de notre angoisse; notre passé, et les lésions physiques où il s'est inscrit, déterminent notre avenir" (p. 86). [... a partir de certa idade, nossos amores e nossas amantes são filhos de nossa angústia; nosso passado e as lesões físicas em que ele se inscreveu determinam nosso futuro" (p. 84)]. Mais pontualmente:

Comme il y a me géometrie dans l'espace, il y a une psychologie dans le temps, où les calculs d'une psychologie plane ne seraient plus exacts parce qu'on n'y tiendrait pas compte du temps et d'une des formes qu'il revet, l'oubli (...) qui est un si puissant instrument d'adaptation à la realité parce qu'il détruit peu à peu en nous le passé survivant qui est en constante contradiction avec elle. (p.137)18 18 "Assim como há uma geometria no espaço, há uma psicologia no tempo, em que os cálculos da psicologia plana já não seriam exatos, porque neles não se fizera conta do tempo e de uma das formas que ele reveste, o esquecimento; o esquecimento (...) que é tão poderoso instrumento de adaptação à realidade, porque destrói pouco a pouco em nós o passado sobrevivente, em constante contradição com ela" (Proust, 1989-1990, p.128).

Na mesma linha: "... il reste que c'est le temps qui amène progressiment l'oubli n'est pas sans altérer profoundément la notion du temps"(p. 173)19 19 "... se, em verdade, é o tempo que traz progressivamente o esquecimento, este, por sua vez, não deixa de alterar profundamente a noção do tempo" (Proust, 1989-1990, p.165). . O que temos nestes excertos é, de forma resumida: a fugacidade do tempo, a sua não linearidade, uma psicologia do tempo não cronológico, a relevância do esquecimento tanto quanto da lembrança. Benjamin (1994) afirmou: "o importante para o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração (...) esse trabalho de rememoração espontânea, em que a recordação é a trama e o esquecimento a urdidura (...)" (p. 37).

Já em Le temps retrouvé (O tempo redescoberto) o tempo é recuperado, por exemplo, nestas passagens. "... les navettes agiles des années tissent des fils entre ceux de nos souvenirs qui semblaient d'abord les plus indépendants..." (p. 427)20 20 "...as lançadeiras ágeis do tempo tecem fios entre as lembranças que nos pareciam a princípio mais independentes..." (Proust, 1989-1990, p.130). . E mais à frente:

... Oui, si le souvenir, grâce à l'oubli, n'a pu contracter aucun lieu, jeter aucun chaînon entre lui et la minute présente, s'il est resté à sa place, à sa date, s'il a gardé ses distances, son isolement dans le creux d'une vallée ou à la pointe d'un sommet, il nous fait tout à coup respirer un air nouveau, précisément parce que c'est un air qu'on a respiré autrefois, cet air plus pur que les poètes ont vainement essayé de faire réguer dans le paradis et qui ne pourrait donner cette sensation profonde de renouvellement que s'il avait été respiré déjà, car les vrais paradis sont les paradis qu'un a perdue" (p. 449)21 21 "...se graças ao esquecimento, não se pôde estabelecer nenhum laço, tecer malha alguma entre si e o momento presente, se ficou em seu lugar, em seu tempo, se conservou sua distância, seu isolamento no côncavo de um vale ou no cimo de uma montanha, a recordação faz-nos respirar de repente um ar novo, precisamente por ser um ar outrora respirado, o ar mais puro que os poetas tentaram em vão fazer reinar no Paraíso, e que não determinaria essa sensação profunda de renovação se já não houvesse sido respirado, pois os verdadeiros paraísos são os que perdemos (Proust, 1989-1990, p.152). .

O esquecimento, mais uma vez, fornece a matéria-prima para a experiência, que também comporta a recordação, mas implica uma construção outra para além da memória mesmo que involuntária. Contraditoriamente, o ser que torna possível o redescobrimento ¾ a recuperação, o reencontro ¾ do tempo é, ele mesmo, extemporâneo, está fora do tempo.

Noutro momento, Proust diz-nos: "Une heure n'est pas qu'une heure, c'est un vase rempli de parfums, de sons, de projets et de climats. Ce que nous appelons la réalité est un certain rapport entre ces sensations et ces souvenirs qui nous entourent simultanément..." (p. 467-8)22 22 "Uma hora não é apenas uma hora, é um vaso repleto de perfumes, de sons, de projetos e de climas. O que chamamos realidade é uma determinada relação entre sensações e lembranças a nos envolverem simultaneamente (p.167). . Ainda: "... l'oeuvre d'art était le seul moyen de retrouver le Temps perdu ..." (p. 478)23 23 "... na obra de arte o único meio de reaver o Tempo perdido..." (Proust, 1989-1990, p.175). . Tratando ainda da arte: "Car si l'art est long et la vie courte, on peut dire en revanche que, si l'inspiration est courte, les sentiments qu'elle doit peindre ne sont pas beaucoup plus longs" (p.486)24 24 "... se a arte é longa e breve a vida, pode-se também dizer, ao contrário, que, se é curta a inspiração, muito mais longos não são os sentimentos a exprimir" (Proust, 1989-1990, p.181). . Quanto aos sonhos: "Et bien plus, c'était peut-être aussi par le jeu formidable qu'il fait avec le Temps que le Rêve m'avait fasciné (...) qu'ils étaient un des modes pour retrouver le Temps perdu?" (p. 490-1)25 25 "...talvez sobretudo por seu estupendo jogo com o Tempo me fascinassem os Sonhos (...) de modo a nos fazer, aliás sem razão, ver nos Sonhos um meio de recuperar o Tempo perdido?" (Proust, 1989-1990, p.185). . Não haveria uma aproximação, aqui, com a tese do sonho enquanto manifestação de um desejo? O que aqui é apenas alusão poderá vir a ser aprofundada noutros trabalhos, mais diretamente vinculados à psicanálise.

Mas o tempo deixa marcas indeléveis:

Alors moi qui depuis mon enfance, vivant au jour le jour et ayant reçu d'ailleurs de moi-même et des autres une impression définitive, je m'aperçus pour la primière fois, d'après les métamorphoses qui s'étaient produites dans tous ces gens, du temps qui avait passé pour eux, ce qui me boulerversa par la révélation qu'il avait passé aussi pour moi (p. 505)26 26 "Eu, sobretudo, que desde a infância só vivia do momento presente e formara de mim e dos outros uma impressão definitiva, apercebia-me afinal diante das metamorfoses sofridas pelos outros, do tempo sobre eles decorrido, revelação perturbadora, pois significava que também para mim passara" (Proust, 1989-1990, p.198). .

A dimensão do tempo subjetivo, da temporalidade existencial do dasein heideggeriano, reaparece com efeito.

Contudo, se interpõe uma contradição entre o temporal e o extratemporal: "Mais une raison plus grave expliquait mon angoisse; je découvrais cette action destructrice du Temps au moment même où je voulais entreprendre de rendre claires, d'intellectualiser dans une oeuvre d'art, des réalités extra-temporelles" (p.508-9)27 27 "Mas uma razão mais grave explicava minha angústia; eu verificava essa ação destrutiva do Tempo precisamente quando me propunha a evidenciar, intelectualizar numa obra de arte as realidades extratemporais." (Proust, 1989-1990, p. 200). . A longa frase final da obra, que não foi cronologicamente a última, conclui:

... ne manquerais-je pas d'abord d'y décrire les hommes (...) comme occupant une place si considérable, à côté de celle si restreinte qui leur est réservée dans l'espace, une place au contraire prolongée sans mesure puisqu'ils touchent simultanément, comme des géants plonges dans les années à des époques, vècues par eux si distantes, entre lesquelles tant de jours sont venus se placer - dans le Temps. Fin (p. 601)28 28 "... mostraria os homens ocupando no Tempo um lugar muito mais considerável do que o restrito a eles reservado no espaço, um lugar, ao contrário, desmesurado, pois, à semelhança de gigantes, tocam simultaneamente, imersos nos anos, todas as épocas de suas vidas, tão distantes ¾ entre as quais tantos dias cabem ¾ no Tempo" (Proust, 1989-1990, p. 292). .

Tal gigantismo dos personagens da Recherche deve-se ao seu crescimento no tempo, enquanto memória de experiências complexas, enquanto envelhecimento. Mas a própria obra funda-se "no jogo entre um movimento prospectivo e um retrospectivo", como disse De Man (1979/1996, p. 75). E a leitura consegue compreender e articular o "fluxo contínuo da narrativa (...) para além dos sentidos e além do tempo..." (p. 86).

O ser, voltando a Heidegger, embora fora do tempo, é temporalidade. O tempo como o sentido do ser-aí (dasein) ¾ o ser-o-aí não existe no tempo. Pode-se fazer também a leitura bergsoniana de que a Recherche se constitui num processo de eternização da temporalidade onde, de um "passado imemorial" resgatado pela memória involuntária chega-se ao "entretempo" (nem passado nem presente), a uma eternidade criada pela metáfora (Silva, 1992, p. 151).

Dos manuscritos de Proust29 29 Esquisses XXIV e XXXVII (Proust , 1989).

Tomemos algumas confrontações entre o texto final e os manuscritos da Recherche, na tentativa de exemplificar a crítica genética, sem fugir ao tema da temporalidade ou da subjetividade. No Esboço XXIV do Caderno 58, que permanece interrompido e é seguido pelo Caderno 57, ambos de 1911, estão os rascunhos do último volume da Recherche. Já na possibilidade de confrontar-se o texto final com os esboços, temos sobre o tempo em estado puro, em Le Temps retrouvé (O tempo redescoberto):

L'être qui était rené en moi (...) ne se nourrit que de l'essence des choses, en elle seulement il trouve sa subsistance, ses délices; (...) l'homme affranchi de l'ordre du temps (...) on comprend que le mot de `mort' n'ait pas de sens pour lui; situé hors du temps, que pourrait-il craindre de l'avenir? (p. 451)30 30 "O ente que em mim nascera (...) só se nutre da essência das coisas, só nela encontra subsistência e delícias (...) o homem livre da ordem do tempo (...) é compreensível que a palavra `morte' perca para ele a significação; situado fora do tempo, que poderá temer do porvir?" (p.154-5). .

Aqui, porém, encontramos uma discrepância com o esboço. Lá Proust dissera antes on comprend qu'il soit confiant dans sa joie, que le mot de `mort'. O que teria levado Proust a subtrair a expressão "se compreende que seja confiante em sua alegria"? A assunção da finitude não faz do homem um ser feliz em sua angústia, mas mais próximo da autenticidade, se investimos numa leitura heideggeriana. Contudo, o atemporal que permite ao narrador proustiano, pela reminiscência das sensações ou pela imaginação criadora, adentrar a verdadeira vida ¾ a literatura ¾ dispõe, sempre, os sentimentos "positivos" ligados a momentos e seres prazerosos.

No Esboço XXXVII do Caderno 57, relativo ainda ao primeiro estádio do romance e aos rascunhos do último volume (1911), aparecem sete fragmentos sob o título de Les matériaux de l'oeuvre littéraire ("A matéria da obra literária"). Tratam da vocação literária, da descoberta de leis gerais, da relação entre amor e dor e da conseqüente produção da verdade, bem como da formulação de "modelos" pelo artista, pela elevação de experiências individuais ao nível da generalidade. Estes fragmentos são, supomos, o prototexto de onde emergirá o texto publicado, que aqui e ali apresentará diferenças em relação àquele anterior. Tomemos um deles apenas, que aponta para a questão do tempo.

Trata-se do terceiro fragmento, o que traz um exemplo de pessoa estúpida e tagarela, Mme. Grunebaum-Ballin, que não aparece no texto publicado, até porque não existe personagem com este nome na obra final. Outra omissão diz respeito a uma citação de Molière, pois no fragmento Proust anotara a observação de que deveria ser copiada: "Je prends le nez à l'un" etc."(p. 864) [Eu tomo o nariz a um etc.]. No todo, o texto é bem mais desenvolvido na publicação definitiva, caracterizando o escritor como aquele que não dá a entender o quanto é observador, até porque sua memória (termo que aqui aparece explicitamente) não trabalha de forma consciente e voluntária. Assim, a matéria com que o escritor fará sua obra é a coleção de gestos, expressões, tiques, entonações, posturas e movimentos de pessoas reais quaisquer que, calidoscopicamente, vêm formar personagens as mais diversas.

Agora atentemos para questões mais ligadas à psicologia. Do quinto fragmento podemos ter, primeiro, a omissão do "instinto de artista" no texto final. Será que poderíamos pensar que Proust substituiu a visão instintóide por outra relativa à aquisição e aprendizagem? Teria tido o cuidado de não passar-nos uma imagem inatista do talento artístico e de enfatizar a construção da subjetividade do artista e da tessitura de suas obras? Depois da omissão, a inversão: a analogia com o psicólogo no fragmento dá lugar a analogia com o desportista no texto final. Ou seja, os modelos para o pintor se equivaleriam às pessoas e seus sentimentos para os psicólogos, segundo o esboço, enquanto que a escritura para o escritor equivaleria aos exercícios físicos para o atleta, no texto publicado. Nos rascunhos encontramos: "Peut-être les êtres que nous connaisons, les sentiments que grâce à eux nous éprouvons sont-ils pour le psychologue ce que sont pour le peintre des modèles. Ils posent pour nous. Ils posent pour la souffrance, pour la jalousie, pour le bonheur..." (p. 864)31 31 "Talvez os seres que conhecemos, os sentimentos que graças a eles experimentamos são para o psicólogo o que são para o pintor os modelos. Colocam-se pelo sofrimento, pelo ciúme, pela felicidade." (tradução livre) . Em que medida os psicólogos, profissionais da subjetividade, não estariam, na arguta visão proustiana, mais longe do fenômeno que tentam em vão explicar, do que o suor do atleta em relação ao esforço também sadio e necessário do escritor? No nosso entender, falta ao psicólogo aproximar-se da literatura para intuir o homem. Numa aproximação a Proust, os psicólogos não sabemos escutar as pessoas como os pintores sabem ver seus modelos.

Na elaboração final do texto que corresponde ao sexto fragmento, vemos que Proust substituiu a expressão "nous vivons hors de la realité" ("vivemos fora da realidade") por "vivemos longe dos seres individuais". Tal mudança implicaria num pensar a realidade como individualizada e não como genérica? Como defender isso e, ao mesmo tempo, que a verdadeira vida é a da literatura que generaliza as experiências individuais em leis psicológicas gerais da individuação? Por suposto, Proust se identificaria com a posição que defende a aproximação dos indivíduos para que, reagindo a eles, possamos nos dar conta de sentimentos e desejos que podem ser expressos em leis genéricas. Noutro momento do fragmento, Proust fala da arte como única forma de lutar contra a morte e entrar na realidade e na vida, mas esse trecho desloca-se no texto definitivo. Teria o escritor desistido de lutar contra "l'oeuvre quotidienne de la mort" ("a obra quotidiana da morte")? Ou tal desistência poderia ter se dado na direção da compreensão heideggeriana (embora não sua contemporânea) do ser-para-a-morte, como condição da existência? "Entrar na realidade e na vida" é, ao mesmo tempo, assumir a disposição afetiva fundamental da angústia da finitude.

Esses foram alguns exemplos de como nos achegarmos do inconsciente da gênese de um texto, não do seu autor, mas do próprio movimento que leva o scriptor a alterar a sua escritura. Trata-se de uma forma de leitura da Recherche que é proposta pela Crítica Genética. Ela se ocupa do texto final que é produto de alterações várias no decorrer de sua gênese. Tentamos aqui ensaiar umas poucas interpretações quanto aos lapsos e acréscimos de algumas partes da obra, como mera exemplificação do método genético. Tomamos excertos que tratam da questão do tempo e da subjetividade na própria Recherche, para permanecermos no tema deste artigo.

O tempo que cria o tempo da criação

Nosso trabalho nada conclui porque não se fecha. Como a escrita de Proust, pode ser visto como um "ecrire sans fin"32 32 Trata-se do texto de Ulrike Sprenger, " Marcel Proust. Ecrire sans fin", editada em Paris pelo CNRS, em 1996. , afinal todo texto é inacabado e todas as críticas possíveis são seus suplementos. Nosso suplemento resta em aberto. Gostaríamos de sublinhar neste ponto aquilo que se salienta da discussão a que nos propusemos. Primeiro, que o tempo buscado e reencontrado por Proust não é o cronológico, não é o passado de sua vida. Toda tentação biográfica deve ser evitada. O seu tempo em estado puro, alcançado pelo exercício da arte, é, contraditoriamente, o extemporâneo. Dá-se pelas impressões, pela memória involuntária, pelo ardil do esquecimento, pela manifestação do inconsciente, pelos signos artísticos. Pois mesmo se virmos em Proust apenas a rememoração, podemos concordar com Benjamin (1994) e dizer: "...um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo que veio antes e depois." (p. 37) É o tempo para o criar. Como toda arte, precisa de tempo para amadurecer. No caso da literatura, tanto o texto publicado quanto o manuscrito que o precede carecem de tempo.

Segundo, a forma com que Proust criou sua Recherche deixa ver claramente a não-linearidade da escritura: já havia o germe em Contre Sainte-Beuve (1908-9); "No caminho de Swann" (o primeiro volume) e "O Tempo Redescoberto"(o sétimo e último volume) foram escritos ao mesmo tempo (1910-11); os cadernos dos manuscritos não eram numerados mas nomeados e a ordem de sua elaboração não confere com a da publicação; enxertos na obra eram feitos com rolos de papelotes. A obra criou o seu próprio tempo. O extemporâneo da memória involuntária e dos signos essenciais. Como se não bastasse, há um tempo que cria o próprio leitor para a obra. Trata-se da constituição do olho para a pintura e a escultura, e do ouvido para a música, por exemplo.

Por último, a obra assim criada, num tempo criado por ela e para ela, é ela mesma atemporal. Isso explica porque, como tantas outras obras de qualidade, a Recherche transcende o tempo (cronológico) e não envelhece. Além disso, gera seus suplementos, infindáveis escritas, como o atesta a lista de livros e periódicos que continuam a tratar dela. A criação se fez para o tempo, qualquer tempo, sempre revisitada, como nesse despretensioso trabalho. A eternidade da obra reflete, por sua vez, a eternalização do tempo em Proust, no sentido que bem o captou Benjamin (1994):

A eternidade que Proust nos faz vislumbrar não é a do tempo infinito, e sim a do tempo entrecruzado. Seu verdadeiro interesse é consagrado ao fluxo do tempo sob sua forma mais real, e por isso mesmo mais entrecruzada, que se manifesta com clareza na reminiscência (internamente) e no envelhecimento (externamente) (p. 45).

Criar para o tempo foi o que fez Proust em sua obra perene. Para tanto usou do tempo de uma vida, já que há a exigência do tempo para o criar. E assim fazendo-o, pôde criar o tempo da extemporaneidade.

A nós, que fazemos Psicologia, cabe-nos, em primeiro lugar, não esquecer o quanto a literatura tem a nos ensinar sobre a subjetividade. E, em segundo lugar, não ignorar que esta subjetividade se constitui na e pela extemporalidade, onde as impressões e os signos se ocultam e se revelam na memória e no esquecimento.

Notas

José Celio Freire, doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo, é Professor Adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará. À época em que o texto foi escrito, aluno do Curso de Doutorado em Psicologia do Instituto de Psicologia da USP e bolsista do PICDT/CAPES. Endereço para correspondência: Depto de Psicologia da Universidade Federal do Ceará, Av. da Universidade 2762, Campus do Benfica, 60.020-180, Fortaleza, CE. E-mail: celiofreire@uol.com.br ou psico@npd..ufc.br

Recebido em 24.11.00

Aceito em 06.01.01

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  • Willemart, P. (1993). Universo da criaçăo literária Săo Paulo: EDUSP.
  • 1
    Este artigo é parte substancialmente modificada da monografia apresentada ao laboratório "Psicanálise e Crítica Genética no manuscrito de
    A la Recherche du Temps Perdu de Marcel Proust", em agosto de 1997, sob a responsabilidade do Prof. Philippe Willemart, do Programa de Pós-Graduação em Língua e Literatura Francesa da Universidade de São Paulo. Uma versão simplificada foi apresentada na XVIII Semana de Psicologia da Universidade Federal do Ceará, em 27 de outubro de 2000.
  • 2
    "Il est donc clair que le temps n'est ni le mouvement, ni sans le mouvement" (Aritstóteles, p. 149).
  • 3
    "
    Et si l'instant mesure lê temps, c'est en tant qu'antérieur et postérieur (...) L'instant est la continuité du temps(...) il est la limite du temps." (Aristóteles, 1952, pp. 151 e 157).
  • 4
    "...
    car le temps est em soi plutôt cause de destruction, puisqu'il est nombre du mouvement et que le mouvement défait ce qui est" (Aristóteles, p. 155).
  • 5
    "La temporalité est desormais l'unité articulée de l'àvenir, de l'avoir-etê et du présenter, qui sont ainsi donnés à penser ensemble." (p. 129). (No capítulo dedicado a Heidegger:
    Temporalité, historialité, intra-tempralité. Heidegger et lê concept "vulgaire" de temps.) [A temporalidade é doravante a unidade articulada do porvir, do ter-sido e do apresentar-se, que são assim dados a pensar juntos].
  • 6
    Em Ricoeur (1983): "
    Ainsi lê calcul et la mesure, valables pour les choses
    dones et maniables, viennent0ils s'appliquer surce temps datable, étendu et public. Lê calcul du temps astronomique et calendaire naît ainsi de la datation en fonction des occurrences de l'environnement." (p. 154). (Assim o cálculo e a medida, válidos para as coisas dadas e manipuláveis, vem se aplicar sobre este tempo `datável', estendido e público. O cálculo do tempo astronômico e do calendário nasce assim da datação em função das ocorrências do meio ambiente).
  • 7
    "Il faut du même coup corriger l'idée de l'unité structurale du temps par celle de la difference de ses ekstases. (...) Le passage du futur au passe et au présent est à la fois unification et diversification." (Ricouer, 1983, p. 130). Comparar com nota 5, sobre a superação da noção de unidade.
  • 8
    Em Heidegger vamos encontrar o equivalente
    Nachwirkene, segundo Ricoeur (1983, p. 141):
    "(...) le passe, qui n'est, qui n'est plus, a dês effects, exerce une influence, une action (Wirkung) sur le present. Cette action ultérieure (Nachwirkende) ¾ on dirait tardive ou après coup ¾ devrait étonner." [ o passado, que não é mais, tem efeitos, exerce uma influência, uma ação (Wirkung) sobre o presente. Esta ação ulterior (Nachwirkende) ¾ se diria tardia ou tarde demais ¾ deveria surpreender.]
  • 9
    A importância do sofrimento, da impressão e da memória na obra proustiana.
  • 10
    A busca da essência na arte como unidade da diferença.
  • 11
    Modelo de crítica literária que pressupõe a relativa autonomia dos esboços de um manuscrito e um inconsciente do texto, permitindo uma leitura psicanalítica, o que é o caso em Philippe Willemart. A gênese do texto seria da ordem de variadas instâncias e sujeita ao acaso.
  • 12
    Conceito criado por Jean Bellemin-Noël, a partir de onde Philippe Willemart elaborará o de "inconsciente genético" em Universo da criação literária (1993).
  • 13
    Willemart (1993) nos esclarece a esse respeito: "Memória do texto, o prototexto reteve as diferentes combinações de personagens, suas características escolhidas e rejeitadas e, tal como uma fita magnética, não perdeu nenhuma das possibilidades transcritas no decorrer da escritura do conto. O texto publicado, morto para o autor, cortou as amarras que o atavam ao
    scriptor e a sua vida de desejos." (p. 45)
  • 14
    Usaremos o texto publicado na
    Plêiade, em 1989, bem como as
    Esquisses que o acompanham. A tradução brasileira é a da publicação da Editora Globo, o que implica tradutores diferentes para os sete volumes ¾ Mário Quintana (No caminho de Swann, À Sombra das raparigas em Flor, O Caminho de Guermantes e Sodoma e Gomorra), Manuel Bandeira e Lourdes Sousa de Alencar (A Prisioneira), Carlos Drummond de Andrade (A Fugitiva) e Lúcia Miguel Pereira (O Tempo Redescoberto).
  • 15
    Proust (1989). Para a edição brasileira, Proust (1989-1990).
  • 16
    "Esses anos da minha primeira infância não mais estão em mim, são exteriores, deles nada posso tirar a não ser pelo que contam os outros, como se dá com as coisas que sucederam antes de nascermos" (Proust, 1989-1990, p.12).
  • 17
    "Dois tempos, disse eu: talvez não haja mais que um só, não que o do homem desperto seja válido para o adormecido, mas talvez porque a outra vida, aquela em que se dorme, não esteja ¾ na sua parte profunda ¾ submetida à categoria do tempo" (Proust, 1989-1990, p. 365).
  • 18
    "Assim como há uma geometria no espaço, há uma psicologia no tempo, em que os cálculos da psicologia plana já não seriam exatos, porque neles não se fizera conta do tempo e de uma das formas que ele reveste, o esquecimento; o esquecimento (...) que é tão poderoso instrumento de adaptação à realidade, porque destrói pouco a pouco em nós o passado sobrevivente, em constante contradição com ela" (Proust, 1989-1990, p.128).
  • 19
    "... se, em verdade, é o tempo que traz progressivamente o esquecimento, este, por sua vez, não deixa de alterar profundamente a noção do tempo" (Proust, 1989-1990, p.165).
  • 20
    "...as lançadeiras ágeis do tempo tecem fios entre as lembranças que nos pareciam a princípio mais independentes..." (Proust, 1989-1990, p.130).
  • 21
    "...se graças ao esquecimento, não se pôde estabelecer nenhum laço, tecer malha alguma entre si e o momento presente, se ficou em seu lugar, em seu tempo, se conservou sua distância, seu isolamento no côncavo de um vale ou no cimo de uma montanha, a recordação faz-nos respirar de repente um ar novo, precisamente por ser um ar outrora respirado, o ar mais puro que os poetas tentaram em vão fazer reinar no Paraíso, e que não determinaria essa sensação profunda de renovação se já não houvesse sido respirado, pois os verdadeiros paraísos são os que perdemos (Proust, 1989-1990, p.152).
  • 22
    "Uma hora não é apenas uma hora, é um vaso repleto de perfumes, de sons, de projetos e de climas. O que chamamos realidade é uma determinada relação entre sensações e lembranças a nos envolverem simultaneamente (p.167).
  • 23
    "... na obra de arte o único meio de reaver o Tempo perdido..." (Proust, 1989-1990, p.175).
  • 24
    "... se a arte é longa e breve a vida, pode-se também dizer, ao contrário, que, se é curta a inspiração, muito mais longos não são os sentimentos a exprimir" (Proust, 1989-1990, p.181).
  • 25
    "...talvez sobretudo por seu estupendo jogo com o Tempo me fascinassem os Sonhos (...) de modo a nos fazer, aliás sem razão, ver nos Sonhos um meio de recuperar o Tempo perdido?" (Proust, 1989-1990, p.185).
  • 26
    "Eu, sobretudo, que desde a infância só vivia do momento presente e formara de mim e dos outros uma impressão definitiva, apercebia-me afinal diante das metamorfoses sofridas pelos outros, do tempo sobre eles decorrido, revelação perturbadora, pois significava que também para mim passara" (Proust, 1989-1990, p.198).
  • 27
    "Mas uma razão mais grave explicava minha angústia; eu verificava essa ação destrutiva do Tempo precisamente quando me propunha a evidenciar, intelectualizar numa obra de arte as realidades extratemporais." (Proust, 1989-1990, p. 200).
  • 28
    "... mostraria os homens ocupando no Tempo um lugar muito mais considerável do que o restrito a eles reservado no espaço, um lugar, ao contrário, desmesurado, pois, à semelhança de gigantes, tocam simultaneamente, imersos nos anos, todas as épocas de suas vidas, tão distantes ¾ entre as quais tantos dias cabem ¾ no Tempo" (Proust, 1989-1990, p. 292).
  • 29
    Esquisses XXIV e XXXVII (Proust , 1989).
  • 30
    "O ente que em mim nascera (...) só se nutre da essência das coisas, só nela encontra subsistência e delícias (...) o homem livre da ordem do tempo (...) é compreensível que a palavra `morte' perca para ele a significação; situado fora do tempo, que poderá temer do porvir?" (p.154-5).
  • 31
    "Talvez os seres que conhecemos, os sentimentos que graças a eles experimentamos são para o psicólogo o que são para o pintor os modelos. Colocam-se pelo sofrimento, pelo ciúme, pela felicidade." (tradução livre)
  • 32
    Trata-se do texto de Ulrike Sprenger, "
    Marcel Proust. Ecrire sans fin", editada em Paris pelo CNRS, em 1996.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Ago 2001
    • Data do Fascículo
      Jun 2001

    Histórico

    • Aceito
      06 Jan 2001
    • Recebido
      24 Nov 2000
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