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Ciberfeminismo e multiletramentos críticos na cibercultura

RESUMO

Este artigo tem como objetivo compreender como a atuação de mulheres ciberativistas no combate à violência discursiva praticada por homens em redes sociais pode ser mobilizadora de multiletramentos críticos da cibercultura e contribuir com processos formativos feministas na universidade. O estudo, com suporte no referencial teórico da perspectiva social e abordagem crítica dos multiletramentos, dialoga com o ciberfeminismo e a violência pelo uso da linguagem, analisando uma prática ativista e sua repercussão mundial veiculadas em vídeos na rede social YouTube e expressas no discurso de representantes políticos e praticantes culturais da interação. Os processos históricos de acirramento de conflitos políticos e ideológicos relacionados ao legado patriarcal e machista se refletem em espaços públicos e sociais e também no ciberespaço, materializados na violência pelo uso da linguagem em redes sociais e nas práticas de ciberativistas que lutam, resistem e marcam o seu lugar social, apontando o potencial dessas experiências no desenvolvimento de conhecimentos críticos para a formação social e política de outras mulheres contra esta forma de opressão.

Palavras-chave:
Cibercultura; Multiletramentos; Redes sociais; Ciberfeminismo; Violência discursiva

ABSTRACT

This article aims to understand how the role of cyberactivist women in combating discursive violence practiced by men in social networks can mobilize critical cyberculture multiliteracies and contribute to feminist training processes at the university. The study, supported by the theoretical framework of the social perspective and a critical approach to multiliteracies, dialogues with cyberfeminism and violence through the use of language, analyzing an activist practice and its worldwide repercussion, broadcast in videos on the social network YouTube and expressed in the speech of politicians and cultural practitioners of interaction. The historical processes of worsening political and ideological conflicts related to the patriarchal and sexist legacy are reflected in public and social spaces and also in cyberspace, materialized in violence through the use of language in social networks and in the practices of cyberactivists who struggle, resist and mark their social place, pointing out the potential of these experiences in the development of critical knowledge for the social and political formation of other women against this form of oppression.

Keywords:
Cyberculture; Multiliteracies; Social networks; Cyberfeminism; Discursive violence

Introdução

As tecnologias digitais em rede vêm provocando a emergência de novas e diferentes práticas sociais, que envolvem os usos e as apropriações das informações e dos saberes que por elas circulam. Neste movimento há a reconfiguração da atuação de sujeitos também nos modos como aprendem, ensinam, produzem e compartilham nas redes.

Mas ainda há uma dicotomia entre as práticas cotidianas da cibercultura e as práticas pedagógicas e de ensino e aprendizagem desenvolvidas nos currículos das universidades. Inicialmente situamos essa dicotomia na tradição herdada na educação em considerar um único modelo de letramentos, o escolarizado e, portanto, presente nos processos formativos que se baseiam exclusivamente no desenvolvimento de habilidades e competências de leitura e escrita analógica, em detrimento dos multiletramentos existentes na contemporaneidade cibercultural.

Para Street (2014STREET, Brian. Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação. Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Parábola Editorial, 2014.), ampliar a reflexão sobre os princípios teóricos da perspectiva social e abordagem crítica dos multiletramentos pelo viés do modelo ideológico é imprescindível para compreender a oposição ao modelo autônomo, usado para medir habilidades por meio de testes sobre níveis e graus de letramentos, comuns em programas para a verificação das competências adquiridas individualmente pelos sujeitos, independentemente do contexto sociocultural em que se inserem suas práticas. Associa-se a esse modelo a suposição de que “a escrita facilita as funções ‘lógicas’ da linguagem, permitindo que elas se separem em funções interpessoais, de modo que enunciados escritos são menos socialmente ‘encaixados’; ela cria, portanto, um uso mais objetivo e científico da linguagem” (STREET, 2014STREET, Brian. Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação. Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Parábola Editorial, 2014., p. 104).

Para discutir sobre implicações, condicionantes e desafios dos letramentos, os Novos Estudos sobre Letramento (NLS) deslocam a ênfase às práticas sociais, reconhecendo a sua variedade e diversidade, conforme tempo, espaço e contexto sociocultural, contestadas nas relações de poder. Desses estudos surgem os marcos conceituais do modelo ideológico dos letramentos, que considera ser nas práticas sociais que os conhecimentos, resultantes dos modos como as pessoas se relacionam com a leitura e a escrita, estão enraizadas em princípios epistemológicos socialmente construídos (STREET, 2013STREET, Brian. Políticas e práticas de letramento na Inglaterra: uma perspectiva de letramentos sociais como base para uma comparação com o Brasil. Cadernos Cedes, Campinas, SP, v. 33, n. 89, p. 51-71, jan./abr. 2013.). Nesse sentido, os letramentos são lugares de disputas tanto como significados quanto como práticas, enraizados em uma dada visão de mundo e, por isso, ideológicos. Nas práticas sociais, as interações entre os sujeitos afetam a natureza dos letramentos em um processo “sensível à variação local das práticas letradas e capaz de abranger os usos e significados que as próprias pessoas atribuem” (STREET, 2014STREET, Brian. Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação. Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Parábola Editorial, 2014., p. 159).

Por considerar aspectos socioculturais, ideologia, poder, identidade e linguagem, este modelo, quando aplicado aos multiletramentos, leva em conta a heterogeneidade das práticas sociais e o caráter sociocultural e situado da variedade de letramentos, o que significa considerar a complexidade das práticas que não necessariamente estão relacionadas à escolarização e à pedagogia. A variedade das práticas letradas em diferentes contextos, padrões culturais, ideologia e política pressupõe o reconhecimento de que há multiletramentos (STREET, 2014STREET, Brian. Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação. Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Parábola Editorial, 2014.).

Na cultura contemporânea, o uso de tecnologias digitais em rede possibilita a comunicação e a circulação de informações e saberes em múltiplos meios e plataformas, redimensionando os modos de atuação dos sujeitos e potencializando novas formas de organização, engajamento e criação de produtos culturais. Para Rojo e Moura (2012ROJO, Roxane; MOURA, Eduardo (org.). Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola Editorial, 2012.), os multiletramentos abarcam a diversidade de currículos, a variedade de culturas presentes nas escolas e a valorização do local em conexão com o global, em uma perspectiva sociocultural. Para as autoras, o conceito aponta para dois tipos de multiplicidades presentes nas sociedades contemporâneas, “a multiplicidade cultural das populações e a multiplicidade semiótica de constituição dos textos [hipermidiáticos e multimodais] por meio dos quais ela se informa e se comunica” (ROJO; MOURA, 2012ROJO, Roxane; MOURA, Eduardo (org.). Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola Editorial, 2012., p. 13).

Essas formações socioculturais, segundo Santaella (2003SANTAELLA, Lúcia. Cultura e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.), são chamadas tanto de cultura digital quanto de cibercultura e têm o ciberespaço como marca distintiva e definidora. Para a constituição da cultura contemporânea, de acordo com a autora, passamos por eras culturais, como a oralidade, a escrita, a impressa, de massas e das mídias, as quais são linhas de força que coexistem e convivem simultaneamente na atualidade, pois nelas estão presentes uma sincronização de linguagens e mídias em imbricamento, multiplexidade, complexificação e desdobramentos. Por essa razão, neste texto, a nossa opção é pelo uso do conceito de cibercultura.

Para Rosemary Santos e Edméa Santos (2012SANTOS, Rosemary; SANTOS, Edméa O. Cibercultura: redes educativas e práticas cotidianas. Revista Eletrônica Pesquiseduca, Santos, SP, v. 4, n. 7, p. 159-183, jan./jul. 2012., p. 161), “a cibercultura é a cultura contemporânea estruturada pelas tecnologias digitais em rede e vem se caracterizando atualmente pela emergência da mobilidade ubíqua em conectividade com o ciberespaço e as cidades”. As autoras destacam que “a cultura contemporânea, associada às tecnologias digitais, cria uma nova relação entre a técnica e a vida social. Não podemos compreender os paradoxos, as potencialidades e os conflitos atuais sem compreender o fenômeno da cibercultura” (SANTOS R.; SANTOS E., 2012SANTOS, Rosemary; SANTOS, Edméa O. Cibercultura: redes educativas e práticas cotidianas. Revista Eletrônica Pesquiseduca, Santos, SP, v. 4, n. 7, p. 159-183, jan./jul. 2012., p. 160).

Essas mudanças remodelam as práticas sociais e desafiam os praticantes culturais, como são concebidos os sujeitos que praticam o cotidiano por Certeau (1998CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.), a considerarem que suas ações, produções e significações são processos e produtos construídos do contexto sócio histórico da cultura, em que os esquemas de operações, técnicas, táticas e astúcias são engendradas no espaço, no tempo, no contexto e na historicidade humana. De modo que, na cibercultura, tais práticas cotidianas, papéis, repertórios de mobilização, modos de produção e compartilhamento de informações e saberes são desterritorializados, pois não há fronteiras geográficas nem espaciais para as experiências e criações de narrativas individuais e coletivas, como formas de atuação social e política no ciberespaço.

Para Matos (2018MATOS, Marlise. Movimento e teoria feminista: é possível reconstruir a teoria feminista a partir do Sul global? Rev. Sociol. Polit., Curitiba, v. 18, n. 36, p. 67-92, 2018.), estas são também características dos feminismos de quarta onda, movimentos que se desenvolvem com o uso da internet e colocam em destaque a massificação, diversidade e militância digital e transnacional de mulheres em redes sociais, como espaços de subjetividades e novas identidades. A discussão dos feminismos, neste texto, não adentra ao que Matos (2018)MATOS, Marlise. Movimento e teoria feminista: é possível reconstruir a teoria feminista a partir do Sul global? Rev. Sociol. Polit., Curitiba, v. 18, n. 36, p. 67-92, 2018. destaca como molduras teóricas do campo de gênero e dos feminismos do norte global em relação às agendas do sul global e da nova moldura teórica (frame) de articulações feministas de países sul-sul, tendo em vista o recorte feito para este estudo.

Os movimentos de mulheres na internet marcam essa nova etapa dos feminismos no Brasil que, para Hollanda (2018HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.). Explosão feminista: arte, cultura, política e universidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.), pós-jornadas de junho de 2013, passam a ser plurais e ganham força a partir de 2015, com a reação contra o projeto de lei do deputado Eduardo Cunha sobre o aborto legal em caso de estupro, intensificando lutas e combinando eixos, como gênero, classe, raça, etnia, orientação sexual, deficiência, religião etc. Nesse sentido, a autora destaca que se trata de um coletivo, compartilhado, ligado pelo afeto, sem lideranças claras, sem mediadores e que se faz ouvir com o domínio das redes sociais na internet. Um movimento horizontal, performático, com ocupações das ruas e das redes digitais, e que converge novas gerações de pensadoras, filósofas e jornalistas, as quais convidam outras mulheres a saírem do lugar de silenciamento histórico para buscar seu lugar de fala, marcado pela interseccionalidade, pelo empoderamento e pela sororidade.

Hollanda (2018HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.). Explosão feminista: arte, cultura, política e universidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.) discute a perspectiva teórica e política de gênero e outras relações do campo social e suas complexidades, envolvendo as diversas desigualdades e dimensões estruturais da vida política e pública, as quais atingem, de maneira desigual, o coletivo composto também por jovens mulheres que se organizam de forma autônoma, com novos repertórios de protestos que marcam as múltiplas posições identitárias destas ativistas, com a utilização intensa das redes sociais para difundir suas criações, narrativas e lutas. Esses espaços na internet possibilitam a produção de novas subjetividades, conexões e solidariedades, estruturam e abrem oportunidades de mobilização e intervenção discursiva feitas nas interações sociais.

Esse movimento de mulheres em redes sociais na internet é também chamado de ciberfeminismo, que, conforme Haraway (2009HARAWAY, Donna J. Manifesto Ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: SILVA, Tomaz Tadeu (org.). Antropologia do Ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. p. 33-118.), caracteriza a atuação de mulheres que praticam a “co-habitação” entre os meios tecnológicos e movimentos políticos e o estar entre fronteiras de significados. Nesse sentido, o ciberfeminismo, como nova onda de pensamento e de práticas sociais e políticas de mulheres net-ativistas, abre-se para a esperança de construção de uma nova ordem, que questiona gênero em interseccionalidade com outros eixos dos feminismos e suas reapropriações.

Atuações ciberfeministas tensionam práticas exercidas por homens em redes sociais que exacerbam violências contra mulheres por meio da linguagem. Esse fenômeno aponta para o desafio de construir formas de ativismos no ciberespaço para legitimar lutas no enfrentamento à violência e opressão histórica, patriarcal e machista, buscando o empoderamento do discurso feminino de resistência. Esse tipo de violência é entendido a partir dos estudos de Ribeiro (2018RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo: Companhia das Letras, 2018.), para a qual:

A linguagem opressora do discurso de ódio não é mera representação de uma ideia odiosa; ela é em si mesma uma conduta violenta, que visa submeter o outro, desconstruindo sua própria condição de sujeito, arrancando-o do seu contexto e colocando-o em outro onde paira a ameaça de uma violência real a ser cometida [...] (RIBEIRO, 2018RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 781).

A violência pela linguagem é por nós entendida como violência discursiva, e, nos estudos de Seixas (2019SEIXAS, Rodrigo. Violência discursiva, argumentação e memória no cenário político brasileiro: a (des)virtuosidade do discurso público. Entrepalavras, Fortaleza, v. 9, n. 1, p. 190-208, jan./abr. 2019.), retoma-se a noção de virtude discursiva de Marie-Anne Paveau (2015PAVEAU, Marie-Anne. Linguagem e moral: uma ética das virtudes discursivas. Tradução de Ivone Benedetti. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2015.), que envolve as dimensões éticas e morais da linguagem ajustadas aos contextos culturais, históricos e sociais da produção do discurso. Para Seixas (2019)SEIXAS, Rodrigo. Violência discursiva, argumentação e memória no cenário político brasileiro: a (des)virtuosidade do discurso público. Entrepalavras, Fortaleza, v. 9, n. 1, p. 190-208, jan./abr. 2019.,

a violência discursiva é uma violência simbólica, na medida em que trata de impor aos sujeitos formas de ver e de pensar a realidade condizente a uma perspectiva violenta desde a gênese do discurso em questão, e, nesse sentido, é preciso compreender o status dessa violência discursiva para além de implicações tão somente semânticas ou pragmáticas (SEIXAS, 2019SEIXAS, Rodrigo. Violência discursiva, argumentação e memória no cenário político brasileiro: a (des)virtuosidade do discurso público. Entrepalavras, Fortaleza, v. 9, n. 1, p. 190-208, jan./abr. 2019., p. 195).

Com o entendimento pautado nessas noções, o objetivo deste texto é compreender como a atuação de mulheres ciberativistas no combate à violência discursiva praticada por homens em redes sociais pode ser mobilizadora de multiletramentos críticos da cibercultura e contribuir com processos formativos feministas na universidade.

Com tal intenção, o texto está estruturado em quatro partes. A primeira apresenta os aspectos metodológicos do estudo. A segunda dialoga com práticas ciberativistas e violência discursiva como possiblidade de relacioná-las aos multiletramentos críticos para apoiar processos formativos feministas na universidade. As conclusões apontam para os limites, os avanços e as possibilidades do estudo, abrindo-se a perspectiva de continuidade.

Aspectos metodológicos do estudo

Para iniciar o nosso diálogo com o caráter conflitivo com as ecologias das práticas de engajamento feminino nas redes sociais, trazemos para análise a prática ativista de uma jovem mulher que milita por uma pauta social, por meio da qual dialogamos com a violência discursiva de homens contra mulheres nesses espaços. Podemos destacar práticas sociais de mulheres no ciberespaço que foram potencializadoras dos novos feminismos pós-jornadas de junho de 2013, como a primavera feminista de 2015, a greve geral internacional 8M de 2017, o movimento #EleNão, a morte de Marielle Franco em 2018, as trajetórias das hashtags #PrimeiroAssédio, #MeuAmigoSecreto, #NãoMereçoSerEstuprada, #NãoéNão, dentre outras.

Essas práticas de mulheres ciberativistas contribuem para desenvolver conhecimentos que podemos relacionar aos multiletramentos como práticas sociais críticas em Street (2014STREET, Brian. Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação. Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Parábola Editorial, 2014.). Tais práticas sociais não são separadas de suas raízes ideológicas e questões identitárias, de gênero, de inclusão social, de tempo, de espaço e de outros aspectos da cultura e, por isso, são lugares de disputas que precisam ser enfrentados, e não mascarados por processos aparentemente neutros e imparciais.

O estudo foi desenvolvido com a inspiração na pesquisa-formação na cibercultura (SANTOS, 2014SANTOS, Edméa. Pesquisa-formação na cibercultura. Santo Tirso: Whitebooks, 2014.), para a qual os processos educativos mediados por tecnologias digitais em rede instituem novos arranjos curriculares e plurais e novas demandas à formação. Pela complexidade desse tipo de pesquisa, não se separa as práticas sociais da cibercultura da formação de seus praticantes e se auto-organiza por meio dos processos instituídos na relação entre seres humanos e objetos técnicos. Para Santos (2014SANTOS, Edméa. Pesquisa-formação na cibercultura. Santo Tirso: Whitebooks, 2014.), pesquisar na cibercultura é atuar produzindo dados com os praticantes que produzem culturas e saberes no contexto das práticas em que pesquisam, formam e se formam e, ao mesmo tempo, atravessados por elas, forjam dispositivos de produção de significados e disparadores de sentidos e dilemas que circunscrevem a formação pelos praticantes culturais envolvidos.

O caso em análise é de Greta Thunberg, jovem sueca de 17 anos, que, desde agosto de 2018, falta à escola todas as sextas-feiras e senta-se na frente do Parlamento, em Estocolmo, à espera de medidas concretas dos políticos do país contra as mudanças climáticas. A partir desse gesto solitário, Greta foi conquistando adeptos ao redor do mundo, formando um movimento chamado “Fridays For Future” (Sextas-Feiras pelo Futuro). Em maio de 2019, mais de um milhão de jovens, de mais de 100 países, aderiram à greve para protestar pelo clima mundial. A partir de então, a jovem ativista ambiental ganhou destaque no cenário mundial pela sua militância e pelo seu protagonismo. A ambientalista foi escolhida como a Pessoa do Ano de 2019 pela revista americana Time, que traz a sua foto estampada na capa. Há também a obra “No one is too small to make a difference” (THUNBERG, 2019THUNBERG, Greta. No one is too small to make a difference. New York: Penguin Books, 2019.), inspirada em seus discursos mais famosos, como um chamado para o engajamento de jovens à sua luta em torno da justiça climática no mundo.

Na cibercultura, praticantes culturais deixam rastros de suas interações e criações com imagens, narrativas e autorias em redes sociais, blogs, sites, plataformas de vídeos e outros meios e interfaces, e, nesse conjunto, mulheres de todas as faixas etárias se engajam por diversas causas feministas. Esse movimento é chamado, de acordo com Matos (2018MATOS, Marlise. Movimento e teoria feminista: é possível reconstruir a teoria feminista a partir do Sul global? Rev. Sociol. Polit., Curitiba, v. 18, n. 36, p. 67-92, 2018.), de quarta onda do feminismo ou ciberfeminismo, constituído por comunidades de mulheres ativistas na internet, militantes da cibercultura, em que a multiplicação de lutas e agendas tem o ciberespaço como meio de organização e extensão de seus campos de atuação na vida cotidiana.

Há atualmente diversas práticas feministas contra as violências de gênero que ganharam destaque nas redes sociais, como a campanha #MeuAmigoSecreto, do coletivo Não Me Kahlo, em que a bandeira de luta é a desconstrução do machismo e da violência de gênero envolvendo pessoas próximas, como amigos, companheiros, chefes e parentes. Essas experiências tiveram inúmeros desdobramentos, como escrita de narrativas de si, elaboração de artigos autorais, produção e lançamento de livros, produção de vídeos, eventos, palestras, etc., no entrelaçamento com a multiplicidade de linguagens do meio digital, com os diversos modos de intersecção entre coletivos de mulheres, com diferentes modos de interação entre si e com outros eixos de gênero, produzindo significados e sentidos compartilhados em prol de agendas e pautas sociais.

No estudo de Trancoso, Maddalena e Santos (2020TRANCOSO, Michelle Viana; MADDALENA, Tania Lucía; SANTOS, Edméa. Cartografía de una red de saberes: el cotidiano de un espacio social femenino em Facebook. Interfaces Científicas, Aracaju, v. 8, n. 2, p. 249-270, 2020. (Dossiê: corpo, gênero e sexualidade na cibercultura: modos de conhecer, práticas de sociabilidade e redes educativas).), as autoras realizam uma cartografia digital de grupos feministas formados na rede social Facebook durante o período das eleições presidenciais de 2018 no Brasil, visando compreender o cotidiano da construção do espaço social feminino como uma rede educativa, por meio de gestos e conversas que promovem letramentos digitais de seus praticantes e problematizando os conceitos de interseccionalidade e machismo no contexto da discussão de gênero. E, no estudo de Trancoso e Santos (2019)TRANCOSO, Michelle; SANTOS, Edméa. Cibercultura e formação: cartografando o cotidiano de uma rede de saberes e subjetividades do feminino na cibercultura. In: OLIVEIRA, Jelson; FALABRETTI, Ericson. O futuro das humanidades: ciências humanas: desafios e perspectivas. Caixas do Sul: Educs, 2019. p. 131-154., as autoras desenvolvem uma cartografia do espaço social feminino no Facebook, no grupo “Mulheres contra Bolsonaro”, com o objetivo de compreender o cotidiano dessa rede educativa como espaço de protesto contra uma forma de política que exclui, controla e inferioriza mulheres, indagando os usos que as praticantes/pensantes fazem na sua tessitura e evocando conceitos como ficção, ritos e gestos.

Ambos os estudos citados nos auxiliaram nos aspectos teórico-metodológicos para a composição deste texto, que faz parte de um estudo mais amplo em grupos feministas em redes sociais como Facebook, Instagram e Youtube, em que uma das etapas se caracteriza como netnografia, com base em Kozinets (2014KOZINETS, Robert. Netnografia: realizando pesquisa etnográfica online. Porto Alegre: Penso, 2014., p. 9), que considera que na contemporaneidade é imprescindível compreender as “atividades sociais e interações das pessoas na internet”. Para o autor, a netnografia pesquisa culturas e comunidades online, práticas culturais complexas em ação, sua multiplicidade de ideias e significados, relacionamentos e sistemas simbólicos.

Realizamos um mapeamento de vídeos na rede social YouTube que trouxessem conteúdos sobre a participação da jovem ativista ambiental Greta Thunberg no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça. A escolha desse evento se deu em virtude da repercussão que a participação da ativista suscitou na mídia internacional, tendo em vista alguns aspectos: o número expressivo de jovens apoiadores que a acompanhou presencialmente no Fórum, os efeitos do discurso proferido no evento, a mobilização do preconceito e exacerbação da violência discursiva por representantes políticos mundiais e os sentidos atribuídos pelos praticantes das interações nas redes sociais, expressas nos comentários sobre os vídeos.

Para a compreensão sobre violência discursiva que moldou as interações de autoridades em entrevistas e declarações na mídia e os comentários dos praticantes da interação ao conteúdo dos vídeos, recorremos a Rocha e Brandão (2020ROCHA, Telma Brito; BRANDÃO, Cleyton Williams Golveia da Silva.Violência contra mulheres nas redes sociais: o caso de Elaine Perez Caparróz . Interfaces Científicas, Aracaju, v. 8, n. 2, p. 67-82, mar. 2020. (Dossiê: corpo, gênero e sexualidade na cibercultura: modos de conhecer, práticas de sociabilidade e redes educativas).), para os quais esses discursos de ódio e discriminatórios

podem ser caracterizados por qualquer expressão que desvalorize, oprima e desqualifique os sujeitos [...] situação de desrespeito social e moral, visto que reduz o ser humano à condição de objeto [...] a intenção violenta do agressor pode aparecer de maneira clara e objetiva ou subliminar (ROCHA; BRANDÃO, 2020ROCHA, Telma Brito; BRANDÃO, Cleyton Williams Golveia da Silva.Violência contra mulheres nas redes sociais: o caso de Elaine Perez Caparróz . Interfaces Científicas, Aracaju, v. 8, n. 2, p. 67-82, mar. 2020. (Dossiê: corpo, gênero e sexualidade na cibercultura: modos de conhecer, práticas de sociabilidade e redes educativas)., p. 78).

Dos inúmeros vídeos analisados na plataforma YouTube, selecionamos dois que reúnem conteúdos representativos da violência discursiva de dois líderes políticos mundiais. O primeiro é “Fórum Econômico Mundial em Davos foi palco de dois discursos antagônicos”, veiculado no canal Correio do Povo (Brasil) e que aborda as declarações do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. O segundo, denominado “Greta Thunberg: pirralha para Bolsonaro, personalidade para Time”, do canal Catraca Livre (Brasil), discute as declarações do presidente do Brasil sobre a participação de Greta no mesmo evento.

Essa seleção foi baseada também em critérios como maior número de visualizações, maior número de curtidas e maior número de comentários dos praticantes da interação ao conteúdo veiculado nos vídeos. Por meio desses gestos e pelas narrativas, os praticantes constroem significados e sentidos que legitimam ou desqualificam a participação de mulheres em práticas sociais no ciberespaço. Na análise discutimos a relação entre práticas ciberfeministas, violências discursivas de homens contra mulheres e multiletramentos críticos da cibercultura para compor processos formativos na universidade.

Conhecimentos críticos para os feminismos na cibercultura

O vídeo “Fórum Econômico Mundial em Davos foi palco de dois discursos antagônicos”, veiculado no canal Correio do Povo (Brasil), destaca que, enquanto a ativista ambiental Greta Thunberg acusou as potências mundiais de não fazerem nada para evitar o aumento da temperatura da terra, destacando que “ideologias políticas e estruturas econômicas não foram capazes de enfrentar as emergências climáticas e criar um mundo sustentável”, o presidente norte-americano Donald Trump defendeu um posicionamento antagônico e alertou para que o mundo não dê ouvidos a “alarmistas”.

FIGURA 1
ABERTURA DO VÍDEO NO CANAL CORREIO DO POVO

Este vídeo recebeu inúmeros comentários, geralmente feitos por homens. Entre eles, houve aqueles que timidamente apoiaram a ativista, sendo que a grande maioria aprovou a postura agressiva do discurso do presidente dos Estados Unidos, conforme mostra o comentário sobre o vídeo:

Pensei que esse fórum, era pra pessoas, com autoridades e qualidade de conhecimento, mas dar espaço para uma criança que precisa ainda crescer, estudar, aí sim com conhecimento vir a dar pitaco no mundo, uma criança manipulada, onde estão esses figurões que não dão o troco na hora desmentindo essa farsa (OS DISCURSOS..., 2019OS DISCURSOS antagônicos entre Trump e Greta em Davos. [S.l.: s.n.] , 2020. 1 vídeo (3 min). Publicado pelo canal Correio do Povo play Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9SkRyjq1ym8. Acesso em: 02 mar. 2020.
https://www.youtube.com/watch?v=9SkRyjq1...
).

O vídeo destaca que, indo ao encontro da declaração do presidente, o secretário do Tesouro dos EUA, Steven Minuchin, além de ironizar perguntando “Quem é Greta Thunberg?”, declarou que a ativista deveria “primeiro estudar economia para depois voltar a procurá-lo”. Ou seja, em outras palavras, disse que sequer conhecia a pessoa a que se anunciava e sutilmente a chamou de ignorante. Posturas que funcionam como instrumentos sutis de superioridade e machismo para controlar e atacar mulheres, pelo discurso de opressão e violência simbólica.

Para Rocha e Brandão (2020ROCHA, Telma Brito; BRANDÃO, Cleyton Williams Golveia da Silva.Violência contra mulheres nas redes sociais: o caso de Elaine Perez Caparróz . Interfaces Científicas, Aracaju, v. 8, n. 2, p. 67-82, mar. 2020. (Dossiê: corpo, gênero e sexualidade na cibercultura: modos de conhecer, práticas de sociabilidade e redes educativas)., p. 77-78), “A raiz do problema está exatamente nos violentos processos culturais que cultivam a hegemonia do homem opressor e a submissão da mulher, ratificados pelo (mau) uso das redes sociais, que corroboram preconceitos presentes em nossa vida off-line”. A violência assume “formas variadas e precisa ser interpretada e definida em suas várias faces, no mundo off-line ou online e por meio dos eventos em que ela se expressa, se repercute e se reproduz por meio da linguagem e do espaço em que é professado” (ROCHA; BRANDÃO, 2020ROCHA, Telma Brito; BRANDÃO, Cleyton Williams Golveia da Silva.Violência contra mulheres nas redes sociais: o caso de Elaine Perez Caparróz . Interfaces Científicas, Aracaju, v. 8, n. 2, p. 67-82, mar. 2020. (Dossiê: corpo, gênero e sexualidade na cibercultura: modos de conhecer, práticas de sociabilidade e redes educativas)., p. 78).

As vozes antes silenciadas de mulheres atualmente se fazem ouvir nas redes sociais, sem lideranças e sem mediadores, e reafirmam seu lugar de fala, de formação de identidades e subjetividades, contribuindo para sensibilizar outras mulheres ao engajamento e à resistência. Esta reapropriação não encontra correspondente na prática e no discurso conservador e autoritário de lideranças políticas para as mesmas pautas, que são igualmente de responsabilidade do Estado enquanto instituição de manutenção das relações de gênero. A partir do ciberativismo de jovens mulheres, é possível haver uma aproximação com propostas concretas para subsidiar políticas públicas que dialogam com grupos que vivem em situação de desigualdades, vulnerabilidades e violências.

Ao situarmos os usos e as produções feitas por ciberativistas na internet na perspectiva social e abordagem crítica dos multiletramentos (STREET, 2014STREET, Brian. Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação. Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Parábola Editorial, 2014.), percebemos a complexidade dessas práticas e os significados atribuídos por praticantes das redes sociais, no sentido de que essas falas não são institucionalizadas e, portanto, são consideradas ilegítimas, devendo por isso ser rechaçadas, pois

a institucionalização de um modelo particular [...] opera não só por meio de formas particulares de fala e de textos, mas no espaço físico institucional, que é separado do espaço “cotidiano” para fins de ensino e aprendizagem e que deriva de construções sociais e ideológicas mais amplas (STREET, 2014STREET, Brian. Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação. Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Parábola Editorial, 2014., p. 130).

Práticas ciberculturais de jovens mulheres como as de Greta evidenciam as relações de poder engendradas nos processos históricos, culturais e políticos, permeados por valores e ideologias que afetam diretamente as relações de gênero. Essas práticas ativistas são continuamente marcadas por rearranjos de sentidos, reconhecidas por parcela de apoiadoras e pela imprensa, mas também enfrentam o preconceito e a intolerância de homens que, historicamente, impõem sua visão patriarcal de mundo, suas crenças e seus valores sobre as mulheres consideradas inferiores.

Nesse sentido, Jenkins (2009JENKINS, Henry. Cultura da convergência. 2. ed. São Paulo: Aleph, 2009.) defende a participação plena de jovens no uso da internet, no sentido de unir o conhecimento que possuem em suas práticas cotidianas com o conhecimento coletivo ou a inteligência coletiva, contribuindo para expandir letramentos. Reconhecer práticas ciberculturais e problematizá-las em atos de currículo na universidade, permeados por mesclas de linguagens como os vídeos analisados neste estudo e outras manifestações, contribui para que a extensão das lutas praticadas por mulheres nas ruas ganhe força nas redes sociais online, mostrando as diferentes variáveis vinculadas ao contexto social e político que legitimam ou não suas ações e discursos, mobilizando multiletramentos críticos.

O vídeo “Greta Thunberg: pirralha para Bolsonaro, personalidade para Time”, do canal Catraca Livre (Brasil), destaca que a jovem sueca é atualmente um dos principais nomes da causa ambiental mundial. Ela é protagonista de um movimento internacional que chama a atenção de governantes, ONGs e sociedade civil para uma questão urgente e atual: os impactos das mudanças climáticas, apontando críticas ao modelo mundial de consumo e cobrando ações concretas de governantes e instituições para o enfrentamento do problema. Após o Fórum, em uma declaração dada à imprensa, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, destacou que “A Greta já falou que os índios morreram porque estão defendendo a Amazônia. É impressionante a imprensa dar espaço para uma pirralha dessa aí. Uma pirralha”. Em resposta à declaração do presidente brasileiro, Greta usou o discurso apenas para atualizar o seu perfil no Twitter com a descrição “Pirralha”.

FIGURA 2
PERFIL DA GRETA NO TWITTER

Com este gesto, a jovem ciberativista mostrou que luta e resistência por justiça social podem ser ressignificadas, assim como poder e ideologia, pois, do ponto de vista do seu empoderamento enquanto jovem mulher ativista ambiental, com este gesto, ela representa seus atuais 4,1 milhões de seguidores no Twitter , mostrando que, mesmo em uma relação desigual na hierarquia de gênero, acentuada pelo preconceito etário ao ser considerada uma “pirralha”, sai do silêncio histórico e faz ecoar a sua voz junto a outras jovens mulheres e apoiadores da causa ambiental mundial.

Especificamente no Brasil, é importante destacar, como aponta Matos,

que as “vozes feministas” aqui sempre surgiram diante das muitas estruturas opressoras e conservadoras, mesmo precocemente, desde o século XVII e XVIII. Apesar da existência de forte cultura patriarcal e de uma sociedade predominantemente masculina, sobretudo em termos políticos, as vozes feministas brasileiras aparece(ra)m dos lugares menos esperados e em momentos ainda menos propícios (MATOS, 2018MATOS, Marlise. Movimento e teoria feminista: é possível reconstruir a teoria feminista a partir do Sul global? Rev. Sociol. Polit., Curitiba, v. 18, n. 36, p. 67-92, 2018., p. 79).

Além dos adjetivos pejorativos “alarmista”, “ignorante” e “pirralha”, desferidos nas declarações das autoridades mundiais, nos comentários aos vídeos no YouTube, outros adjetivos agressivos também foram atribuídos à Greta, como: “histérica”, “perturbada”, “autista”, “comórbida”, “deficiente mental” , “fraude”, “porca feminista” e outros. Outra parte dos praticantes da interação reproduziu o discurso e posicionamento do presidente do Brasil, como comentado abaixo, o qual teve dezessete respostas.

A piralha escolhida pelo marxismo, não anda de avião devido a emissão de poluentes e não possui energia sustentável, mas anda de trem, carro e barco... nem falo que essa vontade é dela causar pois ela é uma moleca de manobra do George Soros...

A função e instrução dela é impactar... ser contrária a medidas comuns ser extremista até mesmo em simples perguntas q fazem a ela, ela chega a ser além de uma menina um tanto mal educada e grosseira nas respostas... veja q não existe entrevista com ela... ela nunca teve linha de diálogo e debate franco e aberto pra ver o que ela pensa [...] (GRETA ..., 2019GRETA Thunberg: pirralha para Bolsonaro, personalidade para Time. [S. l.: s. n.], 2019. 1 vídeo (5 min). Publicado pelo canal Catraca Livre. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jBIsuAqoNXw. Acesso em: 20 mar. 2020.
https://www.youtube.com/watch?v=jBIsuAqo...
).

Greta se tornou alvo do posicionamento de homens que negam a existência do aquecimento global e usam a violência discursiva como marcadora que se soma a estratos de violência estatal, institucional e política contra mulheres. A violência discursiva dessas autoridades e dos usuários das redes sociais demonstra, por parte desses homens, a superioridade intelectual, o poder político e o controle das ações de uma jovem mulher que, significada nos processos históricos do patriarcado, do colonialismo, do racismo, do autoritarismo e da opressão, reproduz práticas que reforçam a sua condição de mulher, e por isso, inferior e desqualificada para práticas reivindicatórias e políticas.

Para Rocha e Brandão (2020ROCHA, Telma Brito; BRANDÃO, Cleyton Williams Golveia da Silva.Violência contra mulheres nas redes sociais: o caso de Elaine Perez Caparróz . Interfaces Científicas, Aracaju, v. 8, n. 2, p. 67-82, mar. 2020. (Dossiê: corpo, gênero e sexualidade na cibercultura: modos de conhecer, práticas de sociabilidade e redes educativas)., p. 70), “a análise das causas e das relações que geram condutas violentas impõe desafios”, como: reconhecimento das especificidades das situações; compreensão de processos mais abrangentes que produzem a violência; combate ao preconceito etário; e combate à violência estrutural (opressão exercida pelos sistemas econômico, político e social, e pelas instituições em geral sobre grupos, classes, nações, indivíduos). Os autores destacam ainda que

não existe apenas uma percepção do que seja violência, mas uma multiplicidade de atos violentos, cujas significações devem ser analisadas a partir das normas, das condições e dos contextos sociais e, referindo-se as mulheres na contemporaneidade, sempre considerando a raça, classe e gênero (ROCHA; BRANDÃO, 2020ROCHA, Telma Brito; BRANDÃO, Cleyton Williams Golveia da Silva.Violência contra mulheres nas redes sociais: o caso de Elaine Perez Caparróz . Interfaces Científicas, Aracaju, v. 8, n. 2, p. 67-82, mar. 2020. (Dossiê: corpo, gênero e sexualidade na cibercultura: modos de conhecer, práticas de sociabilidade e redes educativas)., p. 79).

Os projetos socioculturais e econômicos da globalização neoliberal operam por relações de poder que se concretizam em desigualdades que atingem grupos sociais distintos e são materializados na naturalização da violência e desumanização, refratadas também na linguagem usada no ciberespaço, como consequência histórica da hierarquia social e econômica entre homens e mulheres. Do ponto de vista dos multiletramentos, para Street (2014STREET, Brian. Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação. Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Parábola Editorial, 2014.), as regras para o engajamento de praticantes são continuamente afirmadas e reforçadas dentro de práticas sociais, confirmando relações de hierarquia, autoridade e poder situados no contexto cultural em que os discursos são produzidos. Ao tratar das características dos multiletramentos dos para Rojo e Moura (2012ROJO, Roxane; MOURA, Eduardo (org.). Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola Editorial, 2012., p. 23), destacam que “eles fraturam e transgridem as relações de poder estabelecidas, em especial as relações de propriedade (das máquinas, das ferramentas, das ideias, dos textos [...]”.

Práticas ciberativistas engendram o confronto entre o poder historicamente estabelecido e as lutas e resistências contrárias de mulheres que contribuem, conforme Hollanda (2018HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.). Explosão feminista: arte, cultura, política e universidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.), como força política fundamental para romper barreiras nas relações de hierarquização, autoritarismo e controle, possibilitando a construção de um cenário de resistência contra a opressão, em especial em um momento em que, em nível mundial, muitas conquistas e direitos estão sob ameaça de retrocessos.

Os feminismos de quarta onda, conforme Matos (2018MATOS, Marlise. Movimento e teoria feminista: é possível reconstruir a teoria feminista a partir do Sul global? Rev. Sociol. Polit., Curitiba, v. 18, n. 36, p. 67-92, 2018., p. 81), contribuem com a compreensão da urgência das práticas e dos discursos transnacionalizados e em rede como uma maneira de resistência e como uma forma propositiva de um novo modelo de desenvolvimento altermundialista

conhecido como feminismo transnacional: um movimento atento às intersecções entre nacionalidade, raça, gênero, sexualidade e exploração econômica numa escala mundial, em decorrência principalmente do surgimento do capitalismo global [...] por sua luta de cunho internacional contra o neoliberalismo e pela busca por maior justiça social (MATOS, 2018MATOS, Marlise. Movimento e teoria feminista: é possível reconstruir a teoria feminista a partir do Sul global? Rev. Sociol. Polit., Curitiba, v. 18, n. 36, p. 67-92, 2018., p. 81).

Tais questões mostram a relevância de práticas ciberfeministas de mulheres que, nas redes sociais, do individual ao coletivo, contribuem para desconstruir modelos de violências como a discursiva praticada por homens contra mulheres na vida cotidiana, buscando suas raízes históricas e culturais para construir conhecimentos críticos.

Considerações finais

As reflexões em torno das práticas ciberativistas, que envolvem uma multiplicidade das linguagens que circulam em redes sociais, mostram o seu caráter heterogêneo e multifacetado, engendrado na cultura e história, e implicam na demonstração de poder também pelo discurso. É nessas práticas sociais que os multiletramentos ganham força, pois os praticantes atuam por uma diversidade de modos de interação, usos, produções, informações e saberes na construção de novos conhecimentos em diferentes espaços e lugares conectados por tecnologias digitais em rede para criar, compartilhar e colaborar coletivamente.

O potencial do cenário social e tecnológico contemporâneo, em constantes transformações, possibilita rearranjos nas práticas de mulheres ativistas no ciberespaço e favorece o diálogo com outros processos formativos. Foi nessa direção que este texto buscou compreender como a atuação de mulheres ativistas pode ser mobilizadora de multiletramentos críticos da cibercultura e contribuir com processos formativos feministas na universidade.

Com a análise dos vídeos veiculados no YouTube sobre a participação da jovem ativista ambiental Greta Thunberg no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, foi possível perceber que a violência discursiva que moldou a reação de autoridades mundiais e as interações dos praticantes expressas em seus comentários não se trata apenas de formas opressoras do discurso, como representação de uma ideia odiosa proferida a uma jovem mulher, mas sim de questões históricas relacionadas às estruturas patriarcais e conservadoras de uma sociedade em que o poder político é predominantemente masculino, que silencia as vozes de mulheres e invisibiliza atuações e discursos, sobretudo, de engajamento social e político pela causa ambiental que envolve interesses econômicos.

As redes sociais no ciberespaço, como espaços de luta e resistência, podem contribuir para o empoderamento de mulheres, ressignificando valores e desenvolvendo a participação ativa e crítica, como ainda subsidiar políticas públicas que dialoguem com as desigualdades e violências simbólicas que permeiam as relações de gênero e suas pautas e lutas. A ocupação desses espaços promove mudanças, remodela e desafia os coletivos de mulheres a repensar estratégias de atuação, papéis, repertórios de mobilização, modos de produção, compartilhamento e difusão de informações e saberes, sem mediadores nem fronteiras geográficas e espaciais.

Como conhecimentos críticos que mobilizam multiletramentos da cibercultura, a experiência analisada aponta aspectos relevantes para se combater práticas históricas de violências de homens contra mulheres, como a violência discursiva, o preconceito etário e a superioridade intelectual. E contribui também para a promoção de pautas de gênero com perspectivas de horizontalização e de diálogo para a garantia de direitos de transnacionalização dos feminismos; para o aprofundamento de compreensões dos feminismos norte global e sul global para redesenhar processos de institucionalização de demandas sociais; e para forjar novos formatos de políticas públicas para a democratização de gênero. Além disso, favorece a aproximação das práticas e pautas ciberativistas de mulheres nas redes sociais com os processos formativos de outras mulheres na universidade, sendo para isso necessário desenvolver dispositivos online para concretizar práticas de formação e desenvolver conhecimentos críticos.

Os limites da perspectiva social e abordagem crítica dos multiletramentos da cibercultura se dão no sentido de efetivar a inclusão de pautas e temáticas de gênero como atos de currículo a serem praticados no cotidiano da formação de mulheres, rompendo a lógica do patriarcado e reconhecendo a legitimidade dos movimentos ciberativistas como redes educativas para a construção de práticas transformadoras.

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    Além disso a ativista participou das edições 24 e 25 da Conferência do Clima da ONU (COPs), realizadas respectivamente na Polônia e na Espanha, do Encontro de Cúpula de Ação Climática da ONU em Nova York, do Fórum Econômico Mundial de Davos, discursou no Parlamento Europeu, reuniu-se com o Papa Francisco e foi indicada ao Nobel da Paz em 2019 e 2020. Disponível em: https://www.ebiografia.com/greta_thunberg/.
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    Este livro foi também lançado em português no Brasil, em fevereiro de 2020, pela Companhia das Letrinhas, assim como o livro “A Nossa Casa Está a Arder”, lançado pela Editorial Presença, em Portugal.
  • 3
    Greta possui também 2.867.971 curtidas na sua página do Facebook e 10,2 milhões de seguidores no Instagram, conforme consulta aos seus perfis realizada no dia 30 de março de 2020.
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    Termo usado para fazer alusão ao fato da jovem ser portadora da Síndrome de Asperger, uma forma leve de autismo, diagnosticada quando Greta tinha oito anos de idade e que afeta as suas capacidades de interação social. Disponível em: https://www.ebiografia.com/greta_thunberg/.

REFERÊNCIAS

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  • GRETA Thunberg: pirralha para Bolsonaro, personalidade para Time. [S. l.: s. n.], 2019. 1 vídeo (5 min). Publicado pelo canal Catraca Livre. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jBIsuAqoNXw Acesso em: 20 mar. 2020.
    » https://www.youtube.com/watch?v=jBIsuAqoNXw
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    28 Jul 2020
  • Aceito
    20 Set 2020
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