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O trabalho precoce e as políticas de saúde do trabalhador em Natal

The precocious work and health policies for workers in Natal, Brazil

Resumos

Este estudo objetivou investigar como é contemplada a questão do trabalho precoce pelas políticas de saúde do trabalhador em Natal. Para tal, fez-se um levantamento dos relatórios do Núcleo de Saúde do Trabalhador (NST) da Secretaria Municipal de Saúde e entrevistas semi-estruturadas com os técnicos do Núcleo e do Programa de Saúde do Trabalhador (PST). Quanto ao PST, constatou-se grandes dificuldades para a concretização, principalmente em virtude do descompromisso das autoridades políticas locais. Atualmente, é um tema que parece ter sido silenciado, sobre o qual técnicos e outros profissionais, antes envolvidos, não se dispõem mais a atuar nessa área ou, até mesmo, a falar sobre o assunto. Verificou-se que, com o mesmo silêncio, tem sido tratada a questão da saúde do trabalhador precoce, que ao longo da trajetória não se encontra nenhuma medida ou intervenção para que este trabalhador passe a ocupar um lugar frente às políticas de saúde do trabalhador.

Trabalho precoce; Políticas de saúde do trabalhador; Saúde


This study aimed to investigate how the subject of the precocious work is contemplated in policies dedicated to workers' health in Natal. Reports of the Nucleus of Workers' Health of the Municipal Health Secretary were surveyed and semi-structured interviews performed with technicians of such Nucleus and of Program of Workers' Health. Great difficulties were verified for the materialization of the Program of the Worher's Health (PWH), mainly due to the lack of commitment of local political authorities. It is a theme that now seems to have been silenced. Professionals, previously involved, are not willing to act in the area anymore or even to speak about it. The theme of the health of precocious workers has received the same silence; policies and interventions in the area of workers' health have ignored this special kind of worker.

Precocious work; Politics of the workers' health; Health


O trabalho precoce e as políticas de saúde do trabalhador em Natal

Izabel Christina do N. Feitosa

Maria Aparecida de França Gomes

Munich Vieira Santana Gomes

Magda Dimenstein

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Resumo

Este estudo objetivou investigar como é contemplada a questão do trabalho precoce pelas políticas de saúde do trabalhador em Natal. Para tal, fez-se um levantamento dos relatórios do Núcleo de Saúde do Trabalhador (NST) da Secretaria Municipal de Saúde e entrevistas semi-estruturadas com os técnicos do Núcleo e do Programa de Saúde do Trabalhador (PST). Quanto ao PST, constatou-se grandes dificuldades para a concretização, principalmente em virtude do descompromisso das autoridades políticas locais. Atualmente, é um tema que parece ter sido silenciado, sobre o qual técnicos e outros profissionais, antes envolvidos, não se dispõem mais a atuar nessa área ou, até mesmo, a falar sobre o assunto. Verificou-se que, com o mesmo silêncio, tem sido tratada a questão da saúde do trabalhador precoce, que ao longo da trajetória não se encontra nenhuma medida ou intervenção para que este trabalhador passe a ocupar um lugar frente às políticas de saúde do trabalhador.

Palavras-chave: Trabalho precoce, Políticas de saúde do trabalhador, Saúde.

Abstract

The precocious work and health policies for workers in Natal, Brazil. This study aimed to investigate how the subject of the precocious work is contemplated in policies dedicated to workers' health in Natal. Reports of the Nucleus of Workers' Health of the Municipal Health Secretary were surveyed and semi-structured interviews performed with technicians of such Nucleus and of Program of Workers' Health. Great difficulties were verified for the materialization of the Program of the Worher's Health (PWH), mainly due to the lack of commitment of local political authorities. It is a theme that now seems to have been silenced. Professionals, previously involved, are not willing to act in the area anymore or even to speak about it. The theme of the health of precocious workers has received the same silence; policies and interventions in the area of workers' health have ignored this special kind of worker.

Key-words: Precocious work, Politics of the workers' health, Health.

A exploração do trabalho infanto-juvenil ao longo de décadas foi marcada por preconceitos e significações sociais que encobriram os efeitos decorrentes das condições deste trabalho, tais como a baixa escolarização, os danos causados à saúde e ao desenvolvimento biopsicossocial. Atualmente, embora o trabalho precoce seja proibido aos menores de 16 anos pela legislação nacional (Constituição Federal e Estatuto da Criança e do Adolescente), o que se observa, no Brasil e, principalmente, em regiões castigadas pela miséria social, é que a mão-de-obra infanto-juvenil ainda possui o seu lugar garantido no mundo do trabalho e está sujeita às péssimas condições de trabalho que tanto prejudica a saúde e a vida dessa população.

No Brasil, de norte a sul, encontram-se crianças e adolescentes em atividades de produção que podem perfeitamente ser consideradas trabalho semi-escravo devido ao grau de exploração a que estão submetidos, as quais envolvem muitas famílias, gerando riquezas para poucos e uma total falta de perspectivas para esses trabalhadores precoces. Centenas de crianças e adolescentes trabalham recebendo salários baixíssimos, e outros tantos sem remuneração alguma quando sua atividade faz parte da cota de produção dos pais.

Os dados da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE] (1998) revelam que no Brasil cerca de 16.997.277 trabalhadores, entre crianças e adolescentes na faixa de 10 a 14 anos de idade, estão no mercado de trabalho. No Rio Grande do Norte, esta realidade representa 297.808 trabalhadores.

Alguns pesquisadores têm mostrado as várias regiões do Brasil em que a mão-de-obra precoce está submetida às situações de trabalho que provocam sérios riscos à saúde, tais como Rizzini, Rizzini e Holanda (1995) e Minayo-Gomez e Meirelles (1997). Estes ilustram algumas atividades exercidas por crianças e adolescentes no Rio Grande do Norte, revelando as conseqüências à saúde e ao desenvolvimento físico, além de apontar como tal trabalho interfere no desenvolvimento intelectual da criança devido à exaustão causada pelo esforço dispendido. Citam atividades realizadas na cerâmica e na olaria que provocam agravos como dermatoses, cortes por máquinas, queimaduras, mutilações, lesões por esforços repetitivos (LER), lesões pulmonares e auditivas, lombalgia e fadiga muscular; e ainda, o trabalho nas pedreiras cujos comprometimentos são cortes, perdas auditivas e visuais, fadiga muscular, lombalgia, LER e pneumoconioses.

Um outro estudo nessa mesma direção foi realizado pelo Ministério do Trabalho e Emprego (1999a), o qual alcançou três estados do Nordeste: Sergipe, Alagoas e Rio Grande do Norte. Neste último, abrangeu os seguintes municípios: Jardim de Piranhas, cuja atividade consiste na tecelagem, Lagoa Nova e Tenente Laurentino Cruz, ambos com atividades nas casas de farinha. Os achados clínicos desta pesquisa evidenciaram uma série de problemas de saúde em crianças e adolescentes trabalhadores da tecelagem e das casas de farinha provocados pelo trabalho extenuante. Os dados são muito significativos referentes a lombalgia, dores nos membros, dores musculares, além de desânimo, irritabilidade, dores de cabeça, fadiga e tristeza. Segundo tal pesquisa, o trabalho realizado nas tecelagens consiste em tecer, estampar, fazer acabamentos, cujas posições provocam danos como escolioses, cifoescolioses e lordoses, e em condições desfavoráveis devido a uma série de fatores, tais como: exposição ao calor, pouca ventilação e luminosidade, poeiras e ambiente sujo e desorganizado. Já nas casas de farinha as crianças dedicam-se à raspagem da mandioca com facas ou raspadores. Esta é uma atividade monótona e perigosa, estando as crianças sujeitas a cortes e mutilações. O ambiente é insalubre e há relatos de queimaduras nos fornos de torrefação da mandioca. Em decorrência da perecibilidade da mandioca, o trabalho tem que ser iniciado no momento da chegada do produto e todo o processo executado, o que leva a intensas jornadas de trabalho.

Estes dados revelam as péssimas condições de trabalho, a falta de orientação e mecanismos de proteção nas atividades executadas, situação que leva a comprometimentos na saúde e/ou mutilações em função do trabalho e da inexistência de qualquer tipo de orientação, assistência ou atenção à saúde dos trabalhadores precoces.

Em função deste quadro, consideramos inquestionável a necessidade de dar mais visibilidade ao problema do trabalho infantil em nossa região, e principalmente chamar atenção para o efeito paradoxal da não incorporação dessa problemática pelas políticas públicas de saúde do trabalhador. Por se tratar de atividade proibida por lei não se reconhece a dimensão social do problema, bem como os efeitos que tais atividades têm provocado na saúde e no desenvolvimento psicossocial dessa população. Nosso objetivo é, pois, alertar para a urgência do incremento das ações de combate ao trabalho infantil em todo país e para o implemento de políticas públicas que promovam a saúde do trabalhador de forma integral, contemplando, inclusive, a denúncia da violência do trabalho precoce por parte de seus formuladores.

Entretanto, para se falar de trabalho infantil é necessário fazer um percurso histórico mais amplo e considerar as diferenças existentes entre a infância burguesa e a que pertence às classes populares, sem deixar de enfocar a problemática que a infância pobre adquiriu e a mobilização dos setores sociais intervindo para "conservar", "cuidar", "proteger" a criança pobre. Também se faz necessário ressaltar o quanto as mudanças nas concepções de infância influenciaram a criação de políticas e programas contra a exploração do trabalho precoce. É no sentido de tornar essa articulação mais clara que damos prosseguimento ao texto.

Os diferentes modelos de infância e as ações contra o trabalho precoce

Donzelot (1986) refere-se a alguns costumes educativos e práticas sócio-culturais em relação à criação e aos cuidados que eram dados às crianças no século XVIII, na França. Os problemas que ocorriam com as crianças da classe burguesa eram completamente distintos dos vivenciados pelas crianças pertencentes às classes populares. Este fato levou a busca de estratégias diferentes, oferecidas pelo Estado e pela medicina no intuito de intervir nessas classes sociais. Na classe burguesa, a intervenção se voltou para uma proteção moral e maior liberdade física da criança. A infância se caracterizou por uma liberdade protegida e por uma vigilância discreta. Já nas camadas populares, as intervenções eram mais no sentido de conter as liberdades, o abandono das crianças e impedir a vagabundagem das mesmas. Tem-se, aqui, a infância como uma liberdade vigiada.

Deparamo-nos, então, com diferentes modelos de infância, caracterizados pela classe social na qual a criança está inserida, ou seja, a posição da criança e da sua família na estrutura sócio-econômica. Este é um dado importante, uma vez que não existe uma natureza infantil, mas sim diferentes populações infantis marcadas pelo contexto sócio-econômico. Pensar a infância como uma natureza infantil é mascarar a significação social presente na concepção de infância (Kramer, 1981).

Vale salientar que o processo histórico traz repercussões significativas sobre a infância. No caso da realidade brasileira, a cada momento histórico vivido pelo país nos defrontamos com modificações nas concepções de infância, como também nas intervenções dos diversos atores sociais e na mobilização de políticas em torno da infância pobre. Costa (1983), em Ordem Médica e Norma Familiar, mostra a mudança de lugar ocupado pela criança em função da organização sócio-econômica familiar. O autor revela que a "imagem da criança frágil, portadora de uma vida delicada merecedora do desvelo absoluto dos pais, é uma imagem recente" (p.155). Frise-se que esta é uma imagem de infância que não está representada em todos os segmentos sociais.

No Brasil colônia a família ignorava a imagem de criança que se reconhece atualmente, e até o século XIX, a criança ocupava uma posição secundária no seio da família. A estrutura sócio-econômica da família colonial favorecia tal fato, uma vez que era ao redor da figura do pai, da preservação do patrimônio do chefe da família que o grupo familiar se voltava. Neste contexto o pai era quem possuía uma posição privilegiada, restando à criança um lugar subestimado. Foi em meio à transformação do Brasil-Colônia em Brasil-Nação que a criança deixou de ser manipulada pela Igreja ou pela família, como também deixou de ocupar uma posição secundária no seio da família e da sociedade e tornou-se um valioso patrimônio da nação. Segundo Rizzini (1998), nesse período, a criança passou a ser percebida como "'chave para o futuro', um ser em formação que tanto poderia ser transformado em 'homem de bem' (elemento útil para o progresso da nação) ou num `degenerado' (um vicioso inútil a pesar nos cofres públicos)" (p. 25).

Outro estudo que merece destaque é o de Abreu e Martinez (1997), pois oferece uma perspectiva histórica da situação da criança no Brasil nos séculos XIX e XX, mostrando os diversos olhares e saberes, as múltiplas ações que se voltaram em direção às crianças e, mais especificamente, às crianças pobres. Os autores afirmam que, inicialmente, a preocupação com as crianças estava relacionada com as discussões da própria formação do povo e do cidadão brasileiro. Os autores acima assinalam que a lei do ventre livre (setembro de 1871) foi um dos principais motores para a identificação da criança pobre como problema social. A partir da lei, várias medidas foram colocadas em prática. Aliás, a abolição dos escravos e a necessidade de formar trabalhadores livres e disciplinados foram questões que marcaram as preocupações sociais com as crianças das classes populares.

Após a Proclamação da República, em novembro de 1889, a problemática da infância tomou novas dimensões. A criminalidade infanto-juvenil se tornou uma grande preocupação social, principalmente nas grandes cidades. Neste cenário, o poder judiciário toma a dianteira, sendo o juiz de menores posto como autoridade máxima no assunto. No entanto, outros profissionais, como médicos, pedagogos, filantropos, também participaram e contribuíram na construção da assistência social à criança.

De acordo com Rizzini (1998), um dos marcos de uma política regulamentada voltada à infância foi o 1o Código de Menores (1927) que visava organizar as formas de trabalho, a educação, a prevenção e recuperação dos "criminosos" e "delinqüentes". Segundo a autora, aos olhos da elite eram as crianças pobres as que mais careciam de atenção e precisavam de intervenções, pois os pobres com sua viciosidade, não se encaixavam no ideal de nação, estando sempre associados à degradação moral. A criança pobre representava uma ameaça ou perigo à sociedade, sendo portanto, identificada como um problema social que demandava uma ação urgente. Foi nesse contexto que a infância pobre ocupou um lugar bastante central de discussão.

Ainda segundo Rizzini (1998), a atuação sobre o universo da pobreza vai se dar no sentido de moralizá-lo. Nas discussões acerca do que era moral ou imoral, virtuoso ou vicioso, não foi sem propósito que se considerou o trabalho como uma das mais nobres virtudes e a ociosidade como a origem dos demais vícios, algo que conduziria até a criminalidade. Antes do período republicano, o trabalho era visto pela elite como algo degradante, que se associava à pobreza e à escravidão. Agora, no entanto, tendo em vista o processo de industrialização, deparava-se com uma nova concepção: a do trabalho dignificante e enobrecedor. Chegou-se até mesmo a considerar o trabalho como "salvação" para as mazelas da sociedade, inclusive as morais.

Há um encaminhamento da criança pobre para o trabalho, tornando-se uma estratégia tanto dos empresários quanto do governo. De acordo com Faleiros (1997): "a intervenção do Estado não se realiza como uma forma de universalização de direitos, mas de categorização e de exclusão, sem modificar a estratégia de manutenção da criança no trabalho, sem deixar de lado a articulação com o setor privado e sem se combater o clientelismo e o autoritarismo" (p. 64).

Aliás, o autor referido acima, quanto às políticas para a infância, assinala uma distinção entre "desvalidos" e "validos" sócio-política e economicamente. Enquanto para estes reserva-se o projeto de direção da sociedade, da vida intelectual, para aqueles resta a educação escolar e profissional no nível da subsistência, da sobrevivência. Às crianças e adolescentes pobres a estratégia é de encaminhamento para o trabalho, como algo natural, como se a desigualdade fosse natural.

Quanto ao discurso da educação da criança pobre visando o futuro da nação, percebe-se que educar tinha como meta moldá-la para a submissão. Era uma "forma de manter a massa populacional arregimentada como nos velhos tempos, embora sob novos moldes, impostos pela demanda das relações de produção de cunho industrial capitalista" (Rizzini, 1998, p. 35). Foi ainda por esse motivo que o país adotou uma política predominantemente jurídico-assistencial de atenção à infância e não investiu em uma política de educação de qualidade acessível a todos.

No Governo de Getúlio Vargas (1930-1940), tem-se um processo de reconstrução do Estado e redefinição da nação que repercutiram de forma significativa sobre a infância. Segundo Faleiros (1997), privilegiar a preservação da raça, a manutenção da ordem e o progresso da nação surgiram como estratégia do governo. Nesse contexto, a proteção à infância vai constituir-se uma preocupação nacional. E os moldes que estruturam a política da infância, denominada "política do menor", consistiram numa combinação da repressão, da assistência e da defesa da raça. Moldes estes que marcaram as trajetórias das crianças e dos adolescentes no país.

O governo Vargas é marcado pela exaltação do trabalho e do cidadão trabalhador. Encontra-se nesse período grande utilização do trabalho precoce, pois a criança trabalhadora era vista como um personagem importante, revestida de valorização. Esse aspecto se revela no discurso do presidente: "Já colabora para a grandeza do Brasil, através da dignificação do trabalho, do auxílio aos seus pais, num edificante exemplo de solidariedade na luta pelo ganha-pão diário" (citado por Kramer,1981, p. 63).

Segundo Abreu e Martinez (1997), com o Golpe Militar de 1964 interromperam-se os debates ocorridos nas décadas de 1940 e 1950, "os quais encaminhavam projetos de reformulação do Código de Menores e o estabelecimento de um sistema de atendimento mais adequado às crianças e jovens" (p. 31). Os governos militares adotaram a política de segurança nacional, com um discurso voltado para a prevenção da criminalidade e uma prática direcionada à política de internamento dos menores "indesejáveis". Nesse período as políticas para a infância foram marcadas por um caráter autoritário e excludente.

Com a abertura para a "democracia" na década de 1980 tem-se uma discussão mais ampliada sobre os direitos da criança e do adolescente e dos deveres do Estado. Critica-se a denominação menor carregada de estigma e "utilizada para caracterizar uma distinção social e classista" (Abreu & Martinez 1997, p. 32), sobressaindo-se o reconhecimento da criança como um sujeito de direitos, um cidadão. Essa concepção foi incorporada pelos atores políticos muito recentemente e ocorreu em função dos movimentos sociais. Inúmeras organizações foram mobilizadas em relação aos direitos da criança, destacando-se o Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), a Pastoral do Menor, entidades de direitos humanos e outras organizações não-governamentais (ONGs).

De acordo com Pilotti (1997), essa concepção de criança e adolescente como sujeitos de direitos e como cidadãos teve seu desenvolvimento mais intenso no período compreendido entre o Ano Internacional da Criança (1979) e a Convenção dos Direitos da Criança (1989). Estes dois eventos mundiais marcaram um período em que o tema infância passou a ser objeto de intensa discussão, no qual se manifestam "'novas' categorias de problemas no cenário social Latino-Americano: crianças na e da rua, tráfico de drogas, condutas anti-sociais, trabalho infantil, tráfico e venda de crianças, prostituição, infância afetada por conflitos armados e outras" (p. 17).

Sendo assim, a mão-de-obra infantil constituiu-se, no início dos anos 90, como um problema, como uma questão de defesa dos direitos humanos. O trabalho precoce, que até então era tolerado pelos governos e pela sociedade civil, passou a ser alvo de estratégias e ações para sua eliminação. Em meados da década de 1980, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) era quase a única organização internacional que na prática empenhava-se para a eliminação do trabalho infantil. O Fundo das Nações Unidas pela Infância (UNICEF) também se uniu a esta causa e, atualmente, existe um grande número de instituições, pessoas, associações e organizações não-governamentais envolvidas no enfrentamento da exploração da mão-de-obra infantil (Organização Internacional do Trabalho [OIT], 1996).

Em novembro de 1994, com o apoio técnico e financeiro da OIT e do UNICEF, foi criado o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil para "atuar como uma instância aglutinadora e articuladora dos agentes sociais envolvidos em políticas e programas, que atuam na formulação de medidas que previnam e erradiquem o trabalho infantil no País, e que atue, principalmente, nas situações em que exponham a saúde e a integridade física e moral das crianças e, em especial, na exploração infantil em suas formas mais intoleráveis" (Ministério do Trabalho e do Emprego,1999b, p. 7).

O Fórum Nacional aponta como estratégia de ação três itens: o apoio à geração de renda para as famílias; ênfase na educação das crianças e intensificação da fiscalização. O Fórum busca mobilizar e sensibilizar os governos, os empresários, os trabalhadores, as ONGs; influenciar a formulação de políticas públicas e estimular a assinatura de pactos e acordos. O Fórum visa ainda apoiar a operacionalização de programas de erradicação do trabalho infantil, como o Programa de Ações Integradas (PAI) e o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), os quais pretendem retirar as crianças do mercado de trabalho, possibilitando o acesso à escola.

Como se pode constatar até aqui, as discussões sobre o trabalho precoce avançaram em vários segmentos da sociedade. Em termos jurídico e social, o Estatuto da Criança e do Adolescente legitimou a cidadania como direito da criança e do adolescente e sua promoção como dever do Estado e da sociedade, inovou o tratamento da questão com base na descentralização político-administrativa e na participação da sociedade na formulação de políticas e propostas para atender a crianças e adolescentes. No entanto, na prática, ainda depara-se com preconceitos, marginalização e descaso com a vida da maior parte das crianças e jovens do país.

Diante dessa realidade e da ausência de discussão para possíveis intervenções, nas políticas elaboradas pelos Programas de Saúde do Trabalhador (PST), o presente estudo de caráter exploratório teve como objetivo investigar qual o lugar que o trabalho precoce vem ocupando nas políticas de Saúde do Trabalhador no Município do Natal/RN. Para tal, realizou-se um levantamento dos relatórios do Núcleo de Saúde do Trabalhador da Secretaria Municipal de Saúde e entrevistas com os técnicos deste Núcleo e do PST da Unidade de Saúde do Distrito Sul ¾ Posto de Saúde Pirangi. Antes de abordar o estudo de campo propriamente dito, vale a pena compreender a conjuntura atual do Programa de Saúde do Trabalhador no município de Natal.

A saúde do trabalhador no Município do Natal

No município do Natal, a saúde do trabalhador ainda constitui-se em um processo muito incipiente, com os mesmos percalços vividos no restante do país, tal como relatam Oliveira e Vasconcellos (1992). A trajetória para a implementação do Programa de Saúde do Trabalhador na rede básica de saúde de Natal/RN possui a particularidade de tomar corpo, num período em que o neoliberalismo já havia sido incorporado enquanto política pública pelo governo municipal e uma total ausência da participação dos movimentos sindicais para que o PST fosse efetivado.

Segundo o Relatório Anual das atividades do Núcleo de Saúde do Trabalhador do Serviço Municipal de Vigilância Sanitária (1994-1998) ¾ Natal/RN (1998), escrito pela coordenadora deste Núcleo, o Núcleo de Saúde do Trabalhador vinculado à Vigilância Sanitária foi oficializado em 1994, com o objetivo de realizar atividades voltadas à assistência e à vigilância. Houve a intenção de criar uma unidade de referência nos quatro Distritos Sanitários: Norte, Sul, Leste e Oeste. No entanto, concretizou-se apenas em dois Distritos - Distritos Sul (Unidade de Pirangi) e Norte (Unidade de Igapó). O programa do Distrito Norte, após a transferência da médica do trabalho e pela inexistência de outro técnico, na época, com formação específica, dissolveu-se, restando apenas o do Distrito Sul, com um corpo técnico composto por um médico clínico, uma assistente social e uma nutricionista, todos com formação específica na área de saúde do trabalhador.

Neste percurso de construção do Núcleo de Saúde do Trabalhador em Natal, em 1995, surgiu uma nova proposta: a criação de um Centro de Referência de Atendimento ao Trabalhador e a extinção do atendimento nas unidades de referência, pois as mesmas não dispunham de recursos humanos, materiais e equipamentos para desenvolver as atividades específicas da saúde do trabalhador. Todavia, não houve prioridade por parte dos dirigentes políticos para a implantação desse serviço. Então, o Núcleo de Saúde do Trabalhador buscou parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e a FUNDACENTRO, iniciativa que resultou na elaboração do Convênio Trilateral (UFRN, FUNDACENTRO e SMS) com a finalidade de implementar o Ambulatório de Referência no Hospital Universitário Onofre Lopes.

Em 1997, realizou-se uma reunião com o Secretário Municipal de Saúde, na qual foi apresentada a proposta do Convênio Trilateral. No entanto, entre as muitas dificuldades enfrentadas para a concretização do referido ambulatório, o grande impasse cristalizou-se em virtude do descompromisso das autoridades. Em conseqüência da impossibilidade de efetivar a assistência ambulatorial, o Núcleo se propôs a desenvolver apenas ações na área de vigilância dos ambientes de trabalho.

Em 1997, o Núcleo de Saúde do Trabalhador (composto por uma nutricionista, uma socióloga e um químico), em parceria com o Núcleo de Controle de Alimentos e o Distrito Sanitário Norte, elaboraram um projeto ligado à Vigilância Sanitária: Projeto de Avaliação da Contaminação por Agrotóxico e Microorganismos nas Hortaliças Cultivadas numa Área entre Extremós e Natal/RN. Esse projeto surgiu em decorrência das denúncias ao Distrito Sanitário Norte sobre o mau cheiro de esterco de animais.

Foram convidadas algumas instituições para participar desse projeto: o Ministério da Saúde, a Secretaria de Agricultura e a UFRN. Aos poucos, áreas de investigação foram sendo construídas, incluindo a da saúde do trabalhador. Os técnicos da Vigilância Sanitária fizeram uma investigação da situação do ambiente e constataram vários problemas no local: contaminação elevada da água; aplicação inadequada de agrotóxico e não utilização de equipamentos de proteção; utilização do adubo antes da maturação necessária, o que agravava o problema do mau cheiro; inadequação na reutilização e destino de embalagens dos agrotóxicos e, ainda, a presença de trabalho infantil.

Em relação ao trabalho infantil, apesar de ter sido citado como um dos problemas na região investigada pelo projeto, do qual o Núcleo de Saúde do Trabalhador participa, não há ações de combate e/ou assistência desenvolvidas pelo Núcleo. Em vista disso, realizou-se um estudo de campo para conhecer melhor a realidade do trabalho precoce na região; pesquisar o funcionamento dos serviços do Núcleo de Saúde do Trabalhador e do Posto de Saúde Pirangi, do Município do Natal e verificar como é contemplado o trabalho infantil nestes espaços. Este estudo será tratado a seguir.

Metodologia

Gramorezinho é um bairro situado na Zona Norte da cidade de Natal e é uma das localidades onde o Núcleo de Saúde do Trabalhador (NST) desenvolve algumas atividades, as quais envolvem mão-de-obra infantil, segundo relatório citado anteriormente. Em decorrência disso, resolveu-se fazer um estudo exploratório acerca da presença de crianças trabalhadoras no bairro a fim de obter maior conhecimento dessa situação no local. Para a concretização desse estudo foram planejadas visitas ao bairro de Gramorezinho para observação da realidade local e fazer contatos com informantes chaves da comunidade (moradores e crianças), bem como entrevistas com os técnicos do Núcleo de Saúde do Trabalhador e do Programa de Saúde do Trabalhador da Unidade de Saúde do Distrito Sul ¾ Posto de Saúde Pirangi, com o objetivo de investigar como estão funcionando estes serviços e como se insere a questão do trabalho precoce.

Após contatos com os técnicos, somente manifestaram disponibilidade para participar da pesquisa um técnico do Núcleo e o único técnico do PST do Posto de Saúde de Pirangi, cuja formação é, respectivamente, nutricionista e médico clínico. Ambos participam desde o início das atividades do NST e PST. Um outro técnico (o coordenador do Núcleo) afirmou que o que tinha a dizer sobre os serviços já havia escrito no relatório anual das atividades do serviço de vigilância sanitária da Secretaria Municipal de Saúde. Sendo assim, os relatórios que continham registros das atividades do Núcleo de Saúde do Trabalhador foram inseridos nesse estudo como fonte prioritária de informação sobre os serviços, juntamente com as entrevistas que puderam ser realizadas. Os relatórios, gentilmente cedidos pela coordenadora do serviço de vigilância sanitária, registravam atividades do Núcleo desde 1994, ano da oficialização do Núcleo, até 1998, período da pesquisa. Os técnicos entrevistados, apesar de não estarem ocupando posição de coordenação das atividades, são aqueles que operacionalizam no cotidiano ações voltadas para a promoção da saúde do trabalhador, sendo, pois, elos importantes no processo de implementação de novas práticas voltadas para o trabalhador infantil.

No período de janeiro 2000, foram realizadas as entrevistas com os técnicos nos seus espaços de trabalho e, em junho de 2000, as visitas ao bairro de Gramorezinho. Para as entrevistas foi utilizado um roteiro flexível, o qual serviu como guia geral sobre alguns aspectos importantes para investigar. No caso dos técnicos, o roteiro abrangeu perguntas sobre atividades desenvolvidas na área de saúde do trabalhador; problemas mais identificados em relação ao trabalho, contemplação do trabalho infantil pelo programa, abordagem do problema, atividades que as crianças realizam, queixas que trazem, relação das queixas com o trabalho que as crianças realizam. Na ocasião dessas visitas entrevistou-se uma moradora do bairro que, segundo os técnicos, é uma pessoa bastante conhecedora da realidade local e conversou-se, informalmente, com algumas crianças trabalhadoras que estavam na escola do bairro (Escola Lourdes Goudeiro). Quanto à moradora, as perguntas abarcavam aspectos referentes ao trabalho das crianças, à freqüência a escola, aos problemas de saúde que as crianças apresentam, relação entre esses problemas de saúde e as tarefas que realizam e o tratamento dado às crianças quando adoecem.

As entrevistas dos técnicos e moradora foram gravadas em fitas magnéticas e, posteriormente, transcritas. As falas foram trabalhadas segundo a perspectiva da análise das práticas discursivas (Spink, 1999). Tal proposta enfoca o estudo da produção de sentidos, o qual é concebido como uma construção, uma prática social dialógica. Assim, compreende-se que o discurso dos atores em questão reflete os esquemas adquiridos a partir do pertencimento a determinados segmentos sociais, ou seja, são colocados como sujeitos historicamente situados.

Resultados

De acordo com os dados obtidos, o Programa de Saúde do Trabalhador do Posto de Saúde de Pirangi, inicialmente, pretendia desenvolver ações voltadas à assistência e à vigilância sanitária. Quanto à assistência, a SMS havia preconizado que os usuários deveriam ter carteira assinada e que somente o trabalhador formal receberia assistência. Atualmente, o que se constata é a inexistência do PST. O programa conta com apenas um médico clínico, o qual, diante das muitas dificuldades enfrentadas, encontra-se em vias de extinguir o programa. Essas dificuldades vão desde o não reconhecimento da Saúde do Trabalhador como uma especialidade médica (por parte do Conselho Regional de Medicina) até a falta de material, de equipamentos, de um corpo técnico que lhe permitisse respaldar a prática do programa. Em função desses problemas, não está mais havendo inscrição para a atendimento pelo programa.

Diante desse quadro, observa-se o total desestímulo dos profissionais que antes estiveram envolvidos com a temática. No caso da coordenadora do Núcleo de Saúde do Trabalhador percebeu-se até uma carga afetiva forte na sua fala, no tocante a essa questão, a tal ponto de não querer falar sobre o assunto. Aliás, essa carga afetiva também foi uma reação notada em outras pessoas que estiveram envolvidas desde o início do processo de construção do campo da Saúde do Trabalhador em Natal, com as quais se teve contato. Uma delas tratou do assunto relatando que o quadro da saúde do trabalhador na nossa cidade era "triste", por não dispor de profissionais interessados em abraçar a temática, pelas dificuldades burocráticas, pela não participação dos próprios interessados ¾ os trabalhadores, pela falta de compromisso das autoridades. Embora tenha existido uma mobilização na década de 1990, com cursos de pós-graduação no Departamento de Saúde Coletiva da UFRN na área, tendo-se formado grupos de atuação, projetos, tentativas de implementar um Ambulatório de Referência, nada disso logrou êxito, como já foi relatado.

Quanto ao Núcleo de Saúde do Trabalhador, que realiza apenas ações voltadas à vigilância sanitária, vem atualmente desenvolvendo junto ao Núcleo de Alimentos e o Distrito Sanitário Norte, atividades no projeto de avaliação da contaminação por agrotóxico e microorganismos nas hortaliças cultivadas numa área entre Extremóz e Natal, área em que há presença de trabalho infantil. Esse projeto teve início em 1997 devido à denúncia de utilização indiscriminada de agrotóxico, sem a utilização de equipamentos de proteção individual e pelo problema da água contaminada da lagoa, que era usada para a irrigação das hortaliças.

Para este estudo, é importante focalizar alguns dados do relatório do projeto referido acima, no que diz respeito à área da saúde dos trabalhadores. Em relação ao uso de agrotóxico, 84,3% dos trabalhadores o utilizavam. Destes, apenas 21,5% usavam alguma proteção durante a aplicação. A área envolvida pelo projeto abrange cerca de 249 trabalhadores (77,2% homens e 22,4% mulheres) exercendo atividades na horta, segundo o cadastramento realizado, em 1998, pela COVISA (Coordenação de Vigilância Sanitária de Natal). Há registro de crianças e adolescentes trabalhando na horta (1,6% entre 6-10 anos de idade; 8,4% entre 11-15 anos e 23,6% entre 16-20 anos). Entretanto, esses dados representam um número bastante inferior à realidade observada no local, pois os técnicos de saneamento do Distrito Norte informaram que, embora tivesse muita criança trabalhando na área, não houve uma preocupação em registrá-las.

Aliás, essa falta de preocupação em relação ao trabalho precoce marca as entrevistas. O técnico do PST de Pirangi relatou que nunca recebeu demanda de trabalhador infanto-juvenil e nem se preocupou com essa questão. Afirma ainda: "... a criança é a minoria no mercado de trabalho... Se (com) a maioria a secretaria não está preocupada, quanto mais com essa minoria que não é prioridade para ela" (Técnico 1, comunicação pessoal, janeiro de 2000). A técnica do Núcleo de Saúde do Trabalhador comentou que não se preocuparam com o trabalho precoce porque "não podia ser muito extenso". O trabalho infantil não foi uma prioridade nesse projeto "até por um limite". Relata: "... um dos problemas maiores na minha opinião é a questão ambiental, é mais sério, mais relevante... é muito mais recurso, muito mais dinheiro para você descontaminar aquele espaço...a saúde do trabalhador infantil é importante, mas tem o pé muito mais na assistência, na atenção... e como o trabalho infantil é uma fatia menor..." (Técnico 2, comunicação pessoal, janeiro de 2000).

Nota-se claramente nas narrativas que o trabalho precoce não representa um "problema" para os técnicos, nem no sentido do desenvolvimento de ações de combate, nem de assistência propriamente dita. Pensa-se nos prejuízos causados ao ambiente muito mais do que no impacto que o uso inadequado de agrotóxicos tem sobre a saúde do trabalhador adulto ou precoce. O fato de os técnicos não estarem atentos às atividades que as crianças realizam, faz com que os prejuízos provocados pelo trabalho continuem mascarados. Sem ser objeto de investigação é impossível perceber os danos que a exploração do trabalho precoce causa às crianças.

Seria interessante que, dentro do projeto que vem sendo realizado pelos técnicos, fosse inserido um diagnóstico da situação local em termos do trabalho de crianças e adolescentes para, posteriormente, pensar em uma intervenção mais consistente. Esse tem sido o nosso maior interesse com nossas investigações em Gramorezinho. Nesse sentido avançamos em alguns pontos, dentre os quais destacamos: as atividades realizadas pelas crianças abarcam quase todo o processo de trabalho das horticulturas realizado pelos adultos. Incluem-se atividades como adubar a terra, limpar a leira, fazer a rega (aguação) das hortaliças, arrancar e amarrar os molhos (coentro, alface etc.). Este dado revela a desconsideração das particularidades que caracterizam a infância, estando as crianças incorporadas ao mundo do trabalho como se fossem adultos. Segundo o técnico do NST, provavelmente, as crianças devem participar de trabalho noturno, pois devido à deficiência na distribuição de energia elétrica, os trabalhadores executam as regas de madrugada, quando a energia elétrica é menos requerida. Vale lembrar que essa atividade é realizada manualmente com mangueiras ligadas a bombas elétricas.

Além disso, tivemos a oportunidade de encontrar, na Escola Lourdes Goudeiro, muitas crianças que estudam à tarde e trabalham nas hortas pela manhã. Conversou-se com algumas delas (quatro meninos e uma menina), três deles cursam a 4a série (10 a 12 anos de idade) e dois a 3a série (9 e 10 anos de idade). Elas começaram a trabalhar entre 5 e 9 anos de idade e acordam às 5 ou 6 horas da manhã para trabalharem até a hora de ir à escola. Apesar de não termos realizado uma investigação muito pormenorizada com as crianças, percebemos através de seus relatos que todas possuem uma rotina de trabalho e estudo, onde não estão incluídas as atividades de lazer. Algumas vezes não conseguem ficar muito tempo no trabalho e voltam para casa, outras vezes estão tão cansadas após as atividades, que, à tarde, não conseguem ir à escola. Na sexta-feira, poucos alunos vão à escola, pois como tem feira no final de semana, eles têm de amarrar as hortaliças. Vale salientar, que o ensino oferecido pela escola só vai até a 4a série. Após a conclusão, geralmente param de estudar e se dedicam apenas ao trabalho. É o caso dos adolescentes da região.

Com isso percebe-se que as crianças que trabalham em Gramorezinho estão sujeitas às condições precárias de trabalho que certamente trazem prejuízos à saúde. Como trabalham a manhã toda, ficam por tempo prolongado expostas ao sol, transpiram muito e não repõem, adequadamente, os líquidos do organismo; permanecem em determinadas posições de trabalho horas seguidas e relatam sintomas, tais como: dor de cabeça, moleza no corpo, "agonia do sol". Acrescente-se aqui os prejuízos quanto ao aspecto psicossocial, como também os danos causados na vida escolar dessas crianças e adolescentes.

Estes aspectos passam desapercebidos não só pelos técnicos ligados à saúde do trabalhador, mas também pela moradora do bairro. Para esta, o trabalho infantil é visto como algo que é motivo de orgulho: "... por uma parte eu acho bom, porque as crianças não ficam na rua. É melhor elas estarem com os pais trabalhando do que estarem na rua... se não estiver na escola elas estão nas hortas" (moradora, comunicação pessoal, junho de 2000). Este relato lembra o que já foi comentado na literatura (Abreu & Martinez, 1997; Faleiros, 1997; Rizzini, 1998) sobre a percepção da criança na rua como ameaça ou perigo, sendo o trabalho precoce estimulado, naturalizado, dignificado, tomado como instrumento que possibilita a retirada da criança da rua, disciplinando-a.

Quanto aos problemas de saúde, a moradora do bairro relata que a doença que mata mais na região é o câncer (só os mais velhos) e existem sintomas como dor no estômago, às vezes vômitos e febres, na literatura especializada sintomas associados ao uso de agrotóxicos . Dificilmente os moradores procuram um médico. Não há Posto de Saúde na localidade e quando precisam de algum tipo de assistência procuram a casa da curandeira. E quando "estão para morrer" procuram o Posto de Saúde mais próximo que fica em Pajuçara, bairro situado na Zona Norte da cidade do Natal. A respeito da saúde das crianças, a entrevistada diz que é muito difícil criança e jovem adoecer e para se levar ao Posto de Saúde, apenas em último caso. No entanto, afirma que todo dia no final da tarde, fazem fila na casa da curandeira, para a qual muitas crianças são levadas quando estão com "mau olhado", cujos sintomas são vômitos, fastios, entre outros, típicos do trabalho realizado. O interessante é que a entrevistada só estabelece uma relação entre os sintomas físicos apresentados e a questão do trabalho que as crianças realizam por ocasião da entrevista. E lembra de algumas situações em que colocavam agrotóxico próximo às crianças, seja nas proximidades da escola ou da creche, seja quando um pai fazia uso com o filho por perto. Ela diz: "quando aplicam perto da escola ficam tudo sufocado, parece cheiro de alface podre. Agora eles estão deixando mais de aplicar o veneno" (moradora, comunicação pessoal, junho de 2000). Além disso, a falta de um lugar apropriado para se guardar as embalagens do produto, pode deixá-las acessíveis às crianças. Ou seja, sua percepção muda ao ter uma visão mais ampla sobre o modo como o trabalho vem sendo realizado na comunidade como um todo, assumindo uma posição mais problematizadora da questão.

Como parte da proposta do PST, no ano de 1999, começou a realização das consultas, dos exames clínicos nos trabalhadores com o objetivo de verificar a contaminação pelo agrotóxico. Atualmente, a consulta está sendo realizada por dois médicos do trabalho e direcionada aos trabalhadores que usam venenos. De acordo com afirmações dos técnicos de saneamento, um dos trabalhadores deve ter levado o filho que usava veneno, para se consultar. No entanto, o profissional se recusou a atendê-lo, justificando que não possuía especialidade no atendimento de crianças. Isso demonstra a necessidade de que esses profissionais estejam capacitados para identificar, nas crianças, problemas de saúde relacionados ao trabalho. Quanto à assistência ao trabalhador precoce tem-se uma enorme lacuna, pois por ser proibido por lei, ele existe na clandestinidade, não podendo estar incluído nas políticas de assistência pois a sua inclusão o legitimaria. Nesse caso, que saídas poderiam ser pensadas pelos técnicos que lidam com as comunidades cuja presença do trabalho precoce é marcante? Como enfrentar esse paradoxo?

Considerações Finais

Pesquisar o lugar do trabalho infantil nas políticas de saúde do trabalhador, no contexto da saúde pública, significou estudar conteúdos, até então, novos e lidar com questões muito delicadas. A saúde do trabalhador em Natal vem sendo tratada pelas autoridades políticas como algo de menor importância, ficando à margem das políticas de saúde. Fato que tem impedido a concretização do Programa de Saúde do Trabalhador na Secretaria Municipal de Saúde. Além disso, o desestímulo dos profissionais, a pouca articulação entre os técnicos envolvidos atualmente com a questão e a não participação do movimento sindical diluem as forças para a efetivação da política de saúde do trabalhador.

Quanto às tentativas de efetivação do PST no âmbito local, constataram-se grandes dificuldades para a concretização das ações de atenção à saúde do trabalhador na rede pública de saúde, principalmente em virtude do descompromisso das autoridades políticas locais. Atualmente, é um tema que parece ter sido silenciado, sobre o qual, técnicos e outros profissionais, antes envolvidos com a questão, não se dispõem mais a atuar nessa área ou, até mesmo, a falar sobre o assunto.Verificou-se, também, ao percorrer a construção do campo da saúde do trabalhador, um silêncio, uma ausência de discussão sobre a mão-de-obra infantil. Em nenhum momento encontra-se qualquer medida ou intervenção para que o trabalhador precoce passe a existir, a ocupar um lugar frente às políticas de saúde do trabalhador.

O trabalho infantil depara-se com uma dura realidade. Se por um lado é proibido por lei (Constituição Federal e Estatuto da Criança e do Adolescente) e constitui-se em alvo de combate por parte de organizações nacionais e internacionais (UNICEF e OIT), por outro, continua existindo em várias regiões do país e não se configura como objeto de investigação e intervenção para formuladores de políticas públicas de saúde, bem como para os técnicos da área de saúde do trabalhador. Além do mais, como foi visto nos resultados desse estudo, segundo informações dos técnicos de saneamento do Distrito Norte, o médico do trabalho quando se deparou com um trabalhador precoce, recusou-se a atender a criança justificando não possuir especialidade neste tipo de atendimento. Considera-se, portanto, urgente a necessidade de desenvolver políticas públicas de saúde que incluam essa população como objeto de estudo para que profissionais com capacitação específica e comprometidos com a questão, possam pensar em estratégias para o enfrentamento do problema, como também para auxiliar essas comunidades e contribuir com possíveis mudanças nessa realidade.

Incluir a mão-de-obra infantil como objeto de pesquisa na pós-graduação de Psicologia Social da Saúde na Universidade Federal do Rio Grande do Norte consiste em uma tentativa de fornecer uma maior visibilidade sobre o tema no âmbito da academia, propiciar ao trabalho precoce mais um lugar de discussão e poder contribuir com as políticas de combate dessa forma de trabalho tão desumana que vem se perpetuando através dos tempos. Este estudo possuiu algumas dificuldades no tocante à obtenção de informações sobre o campo da saúde do trabalhador com os profissionais envolvidos no início da sua trajetória na cidade do Natal. A partir deste estudo, futuras investigações poderão se realizadas na região de Gramorezinho, tais como avaliar as condições de vida, saúde e de trabalho das crianças que trabalham nas hortas; avaliar a relação entre sofrimento psíquico e trabalho nas crianças; identificar as queixas apresentadas pelas crianças e verificar se têm alguma relação com o uso de agrotóxico; investigar a representação que os técnicos do Núcleo de Saúde do Trabalhador possuem acerca da infância e do trabalho infantil.

Izabel Christina do N. Feitosa, Maria Aparecida de França Gomes e Munich Vieira Santana Gomes, psicólogas, são mestrandas do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Magda Dimenstein, doutora em Saúde Mental pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Endereço para correspondência:UFRN, CCHLA, Depto. de Psicologia, sala 610, Campus Universitário, 59.078-970, Natal, RN. Telefax: (84) 213-1739. E-mail: magdad@uol.com.br.

Recebido em 28.12.00

Primeira revisão em 26.04.01

Segunda revisão em 31.10.01

Aceito em 05.11.01

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Mar 2002
  • Data do Fascículo
    2001

Histórico

  • Revisado
    31 Out 2001
  • Recebido
    28 Dez 2000
  • Aceito
    05 Nov 2001
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